A meditação que temos por alvo, como certamente já pode ser entrevisto,
atine à legitimidade e ao seu entranhamento no exercício das atividades policiais
judiciárias, as quais, a confirmarem sua compatibilidade constitucional, ao menos
neste Brasil de início de terceiro milênio, deverão projetar-se muito além do mero
legalismo. José Afonso da Silva bem procede à devida distinção : “O princípio da
legalidade, num Estado Democrático de Direito, funda-se no princípio da
legitimidade, senão o Estado não será tal”. Depois, citando D’Entrève, ainda
esclarece :
1
Como proclamavam os romanos, “Scire legis nos est verba earum tenere, sed vim ac potestatem”
(conhecer a lei não é compreender suas palavras, mas seu alcance e força).
de uma sociedade livre’, tarefa exigida expressamente do
Estado brasileiro (art. 3°, I)”. 2
Como se vê, trata-se de texto claro, direto e peremptório, cujo teor deveria
ser incapaz de semear dúvidas razoáveis ou de levantar plausíveis incertezas, ao
menos aos operadores do Direito. Trata-se, na verdade, de um comando de fácil
entendimento (o que não quer dizer, saliente-se desde já, simples atendimento), o
qual tem por destinatários aqueles detentores do dever-poder de proceder à prisão
de alguém, donde avulta familiar a figura do delegado de Polícia.
Pois bem, nos fixemos nesta terceira hipótese: o que restará a ser então
providenciado pela autoridade policial? Cremos que possa ser tranquilamente
percebido o delineamento de uma conjuntura verdadeiramente preocupante,
concernente a real dificuldade de se assegurar assistência jurídica, mediante o
concurso de advogado, àqueles que, nos termos constitucionais, a ela fazem jus na
esfera dos procedimentos de polícia judiciária.
E não bastasse isso, cabe ainda não olvidar das múltiplas implicações que
podem decorrer dessa espécie de “auxílio”, que talvez possa e venha a ser até mal
interpretado – de forma leviana, mediante a sugestão, por exemplo, de alguma
espécie de favorecimento pela autoridade ao amigo advogado, aliciando potenciais
clientes – e identificado como expediente violador da impessoalidade5 e/ou da
4
É de se assinalar que a jurisprudência parece orientar-se no sentido de que o desrespeito ao direito
do preso em se ver assistido por advogado não conduz à nulidade da prisão, porquanto, como já
aduzido, o atendimento desse comando constitucional não pode ser confundido com “condição de
validade do flagrante” (TACRIM-SP. 9ª C. – HC – j. 5.5.93 – Rel. Marrey Neto – RT 703/294). Vide a
respeito julgados colecionados por Maurício Zanóide de Moraes na obra Código de Processo Penal
e sua Interpretação Jurisprudencial (coordenação de Alberto Silva Franco e Rui Stocco. São Paulo:
Editora Revista dos Tribunais, 1999, vol. 1, p. 295-296). Interessante, contudo, ponderar que da
Súmula 523 do Supremo Tribunal Federal - No processo penal, a falta da defesa constitui nulidade
absoluta, mas a sua deficiência só o anulará se houver prova de prejuízo para o réu“- pode-se
depreender uma possibilidade de anulação até mesmo do processo cuja origem remonta à prisão em
vista da qual teria ocorrido a telada omissão, desde que uma vez comprovado que dela
indefectivelmente teria ocorrido a vulnerabilidade da atividade defensiva como um todo (vide a
respeito Ada Pellegrini Grinover, Antonio Scarance Fernandes e Antonio Magalhães Gomes Filho no
clássico As Nulidades no Processo Penal, editora Revista dos Tribunais). Retornando ao plano
prático, merece ser transcrita recente decisão que traz um novo prisma para a visualização da
questão posta : “Processual penal - furto qualificado - nulidade - prisão em flagrante - flagrante
impróprio - ausência de advogado – requisição do paciente. Inexiste nulidade na prisão em flagrante
de acusado que se escondeu em um matagal, sendo localizado horas depois do delito. De outro lado,
a ausência de advogado por ocasião da lavratura do flagrante não nulifica o ato quando o paciente é
informado de seus direitos constitucionais e expressamente declara que se reserva no direito de só
falar em juízo. Ordem denegada. STJ - HC 24510/MG ; Habeas Corpus 2002/0120613-3 – Rel. Min
Jorge Scartezzini- 5ª. T. - 6/3/2003 – unânime - DJ 02.06.2003 p. 310.”. Por derradeiro, e de qualquer
forma, não se pode duvidar que a vertente desatenção, ao menos hipoteticamente, possa levar à
responsabilização ao menos disciplinar do seu autor.
5
Como explicado por Paulo Magalhães da Costa Coelho, “o princípio da impessoalidade não veda
que a Administração faça discriminações. A vedação incide sobre a possibilidade de descrímens
fundados em razões pessoais” (Manual de Direito Administrativo. São Paulo : Saraiva, 2004, p.
50).
moralidade6, princípios diretivos das atividades administrativas7 cuja inobservância
teoricamente reverbera em preceitos proibitivos da legislação penal e nos cânones
conformadores de improbidade, consoante Lei n° 8.429/92, que em seu art. 11
afirma constituir “ato de improbidade administrativa que atenta contra os princípios
da Administração Pública qualquer ação ou omissão que viole os deveres de
honestidade, imparcialidade, legalidade e lealdade às instituições”.
É certo, contudo, que esse não é o único ponto que deve ser focalizado,
cabendo ainda lançar luzes – jamais apriorísticas dúvidas, frise-se bem - sobre a
qualidade e/ou a efetividade da assistência prestada por aqueles que se movem sob
a propulsão única – quando o caso – de um sentimento de estima e/ou de
consideração pessoal voltado ao ser humano pois, ao fulano ou sicrano titular de
um cargo público. Não percamos de vista, uma vez mais, que estamos nos referindo
6
Celso Antonio Bandeira de Mello, deslindando o âmbito e o conteúdo da moralidade administrativa,
pontifica : “Segundo os cânones da lealdade e da boa fé, a Administração haverá de proceder em
relação aos administrados com sinceridade e lhaneza, sendo-lhe interdito qualquer comportamento
astucioso, eivado de malícia, produzido de maneira a confundir, dificultar ou minimizar os direitos por
parte dos cidadãos” (Curso de Direito Administrativo. 17ª ed. rev. e atual.. São Paulo : Malheiros,
2004, p. 109).
7
Consoante ensinava Sérgio Marcos de Moraes Pitombo, “a polícia, enquanto judiciária, e o inquérito
que ela faz, exsurgem administrativos, por sua atuação e forma, mas judiciários, nos seus fins”
(Arquivamento do Inquérito Policial – Sua Força e Efeito. Inquérito Policial : Novas Tendências.
Belém : CEJUP, 1986, p. 22). Daí depreende-se que as autoridades policiais, no exercício da
focalizada função, acham-se absolutamente presos à força cogente dos princípios dirigentes da
Administração Pública.
a chamamentos, por assim dizer, que ao menos em boa parte das vezes são
formulados no período noturno, nas madrugadas, em finais de semana e feriados,
ou seja, em momentos próprios tão-somente ao recesso e ao descanso
profissionais.
8
Com esse sentido assegurar significa, conforme se depreende do Dicionário Eletrônico Houaiss da
Língua Portuguesa, “tornar (algo) infalível, garantido, seguro; dotar (ação ou evento) de garantias”.
O que, destarte, pretendemos remete à dotação, à autoridade policial, de
condições concretas e eficientes para bem atender ao comando constitucional em
tela, assegurando - em letra e espírito – a assistência jurídica instituída à garantia
dos direitos individuais do preso. Confiamos, nesse sentido, no coincidente interesse
da digna classe dos advogados, que induvidosamente tenciona garantir a efetiva,
pronta e profissional participação de seus membros – ao largo de alguma conotação
de quebra-galho – também na administração da fase primária da justiça criminal.
Outro, aliás, não é o entendimento possível ante as previsões contidas na Lei nº
8.906/94, que dispõe sobre o Estatuto da Advocacia e a Ordem dos Advogados do
Brasil – OAB, e em especial em seus artigos:
9
Manifestamos nossa concordância com o douto asserto de Euro Bento Maciel, que reportando-se às
prerrogativas do advogado cita “a percepção de justa remuneração por sua relevante e indispensável
atuação profissional, o que parece óbvio, posto terem os honorários, além de sua nobreza, inclusive,
nítida feição alimentar” (apud Rogério Lauria Tucci. Direitos e Garantias Individuais no Processo
Penal. 2ª ed. rev. e atual.. São Paulo : RT, 2004, p.92).
10
Vide os termos desse ajuste no sítio da Procuradoria Geral do Estado:
www.pge.sp.gov.br/convenios.
pois a tabela de honorários fixada através do parágrafo segundo da cláusula quinta
remete apenas aos serviços prestados junto ao Poder Judiciário.
Bem se vê, dessa forma, que a nossa discorrida pretensão poderia ser
celeremente satisfeita com a inclusão, no visado convênio e em seu correspondente
anexo, de dispositivo jungido ao pleno atendimento do contido no art. 5°, inciso
LXXIV, da Lei Fundamental, “in verbis”: “o Estado prestará assistência jurídica
integral e gratuita aos que comprovarem insuficiência de recursos”.
14
HADDAD, Carlos Henrique Borlido. O novo interrogatório. Revista Brasileira de Ciências
Criminais. São Paulo : RT; n. 55, p. 246-247.
15
HASSEMER, Winfried. Segurança pública no estado de direito. Tradução de Carlos Eduardo
Vasconcelos. Revista Brasileira de Ciências Criminais. São Paulo: RT : Instituto Brasileiro de
Ciências Criminais, n. 5, p 62.
mestra sobre a encimada iniciativa, dando-lhe a conhecer, de um lado, as
dificuldades do exercício policial judiciário, notadamente quando executado aos
finais de semana e no período noturno, e de outro o empenho com que os
delegados de Polícia majoritária e normalmente se hão com o escopo de executar
suas funções dentro dos adequados parâmetros técnicos e jurídicos.
16
É de se ter em vista que o projeto de lei complementar n° 18/2005, que objetiva organizar a
Defensoria Pública paulista, prevê, em seu art. 5°, VII, como uma dentre as várias atribuições desse
órgão, o dever de “atuar nos estabelecimentos policiais, penais e de internação, inclusive de
adolescentes, visando assegurar à pessoa, sob quaisquer circunstâncias, o exercício dos direitos e
garantias individuais”.
contexto amplificado, sobre as dimensões e as oportunidades da defesa no inquérito
policial.
Agora, a par dessas decisões, nem tão abrangentes nem mesmo recentes,
lancemo-nos à consideração ainda dos seguintes posicionamentos doutrinários, não
apenas convergentes mas também complementares, cujos irrefutáveis argumentos
bem se fazem úteis, em seu emprego dialético, a alimentar a reflexão colimada.
19
MOURA, Maria Tereza Rocha de Assis. Justa Causa para a Ação Penal. São Paulo : Editora
Revista dos Tribunais, 2001, p. 292.
também o enfoque do processo administrativo do inquérito policial à luz do disposto
no art. 5°, LV da Constituição”. 20
Destarte, aquilo que foi acima tratado como uma novidade não aflora, na
verdade, ao menos no cenário jurídico internacional, como algo original ou
extraordinário. Não nos parece, até por esse motivo, que os comentados avanços
possam se cuidar de mudanças tão difíceis de se aceitar como juridicamente
razoáveis, mormente quando nos encontramos num Estado constitucionalmente
definido como Democrático de Direito, comprometido com a dignidade da pessoa
humana, que nos direitos fundamentais encontra o seu ponto mais alto e de
convergência.
20
GRINOVER, Ada Pellegrini. O Interrogatório como Meio de Defesa. Revista Brasileira de Ciências
Criminais. São Paulo : Editora Revista dos Tribunais, n. 53, 2005, p. 191-192. Vide, também, com
esse entendimento, Fernando Augusto Henrique Fernandes, em Interrogatório Contraditório no
Inquérito Policial, Boletim IBCCRIM. São Paulo, v.12, n.138, p. 6, mai.2005.
21
GARCIA, Maria. O Devido Processo Legal e o Direito de Permanecer Calado. A Tortura. Cadernos
de Direito Constitucional e Ciência Política. São Paulo : Editora Revista dos Tribunais, n. 20, p.
104, jul.set.1998.
22
EDELMAN, Bernard. Universalidade e Direitos do Homem.Processo Penal e Direitos do Homem.
Rumo à concientização européia. Organização de Mirelle Delmas-Marty. Barueri : Manole, 2004, p.
128.