editorial
A todos os amigos
nº 1
Pressionado por reivindicações da sociedade civil, o Estado brasi-
leiro, a partir dos anos 1970, vem ampliando os recursos legais
que reconhecem direitos até então negados à população negra.
Parte dessa ampliação significou o reconhecimento da legiti-
midade da posse sobre espaços físicos onde a população afro-
brasileira inscreveu, e por meio dos quais continua escrevendo,
sua memória, sua cultura e sua religiosidade. São a esses espa-
• Publicação de KOINONIA
pela primeira vez o reconhecimento de situa- função do fracasso da reforma agrária da Nova
ções de posse e uso da terra desprezado du- República. Elas só seriam retomadas, parcial-
rante os períodos anteriores. Em resposta a es- mente, em meados da década de 1990, em
sas reivindicações, os órgãos fundiários come- função das discussões abertas pelas demandas
çaram a elaborar novos instrumentos técnicos, de regularização das terras como “comunida-
que deveriam ser capazes de registrar e cadas- des remanescentes de quilombos”.
trar sistematicamente tais áreas de uso co-
mum. As “terras de uso comum”, que os ór-
gãos fundiários passaram a designar como PARA SABER MAIS
Leia o artigo “Na Trilha dos Grandes Projetos”, escrito
“ocupações especiais”, incluem inúmeras situ-
por Alfredo Wagner B. Almeida que se encontra no
ações de posse e uso da terra que não se en- livro “Terras de Preto, Terras de Santo, Terra de Índio”,
caixavam nas categorias até então utilizadas organizado por J. Hábette e Edna Castro e editado
pelos órgãos governamentais, isto é, que não pela NAEA/UFPA, Belém, em 1989.
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um território
Campinho da Independência
No dia 21 de março de 1999, Dia Internacional apresenta fortes potenciais turísticos. Paraty,
pela Eliminação da Discriminação Racial, o Ins- além de ser tombada pelo Patrimônio Histórico
tituto de Terras e Cartografia do Estado do Rio Nacional, possui uma área de preservação am-
de Janeiro (ITERJ) e a Fundação Cultural Palma- biental e belas praias, o que despertou a aten-
res entregaram o título definitivo à Comunida- ção de empresários interessados na especula-
de Remanescente de Quilombo de Campinho ção imobiliária possibilitada pela abertura da
da Independência, localizada na zona litorânea rodovia Rio-Santos.
ao Sul do Estado do Rio de Janeiro no municí- Diante da ameaça de grileiros que começam
pio de Paraty. Trata-se da primeira titulação de a aparecer na área tentando expulsá-los de
terras do Estado baseada no artigo 68 da Cons- suas terras, os moradores de Campinho reagi-
tituição Federal (ADCT) que assegura às comu- ram e se organizaram. Em 1975, os negros de
nidades negras rurais a propriedade definitiva Campinho foram à Justiça em busca de seus
das terras que ocupam. A titulação foi feita de direitos antes daqueles que os ameaçavam.
forma coletiva em nome da Associação de Mo- Nesse processo de organização fundaram a As-
radores de Campinho. sociação de Moradores, pediram ajuda à Igreja
A área total da comunidade é de 287 hecta- Católica (através da Comissão Pastoral da Ter-
res ocupados por mais de 80 famílias negras ra) e associaram-se ao Sindicato de Trabalha-
divididas em diversos sítios familiares usados dores Rurais de Paraty. Chegaram a entrar com
como área de moradia e/ou trabalho. Todos o pedido de usucapião para garantirem a pos-
que moram em Campinho da Independência, se da terra e conseguiram sua desapropriação
conhecido na região como um “bairro de pre- pelo Estado. Mas, apesar disso, as terras não
tos”, são descendentes das irmãs Antonica, foram repassadas legalmente à comunidade.
Marcelina e Luíza, consideradas por todos as No período que vai de 1975 a 1990 a vida dos
fundadoras da comunidade. moradores de Campinho foi marcada pela re-
As terras de Campinho da Independência sistência e pela luta em se manter nas terras
foram doadas pelo “senhor” a essas três irmãs, herdadas de seus ancestrais. Passados quase
escravas da Casa Grande, sede da antiga Fa- trinta anos de empenho, a comunidade de
zenda Independência. Elas ganharam as terras Campinho da Independência finalmente tem a
e transmitiram os direitos de uso aos seus fi- propriedade de suas terras reconhecida.
lhos e netos. De lá para cá são mais ou menos
seis gerações ocupando a área.
Até a década de 1970 não havia disputa pe-
las terras da comunidade de Campinho. Os ha-
nº 1 • fevereiro de 2001