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REFLEXOS NO ESPELHO PARTIDO
GALENO PROCÓPIO M. ALVARENGA
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Esse livro faz parte do acervo de publicações do Psiquiatra e Psicólogo


Galeno Alvarenga. Disponibilizamos também a versão impressa, que
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Índice
5 INTRODUÇÃO
15 UNIDOS PARA SEMPRE
30 O INCESTO; CEGA OBSESSÃO
39 NA SERENA MANHÃ DE DOMINGO
48 UM DIA DE CÃO
61 DEPOIS DO CHOQUE, A CONSULTA
75 PAIXÕES E DESENCANTOS
84 NA ESQUINA DA CIDADE BAIXA
104 ENCONTRANDO SEFIRA
116 MANICÔMIO: LOUCURAS DE UMA PAIXÃO
135 ADEUS ÀS ILUSÕES
146 A COMÉDIA HUMANA
160 JOGO DE PALAVRAS
173 ROMPENDO O SILÊNCIO
190 IRMÃOS ENTRE QUATRO PAREDES
212 CTI – A UM PASSO DO FIM
226 CONSULTA LIBERTADORA
244 DORES DO ENVELHECIMENTO
255 DIAS AMARGOS
266 DEIXEM-ME VIVER
271 O DESESPERO
287 O RETORNO: SOMBRAS DO PASSADO
306 EPÍLOGO

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AGRADECIMENTOS

Agradeço aos meus pais, Trajano e Dulce, produtores do meu genoma;


às minhas filhas, Jussara e Juliana, produtos desse genoma; aos irmãos,
que compartilham de genoma semelhantes; aos amigos, parentes e
clientes; aos inimigos que desafiaram-me e agrediram-me. Em resumo,
a todos aqueles que, de um modo ou de outro, excitaram-me, provocar-
am-me, promovendo assim a expressão dos genes recebidos durante a
concepção. Através desses encontros e desencon-tros, das relações dos
milhares de genes com os trilhões de estímulos externos, nasceu essa
construção milagrosa e esquisita que sou eu; a única pessoa que conheço
mais ou menos por dentro.

Sem a ajuda de cada um desses diferentes agentes, que ativaram o


necessário no momento certo, eu seria outro homem, um desconhecido
para meu eu atual e para vocês. Como seria caso fosse construído de
outro modo? A resposta final eu deixo para vocês, pois sem vocês eu
seria ninguém.

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Introdução
A notícia funesta, lida no jornal da manhã, me transportou ao passado.
Maquinalmente, pensativo e triste, dirigi-me ao arquivo de fichas médi-
cas.

Abri a gaveta e comecei a examinar cada ficha, uma a uma, à procura


da de Lúcio. Passei os olhos num e noutro nome. Fatos da vida dos
pacientes nasciam, despertando dramas adormecidos pelo tempo.
Começavam a desfilar em minha mente cansada e envelhecida, seres an-
gustiados e sem esperança. Todos perdidos, sem rumo, barcos em noite
de tempestade, sem comando, procurando um porto para atracar.

Parei numa ficha. Depois, noutra: “esse aqui só veio uma vez; um caso
diferente; queria, a todo custo, transformar-se em mulher. Onde estará?
Essa separou-se do marido, poucos dias após ter-se casado: ele quase a
matou de tanto a agredir. Terá casado de novo? Como era bonita essa
moça! Tentou o suicídio várias vezes. E agora? Conseguiu o que que-
ria? Esse, canceroso, não quis tratar-se; morreu como desejava. Como
bebia o Alberto! Sofreu muito com a cirrose. Gostava das idéias do Dr.
Bernardo; era um homem inteligente; sempre tinha algo diferente para
dizer”.

Distraía-me sem querer...Diante de cada nome, histórias eram recon-


struídas... sucediam-se fisionomias tensas, lembranças quase perdidas de
vidas carregadas de paixões, algumas alegres, a maioria cheia de amargas
emoções. Todos tentavam ser alguém, alcançar o imaginado, cumprir o
seu papel, custe o que custar. Uns buscavam resgatar a felicidade pas-
sada, sem saber bem como tinha sido; outros procuravam a estabilidade
e a segurança; alguns, o amor-próprio perdido. A maioria não mais
suportava os desencontros freqüentes; entretanto, quase todos acredita-
vam que, um dia, alcançariam suas utopias. Todos vieram em busca de
transformações...na maneira de pensar, de agir, de viver...sonhavam com
uma liberdade inexistente.
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Ali sepultadas, descansavam muitas vidas...agora transformadas em
anotações e jargões médicos, codificados em símbolos neutros, muitos,
ilegíveis. Quantas lutas insanas jazem, aqui aprisionadas e imóveis, em
fichas empoeiradas; quantos dramas, esforços sobre-humanos, na luta
para atingir o imaginado.

Relia aquelas histórias contadas com extrema dificuldade, retiradas dos


porões de almas carregadas de medo.

Com o passar dos anos, percebia que, também, me transformava,


fundindo-me com seus sofrimentos. Tornara-me, pouco a pouco, um
homem mais amadurecido; às vezes, amargo e desiludido, deixando,
para trás, o simples, alegre e curioso recém-formado de antes.

À minha frente, surgiam mais nomes; esses tiveram sucesso, aqueles,


fracassaram. Homens, mulheres, muitos já mortos, alguns decidiram,
antes da hora, não mais viver.
Finalmente, alcancei, aflito, as anotações; a razão da minha procura.
Detenho-me. Tenso, no silêncio da manhã, solitário. Retiro a ficha
amarelada pelo tempo. A letra usada, tombada para a esquerda, com um
traço grosso e forte, não mais me pertence; não sou mais aquele.

Naquela época, ainda jovem, confiante, cheio de ilusões, a maioria delas


desaparecidas, via em tudo um desafio a vencer.

Evito ler todas as anotações de uma só vez; torno a olhar seu nome no
alto da ficha; precisava me certificar: Lúcio M. L.; data da consulta: 23
de abril de 1970. Minha mente penetra, lentamente, com saudade, na
penumbra da primeira consulta, nosso encontro inicial. Gostei do seu
jeito. Era um caso difícil; o que sempre me excitou.

Vejo-o, entrando apressado, pela pequena porta do consultório, mal me


cumprimentando. Sempre olhando para o chão, como alguém que ima-

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gina estar sendo repreendido. Deixou o corpo comprido, leve e flexível,
cair sobre a grande poltrona; afundando-se nela, como se desejasse
desaparecer.

Era simpático, apesar da cara fechada e séria. Vestia uma camisa verde-
amarela da seleção brasileira, bastante justa, que permitia ver os ossos
das costelas estufados; dando a impressão de ser mais magro do que
realmente era. Em contraste, vestia uma calça branca, que parecia escor-
regar para baixo do abdome, presa à cintura por um cinto roto, amar-
rotada, mole, larga demais para cobrir suas pernas finas. O vinco desa-
parecera completamente e, em seu lugar, na altura dos joelhos, formava
um ovo saliente.

Tinha a pele clara, de um branco leitoso, a face, alargada na parte su-


perior, exibia uma testa grande, enrugada horizontal e verticalmente e
afilava-se no queixo, coberto de pêlos ralos, de uma barba por fazer. Os
cabelos pretos, partidos irregularmente do lado esquerdo, cortados mui-
to curtos, deixavam ver, dos dois lados, o couro cabeludo esbranquiçado.
Usava óculos de aros escuros e grossos, manchados de pintas brancas;
um modelo antigo, que cavalgava o nariz bem feito e cobria quase todo o
rosto ossudo. Lentes cinzas escondiam os olhos claros e brilhantes, sem-
pre atentos. A boca rasgada, de lábios finos, levemente arroxeados. Os
maxilares contraídos, indicavam determinação ou teimosia. Escondida
por trás de seus gestos controlados, na maioria da vezes lentos, existia
uma mente agitada, crítica e inquiridora, a beira do desespero.

Ele chegou desengonçado; caminhava como se estivesse bêbado. Atra-


sou-se um pouco. Culpou o trânsito difícil. Estas explicações foram
repetidas, posteriormente. Era seu temperamento; culpar sempre al-
guém ou alguma coisa.

Ao entrar no consultório e assentar-se, sem ser convidado, começou a


falar. Não fez rodeios. Comentou os problemas, com voz rouca, pulando
de um assunto a outro, o que tornava difícil entendê-lo. Interrompia

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uma frase antes de terminá-la; esperava um pouco e recomeçava a falar.
Suas queixas eram feitas, às vezes, num tom áspero; outras, num mur-
murar lamentoso.

Veio pedir uma ajuda para se encontrar, descobrir-se, conhecer a si


mesmo... esse era o sonho de todos.

Era mais uma tentativa para solucionar o problema de sempre: alcançar


o auto-conhecimento. Esperava por esse milagre: transformar-se numa
pessoa consciente, saber o que o levava a se comportar de um modo ou
de outro; conhecer as causas dos seus sofrimentos.

Sua história, apesar de complexa, e, embora fosse preciso, algumas vezes,


adivinhá-la, foi contada através de rico vocabulário, de palavras bem
colocadas, indicando que ele tinha boa informação geral. Entretanto, já
na primeira consulta, percebi que não tinha consciência clara dos princí-
pios que usava para erguer e sustentar seu raciocínio. Muitas vezes, asso-
ciava fatos não interligados, tirando conclusões, inadequadas. Sua lógica
era defeituosa; além disso, ele ignorava sua ignorância.

Pelas anotações contidas na ficha, mas, principalmente, das lembranças


despertadas ao lê-las, ia reconstruindo a vida tumultuada de : Lúcio M.
L., ou melhor, de Lucinho, como ele era carinhosamente chamado.
Do meu ponto de vista, ele não era possuidor de nenhum transtorno
psiquiátrico grave. Era, podemos dizer, um paciente parecido com vários
outros seres humanos que encontramos andando pelas ruas da cidade,
que estudam, trabalham, namoram, casam, têm filhos e os criam. Fazia
parte dos que reagem ao meio, mostrando as pequenas alegrias e tris-
tezas da vida, comuns ao homem.

Indivíduos, como Lucinho, vêm ao psiquiatra, inicialmente, para rece-


berem uma pequena ajuda: é um namoro desfeito que os faz sofrer, uma
rusga com a esposa ou uma desarmonia no emprego. Entretanto, com o
passar dos dias, eles querem ir mais longe; mostram-se curiosos acerca

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do autor dos seus atos.

Lucinho, nas suas constantes idas aos terapeutas, aos poucos, se pertur-
bou, enterrou-se nas crateras cavadas por ele com a ajuda dos psicól-
ogos. Aprisionado nos dogmas das terapias, Lúcio não mais conseguiu
se encontrar; perdeu seu referencial, distanciou-se, cada vez mais, das
soluções que imaginava para si. Acreditando piamente nas interpre-
tações fornecidas pelos terapeutas, ele passou a buscar as supostas metas
ditadas pelos credos; ao dedicar-se às elucubrações fantasiosas dos que
imaginavam ajudá-lo, ele jogou fora sua individualidade, abandonou seu
próprio caminho. Assim, passou a canalizar energias, exclusivamente,
para se desvencilhar ou compreender, como ele imaginava, essa rede de
conceitos abstratos, que foram usados para salvá-lo.

As diversas teorias psicológicas o imobilizaram e o ofuscaram, pouco a


pouco, impedindo-o de enxergar a sua própria realidade. É provável que
seu sofrimento tenha ocorrido, muito mais, em virtude da busca inces-
sante das “causas” dos seus sofrimentos, da tentativa para compreender
as interpretações fictícias usadas pelos profissionais para explicar os
acontecimentos de sua vida e não do confronto com os próprios acon-
tecimentos.
Nos momentos de maior desespero e de irracionalidade, foi em busca
da ajuda, mais mágica ainda, de profissionais não ortodoxos: curandei-
ros, cartomantes, sensitivos e pais-de-santo. Implorou a todos a mesma
ajuda. Sonhou conseguir, através de outras pessoas, o pleno conheci-
mento de si através de uma teoria milagrosa, mágica. Não sabia que isso
é impossível.

Lucinho lia com obstinação. Fez diversos cursos. Releu, continuada-


mente, os clássicos. Estudava e aprendia o que desejava. Fez vestibular
para Medicina. Ficou na escola por dois anos. Largou a Faculdade por
ter detestado as cadeiras básicas. Decidiu fazer Arquitetura. Não foi
difícil entrar nos primeiros lugares. Não tolerou o primeiro ano. Fez
vestibular para Direito. O resultado foi o mesmo: passou e desistiu três

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anos depois.
De Agostinho, seu irmão mais velho e professor de Filosofia, incorporou
noções filosóficas importantes, que lhe permitiram, ás vezes, perceber e
criticar a sociedade, a cultura, as instituições e a família desestruturada
na qual viveu. Seu conhecimento lhe permitia, nos momentos de luci-
dez, avaliar, com precisão, sua vida confusa, as contradições humanas e,
mesmo, a ingenuidade de alguns dos profissionais consultados.

Quando o encontrei pela primeira vez, não mais cursava a Universidade.


Trabalhava, desordenadamente, na firma de construção do pai, sem
jamais ter gostado do que fazia. Continuava sendo um devorador de
livros, principalmente, os de psicologia, sociologia e filosofia.

Lúcio terminou seus dias preso em um manicômio judiciário de Bar-


bacena. Lá, abandonado, como muitos pacientes mentais, teve um fim
trágico.

Sua história teria sido perdida e não poderia ser contada, caso não
tivesse sido anotada, em grande parte, por ele próprio. Ele não fez um
diário clássico, como muitos jovens o fazem; escrevia suas observações e
pensamentos acerca do que lia, ouvia ou vivenciava.

Outros dados acerca de Lucinho foram obtidos de registros de psicól-


ogos e psiquiatras que o examinaram. Recolhi outras informações de
familiares, de amigos, de ex-namoradas, de colegas e vizinhos. Fatos
importantes foram-me passados através de um inteligente e curioso “far-
macêutico”, seu amigo na juventude. Não tive meios de visitar todos os
profissionais da mente que o assistiram. Não procurei, apesar de ter sido
meu desejo, as cartomantes, os pais-de-santo e outros do mesmo gênero.

Quase todos os entrevistados, gentilmente, cederam-me anotações e,


principalmente, o armazenado na memória. Assim, consegui reconstruir
esse relato. Durante as entrevistas, detectei um aspecto que me chamou
a atenção: cada um dos seus amigos e profissionais perceberam-no

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como possuidor de uma personalidade e caráter diferente. Seriam vários
Lucinhos? Cada narrador me contou uma história ao perceber certos
aspectos, e não outros, de sua personalidade. Foi elogiado por muitos;
criticado por outros. Para uns, era inteligente; para outros, um homem
comum, sensível, obtuso, diligente ou preguiçoso. Foi tachado de esquis-
ito, até de louco, por uma minoria.
Tive algumas dificuldades em conseguir os dados. Alguns relutaram
em cedê-los, temerosos de possíveis processos movidos pela família ou
imaginando proibições dos órgãos superiores, como do Conselho de
Medicina. Outros imaginaram poder, um dia, escrever sua vida e, assim,
esconderam o que sabiam.

Mas, alguns profissionais ficaram entusiasmados com meu projeto e,


constantemente, perguntavam-me acerca dele. Muitos, após me passar-
em suas recordações e anotações, procuraram-me novamente, fornecen-
do novas informações, só posteriormente descobertas ou lembradas e
que julgaram importantes para uma melhor compreensão de sua vida.
Percebi, também, que uns poucos, ao me transmitirem as informações,
tentaram deturpar os fatos para que eu tivesse uma idéia errônea dele.
Não descobri os motivos dessa conduta. A coleta de dados foi trabal-
hosa; mas tive um enorme prazer em desvendar uma parte da “verdade”
desse indivíduo comum, ao mesmo tempo, singular, apesar dele, jamais,
ter-se esforçado para parecer diferente dos outros.

Lucinho iniciou sua vida, como todos nós, tentando preservar suas
crenças mais profundas, evitando se perder no meio de tantas opiniões
diferentes. Foi um qualquer, gente como a gente. Seu nome não era con-
hecido, as roupas que usava jamais foram copiadas como modelos, nem
seu modo de andar, falar, pentear-se ou pensar; foi um anti-herói. Lutou
contra caminhos conflitantes. Tentou, obstinadamente, encontrar uma
saída digna no labirinto onde foi encarcerado. Seu sonho era converter-
se nele próprio, não desaparecer na mesmice, não se dissolver em certos
padrões sociais impostos, que impedem o crescimento individual; lutava
para construir seu próprio caminho. Infelizmente, apesar dessa luta em

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busca do encontro consigo mesmo, Lucinho não alcançou a meta pre-
tendida. Ao tentar escapar da prisão social e religiosa, encarcerou-se no
pseudo-cientificismo; ao fugir de um grupo, derreteu-se no outro, como
gelo no fogo. Tentou seguir o princípio básico da ética humanista: bus-
car ser ele próprio, mas falhou: mais uma vez desapareceu, como o sal na
água, dissolveu-se nas idéias dos técnicos que, hipocritamente, diziam
ampará-lo.

Lucinho não fugiu à regra da maioria dos pacientes psiquiátricos. Re-


cebeu diversos diagnósticos: Esquizofrenia paranóide; Esquizofrenia
Aguda Indiferenciada; Transtorno da Personalidade: “Borderline”, Narci-
sista, Dependente, Histérica, Passivo-Agressivo, e mesmo, Personalidade
Normal. Mais tarde, foi categorizado pelo professor, como possuidor de
“Delirius Mater”.
A ética profissional proíbe ao médico fornecer ao público leigo fatos ob-
servados, descritos ou inferidos de seus pacientes. No caso do paciente
psiquiátrico, devido à sua estigmatização por quase todos, essa proibição
é ainda mais rígida. Há razões para isso. De fato, os dados colhidos
desses pacientes angustiados, durante suas crises agudas, são confissões
extremamente íntimas, guardadas a sete chaves, nas profundezas de sua
alma. Esses segredos, geralmente, não são revelados nem mesmo para os
amigos mais chegados e familiares.

Como os fatos recolhidos e resumidos me atraíram e me excitaram gran-


demente, decidi romper com essas proibições estabelecidas pela minha
classe profissional.
Nasceu um impulso mais forte dentro de mim, visando a revelar uma
vida carregada de dúvidas. Sei que há, entre os médicos, um acordo para
manter os segredos do cliente a qualquer preço. Esse é um dos princípios
de nossa profissão. Mas existem outros objetivos tão altos como esse e
que não são explicitados. Há o dever de esclarecer e, se possível, edu-
car a população através da divulgação de acontecimentos das ciências.
Pergunto-me: a quais normas ou éticas devo servir?
São esses “pacientes” - alguns deles mais sadios do que muitos de nós -

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os transitoriamente denominados “não-pacientes”, que nos ensinaram
a estreiteza ou a leveza entre o “normal” e o “anormal”, entre o “doente”
e o “são”. Creio que é nosso dever transmitir essas descobertas. O que é
ser “doente”? Seria estar mais adaptado à sociedade e à família e des-
adaptado com respeito a si mesmo? Ou devemos denominar “doente” a
pessoa bem adaptada à sua personalidade - valores, desejos, modo de se
comportar - e em luta com a sociedade e família? Eu ainda não sei!

Decidi, comovido, escrever esse relato, após a notícia do último acontec-


imento trágico de sua vida. Precisava desabafar, de alguma forma, o que
já sabia dele. Não estava apenas interessado em prestar uma homenagem
a esse paciente que se tornou, como outros, parte de minha vida. No
relato, como não podia ser diferente, mantive o respeito que sempre tive
por ele e por todos pacientes; era um amigo que me confiou, durante um
certo período, problemas íntimos. Juntos, sofremos e tentamos soluções.

Recordações secretas, arrancadas do fundo do poço, transformaram-se


em sons, choros, soluços, gestos e agressões. Após penetrar em minha
mente, essas condutas se tornaram conceitos frios e marcas aprisionadas
para sempre. Tentei transformar esses sinais neutros em ações dinâmi-
cas.

Ao descrever sua personalidade, não mencionarei as anomalias, mas


sua história, seus problemas e tentativas para resolvê-los. Não escrevi
um manual de Psiquiatria. Também, não contei a vida de um homem
excepcional.
Os fatos recolhidos são, às vezes, trágicos, mas, paradoxalmente, uni-
versais. Possivelmente, a maioria dos leitores identificar-se-á com cer-
tos eventos vividos por ele. Alguns sentir-se-ão estupefatos com certas
cenas, imaginando como pode um ser humano chegar a tanto. O leigo
desconhece muitos fatos secretos ocorridos nas profundezas da mente.

Talvez a vida de todos nós, como a de Lucinho, pudesse dar origem a


belas, tristes e trágicas histórias, caso tivessem sido anotadas ou memo-

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rizadas e, posteriormente, escritas, como esta.

Quando me procurou pela primeira vez, ele era jovem. Contou-me que
começou a freqüentar o pré-escolar muito cedo. Seus pais, Dr. Ad-
amastor e Rosária, desejosos de melhorar seu relacionaento com outras
crianças - ele era muito arredio e calado, pediram conselhos ao pediatra,
Dr. Lunardi, homem de princípios conservadores, que os aconselhou
a colocá-lo numa escola religiosa, onde havia, além do ensino de boa
qualidade, uma disciplina tradicional e rígida.

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Unidos para Sempre
Naquela manhã, após se levantar cansado e quase sem ter dormido, Dr.
Adamastor caminhou, passo a passo, à procura da velha cadeira austrí-
aca, colocada bem em frente à janela da sala. A casa estava silenciosa;
todos dormiam ou fingiam dormir. Recostou-se na cadeira com dificul-
dade, com um resto de dignidade ainda existente, e começou a recordar.
A ausência de sons, comuns às manhãs de domingo, propiciava lem-
branças, todas contaminadas pela incômoda e perversa realidade atual.

Nostalgicamente, pensava..., ”nunca tive medo de obstáculos. Eles che-


gavam a me excitar... Não fui o melhor aluno porque o tempo era pouco;
quando decidia estudar, tirava as melhores notas e era elogiado pelos
professores. Hoje, nada leio; não estudo... folheio o jornal para ver os
necrológios, saber a idade do morto, compará-la com a minha, saber se
é conhecido e onde nasceu. Não sou percebido como possuidor de valor
algum...sou um espectador, não mais um ator.”

Durante a juventude - ainda não tinha completado 19 anos - Dr. Ada-


mastor foi chamado, às pressas, à cidade de Capão do Pinhal, onde mo-
rava sua família, para assistir ao funeral do pai, morto por um infarto.
Era quem administrava os bens e o dinheiro da família.

A partir da morte do pai, o dinheiro faltou e Adamastor, estudante de


engenharia, passou a ter que trabalhar duramente para se sustentar,
pagar a faculdade e a péssima república onde morava. Ali dormia e, às
vezes, fazia suas refeições noturnas, sempre as mesmas: café com leite e
pão com margarina. Ocasionalmente, nos dias de festas, ele comprava
mussarela, mortadela e ovos. Esses ingredientes, reunidos, formavam o
delicioso e cheiroso omelete. Enquanto preparava sua refeição, distraia-
-se ouvindo músicas sertanejas na Inconfidência, num rádio desossado,
pois a madeira externa tinha sido comida pelos cupins. Pronto o omele-
te, com a casca bem tostada, se assentava na única mesa da república e
o comia, com todo o requinte. Cheirava-o, deglutia-o, imaginando estar
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no melhor restaurante da cidade.

Dr. Adamastor, hoje, com sua mulher, Rosária, e seus três filhos: Agosti-
nho, Roberta e Lucinho, tem iguarias melhores do que o omelete. Pode
comer camarões ou lombo, mas não tem mais apetite, papilas gustati-
vas aguçadas e nem sensação para perceber odores - tudo aquilo que é
necessário para diferenciar a boa da má comida. Não mais sente o gosto
nem o delicioso cheiro de antes; não mais se alegra ao ver a clara mole e
feia se transformando na névoa bela, fofa e branca, e uma vez misturada
com a gema amarela, originando a casca cocrante do omelete.

Apesar das dificuldades, ele se formou em Engenharia. Após terminar


o curso, conseguiu emprego numa empresa de construção de estradas.
Não ganhava muito, apenas o suficiente para lhe permitir condição de
vida melhor do que a antiga. Mais animado com o emprego e as eco-
nomias, começou a pensar em buscar uma companhia permanente;
afastar-se das prostitutas, que lhe tinham causado doenças e aborreci-
mentos.

Não foi fácil arrumar a mulher dos seus sonhos. Vivia isolado no can-
teiro de obras da companhia, o que dificultava a aproximação com as
possíveis candidatas a um casamento. Aconselhado pela família, pro-
curou a pretendente ideal entre as conhecidas e parentes de sua terra.
Mas a maioria das boas moças de Capão do Pinhal estava casada. Lá,
elas se casavam cedo. As que escaparam do primeiro cerco estavam
comprometidas com os conhecidos da cidade; todos, geralmente, pri-
mos das namoradas. Poucas haviam sobrado dessa peneirada; algumas
solteironas empedernidas e eternas, mais velhas do que ele, freqüenta-
doras diárias das igrejas e as outras, não classificadas nessas categorias,
eram jovens mal vistas, rebeldes, independentes demais, com as quais os
rapazes evitavam um namoro para casar. Mas Dr. Adamastor sabia que,
apesar dos falatórios difamadores, eram elas as mais cobiçadas. Diante
das dificuldades em encontrar, em sua cidade natal, a “moça dos seus
sonhos”, decidiu procurá-la em Belo Horizonte. Estava ciente dos riscos

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que corria: amar uma desconhecida, cheia de vícios, perigosa, algumas
nem mesmo acreditavam em Deus...

Foi nessa época que Dr. Adamastor conheceu Rosária, durante as folias
de Momo. Ele freqüentava os bailes de carnaval do Diretório Central dos
Estudantes - DCE - mas evitava dançar, pois sua timidez não permitia
tal excesso. Ia aos bailes para paquerar uma ou outra moça, escolhendo
geralmente as mais tristes e desamparadas. Bêbado tornava-se corajoso,
sendo capaz até de tirar uma jovem para dançar. Na verdade, não dança-
va: marchava pelo salão, com seu corpo duro, dando a impressão de ter
engolido uma alavanca.

Impreterivelmente, nos bailes carnavalescos, ele se fazia acompanhar


de um inebriante. Carregava dentro de um vidro achatado, cuidado-
samente colocado no bolso de trás da calça, uma cachaça de péssima
qualidade. No bar, ele comprava uma garrafa de Coca-cola para misturar
com a pinga. Entretanto, se o dinheiro estivesse faltando mais ainda,
Dr. Adamastor usava os restos de refrigerante e gelo deixados nos copos
abandonados em cima do balcão ou das mesas. Quando nada encontra-
va, ele implorava gelo ao “barman”, com uma voz chorosa, em falsete,
sempre olhando para o chão.

Conseguido o desejado, já mostrando a outra face, tirava do bolso a gar-


rafinha com a cachaça e despejava-a no copo, com parcimônia, para que
ela pudesse durar. Após tampar o vidro guardava-o no bolso da calça
larga e cinza, apropriada para suportar os embates do carnaval.

Terminando esse ritual, começava a saborear seu rabo de galo, com


calma. Antes de engolir a droga quase insípida, ele, primeiramente,
a cheirava; depois, bebia, espalhando-a, várias vezes, pela boca, para
melhor sentir seu sabor. O prazer da bebida não derivava do seu gosto
quase insuportável, mas muito mais, do ambiente cheio de luzes, baru-
lhento, do feriado prolongado e do esmero com que ela havia sido feita.
O rabo de galo tinha o poder de fazê-lo imaginar estar vivendo num

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mundo maravilhoso, cheio de esperança, principalmente, de mulheres à
sua volta.

Após esgotar o conteúdo da bebida mágica, Dr. Adamastor guardava o


vidro com cuidado, levava-o para casa, para, no dia seguinte, enchê-lo e
poder embriagar-se mais uma vez. Tinha um carinho especial pela gar-
rafinha simpática: esverdeada e fina, que cabia harmoniosamente no
bolso da calça; guardava a quantidade certa de bebida para uma noite e,
sobretudo, jamais se quebrara, após anos de uso nos carnavais passados,
todos no DCE. Não havia outra igual. Para se embriagar, não precisava
de muita bebida: uma garrafa de cachaça era o bastante para embebedá-
-lo durante as quatro noites.

Nessa manhã de domingo, silenciosa, enquanto pensava no baile do


Diretório, Dr. Adamastor lembrou, com nostalgia e lágrimas nos olhos,
que ele não mais sabia onde estava guardada a garrafa achatada. “Rosá-
ria tê-la-ia jogado fora?”...Perguntava-se apreensivo, sentindo-se culpado
por tê-la abandonado e esquecido. Mas continuava suas recordações...

Na segunda-feira de carnaval, ele havia completado vinte e cinco anos.


Nessa noite, sem querer, bebeu, junto com a pinga, o restante da bebida
encontrada em cima do balcão. Acontece que, na pressa de tirar o gelo,
despejou-a no copo. Quando ele estava mais tonto do que de costume,
incapaz de refletir e discernir sobre o que deveria ou não ser feito, co-
nheceu Rosária, por ela se apaixonou e com ela acabou se casando.
Tudo ocorreu num lance de acaso. Em parte, devido à embriaguez; pos-
sivelmente, dos dois. Ainda estava prostrado diante do balcão, de onde
surripiou a bebida, quando avistou Rosária. Ela gingava e cantarolava
uma marchinha. Ao se aproximar, deu-lhe um sorriso, revelando gran-
des e belos dentes.

Sentiu-se diminuído diante de tanta beleza. Sempre se julgava inferior


diante de mulheres esbeltas. Ela o olhou nos olhos, de cima para baixo...
Era um pouco mais alta do que ele.

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Dr. Adamastor voltou os olhos para o chão, envergonhado, tentando se
esconder. A presença de Rosária, dançando à sua frente e, principalmen-
te, seu sorriso continuado, deixaram-no perturbado. Acontece que ela,
ao olhar as pessoas, mantinha os olhos semicerrados, contraía a testa e
a face, acima do nariz. Desse modo, os cantos da boca eram puxados,
dando a impressão, à primeira vista, que ela estava, constantemente,
sorrindo.
Diante desse falso sorriso, ele suspeitou, como era seu hábito, que ela es-
tivesse debochando dele. “Será que ela notou que eu estava filando o gelo
e o resto da bebida? Ou será porque sou baixinho? Além disso, não sou
uma pessoa bonita como ela; só meu nariz agrada às mulheres...Acho
que não vai dar prá mim”.

Dr. Adamastor se sentia derrotado antes de começar o jogo do amor.


Nessa noite, inexplicavelmente, agiu diferente; decidiu tentar conquistar
Rosária, certo de que não iria dar certo. Levantou os olhos e a fitou, com
cara de bêbado apaixonado.

A iluminação feérica do salão acentuava mais ainda a pele clara de Ro-


sária. Não havia quase pintura no rosto: um leve toque de batom, sua-
vemente, percorria e acentuava o vermelho dos lábios grossos, contor-
nando sua boca enérgica, que mal escondia os dentes salientes e fortes.
Pontos róseos, parecendo confetes vermelhos, espalhavam-se sobre a
pele lisa e sedosa.

Adamastor pôde sentir o perfume adocicado e o calor úmido que des-


prendiam do corpo quente e jovem de Rosária. Gotas cristalinas e belas,
preguiçosamente, escorriam de sua face avermelhada e desciam, fazendo
curvas, para, finalmente, caírem no colo branco, quase nu.

Ela, ao perceber o olhar de Dr. Adamastor, parou, por momentos, de


pular.

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No salão barulhento, ouviam-se o zum-zum das conversas, os gritos
histéricos, o arrastar cansado de bêbados cambaleantes e as vozes pro-
duzindo sons desafinados. A música, mal tocada pela orquestra do clube
decadente, se desorganizava e se desfazia no ar empoeirado.

A possibilidade de ter que dançar com ela, a princípio, o amedrontou:


“eu não sei dançar; meu corpo é duro...Vou arrumar uma desculpa. Pre-
ciso buscar uma saída, fazer outra coisa, caso ela decida ficar comigo”.
Entretanto estava encantado com seu belo porte, com sua desinibição.
Mas, ao mesmo tempo, tinha medo. Atacar ou fugir? Maldita dúvida!

Deu um passo para o lado, tentando se esconder inutilmente. Fugia da


luz que incidia, quase verticalmente, sobre ele, fugia do compromisso.
Em seu canto, amedrontado, pôde apreciar melhor o rosto de Rosária.
Ficou seduzido pelos seus olhos azuis. Ao fitá-los, enxergou, alucinado,
águas-marinhas, balançando no ar.

Ela, exuberante, vestia um “short” listrado de amarelo e preto, muito


curto e justo, que prendia as volumosas nádegas provocando movimen-
tos ritmados e engraçados: comprimido no “short” apertado; o bumbum
se agitava quando ela caminhava, dançava e pulava, de um lado para o
outro, como se quisesse escapar das listras. O peito de Rosária, quase
nu, estava coberto por um “topper” vermelho-sangue, da mesma cor dos
pontos coloridos, espalhados por sua face. Seu bojo tentava, sem resulta-
do, esconder os seios grandes e firmes. Os ombros largos e fortes, apesar
da juventude, já mostravam os primeiros e leves sinais de envelhecimen-
to.

Ele, nesse momento, iniciava, ao lado do balcão do bar, uma dança de-
sajeitada, sinalizando conquista. Para ele, era ela a moça mais linda que
encontrara. Seus longos cabelos castanho-claros, quase louros, mesmo
amassados de um lado, davam-lhe uma aparência de santa francesa.
Para a mente apaixonada e bêbada de Adamastor, tudo nela o atraía...ela
o encantava.

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Além dos olhos azuis, o que mais chamou a atenção de Adamastor
foram suas coxas grossas, roliças, perfumadas, brilhantes de suor e cre-
me. Uma fascinação súbita e violenta irrompeu em Adamastor, diante
daquela beleza quase divina. Ajudado pelo álcool, que liberou seus
impulsos e pensamentos mais íntimos, ele, que até aquele instante estava
indeciso acerca da moça ideal para se casar, agora passou a ter certe-
za: era aquela! Tinha certeza! Arrebatado, transformado e esbanjando
energia, ele renunciou à costumeira inibição e ao temor da intimidade.
Animado, despojando-se das amarras internas, investiu, vorazmente, em
direção à caça. O perfume de Rosária o transformou: passou, como num
passe de mágica, de apático a desinibido, de triste a alegre, de observa-
dor a folião engajado. Consumido pelo forte desejo, pulou bem à frente
dela. Fingia estar mais bêbado do que estava. Solto, começou a cantar a
marchinha que imaginava estar ouvindo, mas não conseguiu, apesar do
esforço, tornar-se entoado.

Naquele momento de êxtase, ele jamais poderia profetizar que aquele


corpo tão sedutor, aquela formosura e perfeição, um dia iria se transfor-
mar no que é agora: uma massa de carne mal-acondicionada em peles
caídas e cheias de dobras.

O carnaval não tem regras; tudo vale. O rapaz que dançava com ela
carregando, em uma das mãos, um copo de bebida amarelada e insípida,
largou a parceira, como fazendo parte do jogo. Era um jovem magro
e inibido, com uma passividade que contrastava com Rosária, muito
disposta e despertada pelo novo pretendente. Diante dos olhos bêbados,
semi-abertos do “pierrot” apaixonado, ela, automaticamente, olhou para
ele, curiosa e cantarolou a melodia tocada. Sem nada dizer ao rapaz
comprido e triste, largou-o, rebolando em direção ao novo folião.

Se ela não tivesse, naquele momento, tomado a iniciativa de ir atrás de


Dr. Adamastor, talvez, jamais, eles tivessem se encontrado pois, de sua
parte, o que tinha feito, já era um recorde: havia ultrapassado seus limi-

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tes.
Assentado na cadeira, tentando balançar para frente, mas quase caindo
para trás, ele recordava, emocionado, aquela cena.

No DCE, Dr. Adamastor, entusiasmado com a receptividade, imaginou


poder ir mais longe. Cauteloso por instinto, costume e mineirice, con-
tinuou, por certo tempo, olhando para o chão. Aos poucos, foi ficando
hipnotizado pelos grandes olhos azuis - naquela noite, mais azuis e
brilhantes ainda, olhos sensuais, de gazela espantada, no cio. Bêbado,
irrefletidamente, ele partiu para a aproximação. Ela olhava-o com suas
duas jóias incrustadas nas órbitas enormes, redondas... Ao balançar o
bumbum, em gingados lascivos, suas carnes tenras e exuberantes atraí-
am o desejo de todos os admiradores de mulheres cheias.

Despedaçado pela paixão alucinante, ele aproximou-se da moça, como


a frágil e pequena limalha é atraída e presa por um poderoso ímã. Ele,
como sapo hipnotizado, caminhou, sem perceber, para a boca da cobra
que iria assimilá-lo totalmente. Ele e ela, entrelaçados, a partir daquele
encontro, que podia não ter ocorrido, misturaram-se, formaram um só
e estranho nó. Ambos, a partir daquele momento, foram perdendo a
individualidade, começaram a enterrar a sonhada liberdade, que cada
um buscava.

A fuzarca do carnaval continuava barulhenta. Dr. Adamastor colocou,


com cuidado, suas mãos desajeitadas e pesadas na cintura de Rosária,
segurando-a, inicialmente, com delicadeza. À medida que o medo de
dançar diminuía, ele passou a pular pelo salão, enroscado à presa, agora
de cabeça erguida. Sorria sozinho, orgulhoso da conquista ou por ter
sido conquistado. De tempos em tempos, tirava do bolso um velho lenço
marrom, amarrotado e esgarçado, naquele momento, bastante umedeci-
do de suor. Passava-o na nuca, depois no pescoço, testa e cabeça; retirava
o líquido espesso que emergia dos poros de sua face. Após se enxugar e,
sem notar, passava sua grande língua nos lábios molhados do suor que
escorria e, em seguida, gentilmente, oferecia o lenço imundo a ela, que

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recusava a oferta. Sentia náuseas ao ver o lenço sujo, depois sendo guar-
dado, com cuidado, no bolso da camisa.

Enquanto segurava a cintura de Rosária, ele se lembrou por segundos,


da última namorada, arrumada, ali mesmo, no Diretório dos Estudantes,
por coincidência também num baile de carnaval. Rápido como os fins de
férias, esse namoro terminou melancolicamente.

Enquanto pulava no salão, ele continuava a pensar: “Agora, com essa,


tudo vai ser diferente...Ela parece ser tão inteligente, carinhosa, calma,
compreensiva e bondosa! Ainda mais com esses olhos!... Ela tem tudo
que desejo...”, concluía, entusiasmado com sua própria crença...”que sorte
a minha, encontrar uma pessoa tão encantadora”, imaginava.

A marchinha conhecida silenciou. Um samba desconhecido começou


a ser tocado e ele aproveitou a oportunidade para convidá-la a parar. O
que o preocupava era aonde iriam conversar: “Não posso oferecer-lhe a
pinga que trago no bolso...Não posso comprar nada, senão, ficarei sem
dinheiro para os outros compromissos. O que fazer?”

Enquanto Adamastor pensava o que fazer, ela o convidou para se assen-


tarem onde seus pais estavam. Ele se espantou: ”Assentar à mesa... beber
e comer... meu estômago já está pedindo alguma comida. Seria ótimo!
Mas, depois... quem irá pagar?”

Quase sem perceber, ele foi transportado à mesa onde estava a família
dela e pôde observar, atraído, a fartura ali existente: cerveja, uísque,
refrigerantes, empadinhas, coxinhas e pastéis, ainda fumegantes, tão
cheirosos como os omeletes feitos na república. Assentados, sorrindo,
lá estavam o bonachão e obeso pai, ladeado por um senhora cheia de
badulaques, maquiada exageradamente, pronta para posar para o retrato
de casamento. Ficou encantado com a visão da família, principalmente
com o cheiro da manteiga queimada com cebola dos pastéis de quei-
jo; um perfume que trescalava pelo salão. Os pastéis estavam ali, bem

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próximos dele, espalhados nos pratos, sedutores, que foram engolidos
mentalmente, antes dele ser apresentado aos pais de Rosária. Passou
novamente o lenço sujo no rosto, agora mais molhado, tornou a oferecê-
-lo, como de hábito, a ela. Com a mão gotejando suor, alisou os escassos
cabelos, ajeitou as calças que caíam e colocou a fralda da camisa para
dentro. Diante dos pais, naquele dia muito gentis, Adamastor pensou: “é
numa família dessa que gostaria de entrar. Gente boa. Que sorte! Ganhei
novos pais”

Receoso de ter que contribuir para as despesas finais, ele, evitou se


assentar. Para escapar do compromisso, afirmou que, como estava muito
quente no centro do salão, achava preferível ir para a varanda do clu-
be, para tomar um pouco de ar. Com as conversas de apresentação, os
pais de Rosária, por mais que ele olhasse para a mesa, com olhos de cão
faminto, não perceberam sua fome e esqueceram de lhe oferecer o que
mais o seduzia: os pastéis quentes. Esfomeado, antes de sair, ele não
resistiu à tentação.

- Exatamente...Ouviu? Certo? Não estou suportando ver essas coxinhas,


esses bolinhos, Adamastor custou a falar. Fazia rodeio para chegar ao
assunto principal, ao que mais o atraía. Evitava mostrar sua atração, a
gula e fraqueza diante dos pastéis; imaginava que isso não ficaria bem a
um engenheiro educado. Depois de um pequeno silêncio, retornou:

- Estes pastéis...Ouviu? Compreendeu?...Parecem estar deliciosos. Senti


o cheiro de longe... evidentemente. Permitam-me tirar um...

Ele gostava de pronunciar certas palavras, mesmo que nada tivessem a


ver com o que ele queria dizer, principalmente quando estava nervoso.

- Claro que sim...esqueci de te oferecer - respondeu o pai de Rosária,


educadamente, com voz de barítono embriagado. - Pode levar alguns
para vocês comerem... Pegue, neste guardanapo...

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- Você não sabe arrumar... Eu arrumo pra eles, disse num tom alto,
como dando uma ordem a ser obedecida, D. Gertrudes, a mãe de Ro-
sária, prosseguindo firmemente: - Os homens são muito desajeitados…
não sabem fazer nada!

Ele engoliu, ali mesmo, o primeiro pastel, que desceu pela garganta,
queimando-a. Farelos do salgado, bem como um fiapo de queijo ficaram
presos no seu bigode preto. Isso a levou a limpá-lo com rapidez, com
um guardanapo retirado da mesa, antes que ele usasse o lenço marrom
para retirar os resíduos que permaneceram em torno da boca. Engolido
o primeiro deles, o apetite de Adamastor aumentou ainda mais. Após ele
ter se afastado da mesa e atravessado o salão, segurava, radiante de ale-
gria, com uma das mãos, outro pastel quente, examinando-o com avidez
e atentamente o recheio, antes de cada bocada. Em seguida, oferecia o
pastel, já pela metade, a Ela.

Ele estava embriagado; devido à cachaça ingerida, em virtude do baru-


lho ensurdecedor vindo do salão, mas principalmente, pela paixão que
o corroía. Tudo isso somado impedia Dr. Adamastor de pensar com
clareza. Foi nesse ambiente confuso que se iniciou, na segunda-feira de
carnaval, o namoro, que durou para sempre, possivelmente com o arre-
pendimento de ambos.
As brigas foram a tônica da relação e só não aconteceram nos primeiros
dias de namoro. Com o tempo, logo após o casamento, elas foram au-
mentando em freqüência e intensidade, passando a constituir o padrão
normal da vida do casal.
Ainda no namoro, devido à grande atração, aumentou a intimidade
física dos namorados. O esperado aconteceu: Rosária ficou grávida.
Quando ela anunciou o fato, Adamastor ficou alegre e satisfeito, pois isso
apressaria o casamento. Era o que ele mais queria. A princípio, ficaram
em dúvida: contar ou não, apressar ou não a união definitiva?

Nem uma coisa, nem outra. Quem decidiu tudo, como era a norma,
foi D. Gertrudes. Envergonhada, ela elaborou um plano para resolver,

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o mais depressa e escondido possível, o fato nefasto. Não admitia casar
uma filha grávida. Isso seria uma afronta à Igreja e aos valores familia-
res. Além do mais, o tempo era pouco para preparar a cerimônia, con-
vites, bebidas e tudo o mais. A solução ordenada por D. Gertrudes foi
cumprida à risca. Clarimundo afirmou, diante de todo o drama:

- Em coisas de mulher eu não entro... Gertrudes sabe bem o que faz...


Conhece essas coisas mais do que eu...Não entendo disso. É ela quem
resolve.

Na casa de Rosária, quem dava ordens era a velha Gertrudes, alagoana,


convicta de sua macheza e que jamais levava desaforo para casa. Den-
tro de casa ou na rua, decidia suas desavenças aos berros, com ameaças
e, não muito raro, com pesadas agressões, que ela narrava depois para
todos, dando risadas e com grande orgulho:

- Mostrei, hoje, prá um barraqueiro o que é uma mulher-macho. Veio


me passar a perna: vender novecentos gramas de aipim, como se fos-
sem um quilo. Pesei noutra barraca; voltei lá e exigi o restante. Ele fingiu
não me ouvir. Joguei tudo na cara dele; xinguei e peguei meu dinheiro
de volta, com a ajuda de policiais. Pensa que sou boba? Ah! Ah!... 

A decisão de D. Gertrudes foi respeitada, sem ser discutida. Rosária foi


encarcerada durante sete meses, num convento em Maceió, onde sua tia
Genara, irmã de D. Gertrudes, era diretora. Lá, ficou até o nascimento
do filho, sem o conhecimento de amigos e familiares mais afastados.
Para todos, ela estava nos Estados Unidos, fazendo um curso de inglês,
morando com uma família americana. Os endereços não foram dados,
ou eram inventados, caso alguém perguntasse, querendo lhe escrever ou
telefonar.

Após o nascimento da criança, um menino, o médico, Dr. Paulo César,


obstetra de Maceió e amigo da família - o mesmo que fizera todos os
partos de D. Gertrudes - de comum acordo com ela, arrumou um casal

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sem filhos, parentes dele, em Maceió, para adotarem o filho de Rosária.
O bebê nem chegou a ser batizado, devido à pressa em resolver esse
terrível problema. Ninguém ficou sabendo a quem o recém-nascido foi
entregue. O que se soube foi que se tratava de uma boa família, de pos-
ses, na qual o menino, certamente, seria bem criado e educado. Recebi-
do como filho, o casal ficou felicíssimo e agradecido a Deus, por receber
essa dádiva vinda, certamente, do céu.

Dr. Adamastor, ameaçado por D. Gertrudes de terminar o namoro, foi


afastado das negociações a respeito da adoção e proibido de ver o filho
que nasceu. Essa proibição foi o castigo imposto por ela, pelo mal que
ele fizera à sua filha, moça recatada e de família. Ela, por sua vez, por
ter sucumbido à sedução do namorado, fora proibida de receber visitas,
exceção feita apenas para sua mãe.

Ele aceitou tudo resignado. No início, imaginou não resistir à ausên-


cia de sua amada. Pensou em visitá-la, mas desistiu. Entretanto, alguns
meses depois, a falta de Rosária e a diminuição da intimidade com seus
pais lhe permitiram perceber que a vida sem ela não era tão ruim como
pensara. Ficou sem seus carinhos, é certo; sem seus olhos azuis; sem
sua voz melodiosa. Em compensação, ficou livre dos seus insultos, seus
gritos estridentes, exigências infantis e ameaças de suicídio constantes
caso rompesse o namoro. Nos sete meses de afastamento, imaginou e fez
planos para acabar com tudo de vez. Entretanto, quando assim pensava,
percebia que não seria nada fácil cortar a relação, cheia de emoções, da
qual passara a sentir falta, inclusive, das brigas.

O namoro, que fora interrompido durante a gravidez, recomeçou após


o retorno de Rosária. Ela, ao voltar, estava mais gorda, mas, ainda muito
bonita. Sua pele, agora, apresentava uma tonalidade mais clara, que a
tornava um pouco diferente. A prisão parecia não ter feito bem a ela.
Após o primeiro encontro com Adamastor, com abraços e beijos demo-
rados, acompanhados de lágrimas e risos, os dois brigaram. Ela ficou
enciumada, ao notar que ele havia deixado o bigode crescer novamente.

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Anteriormente, ela o obrigara a raspá-lo. Bastou isso para ela imaginar
que ele havia mudado o visual, a pedido de alguma namorada, arranjada
durante seu confinamento.
Pouco antes de se casarem, os desencontros se tornaram mais freqüen-
tes. Esses fatos não foram suficientes para que eles desistissem de for-
mar uma família. Aprisionados, um ao outro, foram se acostumando às
discussões exaltadas, aos palavrões trocados, às agressões físicas recí-
procas e, assim, formaram uma estrutura de convivência, em que havia
muito mais desacordos que acordos, mais disputas que harmonia e mais
sofrimentos que prazeres.

Filho de peixe, peixinho é, diz o ditado, e assim aconteceu com Rosária.


A filha seguiu a mãe: decidia os problemas, desde o início do namoro,
na base do grito. Adamastor, aos poucos, adorando sua beleza santa, foi
envergando-se à sua braveza. A princípio, para evitar uma disputa maior
e com receio de perdê-la, depois, acostumado e sem forças, a seguia,
deixando o barco descer, desgovernado, a cachoeira desconhecida. Ele
não conseguia imaginar que, ele próprio pudesse ter mais discernimento
e dirigir sua embarcação para outro porto, menos perigoso.

Muitas vezes, eles se perguntavam o que foi buscado naquela união de-
vastadora. Sem respostas, em nome do amor, foram se adaptando às bri-
gas e ao sofrimento que um causava ao outro. Quando, ocasionalmente,
surgia um período de calmaria, por motivos inexplicáveis, alheios à von-
tade dos dois, um deles, prontamente, desafiava e agredia o outro e, no-
vamente, reiniciavam as desavenças. Com o retorno à estrutura-padrão,
brigas continuadas, conhecida de ambos - que eles compreendiam e com
as quais tinham aprendido a viver - eles navegavam satisfatoriamente.

Dr. Adamastor, antes de se casar, para ficar mais próximo de Rosária,


começou a trabalhar com o sogro, inicialmente, no depósito de material
de construções e depois, na edificação de pequenos prédios. Apesar das
desavenças constantes e continuadas, o casamento foi realizado, com
muita pompa, orquestra, garçons, presença de políticos e comerciantes.

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Clarimundo, sendo empresário na área de material de construção, con-
vidou todos os fregueses e amigos. Por outro lado, D. Gertrudes tinha
uma parentela enorme no Nordeste. Todos vieram para a grande festa.

Lucinho foi o último filho de Dr. Adamastor e Rosária, uma família que
teve um início de vida tumultuado, numa casa onde a desordem e o
sofrimento imperavam. Segundo consta, quando ela esperava Lucinho,
ele andou paquerando uma estagiária da firma de construção de Cla-
rimundo. Os boatos alcançaram os ouvidos de Rosária, que foi tomar
satisfação, no escritório do marido, com Silbene, que desmentiu tudo,
a princípio, com veemência; aos poucos, pressionada pelo tom de voz
e palavrões cada vez mais pesados de Rosária, cedeu e, praticamente,
confessou o crime. Há notícias de que ela teria tido um filho dele. A
partir dessa data, Silbene foi dispensada, vigiada, impedida de jamais se
aproximar de Adamastor.

Rosária, para punir seu marido, decidiu ficar sem ter relações sexuais
com ele, por uma temporada. De fato, usou a briga como pretexto para
ficar livre do que não gostava; nunca fora uma mulher entusiasmada por
contato sexual com homem algum. Tinha aversão pelo corpo masculino
e, mais ainda, pelos órgãos sexuais masculinos. Com respeito aos ho-
mens, ela seguiu a mãe, que não escondia o desencanto com eles, fossem
de qualquer espécie.

- Não tolero nem cheiro de homem. Homem tem cheiro de queijo ardi-
do, falava D. Gertrudes, dando boas gargalhadas, diante de Clarimundo
que, nesses momentos, abaixava a cabeça e ria sem graça.
Clarimundo, acostumado com a mulher, manhoso, já desistira de dis-
cutir com Gertrudes, há muito. Continuava a vida sexual, sem chamar
atenção de ninguém, com uma ou outra mulher que encontrasse, que
aceitasse suas cantadas melosas e demoradas. Geralmente, procurava as
mulheres pobres, incultas, sem ideais e planos. “Estas são fáceis”, assim
ele dizia, “não dão trabalho; não preciso gastar muito e nem de muita
conversa, que, de fato, não tenho”.

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O Incesto: Cega Obsessão
De tempos em tempos, Rosária adoecia mentalmente. Nessas ocasiões
seu humor oscilava, ora ficava desanimada e triste e ora alegre e anima-
da. Suas crises não só se tornavam mais freqüentes, como também, mais
graves. Numa fase ela se julgava bela, saudável e inteligente e, na outra,
imaginava-se feia, “burra”, envelhecida e próxima do fim.

Durante uma de suas crises de euforia ela comprou, de uma só vez,


dúzias de calcinhas, todas iguais; dezenas de livros de culinária e, ainda,
anéis e relógios variados, sem quaisquer objetivos. Bastava alguém
lhe oferecer - podia ser qualquer objeto - para que ela comprasse, sem
pensar. Emitia cheques, sem refletir, de sua conta conjunta com Dr.
Adamastor. Suas energias aumentavam espantosamente; ficava horas
conversando e, ao discutir um assunto, antes de terminar a idéia inicia-
da, passava a outra. Isso tornava sua fala, muitas vezes, impossível de ser
compreendida. Deitava-se tarde, levantava-se antes do dia amanhecer.
Ao sair da cama, ainda de madrugada, acendia as luzes da casa, lavava,
furiosamente, a cozinha, o banheiro e as roupas da casa, mesmo não
estando sujas. Arredava mesas e cadeiras, abria e batia portas e, com a
voz esganiçada, cantava alto Beijinho Doce, Chuá-Chuá, Paloma Triste;
suas canções preferidas. Ao pronunciar as palavras dos versos mais
românticos, usava um tom de voz meloso. Assim, ao cantar: “que beijin-
ho doce que ela tem, um abraço apertado, suspiro dobrado...”, na palavra
“suspiro”, suspirava demoradamente; em “beijinho”, contraía os lábios,
imitando o beijo dado. Esses trejeitos irritavam ainda mais os ouvintes
insones. Na área sexual, ela se transformava, de inibida e tímida, numa
mulher livre e promíscua. Olhava sedutoramente para os homens que
encontrava, exibia seus seios, antes escondidos, vestia roupas vermelhas,
pretas e amarelas; tudo que pudesse despertar a sexualidade. Quando
os impulsos aumentavam, ela agia como um animal, era guiada apenas
pelos instintos.

Dr. Adamastor, que tinha assistido a várias crises, acostumou-se com


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essas mudanças e com os hábitos extravagantes. Num mês de fevereiro,
uma nova crise de excitação, iniciada em meados de dezembro, alcançou
o cume.
Numa noite, após Dr. Adamastor chegar do trabalho, ele convidou-a
para assistir ao jornal, que ela era encarregada de gravar para ele.

- É...Certo...Ouviu?...Compreendeu?... Vamos ver o jornal.

- Ah... meu bem, esqueci...falou agitada e rindo, passando, as mãos nos


cabelos desarrumados.

- Como? Esqueceu? Ouviu? Naturalmente... Não é seu trabalho... Você


não faz nada, realmente; passa o dia falando. Parece que, hoje, você,
desde cedo, está com o falador aberto.

- Também, para quê? Uma chatura... Esse jornal não tem nada. São as
mesmas notícias... Você já conhece todas: desastres de pessoas descon-
hecidas; nunca é um nosso parente ou amigo, só uma vez aconteceu
isso; reuniões inúteis na Câmara; reclamações ao Procon e mais um
seqüestro...ela não parava de falar...

- Eu gosto...Ouviu? Exatamente...É o que você faz... Cada dia, você se


torna mais incapaz...

As alterações entre os dois foram aumentando, com xingamentos e pala-


vrões recíprocos. Como sempre acontecia nas brigas, ele foi expulso do
quarto do casal.

Uma forte tempestade caiu naquela noite, acompanhada de relâmpagos


e trovoadas - dos quais ela tinha pavor, principalmente, do barulho.
Durante as crises, o medo aumentava, ela só se acalmava junto a uma
companhia, qualquer que fosse, até mesmo um pequeno cão, servia para
protegê-la. Frustrado por não assistir ao noticiário da noite, irado com
Rosária, Dr. Adamastor, resmungando, pegou o pijama e foi dormir no

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quarto de hóspede. Nessa noite, no auge da agitação, ela arrebanhou
Lucinho, que tinha em torno de cinco anos, para lhe fazer companhia.

Lucinho dormiu logo após se deitar na cama do casal. Entretanto, foi


despertado pelo barulho da porta do quarto que se abrira, bem como
pelos passos duros e pesados da mãe. Ele abriu, preguiçosamente, os
olhos, examinando-a no escuro. Ela se aproximou e o fitou com ternura.
Passou as mãos brancas e lisas, nervosamente, sobre os cabelos do filho e
começou a observá-lo. Hesitava; não decidira o fazer. Caminhou, inqui-
eta, até o armário de medicamentos, procurando um comprimido para
dormir. Engoliu-o, com o auxílio de um pouco d’água que trouxera para
o quarto. Enquanto esperava o sono, começou a tirar as roupas, sem se
preocupar com o filho. Automaticamente calçou seus sapatos de salto
alto e caminhou nua, de um canto ao outro do quarto. Nesse instante
Lucinho abriu os olhos espantados, diante da cena inesperada. Rosária,
agitada, incapaz de se criticar, vestiu uma calcinha vermelha e, em
seguida, através de gestos cadenciados e libidinosos, colocou um sutiã
da mesma cor e estilo. Dirigiu-se até o criado-mudo e ligou o rádio de
cabeceira. Sons calmos de uma antiga canção italiana, “Cuore Ingrato”,
invadiram o quarto sinistro.

Ele, imóvel e espantado, observava o ritual ali iniciado. Criticado, con-


stantemente, por praticar más ações, sentia-se culpado de observar o que
via: sua mãe, de calcinha e sutiã, caminhando pelo quarto, sem objetivo
aparente. Era um espetáculo impossível de ser entendido.

Uma vez terminada a canção italiana, ouviram-se os sons belos e singe-


los de “Plaisir D’Amour”, uma suave canção de amor francesa, na qual
os prazeres do amor são descritos como efêmeros e as dores, eternas.
Encantada, envolvida pela melodia, fitou Lucinho com olhos acesos
e brilhantes; com inusitada volúpia. Ela se agitava. Dominada pelos
instintos, descontrolada ou, possivelmente, possuída pelo demônio,
maquinalmente, retirou, a calcinha vermelha, deixando o corpo coberto
apenas pelo sutiã vermelho, que protegia os grandes e já frouxos seios.

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Na penumbra do quarto, Rosária parecia dançar, como fazem as profis-
sionais de “striptease”, diante da platéia atenta. Examinou novamente o
filho: era uma presa fácil demais para ser devorada.

Uma fresta de luz medrosa e fria penetrava, com dificuldade, pela porta
semi-aberta do quarto, permitindo ver a cena desoladora e tétrica que
começava a ser representada naquela noite de tempestade. Lembrava
os espetáculos teatrais pobres das pequenas cidades do interior. Ela se
virou, na penumbra, pôs-se a examinar seu próprio corpo; olhava-o,
tocava-o, todo ele, na solidão da noite. A respiração foi se acelerando.
Com extremo cuidado e delicadeza, ela, após untar as mãos num creme
perfumado, deslizou as pontas dos dedos por todo o corpo, massagean-
do-se através de toques macios, lentos mas firmes.

Ele, assistia a tudo. Gelado e imóvel, fingia-se de morto. Não compreen-


dia o que se passava diante dos seus olhos amedrontados.

Rosária, mais uma vez, caminhou, afoita, até ao armário e de lá retirou


um vidro com um líquido leitoso e morno. Com seus olhos de felino,
parecia, observar o momento oportuno para avançar sobre a presa
distraída. De suas narinas saía um sopro quente. Assentou-se na cama e
untou novamente o corpo. Seus dedos agitados aumentavam a força e o
ritmo das massagens. Seu corpo aquecia, queimava. Inebriada, ela não
mais avaliava as conseqüências de suas ações libertinas, atos que, fora da
crise de euforia, ela seria a primeira a criticar com veemência e asco.

Encantada consigo, observando cada pequeno órgão - sinal ou vestígio


de sexualidade - com curiosidade e interesse, ia se friccionando, a cada
momento, com mais vigor.

De tempos em tempos, virava o rosto excitado em direção ao filho,


inerte e desarmado. Lucinho, cada vez mais cheio de culpa, segurava,
como podia, a respiração, ao participar, estupefato, sem o desejar, do
desatino da mãe.

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Após alguns minutos, a respiração barulhenta de Rosária tornou-se
mais profunda, sincronizada com os movimentos das mãos e dedos;
seus músculos enrijeceram. Dominada pela loucura, sem controlar
suas ações, girou o corpo em direção ao filho. Possessa, deitou-se, com
seu corpo grosseiro e imenso, sobre o delicado organismo do filho e o
abraçou fortemente.

Seus grandes seios, umedecidos pelo líquido leitoso e pelo suor que
nascia de seus poros, saíram do pequeno sutiã vermelho, espalharam-
se sobre o rosto do garoto, quase impedindo-o de respirar, deixando-o,
ainda, mais assustado e paralisado. Sufocado, ele escutava a respiração
ofegante de sua mãe, os gemidos retidos e profundos, os sons vindos
do seu agitado coração. Após alguns instantes, participou da convulsão
muscular que irrompeu em todo o corpo de Rosária.

Lucinho, perplexo, teve vontade de chorar, entretanto, ao mesmo tempo,


imaginou poder estar recebendo um carinho desconhecido, diferente
dos usuais; um abraço jamais experimentado. Lembrava que sua mãe, só
raramente, transmitia-lhe afetos. Imobilizado, ficou em dúvida se deve-
ria ou não corresponder àquela afeição ou, no mínimo, aceitá-la, mesmo
sendo um sinal de amor incompreensível. Assim raciocinando ele
resistiu ao impulso de gritar e continuou paralisado, como um animal
pequeno e fraco, diante do inimigo grande e poderoso, da ameaça im-
possível de escapar.

Esmagado sob ela, refletia acerca daquela conduta, estranhamente afetu-


osa, naquela hora da noite. “Por que tudo aquilo: a nudez, o creme, a
música, o vestir e despir da calcinha, os movimentos de mãos que ele ja-
mais presenciara? O que isso significaria? O que teria feito para merecer,
naquele dia, tanto empenho de sua mãe, sem receber xingamentos, nem
nada ser exigido?”

Até então, as relações com sua mãe tinham sido admoestações, maltra-

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tos; jamais afagos.

Os espasmos corporais se extinguiram; a respiração se normalizou e o


coração passou a bater mais ritmado. Por fim, a razão retornou. Ao olhar
para o filho, pôde observar que ele tinha os olhos abertos e espantados.
Desorientada, afastou-se rapidamente de seu corpo e, pigarreando,
quase sem voz, perguntou-lhe, aflita:

- Acordou, filhinho?

Ele tornou a fechar os olhos, mas logo os abriu. Observou sua mãe,
certo de que iria receber um castigo. Imaginou ter cometido algum erro
grave, não sabia qual. Ela, assustada, afastou-se ainda mais. Mais serena
e racional, culpada e envergonhada, começou a soluçar. Ao se levantar,
caminhou pelo quarto escuro e abafado, vigiada pelos olhos aflitos do
filho e, só minutos depois, lembrou-se de que estava nua. Procurou,
apressada e desajeitadamente, suas roupas, custando a encontrá-las, uma
vez que, por instantes, desapareceram no quarto desmazelado.

Vestiu, na pressa, a calcinha pelo avesso, ajeitou, de qualquer modo, o


sutiã; colocou, por cima de tudo, o “pegnoir” de veludo vermelho lam-
buzado de cremes e, chorando, deitou-se, com cuidado, ao lado do filho.
Minutos depois, começou a abraçá-lo, num misto de atração e aversão.
Chorando e excitada, beijou-lhe o rosto, passando as mãos, ainda un-
tadas, sobre seus pequenos olhos. Tentava, automática e inutilmente,
fechá-los, pois era intolerável fitá-los. Sabia que estava sendo examinada
por aquela mente indagadora: “Estaria sendo criticada? O que ele estaria
pensando naquele instante? Compreendia aquela ação vil, executada
num momento de desespero?” Ela, angustiada, se perguntava...

A tempestade, aos poucos, foi cessando, um vento fresco soprou.

Rosária imaginou se enforcar; sair daquela casa, para sempre; desa-


parecer. Gemendo e orando, ela permaneceu enrolada no corpo do filho,

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mesmo após Lucinho ter adormecido profundamente. Nas suas orações,
pedia perdão a ele e a Deus, implorava uma solução divina para seu
pecado. Julgava-se perdida.

Na manhã seguinte, ele acordou, com a mãe desperta a seu lado. Ela,
com os olhos empapuçados, continuava a lhe pedir, insistentemente,
desculpas, por tê-lo assustado, na noite anterior. Rogo-lhe, ainda, que,
aquele momento vivido por ambos, fosse um segredo entre eles.

Mas esses encontros, ao contrário do imaginado, desejado e prometido,


não terminariam naquela noite. Durante outros períodos de loucura, as
mesmas cenas se repetiram, com o esquecimento completo das promes-
sas e boas intenções do passado. Preparado o ambiente, agora mais
racional, ela já não se preocupava com o espanto do filho. Tudo já era
conhecido.

O hábito sempre fez as pessoas suportarem e até apoiarem os costumes


mais abomináveis e indignos.

A partir da primeira experiência, Lucinho foi se acostumando com os


abraços e os carinhos da madrugada. Às vezes, quando os intervalos
entre os encontros cresciam e sua mãe, calada e triste, passava semanas
sem chamá-lo para o quarto, ele perguntava-lhe quando iria dormir no
seu quarto. Ela disfarçava, pigarreava, fingia não o ouvir. Sua pele branca
tornava-se cheia de pontos avermelhados e lágrimas envergonhadas
umedeciam seus olhos azuis.

Com o passar do tempo, o prazer da novidade foi diminuindo. Ela


chegava sorridente e agitada; Lucinho esperava o início do conhecido
espetáculo. Deitado, sem se mexer, ele permanecia estendido, como um
defunto à espera de urna funerária e da hora de ser enterrado.

Numa tarde, durante suas crises de euforia, ele, ao sair com sua mãe
para fazer compras, foi obrigado a esperá-la numa lanchonete, ao lado

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do edifício onde entrara. Para diminuir sua angústia, ela lhe ofereceu um
sorvete de creme, recheado com morangos.

O acompanhante de sua mãe, naquele dia, era o pintor de paredes, o


mesmo que minutos antes, esteve trabalhando em sua casa.

A espera foi longa e cansativa. Por mais de uma hora, Lucinho ficou sem
o que fazer. Na saída, sua mãe ordenou-lhe, como sempre, nada dizer
acerca do passeio. Devia contar, caso seu pai perguntasse, que estavam
fazendo compras. Agora mais crescido, pôde notar que sua mãe, junto
ao pintor, ficava diferente do que era em casa: o semblante, o tom de voz
se transformava. Ela se tornava gentil e risonha. Ao se despedir do pin-
tor, ela o abraçou carinhosamente. Ele lhe deu um tapinha no traseiro.
Ela, em lugar de brigar, deu boas gargalhadas.

Aborrecido com o que viu, mas ainda sem decifrar seu significado, ele
resolveu não mais sair com sua mãe e também, não mais dormir no
quarto dela.

Os tempos passaram. Rosária se transformou mais uma vez. Agora


ficou triste e calada. Passava a maior parte do dia deitada no quarto
fechado, não tirava a velha camisola branca e nem tomava banho,
respondia somente ao que lhe era perguntado e queixava-se de tudo,
principalmente, de doenças. Com voz fraca, quase inaudível, murmu-
rava: “É preferível morrer a viver assim; não tenho vontade, nem prazer
com nada. Para mim, o fim seria um descanso, uma bênção do céu”. Os
familiares, acostumados às mudanças, não estranhavam quando uma
ou outra personagem da mesma atriz, entrava em cena. Como eram
diferentes! Os amantes da fase de euforia, não tão próximos dela, não
entendiam a metamorfose, o afastamento repentino e “sem motivos”. O
pintor acostumado a sair com ela, ao voltar a pintar a casa, aproximou-
se, seguro de sua concordância e tentou marcar um encontro, entretanto,
foi duramente afastado por ela:

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- Como? Eu? Você está louco. Não quero saber de homem; já basta o
que tenho. Detesto fazer sexo. Quer saber? Detesto você. Tenho nojo de
tudo, não sei onde estava com a cabeça ao ir com você, naquele lugar.
Nunca mais me fale nisso...Suma; saia da minha frente, depravado!

O que nunca mudava era seu gênio irascível. Numa ou noutra crise,
alegre ou triste, calada ou falante, ela sempre estava nervosa com tudo.
Bastava acontecer alguma coisa que a desagradasse, algo que ela não
desejasse.
Mas Rosária tinha seus momentos positivos. Nos momentos de lucidez,
preocupava-se com a casa, com Dr. Adamastor e com sua conduta em
relação a Lucinho e com o mal que causara ao filho. Para compensar o
sentimento de culpa, ela se dedicou mais a ele, deu-lhe mais carinhos e
presentes. Entretanto, essa estratégia pouco funcionou. Ele estava, cada
vez mais convencido, que sua mãe fazia algo errado, que não podia ser
comentado.

Ele demorou a entender o espetáculo do qual participara e que se iniciou


naquela noite escura de fevereiro. Mais crescido, ao conversar com os
companheiros, concluiu que o acontecido, não tinha ocorrido com eles.
Quando decifrou com clareza o significado do evento, desesperou-se.

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Na Serena Manhã de Domingo
Numa manhã quente e abafada de novembro, pouco depois do sol mos-
trar os primeiros clarões avermelhados, por cima das montanhas azula-
das que contornam Belo Horizonte, Rosária, acompanhada dos filhos,
foi à casa de sua mãe, cumprir uma obrigação familiar: as enfadonhas
visitas domingueiras.

D. Gertrudes e o marido Clarimundo moravam numa casa do bairro


dos Funcionários, na zona sul da cidade. Um imenso portão de ferro
ficava logo na entrada da casa. Era nele que as crianças menores subiam
para girá-lo, abrindo e fechando, até que um adulto viesse acabar com
o divertimento proibido. A casa, comprada por Clarimundo quando
suas rendas aumentaram, situava-se no bairro chique da cidade. Era ali
onde moravam as famílias de maior poder aquisitivo ou possuidoras de
“status” profissional mais elevado.

Para entrar na porta principal da casa era preciso descer uma escada
de três degraus, forrada pelos mesmos ladrilhos encardidos, imitando
âncoras pretas, existentes no chão do alpendre. Duas cadeiras e um sofá
simples, de ferro batido, com assento e almofadas de veludo marrom,
adornavam o comprido alpendre cercado por grades, formando desen-
hos sinuosos. Em cima das grades de ferro, assentava-se uma peça de
madeira roliça escura, já gasta.

Uma porta de madeira larga e alta, talhada com figuras geométricas,


separava o alpendre da sala de visitas. Dentro da casa quase não entrava
a luz do sol. A sala era iluminada por oito pequenas lâmpadas que saíam
horizontalmente dos bocais de um velho lustre empoeirado de vidro
amarelo, pendurado no centro do teto. O brilho fosco das lâmpadas era
refletido no forro branco de madeira pintada a óleo.

Um cheiro de cera exalava-se do assoalho brilhante de peroba vermelho-


escura. No centro da sala uma mesa redonda, coberta por uma toalha de
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linho branco engomada, rodeada por seis cadeiras altas, tudo em jaca-
randá.
O silêncio da casa, seu mobiliário, a quantidade de madeira e ferro,
transmitia ao visitante, uma sensação de estar entrando num museu
ou numa igreja; num local apropriado para se fazer preces e escapar do
mundo barulhento e confuso.

Contrastando com a apatia e a velhice do interior da casa, lá fora, o que


se via era a vida florescendo. Do lado direito: roseiras vermelhas, orgul-
hosas de sua vitalidade e beleza, um pouco adiante rosas brancas e am-
arelas, indiferentes às agressões das margaridas atrevidas, violetas tristes
tentavam se espichar para alcançar as roseiras, crisântemos exalando
perfume completavam o jardim. Insetos, dourados pelo sol, começavam
seu aquecimento e busca do alimento.

No fundo do terreno, erguiam-se pés de mamão. Ao lado, jabuticabei-


ras deixavam cair, no solo, milhares de jabuticabas que ali apodreciam.
Goiabeiras ainda novas começavam a mostrar as flores brancas. No ar
exalava-se um perfume adocicado que era disputado pelas abelhas e
beija-flores em busca do néctar daquele paraíso. Isolada e desapontada,
uma tamareira estagnava. Plantada pelo antigo dono, jamais dera um
fruto, apesar dos desejos e cuidados dos proprietários, todos encantados
com sua imponência.

Num canto, cercadas por telas de arame, galinhas, barulhentas e agita-


das, ciscavam à procura de algum resto de canjiquinha ou, caso tivessem
mais sorte, de abocanhar uma desvalida minhoca, que ousasse atraves-
sar aquele lugar proibido. Através de uma pequena porta de tela, todos
os dias D. Gertrudes ali entrava para colher ovos frescos. As galinhas se
bicavam, sob os olhares severos de um único galo, com grandes cristas e
barbelas vermelhas, orgulhoso do papel desempenhado.

Ao lado do galinheiro, nos canteiros estreitos, acima do nível do solo,


cobertos por terra escura e úmida, pés de alface verdes e viçosos, couve,

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cebolinha, salsa e taioba. Uma mangueira enorme, situada na divisa do
quintal, mostrava as frutas ainda pequenas e verdes, prometendo, para o
fim do ano, milhares de mangas grandes, cheirosas e avermelhadas, infe-
lizmente, não tão saborosas quanto sua beleza e perfume. Embaixo dessa
frondosa árvore, um banco de madeira pintado de cinzento, ao seu lado
uma rede com listras pretas e vermelhas, entre a mangueira e o muro,
esperava algum corpo cansado.

Era nesse recanto que a família de D. Gertrudes se reunia todos os do-


mingos em torno, principalmente, dela.

Os irmãos foram chamados para dentro de casa, para participar de um


jogo de dados, comprado para distrair os netos. Lucinho, cansado do
jogo, saiu para o terreiro, com a prima Isaura, de sua idade, que havia
dormido, aquela noite, com a avó. Os dois, após ter visitado o galinheiro,
balançavam-se no portão de entrada, quando ninguém os via.

No fundo da casa, ao lado do galinheiro, algumas pedras haviam sido


abandonadas desde o tempo em que a casa fora construída. Esse era o
lugar preferido pelas crianças que ali brincavam. Bastava levantar uma
das achatadas e esbranquiçadas pedras, principalmente, nos meses
de outubro e novembro, para que de lá saíssem escorpiões, grandes e
pequenos, todos andando apressados, com os ferrões levantados e pron-
tos para dar a terrível picada.

Lucinho e a prima, divertiam-se com os perigosos e atraentes bichinhos.

Naquele domingo preguiçoso, debaixo da mangueira, D. Gertrudes,


assentada no banco cinzento e Rosária, deitada na rede, esperavam a
chegada do resto da família. Possuidoras de temperamentos semelhan-
tes, procuravam inquietas e inutilmente, por um assunto que não vinha:

- A vida hoje em dia tá muito difícil, falou Rosária, sem grande entu-
siasmo, tentando iniciar a conversa, mesmo sabendo que este papo não

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lhe interessava e, nem mesmo, à mãe.

- Você tem razão minha filha, hoje tá tudo mudado, o mundo não é mais
o mesmo... resmungou D. Gertrudes, bocejando. Ninguém quer nada
com o serviço... com a dureza... Antigamente, as empregadas trabal-
havam até doze horas por dia. Levantavam ainda antes do sol nascer...
Eram dedicadas à patroa, gostavam da gente e, no entanto, ganhavam
menos do que agora e, além disso, quase não roubavam... Olhe a sujeira
no quintal. Elas não ligam prá nada... Deixam tudo por nossa conta...

Nesse instante, D. Gertrudes se vira e aponta para algumas folhas caídas,


contraindo a face enrugada e empurrando os lábios para frente, para
indicar seu asco e desprezo pelas subalternas.

- É mesmo... a senhora tem razão, balbuciou cansada Rosária, sem pre-


star muita atenção ao que foi dito nem às expressões de sua mãe. Esse
ano essa jabuticabeira deu tão pouco... Antes dava muito mais. Eram
mais doces, saborosas, maiores...

- Não foi tão pouco, um pouco menos do que no ano passado...Você


não veio aqui...deu até muita...Também, o tempo...Choveu menos esse
ano, no mês de setembro, quando elas florescem...Mas, olhe o chão...Está
cheio de jabuticabas que caíram. Dá uma pena, tudo apodrecido. Falam
que é porque as árvores estão sendo cortadas. É o progresso, chove
menos... Não sei para onde estamos caminhando. Tenho saudades de
antigamente, de Maceió, do tempo de criança.

- É, suspirou...ando exausta... resmungou Rosária, olhando para o chão,


junto ao pé de jabuticabas. Não sei por que já acordo assim, cheia de
dores. Hoje mesmo, levantei com uma dor aqui na perna!...Não sei o que
é... Acho que são varizes. Tenho muito medo delas... Dizem que podem
dar derrame. Não queria ter filhos; engordei tanto... minha barriga au-
mentou, está cheia de estrias. Coisa ruim é velhice...

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- Por quê?

D. Gertrudes muda o tom de voz baixo e aborrecido, elevando-o, para


fingir interesse e simpatia pelo que foi dito: - Você é tão nova...Como
está sua vida com Adamastor?

- A gente vai vivendo, ele não é mau, trabalha muito, ganha bem, mas...

- Todo casamento é igual, as mulheres sofrem muito nas mãos dos


homens... Isso eu sei... resmungou D. Gertrudes; - Minha mãe já falava
o mesmo, ela também nunca viveu bem com meu pai... Você assistiu
ao programa... Como é mesmo o nome?... Aquele de debates...Eu gosto
muito dele... À tarde, quando não tenho o que fazer - e agora é quase
todos os dias - eu assisto...

- Eu também não perco... A gente fica tão bem informada...Tem muita


gente boa que vai lá. Outro dia, foi um psiquiatra, o Dr. Marcondes, eu
acho... comentou Rosária.

- Eu assisti. Falou sobre “sexo e casamento”, não foi? Exclamou mais


animada Gertrudes.

- Acho que sim. Não guardei bem o que falou; mas ele fala muito bem,
todo mundo sabe disso, além do mais, é um bonitão, alegre e falante,
com um homem assim é que eu gostaria de ter me casado. Já assisti out-
ros programas em que ele apareceu...

- Fala mesmo, mas tem umas idéias esquisitas... Não concordo com
elas... Não gosto dessas novidades de sexo...Fechou a cara D. Gertrudes
enquanto falava.

- Seria bom se ele morasse em Belo Horizonte, iria consultar-me com


ele.

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- Vá a São Paulo...Consulte lá...Os melhores médicos vão para São Paulo.
Mas, consultar pra quê? Perguntou assustada D. Gertrudes.

- Uns problemas que tenho, nada sério... Rosária evitou falar.

- Todos nós temos problemas. Que problema é pior do que ter que
mexer com essa gentinha, cada uma pior e mais safada do que a outra?
E mais ainda: ter que abraçar um homem quando a gente quer é dormir.
Que saudade de minha mãe, suspira D. Gertrudes...Para que consultar
com psiquiatra?
- Certas coisas... É... com relação a Lucinho. Coisa à toa... bobagens,
bobagens...Depois, eu te conto, continuou Rosária, evitando se expor e
desinteressada.
- Eu também tenho problemas com respeito ao seu pai. Minhas preocu-
pações não são apenas com as empregadas. Cuidar da casa dá trabalho:
verificar se a comida está bem feita, se a roupa foi bem lavada e pas-
sada. O pior é vigiar. Temos que vigiar sempre. Outro dia, uma camisa
nova de Clarimundo, ele tinha vestido poucas vezes, foi queimada, ficou
imprestável. Dá uma pena! E o ruim, você nem imagina... ela nada falou.
Eta gente à-toa. Ela colocou a camisa na gaveta, como se estivesse boa
para vestir. Ele é um bocó. Vestiu a camisa furada e nem notou. Imag-
ine só... ir trabalhar assim! Por pouco, saía com ela. Que vergonha! Não
gosto nem de pensar... Seu pai já não é mais o mesmo homem... nunca
foi lá grandes coisas, agora está um caco. Não serve pra nada. Você com-
preende o que quero dizer, não é? De certo modo até gosto.
- É sempre assim... Também, não sei em que um psiquiatra poderia
ajudar... continuou a falar sem prestar atenção nos comentários de sua
mãe...
- Aqui em Belo Horizonte tem médicos bons. Por que não procura um
deles? Muitos têm aparelhos para examinar as pessoas, alguns desses
vêem ou descobrem...não sei bem... me falaram... até o que nós pensa-
mos. Por meio de uns risquinhos no papel, os médicos descobrem como
está dentro da nossa cabeça. Deus me livre disso. Nunca irei fazer esses
exames... Completou assustada D. Gertrudes.

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- É... já me falaram acerca de um deles... um que só trata dessas coisas...
- Que coisas? Perguntou mais espantada e atenta, D. Gertrudes.
- Nada. Nada. Coisas que passam pela minha cabeça.
- Fale com sua mãe, eu saberei ajudá-la...quem sabe? Sua mãe sempre foi
sua amiga. Mãe só deseja o bem; quem mais pode ajudar um filho?
- Concordo, toda mãe gosta do filho...Depois... uma hora eu te conto...
hoje não! Não é um bom dia para isso, é uma conversa longa...comentou
Rosária.
- Tá bem, lamentou D. Gertrudes, desinteressada mas, ao mesmo tempo,
satisfeita em não ter que ouvir uma possível e longa história. - Que pas-
sarinho bonito, aquele azulado!... todas as manhãs fico horas ouvindo
seu canto... Olhe lá em cima da mangueira, no alto... Ele gosta de ficar
escondido nos galhos mais altos. Bom para ele...
- Qual? Não estou vendo. Estou vendo um beija-flor.
- Não... ali, na mangueira. Ah! Agora foi para a goiabeira. Acho que ele
tem um ninho por aqui.
- Você se lembra daquele canarinho amarelo que papai me deu? pergun-
tou Rosária. E lamentou, sem esperar pela resposta: - Era tão bonito!...
- Lembro. Até para dormir, você o levava para o quarto, para lhe fazer
companhia.
- O que foi feito dele? Não me lembro...
- Fugiu, um dia. O arame da gaiola era largo demais para seu tamanho.
Ainda ficou por uns dias, no quintal...
- Não! Lembrei-me. Ele foi dado para Alfredo. Eu até chorei muito.
Agora me lembro... resmungou Rosária.
- Você está enganada. Falou firme D. Gertrudes. - Para o Alfredo foi
dado o poodle, que você tinha e que sujava tudo.
- É... Não sei... Hoje está tão quente...Não é? Mudou de assunto Rosária.
- Ninguém chegou ainda!...comentou D. Gertrudes, - Sua irmã sempre
foi preguiçosa, levanta tarde...
- Que horas são? Estou sem relógio. Não gosto da pulseira me apertando
o braço, dá uma impressão de prisão. Gosto de ficar livre... disse Rosária
bocejando.
- Eu também estou sem o meu. Deve ser umas onze horas.

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- Isso tudo? Por isso mesmo é que já estou começando a ficar com fome.
- Quer comer alguma coisa? Há leite e frutas na geladeira, convidou D.
Gertrudes.
A conversa se prolongou por mais de uma hora nesse tom. Mudavam,
ora para um assunto, ora para outro, sempre se arrastando com dificul-
dade e nunca chegando a lugar algum. As duas tinham consciência
de que não havia entre elas, como nunca houve, uma intimidade, que
diziam existir; por certo, nunca mesmo, a tenham desejado. Mãe e filha
falavam por falar, pela vergonha de estarem, frente à frente, sem terem
nada que dizer. Buscavam assuntos mas eles se esvaziavam rapidamente.
- Por falar em comida, continuou Rosária, você leu ontem o jornal?
- Não. Não leio o jornal todos os dias. Pego e olho apenas os filmes que
vão passar na televisão. Sabe, uma coisa que me atrai são os classificados.
Gosto de ver as ofertas, tem muita coisa boa e barata...
- Também vejo, outro dia comprei esse sapato que estou usando, baratís-
simo. Mas tem também muita porcaria nas liquidações... contou Rosária.
- Se tem!
- A gente precisa ficar bem informada. Gosto muito da página policial.
Nesse instante Rosária se levanta da rede e pega o jornal de domingo
que está em cima do banco...
- Olhe aqui, algumas notícias de que gosto de ler, pois me divertem:
“Mulher mata marido a machadadas”.
- Eu, às vezes, leio também essas notícias. A gente pensa: “Ainda bem
que não foi comigo”. Elas nos distraem. O que mais a gente quer nessa
idade? gemeu D. Gertrudes dando um sorriso dúbio.
- Mas existem notícias que eu gostaria que acontecessem comigo: “Gan-
hou sozinho o prêmio da Loteria Esportiva”. É o que mais sonho. Assim
poderia comprar tudo o que desejasse sem ter que pedir dinheiro àquele
pão-duro.
- Ele te dá o que você deseja! completou D. Gertrudes.
- Sim. Mas tenho que fazer várias coisas para agradá-lo e não gosto...
A conversa continuava, às vezes quase parava, como um velho camin-
hão, soltando vapor pelo radiador, pesado e cansado, subindo uma
ladeira devagar, falhando freqüentemente. A todo o momento, surgiam

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perguntas acerca das horas.
- Deve ser onze e meia, ou mais. Marilda até agora não chegou. Gosto
muito de conversar com ela, não com o Artur, ele é um “chato”!
- Quando vocês eram mocinhas..., Oh! Que tormento era para ela sair da
cama para ir ao colégio. Você também era preguiçosa. Hoje, um pouco
menos...
- Eu não sou boba. Para que ficar trabalhando o dia todo? Para depois
morrer? “Do mundo nada se leva”. Quero ter uma vida boa.
De repente, Isaura chegou aos berros, até à avó.
- Ele me mordeu! Ele me mordeu!
- O que foi minha filha? perguntou a avó, preocupada.
Mas D. Gertrudes, bem como Rosária, apesar de apreensivas com os
gritos da menina, não deixaram de ficar satisfeitas. A partir da mordida
e do pedido de socorro, elas seriam forçadas a tomar uma decisão, a
agir: deixariam de lado a conversa aborrecida, que já estava se tornando
insuportável. Antes, sem direção, agora, a partir do grito, sabiam o que
deveriam fazer.
Rosária olhou para a sobrinha e constatou que o braço dela estava
realmente marcado por ferimentos de dentes. Lucinho, que a acompan-
hava, sabia que seria repreendido. Quase sem falar, como era seu hábito,
diante da mãe e da avó, balançou a cabeça, sinalizando que não fora ele
o causador da lesão. Mas não havia dúvida. Ele era o agressor. O garoto
foi duramente xingado por sua mãe, diante da avó, para alegria das duas.
Desse modo elas aliviaram suas tensões. Ele encarnou, como era co-
mum, a culpa do mal-estar crônico.

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Um Dia de Cão
Ele, na escola, foi transferido de uma sala a outra, a procura de uma pro-
fessora ideal para o ajudar a combater a distração e desmotivação. Saiu
da sala de D. Edina e foi para a de D. Maria de Lourdes, desta foi para
a sala de D. Francisca. Ele era inteligente e estudioso nas matérias de
que gostava; mas revoltava-se sempre, contra a rígida disciplina escolar,
principalmente após ter sido transferido para essa nova professora.

D. Francisca era gorda como um barril, baixa, morena de cabelos muito


pretos. Tinha os olhos escuros, miúdos, rodeados por olheiras roxas.
No centro da face, nascia um nariz fino e pequeno para seu rosto arre-
dondado e grande. Lembrava os desenhos infantis, representando a lua
cheia. A pele do rosto era vermelha-escura, como a dos índios. Durante
as aulas, caminhava de um lado a outro da sala, falando alto. Parecia
estar repreendendo alguém, mesmo quando explicava um texto poético,
ou fazia pilhérias...Nunca sorria.

Os alunos, aos pares, nas estreitas carteiras, encolhiam-se espantados


diante de sua figura autoritária. Apesar da baixa estatura, D. Francisca
era percebida, aos olhinhos amedrontados dos alunos, como um gigante
perigoso, pronto para feri-los. Era para ela que os maus alunos, bagun-
ceiros, agressivos e desatentos eram enviados, como punição. Cabia a
ela transformá-los em cordeiros bem comportados. Jamais um aluno
enfrentou essa professora temida. Ele, como a maioria, ali estava para ser
domesticado, por não se adaptar a certos companheiros e por não acatar
ordens, para ele injustas.

Naquele início de tarde de segunda-feira, quando os alunos parecem


estar cansados desde o começo da aula, D. Francisca ordenou a Lucinho,
asperamente como sempre, que recitasse o “Pai-Nosso”. A oração tinha
por finalidade agradecer a Deus pela semana que passou, sem desgraças
e pedir para que o pior dia da semana corresse em paz.

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Ele, após relutar por instantes, caminhou amedrontado para a frente
da turma. Apesar do nervosismo, começou a rezar até bem. Num certo
momento atrapalhou-se e interrompeu por segundos a oração. Fez-se
um silêncio, só quebrado quando ele recomeçou. Um calor invadiu o seu
corpo. Diante dos olhares fixos e apreensivos dos colegas, ele se pertur-
bou mais ainda. A partir desse instante não conseguiu prestar atenção
à oração declamada. Em lugar de dizer, “ vosso nome”, falou “nosso
nome”. Bastou essa pequena falha para que a professora começasse a
gritar, quase encostando a boca no rosto de Lucinho, permitindo-lhe
sentir o hálito quente e nauseabundo que saía de sua garganta junto com
perdigotos amargos. Cada vez mais abafado, Lucinho começou a ficar
tonto. Enquanto ele encolhia, D. Francisca parecia crescer.

- Mais depressa, molenga! Mais depressa! Fale corretamente. Comece de


novo...Comece de novo! Mais depressa! Você não termina nunca! Ainda
erra! Ande! Depressa! Preciso começar a aula.

O modo de ela falar imitava o som dos discos estragados e rachados,


que têm a agulha agarrada num lugar, repetindo a mesma letra e melo-
dia. Ela parava por instantes e retornava com os gritos, nos ouvidos de
Lucinho:
- Parece um bicho-preguiça! Molenga!

O pavor continuava entre os alunos que mantinham a tensão reprimida.


Os sons foram ficando distantes, Lucinho, antes vermelho, tornou-se
pálido; não mais conseguia raciocinar. Parou por instantes. Tomou novo
impulso e prosseguiu, balbuciando perdido: - “Pai-Nosso...Pai-Nosso...”
Não foi além disso. Os colegas gargalharam, liberando a ansiedade. D.
Francisca o olhava agressiva, desanimada. Ele não se concentrava em
nada. A ira dela aumentou.

- Você rezando assim, vai para o inferno! Não sabe nada! Palerma! Fica
só no “Pai nosso, Pai nosso”... Parece um idiota.

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A face de Lucinho, cada vez mais pálida, estampava uma mistura de
medo e ódio. Pensou em avançar no pescoço curto da professora, que
sustentava sua horrorosa cabeça redonda. Faltaram-lhe força e cor-
agem para tanto. Em dúvida, diante da idéia de atacar ou fugir, prestes a
desmaiar, quase vomitando, amoleceu quando foi amparado por dois co-
legas e levado até à pequena enfermaria da escola. Ali, foi prontamente
atendido por uma simpática e bondosa enfermeira, que lhe passou as
mãos macias e sedosas sobre o rosto esverdeado. Em seguida, ela lhe deu
um copo d’água com açúcar, pedindo-lhe, com a voz mais doce do que o
açúcar ingerido, para que ele se recostasse num divã e descansasse, por
uns minutos. Em pouco tempo ele ficou calmo e menos tonto, sua pele
readquiriu o tom róseo natural, estava curado.

Depois de recuperado, foi mandado para casa mais cedo, por ter “adoe-
cido”.

Em casa, como era o costume, foi repreendido pela mãe que não acredi-
tou na história contada e, depois, mesmo esforçando-se para aceitá-la,
colocou-lhe a culpa, xingando-o duramente, pois não podia tolerar uma
ignorância tão grande; um filho seu que não soubesse, uma reza tão
fácil.

Sem entender as críticas, Lucinho decidiu, sem outra coisa a fazer no


inesperado horário vago, bem como para escapar do ambiente tenso de
casa, ir até à casa da avó.

Lá chegando contou o episódio para D. Gertrudes, que, inicialmente,


também o repreendeu. Depois, ela criticou, com ódio, a maldade da
professora. As críticas violentas da avó à professora, deram a ele alívio e
força para enfrentar, no dia seguinte, D. Francisca. A avó, para agradá-
lo, ofereceu-lhe ovos frescos para se fortificar. Era assim que recebia os
netos.

Enquanto esperava a avó colher os ovos no galinheiro, ele permaneceu,

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solitário e pensativo, na casa escura. Ouviam-se apenas os batimentos
de seu coração assustado e o tic-tac do grande relógio de pêndulo da
parede da copa. Uma pequena borboleta preta entrou na sala; dançou de
um lado a outro e pousou na parede branca. Lucinho a invejava.

Ele caminhou até à cozinha, tudo limpo, no lugar...ninguém. Inspe-


cionou o banheiro, a despensa fechada, voltou à sala. Olhou para um e
outro objeto, como se procurasse alguma coisa importante. Ele mesmo
não sabia o que era. Nada.

Abriu a porta do quarto de casal, a cama estava arrumada, a penteadeira


fechada. Uma abelha zunindo, passou perto de seus ouvidos fazendo
cócegas. Virou-se para trás; não havia ninguém, o silêncio continuava.
Entrou no quarto da avó. Abriu curioso o armário, olhou para um terno,
pôs um pouco do perfume na mão e o cheirou, pegou o aparelho de
barba do avô e o passou no rosto. Ofegante, voltou até à porta do quarto,
olhou: nenhum barulho.

Lá fora, D. Gertrudes cantava: “Neste mundo eu choro a dor/ Por uma


paixão sem fim/ Ninguém conhece a razão/ Por que choro no mundo
assim...”

Puxou com cuidado e nervosamente a porta semi-aberta do criado-mu-


do e abriu-a completamente. Assustou-se por instantes. Estava parali-
sado diante do que via. Sua respiração acelerou-se. Ali estava; poderoso,
belo, quieto, entretanto, ameaçador, o objeto de sedução, a força externa
procurada e temida. Fixou os olhos na peça brilhante, pequena, leve e
atraente. Com o cuidado de quem não quer ferir objeto tão importante
e delicado, gentilmente, apanha o antigo e possante Smith-Wesson, um
revólver guardado e mostrado constantemente, com orgulho, pelo avô.
Ele estava agora, nas suas mãos, preso, sem reclamar, a relíquia adorada.

D. Gertrudes continuava sua cantoria: ”Lá no céu/ junto a Deus/ Em


silêncio minh’alma descansa/ e na terra, todos cantam/ eu lamento

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minha desventura/ nesta grande dor.”

Ele, fechada a porta do criado, embrulhou o revólver com extremo


cuidado no jornal jogado em cima da mesa. A borboleta voou espantada
com o vento provocado pelo movimento das folhas do jornal.

D. Gertrudes continuava sua procura. O galo cantou desarmônico,


enquanto o sol fraco e pálido desaparecia no horizonte ensangüentado.
Ele correu para fora do quarto com o revólver. Rapidamente, desceu as
escadas, antes que a avó voltasse. Escondeu, com cuidado, a arma de-
baixo das “Coroas de Cristo”, perto do portão, por onde teria que passar
para sair. Desejava ir logo, afastar-se dali, não podia ser descoberto. Um
sinal de vida percorria seu organismo de menino.

A avó entrou na sala, carregava os ovos e cantava os últimos versos: “


Ninguém me diz/ que sofreu tanto assim/ esta dor que me consome/ não
posso viver/ quero morrer/ vou partir para bem longe daqui/ Já que a
sorte não quis/ me fazer feliz.”

Nervoso, ele queria sair rápido, antes que ela entrasse no quarto e desse
falta do revólver. Recusou firmemente o convite feito por ela para jantar,
alegando estar tarde. Não desejava que a avó o acompanhasse até o
portão. Entretanto, ela decidiu carregar um pouco mais os ovos, com
receio de que ele os quebrasse ao subir a escada para alcançar o passeio.

Esse fato o obrigou a deixar o embrulho escondido por mais algum tem-
po. Despediu-se e andou pelas ruas da vizinhança, sempre olhando para
trás, disfarçadamente, para ver se a avó já tinha entrado em casa. Depois
de caminhar não mais de cem metros, ele retornou, ofegante, como se
fosse realizar um perigoso roubo. Não havia ninguém no portão, nem na
varanda ou janelas da casa. Precisava completar o que iniciara. Pisando
nas pontas dos pés, levantando exageradamente cada perna antes de
abaixá-la, entrou no terreiro da casa e retirou, aliviado, o embrulho
debaixo dos espinhos.

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Saiu revigorado. Transformado em adulto, agora possuía poderes espe-
ciais, era capaz de enfrentar pessoas perigosas; até “gangs”. Não precisava
mais ter medo de ninguém. Atravessou, corajosamente, as ruas cheias de
carros e da multidão dos fins de tarde. Empanturrado de energia e dis-
posto a gastá-la, caminhou um pouco mais do que o necessário, dando
voltas pelo centro da cidade. Andava espichando seu pescoço fino, que
saía do tronco encurvado; levantava os ombros para parecer maior do
que era. Olhava destemido, ora para um lado, ora para outro. Examinava
e desafiava os passantes distraídos, sempre segurando seu embrulho de
jornal. Procurava o marginal perigoso, algum valente disposto a manter
com ele um duelo de bravos. Imaginava, se preciso fosse, matar o ousado
desafiador. Recordava, animado, os filmes de faroeste, imitava, vicari-
antemente, o andar compassado e firme dos mocinhos. Para isso, man-
tinha os braços finos e sem músculos, afastados do tronco e balançava as
grandes mãos soltas e dependuradas que saíam dos compridos braços.
Parecia estar pronto para a luta. Contava, segundo a segundo, o momen-
to de começar a atirar contra o maldito fora-da-lei. Era chegada a hora
da decisão. Ele mostraria para todos quem era o gatilho mais rápido de
Belo Horizonte.
Para sorte dos apressados trabalhadores que regressavam exaustos do
serviço naquela segunda-feira, ninguém o desafiou. Ninguém nem mes-
mo o notou. Desse modo, ele chegou em casa com o revólver intacto e
com as cinco balas no tambor. Uma das balas, a mais próxima da agulha
do cão, sistematicamente, era retirada pelo avô, para prevenir acidentes,
segundo este dizia.

O Smith-Wesson foi cuidadosamente guardado dentro de um sapato,


quase sem uso, calçado apenas nos casamentos e grandes aniversários. A
caixa foi fechada e escondida dentro da gaveta do guarda-roupas. Antes
de dormir, com o quarto bem trancado, tornou a adorar a arma. Passou
as mãos com carinho sobre seu cano curto, alisou-o, sentiu e deliciou-
se com sua textura dura, lisa e fria, com o polimento que refletia a luz.
Tudo nele era belo, tudo indicava poder e simplicidade, virtudes que ele

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jamais possuíra, que sempre invejara. Antes de escondê-la entre folhas
de papel almaço, rodou o tambor, colocando uma bala pronta para ser
disparada. O novo embrulho foi guardado, com cuidado, na pasta esco-
lar. Esperava com ansiedade a chegada do dia seguinte.

Cantarolando a melodia “High Noon”, Lucinho caminhou sereno e


seguro, corpo solto, ao meio-dia daquela tarde, até chegar à sala de aula.
Sentia-se protegido pelo simbolismo da arma; imaginava ser respeitado
pelos colegas e professoras, caso descobrissem sua força escondida, seu
grande poder. Entrou na sala de cabeça erguida, como há muito não ac-
ontecia. Seus pequenos olhos brilhantes e sua boca fechada e contraída,
davam-lhe a aparência de forte e destemido. Ele mostrava um ar arro-
gante, um olhar desafiador, a disposição para a grande batalha.

Mas, sua grande e poderosa inimiga, distraída, ocupada com outros


afazeres, verificava quais alunos não haviam respondido à chamada, a
troca irregular de lugares sem sua ordem, a discussão entre Alfredo e
Mário, por causa do empate do Cruzeiro e Atlético. D. Francisca mal o
olhou, não percebeu sua presença, desconsiderou sua valentia. Tratou-
o como fazia todos os dias, nem mesmo se lembrou do episódio do dia
anterior. E, assim, a professora iniciou a aula. Deu algumas explicações
iniciais, dissertou sobre a proclamação da República, que seria comemo-
rada na próxima semana.

A sala estava como quase sempre, quente e abafada. Recebia em cheio o


sol da tarde. Ela falava, falava, cansada, monótona. Alguns alunos dor-
mitavam, outros conversavam e, poucos, ou nenhum a ouviam.
Ele estava atento, esperava o momento propício para o início da luta.
Quase mostrou a arma ao colega do lado, quando a professora foi ao
quadro negro.

Quando ia mostrar o troféu guardado, a professora pediu silêncio, aos


gritos. Prosseguiu, pedindo a um aluno para vir à frente comentar o que
ela havia explicado antes. Lucinho, apressado, levantou-se, queria ser

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chamado. Era chegado o momento da desforra; pegaria a arma e dar-
lhe-ia um tiro na boca. Espichou, o mais que pôde, o pescoço, levantou
o braço, balançou-o no ar em direção à professora. Tudo em vão. Ela não
o olhou. Ainda não foi desta vez a revanche esperada. Para sua decep-
ção, apesar de todo o empenho e coragem, D. Francisca não o percebeu
ou, de propósito, não o quis chamar. Ele voltou a se assentar.

O aluno requisitado, aos berros, para repetir a lição, foi o magricela


Domício Lana; órfão de pai, morava com a mãe e quatro irmãos num
barracão da favela, a mais de um quilômetro da escola. Pernilongos
famintos, nascidos e criados no esgoto ao lado de sua humilde moradia,
alimentavam-se, diariamente, do seu sangue escasso e aguado.

Ao ser chamado, Domício ocupava-se em coçar feridas redondas e mal-


cheirosas, nos braços e nas pernas, que formavam pontos altos e crat-
eras. Algumas cascas amarronzadas e escuras eram arrancadas por suas
unhas grandes e pretas. Abertas, surgiam pequenos buracos vermelhos,
cheios de um líquido leitoso-amarelado, mesclado com raias de sangue
que escorria, sem pressa e se espalhavam por sobre a pele foveira.

Ao se levantar, distraído com as coceiras, evitava pensar no suplício


de ter que, diante dos colegas, mostrar a falta de conhecimentos e de
memória. As perebas apareciam, também, entre seus cabelos curtos e
rijos, que lhe davam a aparência de uma espiga de milho, cheia de grãos
apodrecidos, o que lhe valia o apelido de “milho podre”.

Lentamente, sem parar de se coçar, Domício caminhou até à frente da


turma, com seu olhar de sonâmbulo. Os colegas o olhavam com asco.
Ocasionalmente, ele abaixava o tronco e, maquinalmente, passava as
pontas dos dedos e a palma das mãos no líquido que escorria para os
pés, impedindo-o de entrar na velha botina de solas de pneu. Sem en-
tender o que a professora dissera, pois não conseguia prestar atenção em
nada, Domício foi grosseiramente repreendido e gozado por ela, como
acontecera com Lucinho.

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Ele, identificando-se com Domício, assistiu seu pavor diante da profes-
sora feroz. Lembrou, amargurado, o sofrimento na tarde anterior. Essa
lembrança, aliada à segurança pela posse do revólver, deu-lhe coragem e
ânimo. A raiva foi crescendo, enquanto assistia às agressões sofridas pelo
fraco colega. Em dado momento, sua ira chegou ao auge. D. Francisca,
muito vermelha, com os olhos muito abertos, que quase saíam das órbi-
tas, começou a reclamar e a gesticular com seus braços grossos, cheios
de cabelos pretos. Ela não se aproximava de Domício, pois demonstrava,
claramente, nojo ao corpo e às roupas sujas do aluno:

- Idiota! Não aprende nada! Fica aí com cara de bobo, parece que está
sempre dormindo. Na sua casa não tem cama, não? Animada com o
próprio xingamento, ela foi mais longe, ao vê-lo se abaixar para coçar
as pernas e gritou: - Pare de coçar! Você precisa tomar banho, cortar e
limpar as unhas. Está até fedendo!

Foi nesse instante que Lucinho pulou da cadeira com o Smith-Wesson


preso na mão direita. Correu em direção à professora, apontando-lhe
a arma. Espantada, sem entender o que ocorria e sem perceber o que
ele trazia nas mãos, a professora ordenou-lhe, aos gritos, que voltasse à
carteira. Os colegas, despertados por aquela cena inesperada e única, as-
sistiam animados ao espetáculo, visto apenas na televisão.

Só depois de algum tempo, diante da visão do revólver, D. Francisca


notou que a cena era real, que seu aluno falava sério e poderia matá-la
ali mesmo, caso reagisse. Ele, transformado, falando firme, aos gritos,
obrigou D. Francisca a se assentar atrás de sua mesa de trabalho, num
dos cantos da sala. A partir daquele momento quem dava ordens era ele.
Ninguém tomou conhecimento de Domício que, paralisado e indifer-
ente, continuava coçando as feridas.

Havia ódio no olhar e tom de voz de Ele.

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- Grite mais comigo! Grite com ele! A senhora é corajosa? Pois grite!
Vou acabar com sua voz, agora! Abra a boca, vou dar um tiro, dentro
da sua boca suja! Abra!, ordenou. D. Francisca tremia atrás da mesinha.
Automaticamente, abriu a boca, obedecendo às ordens do aluno, sem
saber o que fazer.

- Não! Não! Pelo amor de Deus, gemeu a professora, prestes a desmaiar.


O suor descia pelo seu rosto pálido e redondo.

- Reze! Reze o “Pai-Nosso”, para depois morrer, gritava transtornado.


Segurando a arma com as duas mãos, ele apontava para a face da profes-
sora.

A sala de aula se transformou num teatro vivo. Alguns alunos assistiam


animados à cena; outros olhavam apreensivos, os mais extrovertidos ur-
ravam, alegres com o espetáculo, que jamais seria esquecido. Uns pou-
cos choravam, mas todos deliciavam-se com o pavor da mestra todo-po-
derosa, a disciplinadora exemplar, temida e forte. Ela tremia, gaguejava,
tornava-se fraca diante de um aluno franzino, que antes, como eles, não
amedrontava ninguém.

Uma aluna, que dizia ser parente da professora começou a soluçar, outra,
que se assentava perto da porta de saída, saiu sem ser vista pelo grande
corredor da escola, gritando:

- Socorro! Socorro! Lucinho quer matar D. Francisca! Ele está matando


a professora.

De todos os lados chegaram professores, serventes e alunos. Apreen-


sivos, observavam o espetáculo raro: o franzino aluno, de arma em
punho, obrigando a professora a rezar, diversas vezes, o “Pai-Nosso”. D.
Francisca gaguejava. E errava. Ele, imitando os métodos da professora,
ordenava-lhe, aos gritos, repetir a oração.

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- Reze! A senhora errou! Outra vez... Vamos. Continue: “Pai-Nosso...
Isto...”

As aulas foram interrompidas. Os professores temerosos, percebendo a


fortaleza do fraco aluno, acharam prudente não se aproximar demasi-
adamente. Lucinho continuava a gritar forte. Tornou-se mais animado e
confiante diante do medo de todos. Não permitia que ninguém chegasse
perto, sob pena de matar a professora, ali mesmo, caso alguém tentasse
tomar a arma. O padre da escola foi chamado. Nada conseguiu. Era um
velho alquebrado e cansado de tudo; esperava, rezando, o sono eterno...
Veio a diretora, orgulhosa de sua habilidade, a simpática enfermeira, que
o tratara tão bem no dia anterior. Todos, com gentileza e doçura, tenta-
ram interromper aquela cena desesperadora e incerta. Mais um fracasso.
Mas a maioria dos espectadores, interiormente, deliciavam-se com a
cena: D. Francisca, a professora temida por todos, alunos e colegas, se
tornara humilde e fraca. Ela nunca estivera tão meiga. Ao contrário do
modo habitual, seu tom de voz se tornara suave e melódico ao falar com
o algoz. As palavras, que usava diante daquele menino, transitoriamente
corajoso, eram diferentes das usadas antes.

- Meu filhinho, não faça isso. Sua tia gosta tanto de você!... Entregue essa
arma. Ninguém vai lhe fazer mal. Eu juro por Deus, que está no céu. Eu
sempre gostei do seu modo. Você é um menino muito bonzinho. Vou
fazer de você o melhor aluno da sala. Sua tia não vai te punir. Pode estar
certo disso. Todos estão aqui como testemunhas. Falo a verdade, meu
amor.

Nesse momento, ela chorou.

Ele confirmava suas suspeitas: “Como as pessoas mudam, conforme as


circunstâncias. Hoje, sou diferente de ontem, ela também é outra. Trans-
formou-se numa outra mulher, mais simpática... Ela é agora uma pessoa
de quem eu poderia gostar, caso continuasse assim. Hoje, sou eu o mau.
Ontem, ela. Posso me mudar de bom a mau, bem como ao contrário.

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Qual é a D. Francisca verdadeira? Existiriam outras tias e outros Lucin-
hos, diante de outras situações? Muitos me chamam de medroso. Como
eles iriam me chamar agora: corajoso e valente? Possivelmente. Mas,
onde está o Lucinho covarde e medroso? Sumiu? Por quanto tempo?”

Apesar de continuar atento, ele demonstrava os primeiros sinais físi-


cos de cansaço: seu Smith-Wesson ora era posto na mão direita, ora na
esquerda. Descansava uma perna, depois a outra. Num certo momento
chegou a bocejar diante de todos. Duvidava. Enquanto ameaçava a
professora, refletia e buscava soluções para problemas que lhe invadiam
a mente, para os quais não tinha respostas. Mas sonhava tê-las, um dia...
“O que estou fazendo aqui?” Começava a se sentir mal, no novo papel de
corajoso e valente.

As tentativas para acalmá-lo foram inúteis. Impotente, a direção da


escola chamou a Polícia e o Corpo de Bombeiros, que lá chegaram,
em poucos minutos. Novos pedidos para que ele largasse a arma. Sem
resposta. Os policiais, acostumados a viver situações bem mais perigosas
do que aquela, estavam calmos e esperavam, sem pressa, uma solução
fácil. Ele continuava dando ordens à professora, mas essas eram agora
proferidas num tom de voz mais baixo, devagar e cansado. Alguns poli-
ciais, e mesmo professores, não conseguiam conter o riso diante da cena:
uma imensa mulher ajoelhada diante da mesa, suando e pálida, rezando
sem parar, implorando misericórdia ao pequeno e magro aluno. Este lhe
dava ordens com a voz fina, imitando o modo tradicional das professo-
ras primárias, domesticadoras de alunos bravios.

Exausto, de repente, ele, desgostoso com aquele ingrato papel, abaixou


o revólver, tirou as balas, virou as costas para D. Francisca e foi-se as-
sentar, como se nada tivesse acontecido. Ela, não se sabe por que, nesse
momento, tombou, como um saco de areia pesado e, rapidamente, foi
conduzida ao hospital, que ficava perto. Os policiais apreenderam o
revólver, informando à diretora que o proprietário deveria buscá-lo na
delegacia. Despediram-se tranqüilos e sorridentes, fazendo comentários

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entre eles. Os alunos foram saindo; as aulas, naquele dia, foram inter-
rompidas mais cedo. Alguns estavam aliviados pelo término feliz do
incidente, entretanto, outros ficaram decepcionados pois o esperado e
desejado não aconteceu: nem morte, nem prisão.

Lucinho foi conduzido à sala da diretora onde teve uma longa conversa.
Nesse dia, ela se mostrou mais cuidadosa e gentil. Poucos minutos de-
pois, Rosária chegou para buscar o filho. Ali mesmo, na presença da di-
retora, o repreendeu asperamente, imaginando que era isso o que todos
esperavam de uma boa mãe, mostrar como se dá ordens ao filho rebelde.

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Depois do Choque, a Consulta
No dia seguinte à briga, Rosária conversou com a orientadora educa-
cional, que sugeriu, após considerações e explicações minuciosas, que
ele fosse levado a uma psicóloga.

Não foi fácil convencê-lo a ir e, muito menos, conduzi-lo ao consultório.


Muitos pedidos e súplicas foram feitos e presentes oferecidos. Também
não faltaram, por parte da mãe, ameaças de espancamento e castigos.
Dias depois, contrariado, ele foi levado ao consultório da Dra. Branca
Imaculada dos Santos, prima da orientadora e psicóloga, com a especial-
idade de cuidar de crianças portadoras de “Distúrbios Escolares”.

Lucinho, a partir dessa primeira consulta psicológica, manteve ligações


estreitas com esses profissionais, para o resto da vida.

O consultório, localizado na zona sul da cidade, próximo à escola, era


pobremente mobiliado. Na sala de espera, um velho quadro mostrava
uma pintura de um grande cavalo branco. O animal, sem arreios, era
cavalgado por um menino de olhos verdes, cabelos grandes, louros e
anelados. A criança descalça e com um saiote branco lembrava os belos
anjos brancos, pintados nas igrejas católicas. No centro da sala, uma
mesinha escura, empoeirada, num canto; dentro de um cesto, revistas
infantis velhas e rasgadas. Os clientes esperavam a consulta assentados
em dois bancos de madeira, sem almofadas.

Uma atendente magra, de olhar distante e voz rouca, instalada numa


cadeira de braços, fazia crochê, mexendo unicamente com as pontas dos
dedos. Parecia não se importar com o que acontecia ao seu redor. Por
cima do seu enorme nariz de papagaio, apoiavam-se minúsculo óculos
de aros dourados, estando um deles, amassado e esverdeado.

Depois de cumprimentar Rosária, com um beijinho num lado do rosto,


sempre segurando o crochê com uma das mãos, convidou-a a se assen-
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tar. Após instantes de silêncio, a atendente mudou a fisionomia, alter-
ou seu tom de voz inicial e, num sorriso forçado, recomeçou seu crochê,
ao mesmo tempo em que se dirigia a Lucinho:

- Como vai meu menino bonito? Está com frio? Vou fazer uma blusa de
crochê para você.

Ele nada respondeu. Olhava para a porta, por onde entrara, imaginando
a hora de ficar livre daquele tormento. A senhora levantou-se e aproxi-
mou-se dele, quase tocando-o com as pontas dos dedos pontiagudos e
enrrugados:

- Como está o papai? Ele não quis vir?

Ele continuou imóvel, embora sua mãe o tivesse cutucado, forçando


uma resposta. Diante da negação do paciente em conversar, a cansada
atendente, preguiçosamente, passou a mão que segurava o novelo sobre
seus cabelos. Ele se sentiu agredido. Olhou com ódio para ela que, des-
animada com o insucesso, dirigiu-se a ele, pela última vez. Agora, não
mais usava o tom de voz melodioso e lento:
- Daqui a pouco, a doutora irá atendê-lo. Não faça essa cara fechada,
senão você fica feio.
Lucinho, retrucou com mau-humor:
- Você fica feia mesmo com a cara aberta.
A atendente deu um suspiro de crítica e voltou para seu canto. Neste
instante, saíram do consultório uma senhora e uma menina de olhos
tristes e vermelhos. Ele a olhou amedrontado. Imaginou o que acontece-
ria: “Será que vim aqui para ser castigado pela moça lá de dentro? Quem
contou a ela que eu ia matar a D. Francisca?”

Ao entrar na sala com a mãe, Lucinho se viu diante de uma jovem, alta,
até bonita. A psicóloga, tendo o semblante fechado, representava seu
papel de profissional. Quase sem busto, tinha os cabelos marrom-escuro,
presos por trás, formando um coque que quase não se via.

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Ela, rapidamente, se dirigiu a eles usando poucas palavras. Com uma
voz estridente e fanhosa, ordenou-lhes que se assentassem. Parecia estar
apressada e desejosa de encerrar a consulta, o mais depressa possível.
Ao iniciar a consulta, o telefone tocou insistentemente e ela o atendeu,
sem pressa e de má vontade. Como por encantamento, sua fisionomia
fechada e séria se transformou: sorriu e brincou com seu interlocutor,
ficando mais bonita e suave. Após trocas de amabilidades, por alguns
minutos, marcou um encontro para aquela noite e despediu-se, com um
beijo, imitando-o com seus lábios finos.

Durante a conversa telefônica, Rosária e Lucinho permaneceram assen-


tados, olhando as paredes por onde se espalhavam desenhos coloridos
manchados do Pato Donald e de Mickey.

Branca demonstrou afetividade e ternura naquela conversa e isso agra-


dou a ele, que há muito não via uma conduta parecida. Ao retornar ao
trabalho, a psicóloga, amavelmente, pediu desculpas pela interrupção da
consulta, ainda nem começada. Como ainda se encontrava contaminada
pela conversa telefônica, ela continuou a usar o tom de voz, a mímica e
até algumas palavras usadas com o amigo. Entretanto, logo depois, per-
cebeu o erro: estava tratando Rosária não como mãe de cliente, mas sim
como o fazia com o namorado. Notou que estava exibindo um carinho
exagerado, diferente do habitual. Apressadamente se recompôs e voltou
a ser a psicóloga dura, pouco ou nada simpática, áspera, usando o antigo
tom de voz, os velhos e conhecidos jargãos profissionais. Foi desse modo
que se dirigiu a ele convidando-o a se assentar. Ele, que se levantara,
fingia estar olhando as gravuras, mas, na verdade, preparava-se para fu-
gir dali. Ela não fez um convite, falando duro e forte, deu uma ordem a
Rosária para que ela saísse. Atenderia Lucinho sem sua presença. Poste-
riormente a chamaria.
Rosária tentou, antes de sair, contar fatos acerca do filho: os dias difíceis
que ela passara antes de ele nascer; uma forte gripe que ele teve aos dois
meses, as diversas diarréias, tombos, o medo de baratas, um engasgo, a

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mordida... Mas seu esforço foi inútil. A psicóloga estava certa de sua es-
tratégia e não quis saber de nenhuma conversa. Como Rosária demorou
a sair, ela se levantou e abriu a porta totalmente, indicando-lhe a sala de
espera. Agora, usando um tom de voz mais alto, disse-lhe, claramente:

- Desejo ouvir primeiro ele, apontando para Lucinho. Depois..., se pre-


cisar, eu a chamarei. Gosto de fazer o diagnóstico do caso com minha
própria cabeça e não com a dos outros. A senhora entendeu? Com
licença.
Segurando a maçaneta da porta, fechou a cara e esperou que Rosária
saísse. Sem outra alternativa, frustrada por nada poder falar e desabafar,
ela saiu resmungando e pensando que nunca mais voltaria ali.

A consulta começou como um inquérito:

- Meu filho... O que veio fazer aqui?

- Não sou seu filho...

- Sim. Então, vou repetir a pergunta:- Por que sua mãe o trouxe aqui?

- Não sei...Por que a senhora me chamou de filho?

- Por nada, respondeu, irritada. - Sei que você não é meu filho. Eu nem
sou casada... Nesse momento, ela se lembrou do telefonema e mudou,
por segundos, o olhar e a voz: - Isso é um modo de dizer...Sou psicólo-
ga... trato de crianças. Gosto muito dos meninos, retornando ao tom
anterior de profissional.

- Não gosto de você. Você é feia...

- Está achando? Eu te acho bonito...respondeu, imaginando frustrar o


menino, não o agredindo abertamente e sim, ironizando...

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- Eu sei disso...O que é psicóloga?

- A psicóloga é uma pessoa que trata de pessoas como você. Ajuda-as


...Entendeu?

- Não!

- Por exemplo: se o menino briga na escola, se não estuda, se desobe-


dece...

- Eu não preciso de ajuda. Você precisa?

- Sim, às vezes. Todos nós precisamos, certas horas...

- Eu quero ir embora...É a ajuda de que preciso. Tenho que ir à aula,


daqui a pouco...

- Ainda é cedo. Você, hoje, não precisa ir à aula. Vou te dar um atestado
para mostrar à professora.

- Não gosto de D. Francisca. Quero sair de lá.

- Por que?

- Não gosto de gente mandona, de cara fechada, que xinga os outros.

- Você tem razão. Eu, também, não. Ninguém gosta...

- Então, por que você não ri? Sua cara é fechada.

- Eu? pergunta espantada. Você acha que sou assim?

- Sim. Você fecha a boca, como D. Francisca.

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- Você brigou com ela, não foi?

- Briguei, não! Queria matá-la! Quem te contou?

- Minha prima. Ela trabalha na escola.

A consulta continuou nesse pé: Lucinho, desejando ir embora. Detestava


conversar com desconhecidos, com pessoas que fingiam ser simpáticas
com ele. Não foi difícil perceber que a Dra. Branca se mostrava abor-
recida. Dava a impressão de querer terminar - igual a ele - a consulta.
Na realidade, a mente da psicóloga, estava invadida por pensamentos e
imagens mais agradáveis do que os provocados pela consulta: o encontro
que teria naquela noite e que prometia ser mais divertido.

Com esses pensamentos, fazia os planos para a noite, para o fim de


semana e para as próximas férias. Diante daquele menino pirracento,
chato, que a obrigava a prestar atenção à conversa e a interrompia com
perguntas ou críticas, enquanto ela ficava impossibilitada de pensar em
Augusto.

Desanimada, tentou outras técnicas. Forneceu-lhe alguns brinquedos,


folhas com desenhos para copiar, adotou medidas e escalas da person-
alidade, dezenas de perguntas. Tudo sem resultado. As respostas do
menino eram evasivas. Demonstrava raiva por estar ali fazendo coisas
que ele não gostava de fazer, sem sentido para ele, diante de uma mulher
estranha, fechado numa sala, sem saber para quê. O interrogatório, para
sofrimento de ambos, continuava:

- Pegue este lápis: faça um desenho de sua família; coloque todos no


desenho, entendeu?

Ele, de má vontade, fez uns rabiscos, sem nexo, de um lado para outro
da folha. Depois, desenhou uma figura, tomando quase toda a extensão
da folha. Dentro dela, desenhou seres pequenos, disformes, sem rosto.

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Branca o olhava, mas estava longe. Enxergava Augusto...belo, elegante
em tudo...Comparava, com pesar, as diferenças entre o cliente e o namo-
rado. Estava longe, só com muito custo voltou a olhar o desenho.

- Quem é esta pessoa aqui? perguntou Dra. Branca indicando a figura


grande que tomava toda a folha de papel.

- Ela, apontou para a porta por onde Rosária saíra...Mãe... Eu não sei
desenhar, acrescentou Lucinho.

- E onde está seu pai e seus irmãos?

- Aqui, apontou, indicando os riscos partidos, incrustados na figura


maior.

- Ótimo! quase gritou de alegria. Havia feito o diagnóstico: “Era isso;


bem que notei; a mãe tomava conta de todos; dominava a família que
vivia presa a ela”. Animada com a descoberta fantástica, que clareava o
enigma, decidiu ir além: mostrar ao menino dez manchas de tinta, algu-
mas em preto e branco, outras, coloridas.

- Agora, vou-lhe mostrar estas figuras, uma a uma. Você vai examiná-
las...Poderá virá-las para um lado ou outro, de cabeça para baixo, do
modo que você desejar. Após olhá-las, deverá me falar o que você está
vendo em cada uma. Certo? Poderá dar uma ou várias respostas. Enten-
deu?

As figuras foram mostradas; ele falava o que via.

- Isto é sangue! Aqui, um pinto; outro aqui. Bonecos dançando em volta


de um caldeirão; homens brigando; um coração, um osso, uma bunda de
mulher, nuvens, bichinhos voando...

Ele, animado com o que via, dava diversas respostas, dezenas delas,

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divertia-se com as figuras e, envaidecido, mostrava à psicóloga que era
capaz de ver muitas coisas.

Nova alegria para Dra. Branca. Ele viu, em muitas delas, cores puras,
sem forma, órgãos sexuais diversos, sangue, pouco movimento nas
figuras. ”O diagnóstico está feito”, pensou, satisfeita. Preparava-se para
terminar a consulta e lembrou do encontro que teria, mais divertido do
que seu trabalho.

Rosária, convidada para entrar, tentou, ansiosamente, explicar a história


de Ele. Novamente, quem tomou a palavra, impedindo-a de falar, foi a
psicóloga que, disposta a terminar a consulta, foi dizendo, concentrada
mais no namorado do que no cliente:

- Esse menino precisa de tratamento...

- Tratamento? Que espécie de tratamento?

- Ludoterapia. Ele virá aqui duas vezes por semana - os dois dias que ela
atendia...- Eu vou ajudá-lo. Preciso, também, ter consultas com cada um
de vocês: você e seu marido, em separado, depois, juntos.
Nesse momento, Branca imaginou conseguir um cliente por algum tem-
po. Seria ótimo para aumentar seus rendimentos. Caso se casasse, iria
gastar mais e, além disso, ficaria umas semanas sem trabalhar. Precisava
ganhar um pouco mais, para gastar no futuro.

- Nós dois? Adamastor não tem tempo...Eu até que tenho... respondeu
Rosária, mostrando um certo interesse. Assim, poderia encher seu
tempo vazio.

- Seu marido precisa vir, senão, não dá certo. O menino - falava diante
de Ele, que se mostrava indiferente - não sendo tratado corretamente,
pode se tornar um louco! Um esquizofrênico! falou, acentuando bem o
“louco” e “esquizofrênico”, para impressionar Rosária e forçá-la a trazer

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os clientes em potencial.

- Esquizofrenia? Eu tenho um primo que tem isso! Está internado há


mais de vinte anos, está um traste; era um rapaz bonito, inteligente,
forte... Dá dó...

Prontamente, a psicóloga interrompeu Rosária, ela não desejava ouvir


suas idéias.

- Sim. Isso é hereditário. Mas com psicoterapia, ludoterapia, terapia flo-


ral, tudo muda. Vai dar certo, afirmou.

- Eu, uma vez tratei com cristais...Foi muito bom. Deu resultado. Ficava
sempre gripada. Agora...

- Eu... eu... demorando um pouco a responder: - Trabalho também com


cristais, cartas e tarô. Ajuda mais ainda. Fui analisada por uma sumi-
dade, fiz curso de Neurolingüística, Teoria dos Jogos, Rorschach, Gestalt
e Análise dos sonhos.

- É mesmo? Ótimo! Sempre quis encontrar uma pessoa com esses con-
hecimentos...Gosto de interpretar meus sonhos através de almanaques...
Não igual à senhora, é claro... que interpreta como profissional... A
senhora é bem conhecida. Sonhei, essa noite com jacaré; eu estava numa
lagoa...

- Conte-me depois, interrompeu, bruscamente, já segura nesse momento


de que Rosária aceitara os tratamentos propostos.

- Que bom estar bem amparada. Eu gosto muito de astrologia... A sen-


hora conhece essa ciência?

- Claro, como não? Conheço também... É uma ciência antiga e impor-


tante, como Iridologia. Eu já fiz cursos acerca disso também... Um bom

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psicólogo tem que se manter bem informado sobre tudo que acontece
no mundo; saber dominar todas essas ciências modernas, maravilhosas,
principalmente as ocultas...Se assim não fizer, estará perdido. A cada
minuto, a Psicologia muda. Temos que ir aos congressos, fazer cursos e
mais cursos, acerca de tudo, finalizou.

Assim, a Dra. Branca Imaculada dos Santos se entusiasmou com as


próprias palavras, principalmente, com a aceitação de Rosária. Mas,
lembrando do encontro, queria encerrar a consulta, dando um diagnós-
tico final :

- Seu filho tem Carência Afetiva. Está preso à senhora. Os testes mos-
traram isso, com clareza. E os testes não mentem, minha senhora. Ele
tem desejos, inconscientes é claro, de matar o próprio pai para possuí-la.

- O quê? Matar o pai? Para possuir-me? Que horror! comentou, tentan-


do fingir estar espantada.

- Sim, já tive clientes que assim o fizeram. A literatura psicológica


mostra isso a toda hora. Muitas teorias acerca disso foram escritas. Ele é
um caso típico. Entretanto, como pai é pai ... a senhora compreende, não
é? Ele reprime... Explicando melhor, seu superego, a auto-censura que
todos nós possuímos bloqueia esse impulso, essa pulsão, como a chama-
mos. Impede que seu desejo saia e se torne realidade, por sinal, terrível
e catastrófico. Nosso organismo é como uma caldeira. A Física moderna
explica isso muito bem: não adianta a gente tentar segurar a pressão da
caldeira. Ela vai aumentando. E o que acontece? Estoura! Bum!

Rosária se assustou com o barulho produzido pela da boca da psicóloga.

- Explode, com certeza. Já vi um botijão de gás explodir. Foi, um dia, lá


no sítio que...tentou contar Rosária.

- Certo, a senhora é inteligente e entendeu, continuou a psicóloga. É pre-

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ciso criar uma válvula de escape; deixar as energias construtivas fluírem;
dar às boas, direções adequadas, já às más, essas devem ser drenadas,
descarregadas ou sublimadas para funções benéficas. Assim, em lu-
gar de cortar para matar, cortar para salvar, como fazem os cirurgiões.
Eles são todos sádicos, querem ferir os outros, mas sublimam e tratam
as pessoas, usando as mesmas pulsões que eram negativas. De maus,
transformam-se em anjos; todos nós os elogiamos, em vez de execrá-los.
Vou fazer o mesmo com seu perigoso filho. Certas energias, as que não
saíram, são de má qualidade, danosas para o organismo e sociedade....
Reprimida, criada a tensão, pode detonar a qualquer hora. Bumba!

Nesse momento, ela fez um barulho maior ainda com a boca, assustando
ele que ouvia tudo, sem nada entender. Ele, durante a conversa, só
prestava atenção aos movimentos da boca da psicóloga e aos minúsculos
pingos de saliva que saíam em profusão, espalhavam-se, dançavam no
ar iluminados pela fresta da janela onde entrava a luz do sol. Diante do
barulho, ele se aproximou de Rosária, segurando em sua saia. Branca,
indiferente, animada com a idéia do encontro e do cliente que teria,
continuou falando:

- Seu filho está pronto para explodir, se não arrumarmos um meio de


drenar a enorme energia reprimida, se escapar...pronto! É o que ocorre
com a panela de pressão, com o botijão de gás: se o vapor não escapa
eles explodem. Entendeu?

- Sim, tenho notado isso. Outro dia, ele quase matou a professora...

- Impulsionado pela alta pressão, ele irá descarregar a agressão na prima,


na professora ou em você.

- Deus me livre! Não! Em mim?

- Como lhe falei, ele precisa urgentemente de tratamento.

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Branca, dirigindo seu olhar para Lucinho, que assistia a tudo, em pé na
sala, complementou, examinando detidamente sua magreza e seu tórax
encurvado:

- Ele precisa, também - por que não? - de exercícios físicos e de comida,


de muita comida. Em resumo, deverá vir ao consultório duas vezes por
semana... A terapia, para você e seu marido, vou marcar depois... para
os dois. Então, resolveremos como o tratamento será feito. Dê a ele isso,
florais. Tenho muitos; são ótimos para a saúde.

- Posso usar também? Já que tem sobrando...

- Claro. Fará bem para a senhora. É fundamental resgatar a fé na na-


tureza e aliá-la, com sabedoria, à ciência. Precisamos respeitar a het-
erogeneidade do universo, sua ordem, a ação dos astros sobre nós, da
Lua, tudo... Tudo tem uma enorme importância; tudo age em tudo. É
a Holística. O difícil é a compreensão e interpretação do todo. Poucos
conseguem isso...Esse é o papel da ciência moderna: explicar e dominar
a complexidade. Entendeu?
- Sim, perfeitamente. Eu já ouvi falar nisso....Assisto vários programas de
TV que ensinam essas coisas fantásticas. O que seria de nós, viver sem
essas informações preciosas. Seríamos um bando de ignorantes, de idi-
otas, como era o homem primitivo. Uma amiga tomou Florais de Bach
para suas cólicas menstruais. Nunca mais teve uma dor! Foi supimpa.

- Claro. Os florais, bem receitados, servem para quase tudo. Mas, cui-
dado! Tem que saber usar.

- Gostei da senhora. É muito inteligente. Compreende as coisas, rapi-


damente. Além do mais, é interessada nos conhecimentos modernos.
Está atualizada... Coisa difícil, hoje em dia. Detesto gente atrasada, gente
burra e antiquada. Que bom poder ter em nossa cidade uma profissional
do seu gabarito...é um privilégio imperdível. Continue assim, precisamos
de você, termina Rosária.

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- Oh, nada. Faço, modestamente, minha parte, me esforço...Não tenho
esse conhecimento todo... completou, não tão convencida da possível
cura, como sua cliente acreditava. - Marque com a secretária as próxi-
mas consultas.

- Com aquela velhinha encurvada lá de fora?

- Como? Ah... Sim... A velhinha é minha mãe.

- Desculpe, não queria criticar. Ela é muito simpática, faz um crochê tão
bonito! Me mostrou uma blusa que está fazendo...por sinal linda, muito
bonita...

Rosária saiu da consulta confiante e animada. Mudou a impressão nega-


tiva inicial acerca da psicóloga. Sem dúvida, tratava-se de uma profis-
sional experimentada, com grande conhecimento e sabedoria, capaz de
ajudar Lucinho.

Examinei as anotações da Dra. Branca Imaculada: a primeira e mais


duas consultas. Acontece que essa profissional, após iniciar o namoro
com seu colega, ficou grávida, parando de trabalhar como psicóloga. As
fichas dos poucos clientes que teve nos dois anos em que clinicou foram
guardadas como relíquias e emprestadas a mim para que eu as copiasse.
Dessas fichas, anotei :

“Criança de oito anos incompletos, tímida, agressiva, isolada, desafia-


dora, carente, tensa; aprisionada nos tênues limites das fases oral e anal.
Apresenta um Superego permissivo. Conforme os ensinamentos de
Piaget e Bowlby, assimilou, principalmente, seres humanos cruéis, o que
a levou a formar uma imagem distorcida do mundo e uma auto-estima
baixa. Percebe o mundo como perigoso e ameaçador. Está constante-
mente roendo unhas. Dominada por mãe possessiva e pai fraco, passivo-
agressivo. De Áries, apresenta facilidade para fluir de um lado para

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o outro. Entretanto, devido à ambivalência de sentimentos, está con-
stantemente oscilando, dominado pelos outros. Como todo e qualquer
egodistônico, o paciente necessita usar, com freqüência, cristais por todo
o corpo, iniciando pelos pés. Com isso, suas energias dissipativas serão
canalizadas para fins mais nobres. Isso ajuda-lo-á a se recompor e a se
reestruturar. As cartas mostraram caminhos escuros e nebulosos, in-
dicando grandes sofrimentos, no futuro, relacionados, principalmente,
a pessoa da família e, atualmente, a amigos. O elemento feminino se
encontra pouco elaborado em sua consciência machista. Iniciar análises
lacaniana para simbolismo das palavras e junguiana para conscientizar
os arquétipos. Não esquecer de receitar Florais de Bach, escolher, mais
tarde.”

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Paixões e Desencantos
Para agüentar o gênio incerto e desastrado de Rosária, as longas e
pesadas noites, carregadas de sentimentos de fracasso, os fins de semana
que pareciam nunca terminar, Dr. Adamastor encontrou um remédio
para todos esses males: tomar algumas cervejas, fumar seus cigarros e,
preguiçosamente, olhar a fumaça subir em círculos, formados por seus
lábios apertados.

Rosária não gostava de beber mas, em compensação, fumava um cigarro


atrás do outro.

Dr. Adamastor sempre teve dificuldades de lidar com pessoas, principal-


mente, com as mulheres. Aliado à falta de preparo, ele encontrou uma
mulher difícil de conviver. A princípio tentou dar ordens a ela, como
dava aos empregados, mas estas jamais foram obedecidas. Ela em vez
de obedecê-lo, o enfrentou com mais e mais agressividade. Pediu ajuda
a amigos e familiares; levou-a a consultas psiquiátricas: nada deu certo.
Ele não aprendeu com a experiência. Depois de inúmeras tentativas
sem resultado, desistiu de domá-la e desistiu também de amá-la. Como
estratégia, afastou-se mentalmente da mulher, apesar de continuar a
viver junto dela, dormindo, muitas vezes, na mesma cama. Uma vez
mais velho, como a energia e a coragem diminuíram, ficou mais difícil
desvencilhar-se da esposa. Sabia que nada mais havia entre os dois e que,
há muito, ela estava morta para ele. Tinha apenas lembranças, nebulosas
por sinal, de que um dia ele a amara.

Como era doloroso e difícil recordar essas vivências!

Como estratégia, passou a conviver com Rosária, tratando-a como se ela


fosse constantemente uma mulher louca, irresponsável. Só assim podia
tolerar seus atos, sem se importar. Então, tudo que ela fazia era visto
com naturalidade - fazia parte de sua alma doente e diferente. Devia ser
respeitada por isso. Enquanto sobrevivia ele esperava sua própria morte
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ou a dela - isso pouco importava. Jamais pensou em matá-la, pois sua
religião, educação e formação moral não permitiam a ele nem imaginar
tal ação.

No começo de cada noite, com dificuldade e sofrimento, ele fechava seu


escritório e voltava para casa. No trabalho conseguia descansar mais
e assim, quanto mais ficava fora de casa, sem se lembrar que deveria
retornar, melhor. Em casa sentia-se terrivelmente só. Distraía, como
observador, olhando Rosária caminhar de um lado ao outro da casa,
discutir e dar ordens, brigar, brigar com todos. Mas ao mesmo tempo,
imaginava como deveria ser bom ter alguém para amar; uma pessoa que
ele pudesse ajudar a crescer; participar de seus sonhos e ajudar a alcan-
çá-los. Não havia mais nada disso; os dois moravam juntos mas estavam,
certamente, isolados.
Na família, todos evitavam provocá-la e receber dela os palavrões
freqüentes; assistir às suas crises de violência e às gritarias histéricas.

Apenas a filha, Roberta, a enfrentava, ocasionalmente. Desde criança,


ela ouviu sua mãe, milhares de vezes, dizer que teria sido muito melhor
se ela não tivesse nascido. Durante as crises, as reclamações e acusações
contra a filha aumentavam. Roberta, já acostumada, evitava escutar os
xingamentos mas, às vezes, se envolvia e revidava as agressões, fazendo
uso dos mesmos nomes que aprendera com ela.

Os outros membros da família procuravam não participar das dispu-


tas entre as duas mulheres da casa. Sabiam que tal proeza era perigosa,
como também as desavenças, que ninguém sabia exatamente porque
aconteciam, não eram da conta de ninguém.

Agostinho, que estava sempre lendo Filosofia, Literatura e Religião,


preparando aulas, algumas vezes tentou manter a harmonia da família.
Entretanto, há muito tempo, descobrira que nada conseguiria e, assim,
desistiu de continuar seu trabalho de pacificador. Admirado pelo pai,
devido à inteligência e juízo, não era respeitado pela mãe, para quem era

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um fraco, um efeminado.

- Você é um maricas, para não te dizer coisa pior. Nunca vi um homem


como você. Não procura mulher, não briga. Tenho medo do quê você
vai dar.

Agostinho a entendia e perdoava, julgava que sua mãe era uma sofredo-
ra, uma mulher educada de maneira equivocada e que, infelizmente, não
teve um marido forte e decidido para ajudá-la a crescer e, domá-la.
Há muito Dr. Adamastor havia entregado seu poder para ela, que passou
a dar ordens desordenadas.

Durante sua vida, segundo anotações que me foram cedidas, Rosária


teve alguns poucos contatos com profissionais da Psiquiatria; para trata-
mentos próprios e para dar seguimento aos tratamentos de Lucinho.
Recebeu deles diagnósticos os mais variados: Personalidade Impulsiva,
Histérica, Narcisista e “Borderline”; Transtorno Maníaco-Depressivo, e,
ainda, Ciclotimia. Tudo indica que ela não seguia o tratamento indicado,
a não ser por um curto período. Parece que seu estilo de personalidade,
somado à sua agressividade, fazia os terapeutas desistirem de tratá-la,
como, pouco a pouco, também foram fazendo seus familiares.

Quando a vi pela primeira vez, parecia já ter entrado na menopausa. As


reclamações contra os filhos começaram quando eles eram ainda crian-
ças: ora, era um que não queria tomar banho, ora outro que não queria
fazer os deveres da escola e muitas outras picuinhas que a encoleriza-
vam. Perdia o controle e espancava Roberta e Lucinho por fatos tão sim-
ples como pegar a escova de dentes de forma errada ou apertar o tubo de
dentifrício no meio. Nessas ocasiões, ela própria se lastimava:

- Não agüento mais! Vocês só me dão trabalho. Não ajudam em nada.


Um dia, eu deixo vocês e quero ver como se arrumarão. Para que fui me
casar?

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Ela tentou o suicídio algumas vezes: ora, cortando o pulso, ora tomando
doses exageradas de analgésicos ou de calmantes e tentando se enforcar.
Ficava deprimida por qualquer motivo: fofocas desagradáveis vindas
de parentes e vizinhos, a morte de um artista de TV, ou qualquer outro
pequeno aborrecimento eram suficientes para desencadear-lhe uma
crise.

Entretanto, tinha pelo marido um carinho que chegava a irritá-lo: arru-


mava suas roupas com esmero, tanto que, quando ele se levantava para ir
trabalhar, as que ia usar naquele dia, desde a meia até o cinto, já estavam
prontas à sua disposição. A xícara e o guardanapo preferidos, as torradas
com pão de glúten ou o bife bem passado, eram sempre colocados na
cabeceira da mesa, local reservado exclusivamente para ele.

Dr. Adamastor gostava desse cuidado, apesar de criticá-la pelos excessos.


Parece que essa caridade o prendia a ela. Rosária se preocupava muito
com a saúde dele. Não o largava durante uma gripe. Imaginando que
poderia estar febril; não permitia que se levantasse; tomava sua tem-
peratura de duas em duas horas, além de empanturrá-lo com limonadas,
aspirina, mel e outros remédios caseiros. Caso não melhorasse, marcava
consulta e o acompanhava ao médico. Na consulta médica era ela que
explicava os sintomas dele.

Certa ocasião, durante um passeio pelo curral de uma fazenda de ami-


gos, um bicho-de-pé penetrou no dedão do Dr. Adamastor. O pequeno
incidente, até agradável no início - ele gostava de coçar o local e era
ajudado por ela - foi se agravando; o dedo foi ficando inflamado; ver-
melho e inchado. O dedo grosso e roxo, cheio de pus, o impossibilitou,
por uns dias, andar. Rosária preocupada com o perigo da infecção, não
o largou. Bondosamente foi ela que lhe deu banhos nos pés e no corpo,
ajudava-o, dando-lhe o braço, a caminhar dentro de casa, e auxiliava-o
na troca de roupas. Desse modo, um inocente e simples bicho-de-pé,
propiciou ao casal, por alguns dias, uma convivência harmoniosa, digna
de um casal feliz...Durante esse período, o casal viveu os melhores mo-

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mentos de sua vida.

Ao lado dessas gentilezas, entretanto, durante as crises de nervos, ela se


transformava: deitava-se no chão, rolava no assoalho, principalmente se
alguém tentasse segurá-la ou levantá-la. Nessas ocasiões, era costume
gritar:
- Vou matar a todos, quebrar tudo - tudo mesmo - me soltem. Assim
vocês verão como sou corajosa.

- Não faça isso, Rosária. Ouviu? Certo? Exatamente...não há motivo...


acalme-se... Tudo vai passar... Não fique com raiva, sussurrava com voz
medrosa o Dr. Adamastor.

Desajeitadamente, passava as mãos geladas na própria cabeça suada,


onde nasciam os últimos fios de cabelos.

- Deixe-a rolar! É disso que ela gosta...Para que ajudá-la? Continua


sendo a criança de sempre! esbravejava Roberta, diante da cena trágico-
cômica.

Rosária, nesses momentos, fixava vigorosamente os olhos azuis, ainda


belos, em direção a filha. Seu transmitia ódio. Alta, com o corpo, agora,
imenso e mole, parecendo um urso, ela parecia estar sempre querendo
atacar as pessoas com sua voz aguda.

O ritual era sempre o mesmo: qualquer pequeno fato que a frustrasse,


fazia com que perdesse o controle e começasse a brigar. Tudo servia para
mudar seu humor oscilante, como aconteceu naquela manhã: o feijão,
que fora colocado para cozinhar para o almoço, não era o mulatinho, o
de sua preferência. Bastou isso para que o pequeno e velho rádio, colo-
cado na mesa da cozinha, onde Cândida, a cozinheira, certificava-se
das horas e ouvia as pregações da Igreja, fosse lançado no piso. Nesse
instante, sua pele, muito branca, aos poucos, tingia-se de um vermelho-
sangue; os músculos contraíam e se esticavam, como se quisesse mostrar

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mais vitalidade e tamanho, procurando amedrontar os assistentes. Mas,
diante dos familiares, espectadores desse teatro freqüente e ridículo,
todo seu esforço era em vão. Dr. Adamastor, conversava consigo mesmo:
“Exatamente, repete o que sempre fez, realmente, daqui a pouco, estará
dando boas gargalhadas ou chorando na cama. É só esperar...”.

- Quer um copo de água com açúcar? Ofereceu ele, temeroso, esperando


uma má resposta.

- Cândida! gritou Rosária, abrindo a enorme boca, tendo, agora, mais


brilho nos olhos azulados. Desesperada, exigia que suas ordens fossem
obedecidas. Esbravejava, cada vez mais alto:

- Você é a culpada. Se eu morrer, você vai ver... Já te falei que gosto é do


feijão mulatinho e não o preto. Traz água com açúcar, com muito açúcar.
Ouviu? Da próxima vez, eu te mando embora. Você vai passar fome, lá
na sua terra.

Nesse instante, a campainha da casa toca e entra sua irmã Marilda,


acompanhada do encanador. Eles foram pedir emprestada uma chave
inglesa para consertar a torneira. O bombeiro, um senhor de uns sessen-
ta anos, fixava o chão como se estivesse procurando algo. Ela continuava
na crise de nervos, esbravejando e dirigindo-se à irmã:

- Na hora de pedir, aparece. Quando a gente está doente, nada! Nem


procura ter notícias...

Rosária, agora, andando de um lado ao outro, ia da cozinha à sala de


jantar. Olhava para todos com rancor. Parecia um cão raivoso preso,
procurando fazer medo às pessoas, rosnando e mostrando os dentes.
Agia como se estivesse sendo ameaçada.

O bombeiro se assustou, quando a olhou, levantando, por segundos, a


cabeça. Naquele momento, ela nada tinha da alegre e sedutora mulher

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com a qual ele já se encontrara muitas vezes, durante o período em que
trabalhou na casa do Dr. Adamastor. Naqueles alegres tempos, Rosária,
após várias investidas, conquistou o tímido bombeiro e saía com ele
para as pensões da cidade, sempre no horário de serviço, alegando ter
que comprar material para os consertos da casa. “Ela está envelhecida”,
pensava o senhor Lauro, “engordou muito; está cheia de manchas ver-
melhas na cara.” Essas manchas, em várias partes do corpo, apareciam
durante as crises de raiva e logo iriam desaparecer. Os encontros com ele
terminaram pouco depois de o trabalho na casa se findar. Ainda tiveram
alguns poucos encontros. Entretanto, o ciúme, bem como as exigências
demonstradas pelo bombeiro, a desgostaram. Lauro passou a exigir ex-
clusividade quando ela demonstrou estar saindo também com outros.

A crise de nervos não terminou com a chegada da Marilda e de Lauro.


Rosária parece ter ficado mais excitada com os novos espectadores.
Pegou o copo d’água com açúcar e o espatifou na parede, diante de
todos. Um filete de água esbranquiçada escorreu lentamente em direção
ao assoalho, misturando-se aos cacos de vidro avermelhados. Cansada
da representação, seus berros foram-se extinguindo, como sempre. Os
gritos se transformaram em soluços sentidos que causavam piedade no
marido. Ele passou as mãos nos cabelos desarrumados de Rosária, pro-
curando dar-lhes mais forma. Enquanto ele se penalizava com a situação
da mulher, Roberta mostrava desprezo e indiferença por sua mãe.

Mais calma, ela procurou pelos cigarros. Não os encontrando no bolso,


foi até o quarto e abriu um novo maço. Tirou um, colocou-o entre os
lábios arroxeados, e o acendeu com um isqueiro antigo, presente do
tempo de namoro, engoliu, aspirando toda a fumaça. Logo na primeira
tragada, deu os últimos suspiros, carregados de lamentos tristes, indica-
dores do término da crise de nervos.

Retornou ao quarto em busca de um tranqüilizante. Como não o en-


controu, perguntou ao marido se tinha algum com ele. Dr. Adamastor,
pacientemente, foi até ao armário dela e de lá tirou o calmante desejado.

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- Você o escondeu de mim? Perguntou, aos gritos, retomando o tom
normal.

- Não, respondeu, quase sem soltar a voz e com receio de que a cena
recomeçasse. “Bem que ela poderia tomar isso logo, dormir por umas
boas horas... Assim, todos poderíamos ter paz e descanso”.
- Procurei no armário e não achei! Você tem medo de que eu tome mui-
tos de uma só vez? Uma hora, vou fazer isso. Já fiz outras vezes. Não deu
certo...mas, um dia, irei acabar com minha vida. Um dia, vocês verão!
Ela falava e olhava ameaçadoramente para Roberta, que passava pela
sala.

- Eu bem que gostaria... resmungou a filha.

- Eu ouvi! Tá bem! Eu ouvi! Sei que vocês todos, você também, até Cân-
dida, me detestam; querem me ver longe; morta. Vocês ainda terão essa
alegria! Eu não presto mesmo, não valho nada, sou uma merda! Para
que viver?

Entrou na cozinha, atrás da filha, para que essa não pudesse deixar de
ouvir o que ela desabafava. Enquanto Roberta pegava uma laranja na ge-
ladeira, sua mãe, aproveitando a porta aberta, tirou uma coxa de frango
gelado - sobra do jantar da véspera - e, de uma só vez, com sua boca
bem aberta, engoliu a carne, mastigando-a e falando ao mesmo tempo.
Ela, com seu vestido largo, de bolas vermelhas, mais parecia um palhaço
pronto para começar o espetáculo.

Assim corria a vida de Rosária. Nos dias de crises mais intensas, rasgava
as roupas do marido, quebrava objetos, cortava os pulsos. A família foi-
se acostumando...Nas primeiras vezes, Dr. Adamastor a levava, preocu-
pado, para o hospital de urgência. Ainda na ambulância, ela se acalmava,
voltava a agir e a falar como sempre, curada e pronta para entrar em
novas crises.

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Dr. Adamastor ouvia, impassível, os lamentos, palavrões e acusações.
Quando estava cansado e sem tempo, retirava-se e ia para o trabalho.
Algumas vezes, quando lhe sobrava paciência, participava da peça
montada, assistindo-a, como espectador cativo de um drama encenado
dezenas de vezes. Ele sabia, diante de cada cena, qual seria a próxima e
como iria terminar.

Os filhos foram criados e educados nesse clima, sob a influência da mãe


agressiva e impulsiva, que não media os atos nos momentos de ira e de
um pai fraco, que não mais participava do que ocorria na família.

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Na Esquina da Cidade Baixa
Lucinho conheceu cedo o ambiente esquisito, pobre e triste da zona
boêmia, onde homens solitários despejavam angústias e tédios de
uma vida descolorida. Acontece que, para ele ir de onde morava até o
depósito de material de construção do pai, onde, ás vezes, trabalhava,
necessariamente tinha que passar por essas casas, dar de frente com es-
sas mulheres. Os primeiros contatos lhe despertaram além de um certo
medo, uma grande curiosidade; um desejo de explorar melhor o lugar e
as pessoas freqüentadoras daquele antro.

As atrações daquele parque, que excitavam os jovens imberbes, eram


muitas: a mostra de partes do corpo nunca vistas, a liberdade do uso de
vestimentas e adornos, em geral não usados em suas famílias, o tipo de
vida e de trabalho exercido e os valores totalmente diversos dos ensina-
dos em casa. Além disso, através delas, existia a possibilidade de obter
um prazer diferente, altamente cobiçado e, até então, inacessível. Ali, al-
cançava-se tudo sem a necessidade de ser elegante ou bonito, de ter boa
conversa e dinheiro, de ser inteligente e culto. Bastava ter uma pequena
quantia no bolso. Era, portanto, uma atração democrática, possível de
ser obtida para os não bafejados pela sorte. Tudo era alcançado de um
modo descomplicado, como se compra um sorvete: bastava entregar o
dinheiro exigido; muitas vezes, sem nem abrir a boca e já se deitava nu,
após uma caminhada pelos corredores escuros com a mulher escolhida.
Alta ou baixa, gorda ou magra, bonita ou feia, bastava selecionar. Havia
“mercadorias”, para todos os gostos.

Mas, para visitarem essas moradoras, os fregueses, principalmente


os novatos, precisavam cumprir um ritual previamente traçado. Em
primeiro lugar, deviam passar pelos botecos acinzentados, embaçados
pela fumaça lançada pelas bocas amargas dos seus freqüentadores. Es-
ses rapazes deviam engolir, antes da temida empreitada, alguma droga.
Só assim, teriam coragem para continuar. Ainda tensos, os jovens se
assentavam nas cadeiras de ferro manchadas, onde se liam restos do
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antigo letreiro com propaganda de cerveja; o hábito era conversar em
voz alta, usar desnecessariamente palavrões. Todos esforçavam-se para
demonstrar uma animação inexistente, tudo visando a esconder o medo.
Tudo isso fazia parte de um ritual que devia ser seguido à risca. Uma vez
assentados, impreterivelmente, seus frágeis ocupantes pediam, num tom
de voz diferente do usado na conversa que fluía, o alimento preferido:

- Oh, meu chapa! gritando e, comumente, com um riso, indicando es-


cárnio: - Uma “cerva” geladinha. Traga também três pingas, uma Coca-
cola gigante e um maço de cigarros Hollywood.

Não era um pedido, mas, sim, uma ordem, como as ouvidas, continu-
adamente, dos patrões dos que ali estavam. O balconista mal-humorado,
mistura de garçom e lavador de copos, embrulhado num avental com-
prido, odiando ter que servir e obedecer àqueles fregueses humildes,
decifrando a simbologia incorporada ao som, levava até à mesa o pedido
e abria a garrafa. Despejava vagarosamente nos copos, a cerveja, à espera
de uma provocação para iniciar uma briga, que, na maioria das vezes,
não vinha. Dos copos embaçados pela gordura das mãos do balconista
escorria uma espuma sonolenta sobre a velha toalha manchada com
restos de arroz seco. Nuvens de gordura quente subiam e se espalhavam
por toda parte, nascidas no enorme tacho, onde eram fritos os pastéis de
queijo. Aos poucos, eles iam se acostumando ao lugar.

Os homens que ali iam necessitavam rezar nessa capela, de pôr em


prática um conjunto de rituais para incorporar e assimilar os fluidos e
energias do meio. A cerimônia incluía: o ambiente acolhedor, misterioso
e, ao mesmo tempo, perigoso, a fumaça e a gordura que se espalhava; a
união de pessoas antes desligadas, o álcool consumido simbolizando o
vinho. Os jovens tímidos, de voz em falsete, nesse altar, transformavam-
se, de repente, em homens valentes, desinibidos, de voz firme e grossa.
Os fiéis, no santuário, antes da grande batalha final, oravam, agrupa-
dos. Daqui a pouco, enfrentariam uma perigosa e incerta guerra contra
inimigas experimentadas, brutas e debochadas. Essas mulheres, muitas

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delas mais estúpidas do que eles, tinham perdido todo o medo, pois
nada mais esperavam do mundo. Diante desse exército bem treinado,
era preciso ter todo o cuidado: primeiro acalmar a mente e relaxar os
músculos depois, nada mais indicado do que um esquentamento e alon-
gamento do corpo, como fazem os atletas treinados frente às disputas.

Todo esse rito inicial se propunha eliminar ou, pelo menos, abrandar,
por instantes - sem resultado - os preconceitos moralistas, os senti-
mentos de culpa, adquiridos através da família e da Igreja, as falsas
informações acerca da maldade dessas mulheres decaídas e das terríveis
doenças que elas transmitiam para seus fregueses. Diante dessas infor-
mações, para enfrentar aquele mundo mal conhecido e perigoso, era
necessário estar entorpecido. Era essa uma das funções da terapia no
bar.

Depois de umas e outras, por mais ou menos noventa minutos, tempo


adequado para se adaptar ao lugar, ou para não mais notá-lo, o paciente-
aluno estava melhor preparado para ouvir as preleções do professor. Não
bastava apenas estar calmo para entrar na arena dessa perigosa aventura.
Se quisesse sair vitorioso era preciso mais alguma coisa, tão ou mais im-
portante que a bebida: as preleções de um iniciado naqueles tenebrosos
e complexos caminhos.

O instrutor, com sua calma e sabedoria, percebia a chegada do momento


propício. Só então começava as conversas acerca de como agir naquele
lugar. A aula, cheia de exemplos, começava com o professor relatando
suas experiências pessoais, as de outros mestres, não deixando de usar,
também, casos cômicos, trágicos, conhecidos e divulgados através da
literatura do lugar.

Os conselhos eram dirigidos principalmente aos novatos. Entretanto,


todos escutavam com interesse, às vezes, com perplexidade, atenção e
grande emoção. Nas aulas noturnas, as sábias lições, eram pronunciadas
num tom de voz magistral, baixo e tranqüilo, como convém ao experi-

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mentado mestre, bem diferente da voz inicial, alta e aguda dos prepara-
tivos, na fase de relaxamento. O momento agora era solene, a preleção
era séria. Uma distração poderia ser fatal para o inexperiente aluno.

A palestra versava sobre temas diversos: os cuidados para não apanhar


doenças venéreas, as técnicas para se aproximar da perigosa mulher,
como deveria ser feito o contato físico, como se despir, o que fazer para
não ser explorado ou roubado no quarto e, por fim, como aproveitar o
dinheiro gasto, isto é, ficar o maior tempo possível e, também, usufruir
o máximo do encontro. Um último objetivo era dado no final da aula,
apesar do professor não acreditar na capacidade dos alunos para tanto:
deveriam tentar conquistar a mulher, seduzi-la, sem pagar-lhe. Desse
modo, poderiam voltar e receber seus favores em outras ocasiões. Esse
era o sonho de todos.
- Você deve examinar a mulher antes de se aproximar dela. Evite as
novas. Essas são as mais perigosas, agressivas. Não servem para os
frangotes. Com elas é preciso ter muita experiência. As mais velhas são
mais pacientes, sabem das dificuldades dos jovens. Toleram mais os cal-
ouros, pois já não têm tanto prestígio e poder. Preste atenção! Olhe bem!
Verifique se têm manchas na pernas: pode ser sífilis, que mata ou aleija.
Trate o preço antes e quanto tempo vai durar.

Assim falava Zão, na sua voz de conhecedor profundo daquelas mul-


heres e continuava: - Meu irmão, o Sula, tem uma mulher aqui. Ele não
paga nada. Pelo contrário, ela é quem paga suas contas. Entretanto,
vocês pensam que isso é fácil? Ele demorou anos para conseguir essa
proeza. Além disso, é preciso ter um charme especial. Não é qualquer
um que consegue isso. É necessário treinamento e tarimba.

- Oh, que bom deve ser ter uma mulher que goste da gente, sem ter que
lhe pagar o serviço, ainda cooperando com meus gastos, comentou Zez-
inho, excitado com a possibilidade.

- Não é bem assim! Falou, repreendendo Zão. Nem pense nisso...Dá

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muito trabalho... É preciso ter cancha. Nair vem sempre atrás de Sula.
Basta ele faltar um dia. Tem que ser bom. Você nem imagina como! Isso
não é para você, Zezinho, completou Zão, falando duro e com segu-
rança.

- Eu já sabia. Falei por falar. Vou tentar uma namorada mesmo...Essas


mulheres são complicadas.

- Como? Você ainda é virgem! Não conhece nada delas.

Risos gerais, e até, gargalhadas, relaxamento geral no intervalo da


preleção. Nova acomodação nas velhas cadeiras para continuar as expli-
cações. 

A coragem que faltava aos iniciantes ia, aos poucos, invadindo os or-
ganismos inocentes daqueles moços desajeitados que ousariam, daqui
a pouco, cantar “de galo”. Assim, lentamente, diminuída a ansiedade, os
ensinamentos recebidos eram aprendidos e decorados.

Naquelas bandas, havia bons e maus professores, eficientes e incapazes,


sérios ou debochados, assim como bons e maus alunos. Mas, todos os
mestres eram ouvidos com extremo interesse e seriedade pelos aprendiz-
es, certos da importância do conhecimento recebido.

Eram muitos os candidatos àquele vestibular. Alguns desistiam antes


de tentarem a vaga, outros fracassavam nas primeiras provas e busca-
vam uma segunda oportunidade. Apenas uns poucos felizardos tinham
sucesso na primeira prova, ultrapassavam a difícil barreira, adquirindo o
status de iniciado. A hora da mudança havia chegado. Classificados, eles
seriam respeitados no grupo como homens.

Entretanto, devido à grande tensão dos primeiros ensaios, os calouros


que ousavam se inscrever nessa aventura, geralmente, quase ou nada
usufruíam do contato sexual propriamente dito. Convidada a mulher,

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o jovem entrava em sua casa, tremendo e sofrendo, apesar de saber de
cor o que deveria fazer. O desmame tinha uma conotação puramente
simbólica. Iam ali para atravessar uma ponte, para cumprir um ritual
exigido, participar da “cerimônia de iniciação”. Apenas depois desse
batismo, iriam se transformar em homens dignos do nome. Não mais
teriam vergonha de ser o que eram - pertencer ao grupo dos virgens, dos
que nada sabiam desse mundo sedutor. Depois da estréia, se fosse bem
sucedido, teriam o que contar aos amigos, principalmente aos inimi-
gos, e isto era mais importante que a relação, propriamente dita, com a
prostituta. O novo homem seria, a partir daí, ouvido com admiração e
inveja pelos companheiros, que ainda não haviam trilhado o perigoso e
atraente caminho. A fantástica façanha, contada com minúcias, alguns
fatos inventados, outros retirados de histórias vividas ou ouvidas dos
mestres, era transmitida com prazer e orgulho. Encantava o grupo de
ouvintes maravilhados.

Como toda festa que se preze, a cerimônia do desmame tinha que ser
comemorada, também, antes de sua realização. Através dos comentários
acerca do que fariam no fim de semana, os jovens experimentavam, por
diversas vezes, poderosas emoções antes do encontro que não duraria
mais do que dez ou quinze minutos. Discussões carregadas de temor
cresciam à medida que o dia fatal se aproximava. Os jovens, em gru-
pos, teciam comentários, imaginando como seria o encontro e o que
fariam com a vendedora de prazeres. Cada um, dentro de suas fantasias,
sonhava com sua beleza e juventude, o corpo firme e escultural, a pele
sedosa, o delicado perfume. Esse modelo de mulher fora aprendido, não
da convivência com o grupo disponível, mas com os filmes americanos
da época: as freqüentadoras do “saloon” e amantes dos vaqueiros em-
briagados, com as formosas mulheres das novelas e das pornochancha-
das; todas mulheres lindas, limpas e atraentes.

Lamentavelmente, as pecaminosas mulheres da rua Guaicurus não


eram tão bonitas assim. Seus corpos eram bastante diferentes das jovens
amadas, desejadas e sonhadas, que habitavam a imaginação dos jovens.

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Quase todas as moradoras da zona boêmia tinham seus corpos sujos e
aversivos, balofos, caídos, descoloridos, feios.

Apesar da realidade insensível e ingrata, a presença e a força do ideal era


tão grande que dominava a mente desses meninotes, iludindo-os, por
instantes. O desejo de encontrar a loura de cabelos cacheados e de olhos
azuis era mais poderoso do que a sensibilidade ao feio. As desajeitadas
morenas gordas da Guaicurus se transformavam, através do espelho
partido de cada adolescente, em imagens lindas. Na mente dos jovens
eles visitavam, na sua noite de estréia, jovens loiras e delgadas, altas e de
corpo escultural; muito parecidas com as prostitutas do “saloon”. Desse
modo, na conversa do dia seguinte, comentava-se o encontro imagi-
nado com tais deusas e não se descreviam os corpos reais encontrados,
freqüentemente, repugnantes. Todos ficavam felizes com as escolhas;
elas eram delicadas, cheirosas, um amor de mulher.

Bem ou mal, certo ou errado, todos os anos milhares de jovens inicia-


vam seu aprendizado naquele santuário; ali visitavam mestras velhas,
acabadas e derrotadas. Estranhamente iam começar a aprender a amar,
paradoxalmente, com professoras mal preparadas, pois tiveram, ainda
muito cedo, as emoções positivas, os desejos mais sublimes e as peque-
nas alegrias da vida, enterradas. Essas mulheres carentes de amor, tin-
ham como função iniciá-los num caminho que, mais tarde, serviria de
modelo e seria transferido para as namoradas e esposas.

Provavelmente, aquela nunca foi uma boa escola.

Apesar dos pesares, naquela “universidade” assustadora, Lucinho encon-


trou algumas amizades: uma saudosa prostituta, numa noite chuvosa,
talvez tendo se apiedado dele, deu-lhe grande atenção, conversando,
demoradamente e contando fatos daquele mundo desconhecido. Tam-
bém lhe foi útil a amizade com um “farmacêutico”, que, na verdade, era
um eficiente balconista da Farmácia Lua do Paraíso. Certa noite, ele
sentia uma forte dor de dente, quando passou em frente dessa farmácia.

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Entrou e pediu um comprimido que pudesse aliviá-lo. Prontamente, o
“farmacêutico” trouxe-lhe, em lugar do comprimido, um fósforo com
um chumaço de algodão enrolado na ponta, molhado com guaiacol. O
próprio vendedor se prontificou a olhar o dente e colocar no lugar certo
o bendito líquido, que lhe aliviaria a dor.

- Mostre-me o dente… É este? Mais para debaixo da luz.

O balconista foi logo pegando no rosto de Lucinho, com intimidade de


quem já examinou órgãos humanos mais difíceis de serem mostrados.

- Este aqui, indicou com dificuldade, envergonhado da proximidade


daquele homem desconhecido.

- Abra mais a boca. É preciso ter cuidado, pois guaiacol é perigoso. Tem
que ser no lugar exato. Vai sarar logo. Deixe-me molhar mais o algodão.
Agora, abra. Pronto. A dor vai passar, repetiu.

De fato, a dor desapareceu em poucos minutos. Esse vendedor, tido por


todos como o farmacêutico do lugar, parecia entender de tudo. Ao notar
o modo de vestir de Lucinho, diferente da maioria dos que por ali pas-
savam, bem como o jeito tímido de agir, ele, curioso, não quis cobrar o
tratamento e o abordou, querendo conhecer detalhes:

- Você não parece ser um freqüentador habitual daqui.

- Por que? Sou diferente? Perguntou satisfeito por não ter sido confun-
dido com os tipos do lugar.

- Claro. Estou aqui há mais de vinte anos. Conheço os que vêm aqui...
Até seus dentes... Os seus estão bem tratados; não falta nenhum. Não é
que eu conheça cada um dos que por aqui andam ou conheça tudo. Não
chego a tanto, apesar de ser esse meu sonho.

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- Não entendi. Como conhece?

- Não sou um homem culto, mas sou bom observador. Os que vivem
aqui, os que vêm muito aqui, neste lugar, repetiu, eles adquirem certos
cacoetes que os identificam. Em todos os grupos há certos sinais; infor-
mações comuns que as pessoas emitem ou mostram. Eles indicam que a
pessoa pertence a um ou outro grupo. Cada um tem um modo de falar,
de ver as coisas e tecer comentários a respeito delas. Não vê os médi-
cos? Eles se vestem de branco; muitos carregam no bolso, bem visível, o
estetoscópio.

Nesse momento, ele abandonou o papo para atender a um cliente que


lhe pediu um medicamento para gonorréia e, prontamente, buscou
comprimidos, explicando como tomá-los. Voltou rápido, para continuar
a conversa interrompida, altamente interessado em mostrar seus con-
hecimentos.

- Pois bem, continuando meu raciocínio: para que um estetoscópio no


bolso do jaleco? Para mostrar quem ele é, como se estivesse usando um
distintivo ou uma faixa dizendo: “olhem, sou médico”! Com o objeto
de seu uso, não precisa falar quem ele é. Todos já sabem. Assim, passa
a ser respeitado como tal. Além disso, observe os médicos. Todos falam
baixo, olham fixamente para as pessoas, sempre estão examinando
algo. Franzem a testa, como se estivessem pensando no tratamento ou
diagnóstico, mesmo quando estão imaginando quanto vão cobrar pela
consulta. E as palavras, heim? Todos usam as mesmas: “a PA subiu. É
preciso dar um anti-hipertensivo”; “meu paciente apresentou um CA
maligno com metástases” ; “ teve um AVC, nunca mais foi o mesmo;
”. Ora, os ouvintes abrem a boca e pensam: “quanta sabedoria, quanto
conhecimento e inteligência!” E o advogado? Esse é mais fácil ainda de
ser identificado. Escute ele falar! Você sabe, né...?

- Nunca prestei muita atenção, falou, pouco interessado na conversa.


Não fora ali para conversar com um desconhecido falante.

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- Eles falam mais bonito ainda que os médicos. Arranjam sempre pa-
lavras difíceis, que nós todos usamos, mas só em ocasiões especiais,
nos discursos políticos, nas festas de casamento ou em enterros. Eles
falam como se estivessem discursando: “Há momentos na vida de um
homem no qual o silêncio é crime. Criminoso seria eu se deixasse de
pronunciar essas palavras que jorram de minha garganta ressequida de
justiça ...” É sempre assim. Os ouvintes entusiasmados pensam: “é um
advogado; como fala bem, é muito culto”. Um assunto que nós explica-
mos com poucas palavras, eles usam muitas. Gostam de usá-las, para
esclarecer ou esconder o que dizem, mesmo quando não há necessidade
delas. Eles rodeiam, vão longe, tão longe que as pessoas pensam que eles
se esqueceram do que iam dizer. De repente, chegam à esperada con-
clusão... bonita, elegante. Um discurso inflamado, começando por “Meus
senhores, data venia,” e centenas de outros jargões. Todos ficam boquia-
bertos, inclusive o próprio autor do discurso. Quanta beleza! Quando
termina, ele olha para todos que o ouviram, esperando a ovação e as
palmas. Tira o lenço, branco e bem passado, do bolso e limpa o rosto
com altivez. Eu gosto de vê-los. Gostaria de ser advogado, de falar como
eles. Pois bem, meu caro. Como é mesmo seu nome?

- Lúcio.

- Eu sabia! Não é nome desse povo daqui. Os nomes aqui são outros.
Nesse momento, franziu a testa, mostrando aversão aos moradores do
lugar. Lúcio é um nome de gente importante. O nome vem de luz, que
dá a luz, clareia o céu e a terra. Como esse pessoal aqui se chama? João
da Silva, José de Souza, Margarida, Teresa, Maria da Consolação ou
das Dores. Achei um Apolônio e um Dorval. Este foi por causa de um
jogador de futebol, mas é raro. Na zona, não há nomes bonitos como
Lúcio, Eduardo, Roberto, Otávio. Isso sim, é nome de gente. Não dessa
gentinha daqui. Mas, voltando ao que estava dizendo: também, na zona,
as prostitutas seguem um padrão de conduta, como os médicos, advoga-
dos, eu e você. Ninguém escapa. Todas as novatas chegam, inicialmente,

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desajeitadas. Olham as outras, examinam o ambiente, procurando
alguma luz para elas, observando tudo, o mundo ainda estranho. Ol-
ham, principalmente, para as mais antigas, as mais vividas, as mestras.
Aos poucos, vão aprendendo, sem querer, como os médicos e advoga-
dos. Isso aqui é uma escola, a universidade da vida. Todos aprendem. O
modo usado aqui as identifica. Observe-as: Todas têm uma maneira de
falar singular, da mesma forma que os médicos usam hipertensão em lu-
gar de pressão alta. Cada pessoa descreve seu mundo com as palavras do
próprio grupo. Elas, desculpe-me a má palavra, usam ”puta que pariu,
fedaputa”, em lugar de “merda” ou de “sem-vergonha” que nós usamos
- seu vocabulário é rico em palavras de baixo calão, do mesmo modo
que os nordestinos têm muitos nomes para as palmeiras. Tudo isso
lhes dá a sensação ou a idéia de que pertencem ou fazem parte de uma
agremiação com a qual elas se identificam e respeitam. São irmãs da
mesma religião, trabalham para a manutenção e crescimento do grupo.
Uma vez tendo assimilado as noções de como ser prostituta, elas passam
a usar determinadas roupas, cortes e cor de cabelos, sapatos de um certo
feitio, etc. O observador externo pode imaginar que elas, livremente,
escolheram esse modelo de roupas e palavras. Nada disso! Como os ad-
vogados e médicos, elas também estão aprisionadas à sua classe, aos seus
jargões, que às vezes, suplantam a individualidade desejada. Na verdade,
foram contaminadas. Ouviu? Contaminadas pelo grupo que copiaram,
sem saber. Como os médicos elas falam cansadas, mas orgulhosas, do
plantão tirado: “essa noite trabalhei exageradamente, estou exausta”. Pas-
sam a beber mais do bebiam, a fumar, a olhar as pessoas com um olho
inquisidor e desconfiado, a usar certos remédios e certo tom de voz.
Depois de um certo tempo, é fácil saber quem é quem, basta examinar
os sinais. Por isso, vi que você não é freqüentador usual daqui.

Esse falante e desinibido balconista tornou-se, a partir desse primeiro


encontro, um amigo de Lucinho, que, muitas vezes, sem o quê fazer, ia
até à farmácia - só se encontravam lá - para ouvi-lo. Assentava-se na
velha cadeira de madeira, no lado de fora do balcão e ficava ali até can-
sar, ouvindo casos da zona boêmia, que Goulart sabia contar e observar

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mais do que ninguém. Ele não dialogava, não ouvia; apenas descrevia
os fatos do seu modo, com absoluta certeza, fazendo comentários. Seu
tema preferido eram os casos presenciados daquelas mulheres e dos
homens que as exploravam. Mas, por vezes, também refletia e comen-
tava esses acontecimentos com a sabedoria simples, mas com alguma
profundidade de quem já viveu muito e observou. Goulart sempre tinha
suas hipóteses e fazia interessantes associações entre um fato e outro.
Foi ali, com aquele homem, ingênuo, que Lucinho mais aprendeu sobre
esse grupo e mesmo outros. Muitas vezes, pensou: “será que as idéias
de Goulart estão certas? Erradas ou certas, elas têm servido para tentar
compreender esse mundo desconhecido. Não possuo outros moldes
melhores”, dizia para si mesmo, “portanto, irei usar suas idéias, até que
alguém me ensine uma forma mais apropriada para compreender esse
complicado inferno” .

Com o passar do tempo, Lucinho decidiu abandonar suas idas notur-


nas, silenciosas e solitárias a esse mundo que teimava em compreender.
Pensava em encerrar em definitivo as incursões àquele lugar. Já havia
cumprido sua missão, mas os convites não paravam...

Certa noite, foi convidado, insistentemente, por Surdina, para dar uma
volta na zona. Surdina era um operário de seu avô, carregador de tijolos,
telhas e sacos de cimento. Ele era quatro anos mais velho do que Lucin-
ho, bem mais experimentado para lidar com aquele comércio esquisito.
Um ano a mais de experiência naquele lugar fazia uma grande diferença.
Por isso, Surdina caminhava pelas ruas da região com mais desenvoltu-
ra, mais relaxado.
Lucinho, mais tímido, preferia olhar para um lado e outro, examinar
cada uma daquelas mulheres, certificando ou negando os ensinamentos
de Goulart. Ele pensava no que tinha escutado dele: “O mundo des-
sas mulheres e seus protetores vai além dos fatos que presenciamos”.
Era esse porão, abaixo dos fatos, que, realmente, lhe interessava. Ele já
conhecia muito acerca dessas mulheres; desde cedo teve sua experiência
catastrófica com o sexo.

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Ele especulava consigo mesmo, enquanto andava pelas ruas: “a maioria
delas vive apenas naquela região restrita ao comércio do corpo. Muitas já
estavam desfiguradas pela desnutrição, pelas doenças e bebidas. Diversas
nunca aprenderam a ler. Algumas tiveram seus próprios pais incenti-
vando-as a procurar aquela vida sem retorno, para ganhar dinheiro para
a família, outros pais, eles mesmos, tiveram relações com elas, quando
eram ainda crianças”.

Lembrava: “as que moravam, viviam e morriam naqueles cortiços,


não pareciam ter amigas. A regra que vigorava era cada uma por si,
assemelhando-se a grupos de animais, onde só existiam paz e harmonia
quando havia recursos de sobra. Bastava haver um pequeno tropeço, um
sapato que sumiu, uma brincadeira insignificante, para que os palavrões,
agressões físicas se iniciassem. A maioria assistia indiferentemente a
essas lutas diárias, algumas riam e torciam para uma ou para outra, mas,
quase todas continuavam em busca do freguês desejado, sem dar at-
enção ao que ali acontecia. Dormiam tarde, quando a população acor-
dava para trabalhar, levantavam-se ao meio dia. Permaneciam deitadas
grande parte do dia, sonolentas da ressaca da noite anterior, desfal-
ecidas em camas sujas, infectas, cheirando a urina e sêmen, um odor
que exalava longe, produzia náuseas. Comiam como animais, fazendo
montinhos de comida com as pontas dos dedos e os enfiavam pela
boca a dentro. O alimento era o resto, rejeitado pelos mais poderosos,
o encontrado facilmente a baixo custo. Não tinham planos e idéias para
escapar daquela maldita prisão, onde foram encarceradas. Tinham as
mentes bloqueadas pela ignorância e pela apatia; não eram mais capazes
de fazer indagações acerca da vida que levavam. Elas pareciam ser livres
para fazerem o que desejassem. Entretanto, ao mesmo tempo, estavam
marcadas para sempre com certas idéias negativas de si mesmas, inocu-
ladas nas suas mentes fracas pela sociedade que as rejeitou, estigmatizou
e as usava como esgoto.”

Abatido com esses pensamentos, caminhava pelas ruas com Surdina,


que dava boas risadas diante da mulher bêbada, cambaleando pelos pas-

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seios, cantando uma canção chorosa, lenta e quase incompreensível.

“É de sonho e de pó/ O destino de um só/ Feito eu/ Perdido em pen-


samentos/ Sobre o meu cavalo/ É de laço e de nó/ De gibeira o jiló dessa
vida/ Cumprida o sol/
Sou caipira, pirapora nossa/ Senhora de Aparecida/ Ilumina a mina
escura e funda/ O trem da minha vida... O meu pai foi peão/ Minha mãe
solidão/ Meus irmãos perderam-se na vida/ À custa de aventuras/ Des-
cansei, joguei; Investi, desisti/ Se há sorte, não sei/ Nunca vi/ Sou caipira,
pirapora nossa/ Senhora de Aparecida/ Ilumina a mina escura e funda/
O trem de minha vida... Me disseram porém/ Que eu viesse aqui/ Pra
pedir/ De romaria e prece/ Paz nos desaventos/ Como eu não sei rezar/
Só queria mostrar/ Meu olhar, meu olhar, meu olhar... Sou caipira...

Surdina troçava do lavrador, vestido com calças listradas, botas amare-


las, um cigarro de palha, em uma das mãos, que tremia diante de duas
mulheres. Ria às gargalhadas, de uma mulher gorda, baixinha e desden-
tada que, diante das provocações de um rapaz franzino, levantava a saia
até os ombros, deixando descobertos todos os órgãos genitais.

Os mesmos fatos que faziam Surdina rir, provocavam em Lucinho


tristeza e desânimo com a vida ali presenciada. Os dois andavam juntos
sim, mas seus pensamentos eram totalmente diferentes. Surdina parecia
não assimilar e aproveitar os fatos percebidos. Estava muito mais inter-
essado na mulher com a qual se deitaria naquela noite. No seu silêncio,
enquanto refletia, Lucinho observava que a vida para aquelas mulheres
corria para um fim melancólico. Mas tanto elas quanto Surdina não o
percebiam.

No início da noite, como bichos noturnos, elas saíam de suas tocas. Se


postavam nas ruas cheias de homens famintos por fêmeas desoladas.
Daqui a pouco, seriam usadas, por uns poucos minutos e recompensa-
das com notas surradas como elas.

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Aborrecido com as conversas do amigo, queria se ver livre do compan-
heiro, ir embora para casa. Cada dia mais ele tinha asco ao assistir tal
espetáculo. Mas, com o encontro de Surdina com uma daquelas mul-
heres, ele foi obrigado a esperar, por mais quinze minutos, o seu retorno.
Segundo Goulart, era esse o tempo mais do que necessário para que os
homens descarregassem as angústias acumuladas durante a semana.

Surdina, que se arvorava ser o orientador sexual de Lucinho, convidou-


o a entrar num daqueles quartos. Ele, que não queria ir; deu diversas
desculpas para escapar da visita a uma dessas doadoras de prazer. Mas, o
amigo continuava a pressioná-lo:

- Tá com medo! Vai ver que você nunca foi...ah, ah, É virgem ainda?
dizia Surdina, brincando, para forçá-lo a ir.

- Não amole, não tenho vontade, a maioria ou todas não me atraem em


nada!

- Não é homem? Vou contar pra turma.

A conversa continuava nesse tom, até que, num certo momento, cha-
tiado, para provar sua virilidade e coragem, ele decidiu gozar os prazeres
do sexo com a mesma mulher com a qual o amigo tinha encontrado.
Enquanto isso, seu amigo ria, do lado de fora, junto à janela do cômodo,
onde se dava o encontro. Ele imaginou que, para se ver livre daquilo, era
mais fácil entrar que ficar ali, discutindo um assunto desinteressante.

Entrou no quarto da mulher magra e comprida, de cabelos pretos,


espetados, fria como a maioria, sem nenhum desejo, para cumprir um
compromisso. O silêncio do quarto só era quebrado pela tosse seca, in-
sistente da sofredora, de minuto a minuto e pelo barulho das molas que
rangiam embaixo dos corpos em movimento, na cama quase a desman-
char. Num canto, mais no escuro, dormia, choramingando, uma criança

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de pouco mais de cinco meses.

Terminado o serviço, apressadamente, já fora daquele ambiente, vol-


tou a respirar aliviado um ar mais puro do que o daquela pocilga onde
fora aprisionado para cumprir uma tarefa exigida aos homens machos,
fortes, corajosos, coisa que ele sabia, nunca fora e nem desejava ser.

Voltou para casa envergonhado de ter agido contra sua vontade. Buscava
ser ele próprio e não um simples seguidor de idéias alheias. Na verdade,
Surdina, como a maioria dos seus amigos, pouco ou nada conhecia dele.
Talvez, ninguém. Ele próprio tinha dúvida acerca dos seus objetivos e
valores. Naquela noite, custou a dormir. Via, diante de si, aquele zumbi
tristonho, tossindo, que pronunciou, no máximo, duas ou três palavras.
Lembrava, com pesar, o rosto da criança adormecida, o bico amarelo em
sua boca. Isso lhe fazia pensar, mais ainda, que estava na hora de parar
de ir àquele lugar, onde havia muito mais sofrimentos do que prazeres.
Entretanto, continuava a voltar, apesar das próprias críticas, atraído por
aquele mundo diferente do aprendido em casa e na religião, que detesta-
va, mas que o atraía e o fazia lembrar de sua mãe.

Naquele sábado, em companhia dos amigos Zão e Catabicho, Lucinho


entrou no boteco, cheirando a gordura rançosa e onde o lixo era despe-
jado, logo na entrada. Escolheram uma mesa próxima à rua, de onde
respiravam um pouco mais de ar puro e podiam ver os freqüentadores
da noite. Pediram cervejas. Lucinho, antes de esvaziar o copo, deu uma
provada leve. Olhou a cor da cerveja, franziu a testa, como sempre,
enquanto pensava algo para dizer. Catabicho, sem entender a expressão,
disse-lhe:

- O que aconteceu? Não veio aqui para refletir. Estamos na putaria. Aqui
não é escola.

- Não falei nada. Vim para isso, para deixar de pensar.

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Sentados juntos, enquanto olhavam o movimento diante do boteco e
bebiam vagarosamente, os amigos comiam grandes cachorros-quentes
regados a mostarda. Lucinho recordava e tentava contar-lhes, o que
ele começara e ninguém ouviu, acerca do seu amor. O teor de álcool
já aumentara na cabeça de todos. O tempo calmo do início da noite já
se tornara mais agitado e quente. Ali mesmo no bar, ao lado deles, a
polícia já havia prendido dois assaltantes. Na rua, houve um atropela-
mento comum de bêbado, que não interessou a ninguém. Muitas vezes,
um enorme silêncio ocorria, que não os angustiava, pois o espetáculo
constante os divertia ou os exasperava. Discutiram o que fariam daqui
a pouco, mas, como sempre, seria o esperado, pois não havia outras op-
ções. Depois da bebida, automaticamente, se dirigiram para a conquista
de mulheres, ali, à disposição. Pagaram a conta, com certa dificuldade
para tirar o dinheiro, após dividirem a pequena despesa. Caminharam
pela rua Guaicurus, dobraram a rua São Paulo e entraram na Avenida
Oiapoque.

Eram mais de onze horas da noite. As ruas estavam cheias de homens


aflitos; alguns bêbados, travestis; mulheres novas, algumas bonitas, out-
ras acabadas e desleixadas, muitas loiras. Uma delas, muito alta e quase
negra, vestia um “short’ branco muito curto e um pequeno “bustier”
preto, deixando à mostra quase todo o corpo desnudo, uma outra, já
idosa, de cara redonda e de cabelos vermelhos, como uma boneca gorda
e feia, sem se mexer, debruçava os braços moles e brancos na janela,
de onde observava os possíveis compradores de corpos que passavam.
Tinha uma aparência de estrangeira, sendo chamada de “polaca”, pro-
vavelmente devido à sua origem. Havia uma jovem, quase criança, de
estatura pequena, assemelhando-se a uma índia, com longos cabelos
pretos e lisos, embriagada, que cantava, aparentando alegria, uma melo-
dia triste e comovente do norte de Minas. Algumas, em bando, falavam
alto, davam gargalhadas, comentavam os acontecimentos do seu peque-
no mundo, de forma grosseira e com palavrões. Após tragar a fumaça do
cigarro de mau cheiro, cuspiam no passeio, onde esperavam os fregueses
distraídos.

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Os homens rodavam o quarteirão. Examinavam, com cuidado, as mer-
cadorias expostas. Às vezes, se postavam em frente a elas, esperavam o
momento mais fácil de dar o bote na presa, de levá-las até o leito morno
do quarto pobre dos casebres aos pedaços. Nos bares, sons roucos, in-
compreensíveis, saíam de uma vitrola que tocava antigas músicas popu-
lares, sem que ninguém prestasse atenção.

Carros de polícia, de sirenes ligadas, passavam. Policiais fardados faziam


a ronda na região. Caminhavam sérios, com olhos e andar de autori-
dade. Diante das mulheres mais sedutoras, paravam e sempre tinham
alguma coisa importante para dizer. Todos eram respeitados, tratados
com medo pelos homens e com grande carinho e sedução pelas mul-
heres. Muitos não resistiam aos encantos das mais belas e, após terminar
o serviço, voltavam para seus braços, para usufruírem uma noitada de
prazer. Os bêbados, que se aproximavam das mulheres para importuná-
las, eram advertidos e, caso continuassem a aborrecê-las, eram enxota-
dos a pontapés ou fortes empurrões pelos policiais sempre vigilantes.

As ruas, bem como os bares, pareciam ser propositalmente mal ilumi-


nados em toda a sua extensão. Nas casas, onde se davam os encontros,
lâmpadas fracas emitiam luzes desbotadas; essa penumbra evitava
revelar, com nitidez, as cicatrizes gravadas naqueles rostos nostálgicos.
A maioria, antes de vir à capital, viveu noutros bordéis, geralmente mais
próximos da cidade onde morava sua família. Essas mulheres já haviam
percorrido todas as etapas possíveis para construir uma vida digna. Ali
estavam, desenganadas e entediadas, esperando, possivelmente desejan-
do, o fim da vida; a morte que se iniciara já ao nascer. Viviam o último
estágio. Dali, não teriam mais para onde ir. Muitas faleceriam de doen-
ças venéreas; outras, acidentadas ou assassinadas, algumas, devido ao
álcool ou as drogas, mas todas antecipavam a morte.

Muitas eram as histórias que se contavam sobre cada uma. Várias, num
tempo longínquo, apaixonaram-se por jovens que lhes prometeram

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casamento com festas, lua-de-mel e muitos filhos. Acabaram sendo en-
ganadas e exploradas. Com o passar do tempo, abandonadas e desiludi-
das, vieram terminar seus dias naquele antro. A maioria não tinha filhos
ou não sabia onde eles estavam.

Os homens, normalmente, tinham repugnância e fugiam delas durante


o dia. Mas, no início da noite, na escuridão, tudo se transformava. Os
homens que as haviam repelido durante o dia as procuravam à noite.
Lutavam e brigavam; alguns morriam por elas na madrugada. Os seus
críticos mais ferozes eram os que mais as amavam e buscavam esse leni-
tivo que lhes fornecia paz e prazer, por algumas horas. Na cama, à noite,
esses homens lhes davam abraços carinhosos, sussurravam, com voz
doce e suave, desejos escondidos. Por minutos, em troca do difícil din-
heiro, carinhos ilusórios, é certo, mas, mesmo esses, não eram recebidos
de ninguém; nem da esposa, nem mesmo dos filhos. Que poder teriam
essas mulheres?

Alguns chegavam a se apaixonar por elas, outros passaram a viver com


essa mulheres. Diziam alguns - como sempre, há discordância - que elas,
uma vez fora do seu ambiente, jamais voltavam a viver onde sofreram.
Outros, entretanto, falavam o oposto: que elas jamais abandonavam o
padrão de vida de mulheres fáceis, viciadas no sexo.

Elas brigavam por qualquer motivo; jamais levavam desaforos para casa.
Por que tudo aquilo? Seria uma obrigação carregar pela vida afora a
marca ruim, para que todos soubessem identificar sua nódoa estigma-
tizante, mesmo depois de muitos anos? Seria um castigo imposto por
Deus?

Ali por perto, na mesma rua, mulheres um pouco mais bem cuidadas
dançavam sonolentas, cansadas e deprimidas, com homens tímidos,
que furavam um cartão para cada dança recebida. Os donos delas as
esperavam às três horas da manhã, na porta do Montanhês, do Rádio,
do Chantecler. Nessa hora, gigolôs, de sapatos pretos e terno de linho

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branco, de cabelos grandes, puxados para trás e untados de brilhantina
Royal Briar, onde refletia a luz dos postes, começavam a aparecer para
receber e contabilizar a féria de sua mulher. De tempos em tempos,
ouviam-se gritos, uma mulher apanhava do seu homem, acusada de
não estar entregando todo o dinheiro arrecadado na noite. Um homem,
cambaleando, era empurrado por um balconista irado e caía na rua, sem
que ninguém fizesse nada para ampará-lo. Viam-se nos cantos, homens
vomitando o asco que habitava suas almas podres de idéias e alimentos.

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Encontrando Sefira
As conversas dos homens nas portas dos botecos, nos meio-fios dos pas-
seios, não podiam ser outras a não ser acerca das mulheres que estavam
ali. Falavam sobre as novatas que haviam chegado, discutiam acerca
das que melhor trabalhavam, as capazes de oferecer mais carinho aos
fregueses e informavam sobre os perigos das doenças venéreas. Mas,
além disso, nessas rodas, o futebol e o crime eram comentados com
ardor, entusiasmo e como valor máximo da vida. Motivos banais, como
um erro possível do juiz no último Atlético X Cruzeiro, bastavam para
que se iniciasse uma briga de morte.

Após ter saído do bar, Lucinho caminhava; como se estivesse sozinho,


afastado, muito longe... Olhava para um lado, para o outro... Ali, há vári-
os anos, numa noite escura e suja como qualquer outra daquele lugar,
ele conheceu e se apaixonou - o que jamais imaginara - por uma dessas
mulheres decaídas. Recordava, com tristeza, o encontro com Sefira e
suas conseqüências. O grupo andava, o silêncio foi quebrado:

- Eis a casa de Marilda... Está quase caindo. Lá dentro é pior ainda”...


comentou Zão.

Lucinho esfregou a testa molhada de suor, nada respondeu, iniciou suas


recordações: ”Aqui, encontrei a mulher que mais amei em minha vida.”
Evitou falar acerca desse assunto com os amigos sonolentos. Também,
para quê? Na realidade, a amizade entre ele e Sefira começou quando
não era para começar. Foi um acaso. Apesar de não querer lembrar, sua
mente, teimosa, continuava a descortinar o fato:

“Eu já possuía algumas idéias dessas mulheres, que Goulart me passara;


era fácil para mim distinguir uma da outra, a mais carinhosa, a que gos-
tava de explorar ou agredir... Foi nesse ambiente pesado e enfumaçado
que, numa certa noite, eu me vi diante de uma mulher morena pálida,
de cabelos soltos, não tendo mais do que um metro e sessenta de altura.
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A vitrola gemia, cansada, “Copacabana”, na voz de Dick Farney. Eu a vi
no portão de entrada do beco e iniciei uma conversa para impressionar
meus amigos daquele dia. Entretanto, aquela morena, de olhos grandes,
pretos, sorriu para mim de uma forma tão pura e meiga, diferente, que
me cativou de imediato. Senti por ela uma imensa ternura e amor. Ela,
como eu, sofria de solidão; parecia ser capaz de me entender.

- Boa noite, aproximei-me um tanto temeroso.

- Boa noite, respondeu Sefira, mostrando os grandes dentes, que mal


cabiam na pequena boca de lábios arroxeados. Sua voz rouca exalava
tristeza, como tudo ali. Vestia uma pequena bermuda larga que mostra-
va as coxas roliças e fortes, um “topper” preto, coberto, em parte, pelo
cabelos longos, puxados para frente e que cobriam também parte do
tronco magro. Calçava sandálias roxas, simples e pobres. Tive vontade
de abraçá-la, ali mesmo, para externar, não uma atração física - que na
verdade, não existia - mas sim, minha simpatia ou fusão com um ser
humano que, naquele momento, sofria, como eu. Era atraído pela união
de um homem e uma mulher. Ela, para mim, simbolizava o sofrimento
e a fraqueza humana. Depois de um silêncio prolongado, sem ansiedade,
continuei:

- Como vai? Mora aqui há muito tempo? Nunca te vi... Até que não sou
um freqüentador assíduo deste lugar... apressei em explicar-lhe, com
receio de ela pensar que eu era constante na zona.

Sua voz soou encantadora, adocicada e sonora, deslizando por sua boca:

- Vim de Salinas. Não tive outro modo...

- Salinas? Conheço. Fica longe. Trabalhava lá?... “Eu me atrapalhei e


pensei estar sendo indelicado, o que não era meu hábito com pessoas
desconhecidas e bondosas como Sefira.

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- Falo: trabalhar em algum lugar, não nisso. Tentei consertar.

- Sim. Comecei a trabalhar cedo. Tenho oito irmãos. Sou a mais velha.
Meu pai bebe; quase não ganha nada. Minha mãe trabalha como faxi-
neira no Grupo Escolar de Salinas. Por isso, estudei até a sétima série.

- Até a sétima! E não arrumou outro emprego? Não é que penso mal
disso, mas tem coisas melhores. Trabalhar numa loja comercial, por
exemplo.

- Já fiz isso. Mas ganhava meio salário mínimo e, além disso, o patrão
tentou me forçar a transar com ele. Nessa época, só tinha treze anos,
ele, cinqüenta. Era gordo, parecia estar sempre engordurado, com mau
cheiro.

umava sem parar, por onde passava ficava um cheiro de queimado saído
de suas roupas e cabelos. Mandou-me embora, por não ter aceitado seu
convite.

- Mas há pessoas melhores do que esse seu patrão.

- Também pensei assim... Fui trabalhar na prefeitura. Ajudei na campan-


ha eleitoral, do atual prefeito, Narciso. Ele resolveu me ajudar. Comecei
a varrer ruas, a maioria delas chão de terra vermelha, num calor de
quarenta graus. Lá é quente, muito quente mesmo. Acabado o dia, estava
exausta, cheia de terra, por dentro e por fora do meu corpo. Era difícil
tirá-la com o banho. E para quê? Para um mês depois, receber meio
salário. Para piorar, o prefeito começou a se aproximar de mim, para
satisfazer suas necessidades, já que sua mulher, uma velha doente, não o
servia. Meu namorado, capinador de lavoura, acabou com minha vir-
gindade. Disse que estava apaixonado por mim, que o casamento seria
logo. Eu, sim, esperava dele um mundo que ouvia nas novelas na casa
da vizinha. Mas, nada. Foi uma ilusão, entre várias. Pouco depois de me
conquistar, sumiu, foi atrás de outra. Mais tarde, já deflorada, tive outros

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amores. Todos querendo a mesma coisa: meu corpo de adolescente,
ainda puro. Apesar de já ter transado, pouco entendia, se é que agora
entendo.

- Quantos anos tem? Cortei o relato, mostrando interesse.

- Dezenove. Há seis meses, tomei essa decisão, num momento de de-


sespero... Vim para Belo Horizonte, junto com outras, que já tinham
abraçado esse caminho. Antes de vir, aos poucos, comecei a ser, mais
e mais procurada pelos homens da cidade, que cochichavam entre eles
sobre a nova carne existente. Morava com minha mãe. Ela vendo a
necessidade do dinheiro, fingia não perceber as minhas saídas, à noite,
ora com um, ora com outro. Para tampar sua consciência, ela me dava
conselhos ou me xingava, conforme o dia. Meu pai, que me tomava
parte do dinheiro, nada dizia. Em pouco tempo, fiquei conhecida. Deixei
de ser menina e virei puta, de respeitada a escrachada, por pertencer a
esse grupo, das vagabundas.

Parou, por uns instantes, dando um prolongado suspiro...e continuou: -


Nem sei por que estou lhe falando isso. Faz tão mal lembrar...ninguém se
interessa pela vida dos outros, muito menos por uma puta nova. Ainda
se fosse mais velha, com mais experiência, teria mais casos interessantes
para contar aos repórteres, escritores, padres, pastores, políticos, todos
os que exploram os abandonados, que gostam de contar nossas histórias
para outros e ganham dinheiro com nossa desgraça. Sei que os padres e
pastores, nos salvando, também se salvam, pois estão fazendo o bem. E
Deus todo-poderoso, que sabe de tudo, vai ser bom para eles na outra
vida... e nesta também. Não estou querendo me defender, mas se cada
um faz sua parte, cada um usa a cabeça e outras partes do corpo para
viver, porque umas são mais valorizadas e outras não? Eu faço parte do
grupo das que trabalham com partes do corpo que não são bem vistas,
apesar de todos e tudo falarem sobre nós: anúncios, novelas, cinemas,
romances, poesias e religião. O que seria da religião se não existissem os
pecadores, os que fazem o que ela diz ser errado...?

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Eu ouvia tudo, incomodado com seu raciocínio, não esperado e difer-
ente do meu. Entretanto, ia seguindo cada frase de Sefira, com grande
interesse, disposto a continuar ali, por mais tempo. Temia ser repreen-
dido por ela, por estar tomando seu tempo, em pé, diante da entrada
do beco, que levava a seu pequeno quarto. Parece que, para ela, pouco
importava ganhar dinheiro. Naquele momento, era mais agradável con-
versar - como há muito ela não fazia - do que transar para ganhar uma
migalha. Era raro encontrar um homem disposto a ouvir uma prostituta
e deixar de lado o que eles mais queriam. Nossa conversa parecia lhe dar
uma idéia de comunhão com o mundo, de ligação com pessoas, que,
muitas vezes, mal trocavam uma ou duas palavras. Mas, seguindo o pa-
drão, ambos, com medo de sermos mal-interpretados, decidimos entrar,
ainda mais quando um vento forte começou a varrer todo o lixo jogado
na rua, provocando uma poeira carregada de copos vazios e jornais vel-
hos. Os primeiros pingos de chuva começaram a cair.

Entramos timidamente no quarto em que mal cabia uma cama estreita.


Esta, coberta com uma colcha amarelada, cheia de remendos, tampava
todo o leito, se estendendo até o piso de ladrilhos com desenhos de
flores pretas, já quase desaparecidas e gastas. Via-se que o quarto fora
dividido em dois para aproveitar espaço, por um tapume de tábuas
avermelhadas de compensado, que não alcançava o teto. Esta divisão
permitia o uso do quarto, ao mesmo tempo, por dois casais. Assim, caso
o outro amante não se incomodasse ou se descuidasse, podia-se ver e
ouvir a cena que acontecia no cubículo ao lado.

As paredes, pintadas com cal branca, estavam descascadas em vários


lugares, mostrando o reboco, onde a cama, guarda-roupa e criado foram
encostados, durante um certo tempo, e depois, mudados de lugar. Num
canto, encostado na parede, estava um velho guarda-roupa torto, preso
à parede por barbantes grossos e um cinto preto, quase desmanchando.
De dentro dele, com alguma dificuldade, após soltar os cordões que se-
guravam a porta, Sefira tirou um prato amassado de alumínio contendo

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restos de um jantar que não fora totalmente ingerido: resíduos de feijão
preto, um montículo de arroz endurecido, meio ovo frito e um ped-
aço de lingüiça. Educadamente, ela me ofereceu a refeição, mas, antes,
demonstrou estar faminta, pois olhou, com prazer, para o alimento que
me provocou náusea. Retirou de dentro do guarda-roupa uma colher,
dois paninhos manchados, usados, geralmente, para limpar as sobras da
relação sexual. Um deles foi colocado, com cuidado e carinho, embaixo
do prato e em cima de suas coxas firmes e belas; um outro, que estava
sempre na sua mão esquerda, servia para limpar sua bela boca, circun-
dada pelos lábios grossos e arroxeados.

Como não havia cadeiras, assentamos-nos na cama, onde Sefira dormia


e entregava-se a fantasias. Mais para o canto, ficava uma espécie de cria-
do-mudo grande, desengonçado e, em cima dele, dezenas de pequenas e
feias estatuetas, grosseiramente pintadas de branco e azul, representando
santas deformadas. Em cima do criado, via-se, também, um prato,
onde ficava uma jarra, cheia de água, que seria usada para o “banho”,
lavar as mãos, após a transa, e mesmo para beber. Não havia banheiro,
nem mesmo lavabo, no cubículo. No quarto fechado exalava um cheiro
acre e forte de creolina, lisofórmio, misturados com o odor de mofo e
secreções. Um velho rádio, ligado numa estação da noite, tocava canções
e valsas românticas antigas. Ouvia-se, além dos chiados, uma voz pro-
vocadora de sono, recitando poesias enviadas pelos ouvintes solitários
da madrugada. O locutor, por vezes, dava conselhos, lendo trechos de
“Pingos de Sabedoria”, livrinho ofertado por uma ouvinte interessada
na salvação das pessoas. Ocasionalmente, ele entrevistava, por telefone,
ouvintes aflitas, necessitadas de desabafar, seja com quem for.
Sefira maquinalmente colocava na boca faminta a lambança, indiferente;
como parecia levar sua vida. Não ouvia o rádio de onde o locutor falava,
não ouvia o barulho forte do vento, que soprava, agora, com violência.
Ela parecia não sentir necessidade de prestar atenção em nada ao seu
redor. A voz vinda do rádio, que ela não compreendia, talvez lhe desse
um falso sentimento de que não estava só. Mas, ao mesmo tempo, temia
ouvir e assimilar o que estava sendo falado acerca do outro mundo,

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aquele exterior que ultrapassava o minúsculo mundo das prostitutas.
Isso poderia lhe dar a terrível consciência da sua solidão.

Após colocar displicentemente o prato em cima do móvel arredando


para um lado as estatuetas, ela começou, automática e lentamente, a
tirar suas roupas, como se estivesse diante de um cliente como os outros.
Espantei-me com seus gestos. Não entrara ali para isso e nem desejava o
que ela parecia imaginar. Eu preferia continuar a conversa. Observei Se-
fira, sem nada dizer. Despida, foi até à jarra, despejou um pouco d’água
morna num copo de papel amassado, que estava em cima da mesa im-
provisada e o sorveu de uma só vez.

A chuva ia, aos poucos, aumentando. O barulho era enorme sobre nos-
sas cabeças, fazendo desaparecer, por instantes, o som das canções do
velho rádio e até nossas conversas lentas, medrosas, que buscavam um
contato, que desconfiávamos poder construir. Alguns pingos de chuva
atravessavam as velhas telhas remendadas com plástico, penetravam no
forro de madeira carcomida, misturavam-se com restos de excrementos
dos cupins que habitavam o forro do barracão, e caíam.

O cubículo sem janelas continuava quente e abafado, apesar da chuva,


fazendo com que, constantemente, eu limpasse a testa suada com meu
lenço bordado. Sob a fraca luz, onde era difícil distinguir os contornos
dos rostos, ela mostrava-se linda, principalmente quando vista de perfil.
Nessa perspectiva, sua fisionomia lembrava as princesas do Egito, de
narizes aquilinos e delicados e os lábios pronunciados. Com muita di-
ficuldade confessei a Sefira que não fora ali para transar. Ela se espantou.
Percebia-se que estava gostando de minha atitude, de viver um momen-
to diferente. Assim, ela retrucou, seguindo o padrão que já marcara sua
vida, porém, sem muito convencimento, almejando uma resposta para
que tudo continuasse como estava:

- Então, está tomando meu tempo, para quê? Depois, não vai querer me
pagar, alegando não ter feito nada. Estou à sua disposição.

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- Não se trata disso, consertei . Não se preocupe. Eu te pagarei. Não
tenho muito dinheiro, mas o suficiente para te recompensar. Preciso
mais de uma conversa do que de sexo... balbuciei, com dificuldade...
Estava envergonhado de estar me abrindo com aquela mulher, até há
pouco desconhecida e, recriminava-me por estar gostando dela, de estar
ali, falando com simplicidade, uma experiência que, há muito, não tinha.
E com quem? perguntava-me, surpreendido.

- Certo. Já recebi fregueses como você. Alguns são esquisitos; desejam


coisas estranhas de nós. As mais antigas contaram-me casos escabrosos.
Um pouco amedrontada com as próprias lembranças, perguntou: “Posso
continuar sem roupas? Está muito quente. Mesmo quando estou só, fico
assim. Não quer tirar a roupa, também?”

- Não.. Agora, não! Não se preocupe, não sou tarado. Pode ficar calma, à
vontade. Não me incomodo com sua nudez. Acho você bonita. Seu
corpo, sem roupa, é mais atraente. Além do mais, você tem outras coi-
sas, mais interessantes do que seu corpo, para mim...

- Eu? Disse espantada, sem compreender. O que tenho para os homens,


além do meu corpo? Ela jamais havia pensado em agradar os homens
com algo além do sexo. Não entendia o que eu queria dizer. - Como é
mesmo seu nome? Perguntou, somente agora parecendo se interessar.

- Lúcio. Chamam-me de Lucinho.

- Lúcio. Nunca conheci ninguém com esse nome... Acho bonito. Nesse
instante, ela olhava fixamente para mim, examinando-me pela primeira
vez, sob a luz opaca. Às vezes, escurecia todo o quarto, devido aos
relâmpados e trovoadas.

- Você também é bonito. Tenho um homem, sabe? Não vou esconder...


Ele me explora. Vem aqui todas as noites. Deve vir daqui a pouco.

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Dorme comigo, mas vem aqui mais para buscar parte do que ganho.
Eu ouvia...Não desejava mais escutar tais histórias chatas, pois já as
conhecias de sobra e me causavam ódio: a exploração de uma pessoa
sobre a outra. A temperatura do quarto, aos poucos, baixou. Um vento
frio atravessava os vãos da porta de entrada, penetrando na nossa pele.
Sefira, soltando-se um pouco, enroscou-se nos meus ombros e, carin-
hosamente, após ter beijado com ternura meu rosto, aconchegou-se e
pediu-me para abraçá-la. Estava com frio. Um pouco desajeitado com
seu pedido, passei meus braços em torno de seu pescoço delicado. Pela
primeira vez na minha vida, senti que estava amando uma pessoa sem
querer nada em troca. Sentia-me, como jamais estivera, fundido a esse
corpo desconhecido. Tinha vontade de continuar assim, por muito
tempo, para toda a vida. Não era preciso mais nada. Bastava o que estava
acontecendo. Maquinalmente, comecei a passar as mãos no seu rosto e
cabelos. Ela gemeu, doce e delicadamente, como fêmea que se entrega...

- Tem mãos de mulher: macias, mais macias do que as minhas. Olhe,


mostrando-me as suas e passando-as sobre o meu rosto.

Como uma menina medrosa, enroscava-se no meu corpo, buscando


proteção. O barulho da chuva aumentava, servindo de fundo à cena,
que ia se instalando naquele quarto pouco propício a um idílio amo-
roso. Assim, durante um bom tempo, ficamos abraçados um ao outro.
Ocasionalmente, o rosto e os lábios de Sefira procuravam minha boca
sedenta e nossos rostos formavam uma só imagem. Não mais falávamos
acerca do que ocorria; nossos corpos colados expressavam tudo; o silên-
cio continuou por minutos...

- Há muito não me sentia tão bem, confessei enquanto passava as mãos


nas suas costas desnudas.

- Eu também. Você é diferente. Tem certeza de que não me quer como


os outros? Disse Sefira, achando que devia oferecer o corpo para aquele
a quem ela estava amando e simpatizando.

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- Para quê? Não está se sentido bem assim? falou Lucinho.

- Você acha que meu corpo é feio? Quase não tenho bumbum. Eu não
lhe agrado. Gostaria muito que você se sentisse atraído por mim, disse,
acostumada a ver o amor somente por esse prisma, imaginando que se
um homem não a desejasse, como imaginava, não a desejaria de forma
alguma, pois somente assim uma mulher pode agradar aos homens.

A conversa foi interrompida bruscamente, com batidas fortes, quase der-


rubando a porta. Separamo-nos assustados.

- Deve ser Olegário, meu homem. Não se assuste. Vou falar com ele que
estou com um freguês. Ele volta depois.

- Não se preocupe. Vou-me embora. Volto outro dia. Vai atrapalhar sua
vida. Quanto lhe devo?... A batida mais intensa levou Sefira a abri-la,
mesmo sem se vestir. Diante dela, assustado, estava um homem forte,
branco como cera, vestido com um terno de linho surrado e ensopado.
Sem olhar para mim, que estava paralisado, sentado na cama, segurou-a
pelos braços, gritando:

- Está bêbada! Não ouviu uma barulhada nas ruas? O rio Arrudas está
enchendo! Começou a inundar tudo! A água está vindo para cá! O
hospital está cheio de policiais, do Corpo de Bombeiros. Entrou água
no porão do hospital, onde dormiam algumas mulheres... Disseram que
algumas delas morreram afogadas. Saia depressa. Vista-se!

Levantei-me de uma só vez, lamentando o ocorrido. Não tive tempo de


me despedir, nem de pagar, conforme o combinado. Perguntei-lhe se
desejava alguma ajuda. Seu namorado, olhando-me como um inimigo,
colocou-me para fora do quarto, sem que ela pudesse fazer qualquer
gesto para impedi-lo.

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O vento forte aumentava, ajudado pela chuva pesada, varria, com raiva,
as ruas. Umas poucas pessoas saíram de suas tocas, tinham os cabelos
em desalinho, olheiras, rostos sonolentos e cansados. Pequenos ajun-
tamentos se formavam; discutiam e andavam, de um lado para outro,
enquanto olhavam a enchente que começara. A maioria caminhava para
o Hospital de Doenças Venéreas Antônio Aleixo, que ficava um pouco
abaixo do quarto onde Sefira morava. Policiais, aos berros, afastavam os
observadores mais corajosos. 

Fiquei parado, debaixo da pesada chuva, desprotegido, tendo os olhos


fixos nas pessoas ali aglomeradas. Uma lama escura e furiosa saía do rio,
ameaçando tudo à sua frente. A água escura, grossa e cheia de espuma,
carregava todo o lixo ali despejado.

Era o caos: soldados do Corpo de Bombeiros tensos davam ordens


desencontradas. Relâmpagos, trovoadas. Gente curiosa sussurrava.
Alguns ouviam, com atenção, as descrições dos assistentes mais bem
informados. Todos observavam a tentativa de salvamento das mulheres
hospitalizadas. Quatro homens saíram do hospital, carregando, na maca,
um corpo enrolado num lençol, sob os olhares tristes e um profundo
silêncio da platéia, que teimava em assistir a tudo. Mais dois corpos
foram transportados para o velho rabecão, estacionado no outro lado da
rua. Pude enxergar, um pouco adiante, Sefira, bela, apoiada nos ombros
do seu protetor. Chorava, suas delicadas lágrimas se misturavam com os
grossos pingos de chuva. Algumas mulheres sentiram-se mal e tiveram
que ser socorridas pelos sonolentos e cansados médicos e enfermeiros
das ambulâncias.

Sozinho, molhado até à medula, continuei postado, observando o movi-


mento, por muito tempo. Olhava para Sefira; tinha pensamentos alegres
e prazerosos, lembrava do encontro; diante dos corpos que passavam
nas macas, tornava-me triste.

A chuva diminuiu. Acabrunhado e solitário, caminhei em direção ao lo-

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cal onde a enchente estava mais forte, orientado pelo barulho das águas
que continuava arrastando tudo. Buscando uma posição segura, ob-
servei aquele espetáculo raro, bonito, amedrontador. Estava aprisionado,
impossibilitado de largar aquele lugar, largar Sefira, abandonar minha
fusão com a natureza, com a vida, com a morte, com o universo.

Exausto e sonolento, percebendo que a enchente continuava, decidi


caminhar, cambaleando e escorregando em direção à minha casa. A
ponte, que teria de atravessar, estava intransitável. Pela manhã, depois de
muito andar, quando os primeiros clarões apareciam, cheguei em casa.
Entrei, fazendo barulho no assoalho, com os sapatos molhados. Retirei
a roupa ensopada e entrei no chuveiro quente. Lá, fiquei por um longo
tempo, deixando a água tépida cair sobre o corpo frio, para relaxar, en-
quanto recordava a bacia com água, as estatuetas feias das santas aleija-
das, o ovo e arroz com feijão esturricado, no prato de alumínio, o quarto
abafado e sem janelas. Lembrei-me de Sefira com ternura. Dela que, em
alguns raros momentos, sorriu para mim, com seus dentes para fora. De
seus abraços e de seus beijos carinhosos. Senti saudade! Voltaria a vê-la?
Gostaria muito!...

Em casa, todos dormiam. Dr. Adamastor roncava ritmado. Rosária tos-


sia e tossia. O dia amanhecera. Lá fora, a chuva caía, agora mansa, leve
e teimosa, sobre o telhado resistente e impenetrável de nossa moradia.
Lembrei-me, com saudades, do frágil telhado do barracão de Sefira. Lá
havia algo que na minha casa não existia, o que mais procurava: uma
compreensão para a vida humana, para minha vida... O amor, a paixão
gostosa, que desabrochou forte, alegre e livre dentro do meu peito.
Começava a ter certezas que antes não existiam...

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Manicômio:Loucuras de uma Paixão
Lucinho não conseguiu dormir. Pensava em Sefira, nas mulheres aban-
donadas pela sorte e mortas pela enchente.

Levantou-se um pouco antes do almoço, sonolento e excitado. Seus


familiares à mesa conversavam os assuntos de sempre. Ele, sem cumpri-
mentar ninguém, arrancou o jornal das mãos de seu pai à procura de
informações acerca da enchente da noite anterior. Iniciou-se uma dis-
cussão entre ele e seu pai. Rosária saiu em defesa do marido, criticando
Lucinho pelo horário de chegar, pelo barulho que fez acordando todos e,
principalmente, por ter sujado o assoalho com seus sapatos encharcados.

- Você chega tarde, faz um barulho daquele, acorda todos, levanta com
essa cara, arranca o jornal que seu pai está lendo e, além disso, reclama...

- Não tenho nada a falar com a senhora. Não lhe devo nada. Você é que
me deve. O que me fez... ela, amedrontada com o que ele poderia con-
tinuar a dizer, decidiu ser mais cautelosa e mudar o tema da agressão.

- Estou lhe falando agora a respeito do jornal. Seu pai estava lendo. Você
o tirou, sem ao menos pedir licença. Isto é uma grosseria!

- Não estou bem. Deixe-me em paz. Estou nervoso. Não dormi essa
noite, estou chateado.

- Quer um ovo quente? Aproximou-se Cândida, gentilmente, trazendo


para Lucinho o que lhe fora oferecido...

- Não quero nada, não! gritou, enfurecido, jogando ao chão dois ovos
que se espatifaram, deixando um rastro branco-amarelento.

- Não grite com ela, berrou Dr. Adamastor.

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- Grito com quem quiser. Até com o senhor, como agora. Você é um
corno manso, que não toma atitude alguma.

Ela sentiu um calor subindo pelo corpo, não por estar sendo descoberta
- seus encontros, que não eram raros, não foram segredos bem guarda-
dos, mas sim pelo desafio dele, diante de todos. Isso era intolerável.

- Pare! Berrou Dr. Adamastor, mais animado do que o normal e mais


feliz por ter sido despertado do marasmo. Corajoso com o próprio grito,
continuou: - Cale a boca, seu depravado!

O grito fez Lucinho perder a cabeça de vez. Provavelmente, o que ele


mais desejava; o número de problemas que tinha enfrentado havia pas-
sado do limite.

Levantou-se de onde estava e iniciou uma quebradeira na casa. Choran-


do e dando gritos, ameaçando matar o pai com a serra de cortar pão, ele
andava de um lado ao outro da casa. Com muito custo, foi seguro pelo
pai, Agostinho e Cândida, que o imobilizaram, por segundos.

Rosária, falando macio, o abraçou. Calmo, soluçando no colo da mãe,


ele ficou por muitos minutos até que chegasse o primeiro psiquiatra que
conseguiram contatar. Em virtude da agressão e excitação, o médico,
temeroso de nova crise, decidiu interná-lo, para que ele recobrasse o
domínio de si.

Uma vez mais calmo, após ter sido sedado pelos tranqüilizantes e,
principalmente, olhares, palavras doces e abraços da mãe, Lucinho foi
conduzido até o hospital. Ao ser internado, ainda na portaria, ele já
havia melhorado. Despediu-se da mãe com um forte abraço, e olhou
sem rancor, para o pai. Abraçou, com ternura, o irmão, que, nesse mo-
mento, não suportando a situação constrangedora, tinha os olhos cheios
de lágrimas.

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O Hospital Schneider não era nem um lugar aprazível, nem de dar
medo. Naquele início de tarde, após a internação, Lucinho foi se deitar,
pois não havia dormido e, além disso, queria muito esquecer o ocorrido
na noite anterior; ele só acordou às seis horas da tarde.

- Dormiu muito, heim, companheiro? Disse-lhe, cumprimentando-o, o


colega de quarto, quando Lucinho abriu os olhos.

Esse devia ter não mais de quarenta anos. Era um pouco gordo, cabe-
los curtos, quase raspados, assentados num rosto redondo e simpático.
Parecia inteligente. Gustavo, assentado na cama, encostado no traves-
seiro, lia o conto “O Marido Enganado”, de Tchekov. Marcou o liv-
ro, fechou-o e continuou:

Você dormiu desde que chegou. Mora em Belo Horizonte?

- Sim, disse-lhe, educadamente, com uma voz enrolada, que custou a


sair. Nem sei bem por que estou aqui. Estou com fome. Desde ontem,
não como nada. Como é este lugar? Está internado há muito tempo?

- Pouco mais de duas semanas. Não é dos piores. Já estive internado


em lugares piores... A comida é razoável. Os enfermeiros, com exceção
de um deles, o Duarte, tratam a gente bem. Dão remédios demais. Eu
mesmo tomo mais de cinco diferentes: Haldol, Akineton, Neozine, Va-
lium e Tryptanol. Todos dão sono e fome. Acho que engordei três quilos
em duas semanas... Às vezes, dão impregnação...

- Impregnação? Que é isso?

- Você é novato mesmo! É um efeito ruim do remédio. A gente fica com


o corpo todo duro; andando de um lado para o outro, sem parar, como
um zumbi; sem querer a gente fica fazendo movimentos com os mús-
culos, repuxando pescoço para um lado. O pior é quando o corpo fica
duro, sem poder mexer, doendo na carne. Como um robô, entendeu? O

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movimento fica difícil, depois passa.

- Será que me deram esse remédio? Tenho medo. Pareço-lhe doido?


Aqui não é hospital para loucos?

- Sim, mas você parece bem... É, não sei bem... Tem gente que parece
são e não é. Eu, por exemplo, não tenho nada e estou aqui. Tudo
perseguição. Vim parar no hospital porque descobri que minha mulher
estava me traindo. Traindo não só com um: com vários homens. Ela,
muitas vezes, disfarçadamente, saía de fininho para encontrar com os
namorados. Vieram até para dentro de minha casa...

- Dentro de casa? E o que você fez? Esforçando-se para se mostrar inter-


essado, quando, realmente, estava cansado desses casos.

- Nada, pois não os encontrei. Quando eu estava dentro de casa, eles


não entravam. Passavam defronte de minha casa para inspecionar
se podiam ou não...Olhavam para a janela, como se nada quisessem,
disfarçadamente, para não serem percebidos...Ela os avisava de que eu
estava lá... através de sinais. Sabe? Ora era um espirro, ou uma tosse, ora
uma toalha pendurada na janela. Outras vezes era queimando incenso.
Um dos namorados é policial; este é o que mais me persegue. Entrei no
ônibus, ele entrou atrás, ficou assentado na cadeira ao lado da minha,
olhando com o canto do olho. Quando eu olhava, ele virava a cara para o
outro lado, como se nada quisesse. Certa vez, para testar minhas suspei-
tas, desci, logo após entrar no ônibus. Ele fez o mesmo. Então, rapida-
mente, tornei a entrar, no mesmo ônibus. Ele, também, pegou o ônibus e
continuou me espreitando.

- Mas, por quê? Além de andar com sua mulher, te persegue...

- Sim. Essas coisas não são fáceis de explicar... É o que quero entender.
Só pode ser negócio de comunista.

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- Como? Ele é comunista?

- Não! Eu. Eu já fui. Falando baixo: - Até hoje me perseguem por causa
disso. Certa vez, fui internado aqui mesmo... A perseguição foi grande:
mensagens no rádio, nos jornais. As notícias eram claras: “Ele será pu-
nido”; “A polícia fará tudo para prender os culpados”; “O governo não
permitirá arruaças”; “A família do criminoso se acha desestruturada”, e
outras parecidas. Tudo feito para mim, para me colocar doido. Ora, é
fácil descobrir que tudo aquilo tinha um alvo. Mostrar para todos que
eu ia ser pego e punido. Eu torço para o Cruzeiro. Até aí nada de mais.
Entretanto, quando meu time perde, basta um jogo, os atleticanos sol-
tam foguetes na porta de minha casa ou nas imediações. Tudo para me
gozar. Os automóveis buzinam estridentemente; os atleticanos berram:
bicha, bicha, até o desespero. E não param aí. Uma revista - acho que foi
a Manchete - publicou uma reportagem acerca de Gustavo, que é o meu
nome, colocando-me como homossexual; mostrando meus possíveis
parceiros e tudo o mais. Coisa que eu jamais fui. Uma mentirada da-
nada. Foi uma vergonha. Sofri meses. Até hoje, quando passo nas ruas,
as pessoas olham para mim e me gozam. Alguns falam às claras : bicha,
bicha, bicha. Como me defender? Já briguei com um e outro, fui à Polí-
cia Federal e dei parte. Quando entrei para falar com o policial, esfriei...

- Por que?

- Quem lá estava era um perseguidor antigo, apenas disfarçado. Ar-


rumou um grande bigode, deixou o cabelo crescer, mudou até de cor e
engordou. Tudo para aparentar ser outro. Vi logo que estava perdido.
Queria fugir, mas não tinha mais jeito. Conversou comigo, dissimulada-
mente, como é habitual, sem me olhar. Ele sabia que eu tinha percebido
que ele era um dos que freqüentavam minha casa. Eu, fingi nada notar
quando ele perguntou-me, dando suas mensagens: “O que o senhor
deseja?”, disse-me com a voz rouca, muito baixa, para que ninguém ou-
visse.

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Expliquei-lhe tudo, estava apavorado. Vi que ele estava apressado, queria
se ver livre de mim. Arrumou uma desculpa para me mandar embora
rápido; ao me despedir, após apertar minha mão, senti que ele, com o
indicador, coçou minha mão. Para piorar, ainda, gozou-me, falando e
rindo: - “Tomaremos todas as providências, senhor Gostoso - juro que
ele me chamou assim: de gostoso - “Não será mais importunado por
seus perseguidores”.
Saí de lá pior do que entrei. Imaginei que seria preso, ali mesmo. Tive
sorte ou sei lá o quê. Em seguida um policial que estava no banheiro da
sala do diretor, escondido, olhando pela fresta da porta semi-aberta - eu
observei tudo - começou a me seguir pelos corredores da polícia, em to-
dos os lugares que entrava. É terrível. Às vezes, quando sou perseguido,
xingo, mando o nome da mãe. Eles riem mais ainda, não se importam;
falam que eu estou louco. As mulheres debocham de minha impotência.
Tudo falso. Gosto de mulheres. Apenas, não sinto muita atração pela
minha. Ela é feia e, pior do que tudo, tem um cheiro estranho. Me lem-
bra enxofre queimado...

Ele ouvia tudo, espantado. Aos poucos, foi se recuperando do sono.

- Certa vez, continuou Gustavo, fugi de Belo Horizonte, em direção a


Liberdade de Minas, a cidade onde nasci. Nos primeiros dias, como
quase ninguém sabia da minha ida, não tive aborrecimentos. Mas, aos
poucos, as pessoas da cidade - comerciantes, meninos da escola, até
pedintes - começaram a caçoar de mim, falando as mesmas coisas de
sempre: comunista, corno manso, veado e tudo mais. Acho que foi a
imprensa que divulgou, para todos, onde eu estava e como me provo-
car. Sem que ninguém desconfiasse, fui até uma banca de jornal e fiquei
lendo. O vendedor ficou me espreitando de rabo de olho. As manchetes
dos jornais só traziam notícias a meu respeito. É claro que o jornaleiro
sabia: “Foragido da Polícia se esconde no interior de Minas”, e, também,
“Homem gordo, aparentando ter quarenta anos, é suspeito de coman-
dar as invasões”; “Autor de crime desaparece”. Tive que voltar, pois nada
adiantou minha fuga, meu esconderijo. Em pouco tempo, todos sabiam

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quem eu era, passei a não mais sair da pensão onde estava. Lá, tive dor
de barriga: puseram veneno na comida. Passei a tomar apenas leite, pois
todos sabem que o leite combate os venenos. Deve ser o pessoal do jor-
nal, onde trabalhei, que resolveu me dedurar...

- Você, então, é jornalista?

- Fui. Estou aposentado. Trabalhei, por uns tempos, como repórter poli-
cial. Vi muita injustiça e agressão, mas nunca fiz nada contra ninguém,
muito menos contra os policiais. Não gosto deles, mas os respeito. Não
sei por que os delegados e detetives me perseguem. Sei de muita coisa.
Tudo guardado aqui, oh, na cabeça. Trabalhei, depois, na política. Mais
problemas, pois vi mais coisas, ainda que não se podem escrever nos
jornais. Fui atropelado, provavelmente por algum deputado. Devido
as fraturas, tive que ficar internado vários meses. No hospital conheci
minha mulher que é enfermeira. Ela é culta e inteligente mas, como lhe
falei, tem o tal cheiro estranho. Será de capeta? Sei lá. Eu não acredito
nisso, mas tem gente que fala que eles podem se incorporar nos seres
humanos, até em alguns animais; bode, por exemplo. Tenho que suspei-
tar dela, pois veja: ela usa, determinadas horas, um cabelo formando um
chifre. Tudo para me gozar. Penso que ela quer me espantar, para que eu
fuja e, assim, fique livre para andar com todos os homens que deseja.

Nesse momento, a porta do quarto é aberta. Entra um enfermeiro alto,


forte, bem barbeado, novo ainda, educado, que se dirige, amavelmente,
para Gustavo e, depois, para Lucinho. Cumprimenta-os.

- Como vai? Dormiu muito? Deseja jantar ou tomar um lanche? Trouxe


umas roupas, que sua família deixou para você e, também, estes livros.

- Livros? Deixe-me ver, apressou-se Gustavo em olhá-los: “Vinhas da


Ira” e ‘Ressurreição”...Já li os dois. Gostei mais deste, de Tólstoi; uma
linda história de amor: o homem era um apaixonado pela mulher, que
acabou sendo prostituta, condenada por roubo e assassinato. Mas era

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tudo trama contra ela; parece com meu caso. Os assassinos eram outros.
É sempre a injustiça imperando.

- Leio muito, também, comentou, sem saber o que falar... Vou tomar o
lanche.

Desse modo, ele imaginou se afastar um pouco do falante Gustavo,


visitar a enfermaria, sair daquele quarto abafado, de pequenas janelas,
que mais parecia uma cela de prisão. Vestiu um pijama limpo, que lhe foi
entregue pelo enfermeiro. Procurou na sacola um chinelo, o mesmo que
sempre usava em casa, calçando-o, passou pela porta, educadamente ab-
erta pelo amável enfermeiro, que o conduziu até um salão, onde outros
pacientes tomavam chá, café, chocolate com torradas e bolo. Alguns dis-
cutiam futebol, outros assistiam na televisão, colocada num suporte bem
alto, a um programa de auditório, onde cantores se exibiam, enquanto
duas mulheres dançavam quase nuas.

Num canto do salão, aglomerava-se um grupo de pacientes, indiferentes


ao programa da televisão e ao lanche. Todos estavam interessados numa
mulher ali presente. Lucinho se aproximou mais do grupo, curioso, para
se certificar do que estava ocorrendo. Nesse aglomerado de homens,
estranhou encontrar, falante e animada, uma bela mulher alta, de cabe-
los ligeiramente anelados e longos, grandes brincos de argolas amarelas,
sapatos de saltinhos arroxeados, uma calça de linho bege e uma camisa
branca e fina, parecendo de seda. O rosto, muito pintado, mostrava,
principalmente, os lábios vermelhos e proeminentes, que guardavam os
dentes muito claros. Mas, aos poucos, chegando mais perto, teve uma
decepção: a bela mulher falava numa voz de falsete e era, de fato, trav-
esti. Os pacientes, à sua volta, estavam entusiasmados com sua presença
naquele ambiente sem mulheres. No início da noite, a direção do hospi-
tal, para evitar os tumultos que começavam, transferiu o paciente para
a enfermaria de mulheres. A calma e harmonia voltaram a imperar na
seção.

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O médico, contratado pela família para cuidar de Lucinho, entrou no
hospital, no início da noite. Educado e gentil, levou-o para o seu quarto,
tendo pedido a Gustavo para deixá-los a sós, por uns instantes. A con-
versa foi rápida, não tendo durado mais do que cinco minutos. Lucinho,
por mais que quisesse desabafar, não conseguiu, pois não lhe foi dado
tempo. Ele queria discutir os diagnósticos anteriores do seu caso. Não
foi permitido:

- Doutor, como é mesmo seu nome? Eu esqueci.

- Dr. George.

- Pois bem, Doutor. Eu já fui examinado por diversos psiquiatras...

- Eu sei disso. Sua mãe me contou. Todos imbecis...

- Como? O Prof. Pinelli não...

- Você tem um Transtorno de Personalidade “Borderline”.

- Não entendi. Você nem me examinou, nada conversou comigo. Nunca


ouvi isso. Nenhum me falou isso... O que significa esse transtorno?

- Primeiro, é difícil explicar para um leigo. Segundo, caso eu quisesse


explicar, não teria tempo. E, terceiro, caso tivesse tempo, você não enten-
deria minhas explicações. Portanto, para que falar? Para nada? Você é
o cliente e eu sou o médico. Eu trato e você aceita minhas orientações.
Vou lhe receitar...

Dr. George tira do bolso folhas do receituário da clínica e começa a es-


crever, continuando suas explicações:

- Você tomará, durante um mês, um antipsicótico, para diminuir sua


excitação e agressividade...

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- Mas eu não estou agressivo...

- Mas ficou!... E fica sem mais nem menos. Tomará, também, um antide-
pressivo para as depressões...

- Não me sinto deprimido.

- Quem sabe sou eu, não você! Eu faço os diagnósticos. Você me fornece
os dados ou pistas e deve obedecer. Esse é o seu papel.

- Mas, ainda não fui examinado.

- Para quê? Eu tenho olho clínico. Basta ver e já vi milhares de pacientes


iguais a você. Além disso, ouvi de sua mãe sua história, semelhante a
todas histórias dos “borderlines”. Para que um papo que não leva a nada?
Rodear, rodear, fingir que está procurando quando já encontrou...tudo
para chegar onde já sei...O diagnóstico está pronto. Vamos ao trata-
mento, isso é que interessa! Não gosto dessa lengalenga dos terapeutas:
uma conversa fiada, sem objetivo, ou melhor, para ganhar dinheiro do
cliente, para fingir que estão descobrindo e, depois, tratando. Comigo é
diferente; é pá e bola.

- Mas, uma história dita por minha mãe... Não é diferente da minha?...
Eu gostaria de contar-lhe a minha versão...

- Claro que é! Mas também, não! Sempre são versões, suposições acerca
de fatos. Ela é tão confiável quanto você; e quer o seu bem. Para dormir,
vou te receitar um ansiolítico, que poderá ser tomado, caso esteja ner-
voso, durante o dia. Tudo certo?

- Já estou nervoso depois dessa conversa.

- Então, comece a tomar agora um deste aqui, o ansiolítico... Aponta o

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assinalado.

Passa um enfermeiro que é incumbido de dar os medicamentos ao pa-


ciente.

- Mais um ponto - continuou o Dr. George - se não der certo essa medi-
cação, daremos eletrochoque.

- Eletrochoque! Quer me matar?

- Não mata ninguém... E não dói. É um remédio salvador em muitos ca-


sos. Não se assuste. Mais um recado: amanhã é sábado, irei para minha
fazenda pois tenho que vacinar o gado. Tem aparecido muita aftosa por
lá. Preocupo-me também com as vacas. Não posso viver só junto dos
clientes; elas me tomam muito tempo. Por isso, não virei aqui amanhã,
nem no domingo. Se tiver algo de urgência, há o residente para ajudá-lo,
eles são ótimos e prestativos. Até segunda.

- Até segunda.

Ele estava desesperado. Pensou em tentar, ali mesmo, o suicídio. Mas


como? Ficou parado; assentado na cama, por alguns momentos, sem se
mexer, fechado no quarto sem móveis.

Logo após a saída do médico, voltou o enfermeiro com um copinho,


onde estava o ansiolítico receitado.

- Beba, falou com delicadeza.

- Mas, precisa?

- São ordens. Vai te ajudar a se acostumar com o hospital.

Nesse momento, aparece Gustavo, que entra na conversa.

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- Pode tomar. É do mesmo que tomo. Dá um descanso na gente... Parece
como se tivéssemos tomado um copo de pinga. A ressaca é pequena...No
caso do calmante. Tomei vários desses, já lhe falei.

- Sim, vou tomá-lo. Ele fingiu tomar os comprimidos e os guardou de-


baixo do lábio inferior. Bebeu o copo d’água, despediu-se do enfermeiro
e foi ao banheiro, fingindo urinar e, lá, cuspiu o comprimido que am-
argava a boca junto com a saliva grossa. “É o que farei; irei cuspir todos
o medicamentos desse médico, não falarei para ninguém, nem para
Gustavo, pois ele fala demais”, pensou. 

Mais tarde, teve dúvidas se devia ou não ter tomado os comprimidos


calmantes. Parece que, para tolerar o hospital, o vazio e o tédio, era
necessário ingerir os medicamentos que acalmam, tampam a mente,
impedindo-nos de pensar. O Dr. George, talvez, tivesse experiência e
razão.

Os dias se passaram, todos iguais, no Hospital Schneider.

Parece que, num ambiente com poucos estímulos, sem objetivos im-
portantes - como ocorre nas pequenas cidades do interior - qualquer
acontecimento ganha destaque e diverte as mentes ávidas por notícias:
um cão que foi atropelado, uma vaca que dá muito leite, o casamento
da solteirona. No hospital acontecia a mesma coisa. À noite, em torno
de um paciente que estava internado no hospital há mais de dez anos,
reunia-se um grupo para jogar truco. Aristeu, um verdadeiro “rato de
hospital”, sabia de vários casos ali acontecidos. Todos, ao se reunirem
em torno de Aristeu, estavam mais interessados em ouvir as histórias
contadas por ele, primo do diretor, ex-alcoólatra, jogador de pôquer e,
constantemente desempregado. Suas longas histórias começavam sem-
pre com a pergunta:

- Alguém se lembra da Conceição?

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A resposta óbvia era não. Todos estavam internados ali há pouco tempo
e iriam embora, logo. Lucinho, sem ter outra coisa a fazer e para escapar
das idéias de perseguição de Gustavo, começou a se reunir com o grupo.
Às vezes, até se divertia.

- Ninguém se lembra da Conceição? Ela foi internada aqui, há muito


tempo. Era uma protegida do Dr. Otávio, um médico antigo e famoso na
capital. Foi diretor desse hospital. Tinha sido até Secretário de Saúde, no
governo de ... Não me lembro, mas isto não tem importância. Lembram-
se dela?

Todos ficavam calados, esperando a continuação da história. Aristeu


ficava nervoso se alguém conhecesse a paciente e entrasse na conversa.
E assim ele contava uma longa história. De repente, um dos jogadores,
menos interessados nos casos, bradava:

- Truco! Vale seis!

Não foi contestado. Deixavam que ele ganhasse o truco, sem se impor-
tarem, pois os casos pareciam mais interessantes. Para outros, já do-
pados pelo excesso de medicamentos, as histórias eram um excelente
sonífero.

- Eu sempre gostei dos dias de visitas - continuava Aristeu sem se im-


portar com o jogo. Às vezes, ganhava alguns presentes, ao ajudar os
pacientes a encontrarem suas famílias. Tinha uma senhora simpática
que ia lá mais pra me ver do que para visitar o marido. Gostei muito
dela. Ela sumiu, depois que seu marido foi transferido para Barbacena.
Não mais deu notícias. Penso muito nela... As visitas eram às quintas
e domingos, na parte da tarde, continuou, preparando-se para contar
mais um caso. Antes, olhou as horas para ver se dava tempo, pois às dez
horas, todos tinham que ir para seus quartos.

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- O hospital, nos dias de visitas, enchia-se de familiares dos pacientes,
cada um trazendo comidas e agasalhos em suas sacolas de supermerca-
do. Os encontros, freqüentemente, provocavam fortes emoções, às vezes,
com discussões, queixas e até brigas. Após as visitas, muitos pacientes
pioravam e tinham crises nervosas. Os enfermeiros recebiam algumas
migalhas a mais - completando o seu magro salário.

Foi numa quinta-feira, à tarde, num dia movimentado de visitas, que


Dr. José Porto saiu do hospital e pediu ao plantonista para aplicar um
eletrochoque num dos seus pacientes, que deveria procurá-lo, em torno
das três horas. Exatamente às três, apareceu na portaria um senhor, que
procurava Dr. Porto. O plantonista, já avisado, foi ao seu encontro.

- Está procurando o Dr. José Porto? Ele me avisou, teve que sair e pediu-
me para ajudá-lo. Entre aqui.

- Sim. Vim me encontrar com ele, confirmou o senhor, que vestia uma
calça de brim amarela e uma camisa azul celeste.

Ele quase não falava de tanta timidez. Foi seguindo o Dr. Josué Costa, o
gentil plantonista, até uma sala sombria, onde estava uma maca.

- Pode-se deitar aí, nessa mesa, disse-lhe gentilmente o Dr. Josué.

Segurando-o pelo braço, ele o ajudou a subir a pequena escada e a


deitar-se na maca. O homem, tendo os olhos espantados, suando, nada
disse. O médico imaginou: “É o medo; todos têm”. Chamou dois enfer-
meiros fortes e sérios, que chegaram carregando um pesado aparelho
embutido numa caixa amarelada de madeira. O aparelho foi aberto
e ligado na tomada elétrica, fazendo com que uma pequena lâmpada
vermelha se acendesse. Enquanto isso, o homem permanecia deitado na
maca, sem nada entender do ritual que se desenrolava. Uma vez ligado o
aparelho, foram puxados dois pequenos condutores elétricos, tendo nas
suas extremidades duas pequenas placas de metal. O enfermeiro umede-

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ceu um pedaço de algodão com água da torneira e, em seguida, passou-
o nos dois lados da testa do senhor que continuava deitado. Dr. Josué foi
até ao aparelho e girou um pequeno botão de voltagem até 750 miliam-
peres; girou outro, marcando 0,5 de segundo. Pediu, delicadamente, para
que o senhor abrisse a boca. Colocou um chumaço de algodão, enrolado
num papel azul do pacote de algodão, de um canto ao outro de sua boca
e mandou que ele fechasse firmemente a mandíbula, de modo a mor-
der o algodão. O senhor, sempre sem entender, obedecia a tudo. Nesse
momento, o médico percebeu que o senhor usava uma dentadura. Após
retirar o chumaço de algodão, pediu-lhe que a retirasse e a colocou em
cima da mesa, onde estava o aparelho ligado à rede elétrica. Retirada a
dentadura, novamente foi colocado o chumaço. Um enfermeiro passou
por detrás de sua cabeça, segurando-a firmemente, no queixo, puxando-
o para trás. Fez, nesse momento, um leve sinal de cabeça para o médico,
indicando que estava tudo pronto. Ele colocou as duas pequenas chapas
de metal nos lados da fronte do senhor, no local molhado, firmando-as
com o auxílio da tira de borracha, da largura das placas, apertando-as
bem, para que tivessem um bom contato com a pele.

- Não vai doer nada, ouviu? Fique calmo. 

O paciente, tendo o chumaço de algodão dentro da boca fechada, nada


pôde dizer e continuava quieto. O Dr. Josué voltou ao aparelho, verificou
tudo, mexeu num e noutro botão, pediu ao enfermeiro para firmar o
queixo do senhor. Vendo que tudo estava certo, fez um último sinal com
a cabeça para os enfermeiros e pronto: apertou um botão preto.

Por uns trinta segundos, todos os músculos do corpo do senhor se


enrijeceram. Sua respiração parou temporariamente. Após esse período
inicial de endurecimento muscular, apareceram fortes contrações, pro-
vocando flexões dos antebraços, sobre seus braços e, das coxas, sobre
o tronco. Os fortes enfermeiros ali postados continham as contrações
impedindo que os membros, inferiores e superiores, se fletissem total-
mente. Durante mais trinta segundos, ainda sem respirar, o paciente era

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só contrações musculares violentas, que foram diminuindo, aos poucos,
até terminarem. O senhor, branco como o algodão colocado na sua
boca, suava. Desmaiado, mais parecia um morto. Após mais alguns seg-
undos, a respiração voltou com inspirações profundas e lentas. Também,
aos poucos, a cor avermelhada e morena de sua pele, queimada pelo sol,
retornou ao que era antes da passagem da corrente elétrica. Estava tudo
bem: o aparelho, desligado e guardado: o suor de sua face, enxugado.

Nesse instante, o Dr. Josué foi chamado novamente à portaria e pediu a


um enfermeiro que ficasse cuidando do senhor para que ele não caísse
da maca, enquanto estivesse desacordado - o que duraria ainda uns
trinta minutos.

Ao chegar à portaria, lá estava um outro senhor, procurando o Dr. José


Porto. O Dr. Josué ficou um pouco apreensivo, imaginando o que pode-
ria ter ocorrido.

- Está procurando o Dr. Porto? Ele saiu. O que deseja? Falou um pouco
trêmulo.

- Sim. Procuro. Ele saiu? Como assim? Ele me pediu para vir aqui...

- Para que? Perguntou Dr. Josué assustado, quase certo de ter cometido


um engano.

- Para que ele me aplique um eletrochoque. Eu tomo eletrochoque, após


minha alta, três vezes por semana: terças, quintas e sábados. Hoje é dia.

- Eletrochoque? Ah! Sim. Como não? Entre, por favor...Não!... Espere


um pouco. Um instante só, entendeu?

Saiu apressadamente para o local, onde permanecia deitado e ainda des-


maiado o senhor que, minutos depois, recuperou a consciência. Ainda
um pouco confuso, depois de algum tempo, conseguiu explicar quem

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ele era. Fora ao hospital visitar seu filho que estava internado e que era
cuidado pelo Dr. Porto. Queria encontrá-lo, apenas, para saber se podia
levá-lo, de alta, para casa.

- Boa noite para todos, despediu-se Lucinho, dirigindo-se para o quarto


acompanhado de Gustavo.

A permanência de Lucinho no hospital não durou muito. Não estava


tomando nenhum remédio. Cuspia-os todos no vaso. Seu médico
imaginava que ele estava melhorando, a cada dia mais. Como tinha um
bom comportamento, sendo inteligente e capaz de conversar, em pouco
tempo conseguiu a amizade e intimidade dos enfermeiros e vigilantes
do hospital. Saía, a qualquer hora, para comprar jornais e comestíveis
por perto. Foi numa dessas idas à mercearia, em frente ao hospital,
que Lucinho ficou conhecendo Virgínia. Na verdade, eles já tinham se
encontrado ali, por diversas vezes, fazendo pequenas compras para eles
mesmos ou para companheiros internados, que não tinham tal regalia.

Numa tarde, ele estava escolhendo laranjas, quando dele se aproximou


Virgínia. Ela parecia não ter mais do que vinte e cinco anos. Era um
moça alegre, um pouco mais baixa do que ele, morena, bonita e, princi-
palmente, simpática e desinibida. Conversava com todos na mercearia,
onde era muito conhecida e estimada. Vestia, nesse dia, um saiote bem
pequeno, que punha à mostra sua belas pernas, um pouco brancas. Ma-
gra, usava um “bustier” branco, que permitia uma visão atraente de seu
busto bem formado. Foi ela quem iniciou a conversa:

- Você também está internado no hospital? Vejo-o sempre.

- Sim. Eu te vejo, também. Até pensei em me aproximar de você. Fiquei


em dúvida. Sou cheio delas...

- Que bobagem. Eu sou muito falante, tá vendo? Não queria ir-me


embora sem levar algumas recordações daqui... Deixe-me escolher as

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laranjas para você. Homem não conhece isso, essas que escolheu estão
verdes demais, provavelmente azedas...

- Devem ter o gosto da vida.

- Hum!... Nada. Tá querendo bancar o inteligente, hein?

Lucinho corou de vergonha e Virgínia continuou:

- Oh! Ficou sem graça, coitadinho?

Nesse momento, ela deu um passo em sua direção e o abraçou repetin-


do, “coitadinho”, ali mesmo, na presença de todos, com muita natu-
ralidade e ternura. Esse gesto, apesar da falta de graça, fez com que ele
simpatizasse com ela.

Escolhidas e pesadas as laranjas, os dois saíram, caminhando juntos até


ao hospital. No caminho, ele ficou sabendo que ela teria alta dali a três
dias.

Conforme o combinado, Virgínia foi até onde ele estava internado e


tirou diversas fotografias do lugar e das pessoas, principalmente de
Lucinho. Apenas Gustavo evitou aparecer, pois desconfiou, imaginando
que tudo aquilo tinha um fim: arrumar mais provas contra ele, para
puni-lo ou matá-lo. Nos diversos encontros que tiveram, ficou sabendo
que ela era mais velha do que ele havia imaginado. Era arquiteta, estava
com casamento marcado para aqueles dias e o seu noivo vinha diaria-
mente visitá-la. Ela foi internada devido às crises de bulimia e cleptoma-
nia, sobre as quais ela falava sem se importar. No sábado pela manhã a
nova amiga recebeu alta e Lucinho foi até a secretaria do hospital para se
despedir dela.

Após a saída de Virgínia, a vida no hospital piorou para Lucinho. Os


poucos encontros que tiveram lhe fizeram bem. Passou a desejar, o mais

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depressa possível, sair dali. Na segunda-feira, após longa espera, con-
seguiu conversar com seu médico e lhe pediu para ir embora. Já não
havia mais motivos para permanecer internado. Entretanto, sem ligar
para suas ponderações, o médico evitou marcar um dia da alta, falando
apenas que ia pensar acerca do pedido. Após o encontro frustrante, ele
decidiu agir de outro modo. Percebendo que tinha liberdade e todas
as facilidades para sair à rua, não foi difícil para ele, interromper sua
permanência no hospital, de uma vez por todas. Teve a ajuda de Gustavo
que, para evitar suspeitas jogou suas roupas pela janela. Estas caíram
perto de onde haviam combinado. Pegou o embrulho, entrou no super-
mercado onde fazia compras, foi até o banheiro e lá trocou de roupa,
passando a usar a mesma roupa com a qual se internara. Calmamente,
voltou para casa.

Sua família, acostumada a tudo, não se espantou ao vê-lo. Perguntaram-


lhe o que ocorrera e ele, sem esconder, falou que não agüentava mais
ficar no hospital. Estava na hora de sair. Não aplaudiram sua idéia, mas
também não o contestaram. A partir desse dia, ele passou novamente a
viver com a família.

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Adeus às Ilusões
Lucinho, logo após sua fuga do hospital, decidiu procurar Sefira. Sua
presença era constante em sua mente. Procurou se esmerar para o es-
perado encontro. Tomou um bom e demorado banho, vestiu a melhor
roupa. Lembrava-se bem do pequeno quarto da rua Guaicurus.

A noite estava clara. A temperatura amena. Uma lua cheia começava a


nascer bela no céu estrelado. Era uma terça-feira, dia de pouco movi-
mento na zona boêmia. Ele chegou rápido ao seu destino. Passou antes
diante do hospital, onde a viu pela última vez. Lembrava com sofri-
mento da imagem de Sefira, abraçada ao gigolô, protegida pelo guarda-
chuva. Sentia ódio, ao imaginar o poder daquele homem grosseiro e
agressivo sobre aquela mulher delicada e gentil.

Não foi fácil achá-la. Procurou-a na velha casa. Mas o pequeno quarto
tinha nova moradora: uma mulher bem mais velha que mal conversou
com ele.

- Boa noite, foi dizendo, decepcionado e com dificuldade, pois esperava


encontrar Sefira.

- Boa noite, respondeu com voz pastosa e grossa a feia mulher que veio
recebê-lo, mancando da perna direita, imaginando ser um freguês. -
Hoje, não estou trabalhando; tomei um tombo, destronquei esta perna,
dói muito. Volte outro dia.

- Desculpe-me, estou procurando uma moça - não sabia que palavra


usaria: moça ou mulher - ela se chama Sefira, morava aqui.

- Não conheço. Moro aqui há quinze dias... O que você quer com ela?

- Sou um amigo... Preciso encontrá-la. Não sabe onde ela está morando?

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- Já lhe disse que não! Ela fez alguma coisa errada? Roubou de alguém?
Você é “tira” ?

- Não, não se trata disso.

- Não precisa me enganar, sei que você é policial. Eu os conheço de


longe. Se soubesse alguma coisa, falaria. Não escondo nada. Eu sei que
não devo nada a ninguém!

Sem sair da porta, semi-aberta, a moradora começou a fechá-la, quase


empurrando Lucinho.

- Não sabe mesmo? Perguntou desanimado, pela última vez.

- Não! Passe bem.

Não foi dessa vez o encontro. Entretanto, o fracasso não o desanimou.


Ele continuou a procura. Foi atrás da mulher que morava no quarto di-
vidido pelo tapume. Não foi fácil. Ela estava trabalhando, demorou cerca
de quinze minutos para atendê-lo. Ele, ao entrar no cubículo, deu-lhe al-
guns trocados e contou-lhe minuciosamente o encontro que tivera com
Sefira, para evitar que a mulher também, imaginasse ser ele um policial
ou um vingador qualquer. Mais gentil, entretanto, ela pouco informou:

- Não sei para onde ela foi. Sei que ficou doente; acho que foi pneumo-
nia. Tomou muita chuva naquela enchente. Foi internada na Santa Casa.

- Como é seu nome?

- Miréia, por que?

- Miréia, quero lhe pagar pela informação, sou amigo dela, preciso
encontrá-la.

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- Eu sei que ela estava sem dinheiro, o pouco que ganhava dava ao
Olegário. O que sobrava, não dava nem para pagar o quarto. Ao retornar
do hospital, foi despejada...mesmo estando ainda doente.

- Não sabe onde está? Para onde foi? Preciso encontrá-la! Sabe se tem
parentes, amigas, em algum lugar?

- Sei que é comum às mulheres de nosso grupo, as que não têm dinheiro,
quando estão passando dificuldade, procurar um abrigo, aqui perto. Ele
fica na rua Paquequer. Lá, tem cama e comida, muito ruim, mas melhor
do que nada... Ah! Ela tem uma amiga; estavam sempre juntas. Mora no
Hotel Maravilhoso, é logo ali, nesta mesma rua mais para cima. Eram do
mesmo lugar. Ela deve saber onde ela está morando...

Ele ficou preocupado com o que ouviu. Sentia-se culpado por não ter
feito algo por ela.

Passou primeiro no abrigo. Uma funcionária de cara fechada, com


extrema má vontade, olhou as anotações. Depois de algum tempo, sem
nada dizer, sem fitá-lo, informou-lhe que nenhuma mulher com o nome
de Sefira, esteve abrigada ali. Disse-lhe mais, sempre sem olhá-lo, que
esteve internada, por quatro dias, uma mulher como ele descreveu:
morena, de dezenove anos, natural de Salinas. Mas o nome dado foi Lu-
zia e não Sefira. Depois de implorar, por diversas vezes, Lucinho obteve
permissão para entrar no dormitório. Imaginava poder encontrar sua
irmã de criação, como ele havia dito à cansada funcionária.

No grande salão escuro, cheirando a mofo e urina, encontravam-se


algumas mulheres, dormitando. Examinou, uma a uma. Constatou,
tristonho e decepcionado, que Sefira não estava entre elas. Ainda, não de
todo derrotado, foi até o Hotel Maravilhoso, à procura de Lisa, a amiga
e conterrânea dela. Teve que esperar um freguês sair do quarto. Aproxi-
mou-se da mulata de cabelos oxigenados, com cuidado:

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- Você é a Lisa?

- Sim, vamos entrar? - disse sorrindo, e já começando a tirar a roupa.


Tem muito tempo que você não vem aqui. Estava viajando?

- Não! Bem...Não tire a roupa. Vim aqui por outros motivos. Não te
conheço; nunca transei com você.

- Uai, então o que estou esperando? Saia logo. Tenho o que fazer. Como
sabe meu nome?

- Uma sua amiga me deu esse endereço. Preciso de uma informação


muito importante . Não sou policial! Sou amigo dela. Fui procurá-la,
mas tive notícias de que adoeceu. Quero ajudá-la.

Ainda não foi dessa vez que conseguiu seu objetivo. Após essas expli-
cações, Lisa amansou e foi mais gentil. Entretanto, mostrava pressa em
despachá-lo, frustrada com o encontro imaginado.

Contou-lhe que Sefira foi internada. Com o tratamento, ela melhorou


da pneumonia. Entretanto, não voltara a trabalhar; pensava abandonar
aquela vida: estava ganhando pouco e traumatizada que ficou com a
morte das colegas, uma das quais era sua amiga íntima. Estava morando
na casa de uma prima, no Bairro Tirol. O lugar certo, ela não sabia. O
bairro era longe.

Lisa apenas sabia o nome do bairro; não sabia o nome da rua nem seu
número. Disse-lhe, para ajudá-lo, que era perto de uma padaria e que a
prima era conhecida por Tina.

No dia seguinte, cedo, ele pegou o ônibus para o Bairro Tirol. Era
procurar agulha no palheiro. Desceu numa praça onde encontrava-
se uma padaria. Perguntou ao caixa, depois, a alguns empregados e
fregueses, se conheciam Tina. Ninguém conhecia. Entretanto, descobriu

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que havia uma padaria, um pouco adiante. Caminhou até lá. Novas per-
guntas. Depois de muita frustração, uma mocinha que fora comprar pão
disse-lhe conhecer uma pessoa com o nome de Tina. Novas esperanças
conduziram-no até o barraco de três cômodos, à beira de um pequeno
córrego que recebia o esgoto do bairro.

Finalmente, encontrou Tina. Quando ele começava a perguntar-lhe


sobre Sefira, ele a avistou, ao lado da casa, brincando com algumas cri-
anças. Seu coração bateu forte; o suor escorreu pela testa. Abandonou,
bruscamente, a conversa, correndo em direção a ela, que, ainda, não o
tinha percebido. Animado, ofegante, ele se postou à sua frente. Olhou-a
sorridente, e tentou abraçá-la. Foi prontamente empurrado para trás, pe-
los braços de Sefira que, espantada e com medo, afastou-se. Não o havia
reconhecido. Decepcionado ele falou quase sem ar:

- Como vai? Estou atrás de você.

- O quê? Quem é você? O que você quer? perguntou Sefira, assustada


com aquele desconhecido diante dela, com ares de intimidade.

- Não se lembra de mim, de Lucinho? Não, não, de Lúcio. Nós nos


encontramos lá, você não se lembra? Ele teve vergonha de dizer o local
exato.

- Não estou me lembrando! Não te conheço.

- Aquela noite, a da enchente, nós estávamos no quarto...

- Enchente? Ah! Sim. Agora me lembro. Aquele dia em que morreram as


mulheres.

Sefira lembrava-se muito mais da tempestade, do rio Arrudas transbor-


dando, da morte da amiga, da pneumonia que teve. Entretanto, para
decepção de Lucinho, quase nada lembrava acerca dele; o pouco, era

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sem nenhum entusiasmo. Fora tanta procura, para aquela frieza da parte
dela.

- Certo! Tenho te procurado... Fiquei uns dias fora; é... é... viajei; fui à
minha terra.

- Eu saí de lá, adoeci...

A conversa continuou nesse pé: ele, frustrado, ainda tentava manter uma
alegria não mais existente. Sefira, por sua vez, mostrava-se indiferente,
queria se descartar dele, o mais depressa possível. Ela, possivelmente
mais acostumada às frustrações, evitava ter mais outra; tinha medo,
desconfiava, perguntava-se: “O que deseja um homem bonito e limpo,
que deve ter dinheiro, educado? Jamais estará interessado em mim, que
nada tenho.” Ela gostaria de saber a razão dessa procura: “Vir de longe
para me procurar, depois de mais de um mês sem me ver, após um único
encontro, que nem transa teve. Tem alguma coisa estranha nisso”.

Conversaram durante algum tempo, sob a guarda da prima. Ela não


apoiava esse encontro com um estranho. Ele, depois de algumas tenta-
tivas, percebeu, desanimado, que era melhor ir embora, para não piorar
mais ainda a ligação pretendida. De qualquer forma a havia encontrado,
o que era o mais importante. Despediu-se amavelmente de Tina e Sefira.
Pediu permissão para lhes fazer nova visita. Anotou, com cuidado, o
endereço.

A partir desse encontro frio e frustrante, outros aconteceram. Tina


passou a confiar nele, até a gostar do seu jeito tímido e educado. Rapi-
damente, formou-se, também, uma grande amizade entre os dois filhos
dela e Lucinho, o que fortaleceu as ligações com a família. Mas, mesmo
assim, Sefira continuava desconfiada e desinteressada dos encontros.
Apesar da indiferença dela que ele mal percebia, possivelmente devido à
paixão, ele tornou-se íntimo da pequena família. Aos poucos, passou a
ser o homem da casa, tratado como uma pessoa importante, inteligente,

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que os ajudava em quase tudo: cuidava do conserto das torneiras, dis-
cutia com o vizinho o gasto exagerado da água que deveria ser dividida
por igual, conseguia escola para as crianças. Ele trabalhava com satis-
fação em benefício da família - papel não exercido na sua própria casa.
Naquele lar, ele recebia um carinho diferente ou oposto ao recebido em
casa. Ele, ao resolver os problemas diários, imaginava estar agradando e
conquistando Sefira.

Como o passar dos dias, principalmente nos fins de semana, ele passava
a maior parte do tempo no barracão de Tina.

Sefira continuava pensativa, calada, triste. Lucinho, entusiasmado, apa-


ixonado. Ela demonstrava, claramente, seu aborrecimento pela vida que
levava. Ele, nada percebia. Ela não gostava daquela vida familiar, monó-
tona, repetida, com os dias todos iguais: cuidar da casa e das crianças.
Ele amava Sefira e a vida monótona.

Algumas vezes, despertado do sonho pelas lamentações e tristezas de Se-


fira, ele, para animá-la, fazia planos, muito entusiasmado, de vir morar,
em definitivo com eles e trabalhar mais na loja do pai. Esperava, desse
modo, ajudar mais nas despesas da família. Entretanto, isso não desper-
tava Sefira do marasmo. Ao contrário, deprimia-lhe imaginar ficar ali,
enterrada para sempre, numa vida que jamais imaginou.

Os planos animados de Lucinho, com relação a uma vida a dois, gela-


vam-na. Ao mesmo tempo que ela silenciava, evitando expressar o que
pensava, também, comunicava, nas entrelinhas, seu aborrecimento. Ele
não detectava essas filigranas da comunicação. Inocentemente, cap-
tava apenas a informação que queria receber. Não decifrava as duplas-
mensagens, que eram a cada dia mais usadas por ela: ao abraçá-lo, ela,
ao mesmo tempo, o repelia, contraindo, demonstrando um mal-estar
não notado; numa conversa que fluía aparentemente tranqüila e cordial,
ela intermediava, sutilmente, alfinetadas desnecessárias; demonstrava
satisfação com um presente recebido, mas mantinha uma postura de

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sofrimento e, durante os passeios realizados pelos dois, ela emburrava e,
ao mesmo tempo, afirmava estar satisfeita por estar saindo com ele.

A dúvida de Sefira aumentava. A vida que levava era pacata demais


para seu costume: “a vida da zona é triste e ruim, mas é movimentada e
agitada. Preciso de coisas novas, fiquei acostumada com a vida antiga, é
minha natureza, não agüento essa muito tranqüila”, dizia para si mesma,
enquanto ouvia os animados planos de Lucinho para o futuro. Nesse
ambiente, onde o prazer de um era o sofrimento do outro, o inevitável
aconteceu: a alegria durou pouco.

Uma noite, como outras, ele foi encontrar a amada. Estava animado,
cheio de planos, pois combinara com o pai trabalhar mais tempo na
loja. Imaginava ganhar um salário maior, desse modo poderia viver
com Sefira como pretendia. Chegando ao barracão, percebeu que estava
fechado. Espantou-se. Procurou o vizinho, o mesmo com o qual, antes,
ele tinha discutido, por causa do gasto excessivo de água.

- Boa noite, senhor Roberto.

- Boa noite! Como vai o senhor? Respondeu formalmente, Roberto.

- Estou querendo um favor do senhor. Sei que me conhece, venho aqui


sempre.

- Sim. Sei quem é. Tenho uma estima pelo senhor. Aquela briga, pra
mim, tá encerrada.

- Ótimo! Para mim, também. Estou à procura de Sefira, Tina e os meni-


nos. O senhor sabe alguma coisa? Tenho vindo aqui, quase diariamente.
Hoje vim, como sempre. Entretanto, não vejo ninguém. Está tudo
fechado. Estive aqui a noite passada...

- É... Oh... Eu não queria falar, não. Não tenho nada com isso...Eles não

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me proibiram de falar, nem me pediram. Mas, eu tenho uma boa idéia a
seu respeito. Mesmo sem gostar de candonguice, vou te contar.

Nesse momento, Lucinho estava aflito, suando, sem entender nada. Pre-
via má notícia. Roberto, lentamente, para pensar melhor, tirou do bolso
um pedaço de fumo de rolo, abriu o canivete. Com muito custo, tirou
uma palha de milho cortada e a abriu com cuidado. Alisou-a bem, pas-
sando o corte do canivete, de um lado a outro. Olhava unicamente para
a extremidade do pequeno pedaço do rolo de fumo, que ia cortando
com a mão direita. Farelos do fumo cortados caíam sobre a palma da
mão esquerda, em concha, impedindo-os de ir ao chão. Cortada, reu-
nida, colocou-a dentro de duas palhas já preparadas para fazer o cigarro.
Enrolou-a com calma irritante. Passou a saliva nas bordas de cada uma
e, só então, voltou a falar, após oferecer a Lucinho um dos cigarros pre-
parados. Diante da negativa, aconselhou com sua voz fanhosa:

- Um cigarro nesses momentos faz bem, tranqüiliza a gente. Sou homem


também. Por isso, te entendo. Eu, no seu caso, fumaria um. A notícia
não é boa. Não quer mesmo? Tem certeza de que não? Mas, voltando
à vaca-fria: o pessoal daí foi embora - falou de repente, completando o
pensamento enquanto acendia o cigarro.

- Foi embora? Sefira também? Não entendi?

Lucinho estava transtornado, perdido...

- Como já disse, não me falaram, não. Mas, você sabe, mulher fala muito
e fica sabendo de tudo, né? Assim, Donana me contou que Sefira estava
apaixonada por um cara aí: um antigo namorado, sei lá quem ele é. Eu
sei, isso eu vi com meus olhos, que ele vinha aqui de vez em quando. Um
homem de branco...Ele também é muito branco, parece que não toma
sol...de nome Olegário.

Nesse momento, Lucinho, quase desfalecido, se assentou num banco de

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madeira em frente da casa, nervoso, quase não conseguia falar. Percebia,
com pesar, que os planos feitos à tarde afundavam-se. Nada mais podia
ser feito. Estava tudo acabado. Com custo, gemeu para interromper o
terrível silêncio:

- Mas...e o resto do pessoal ? Tina e as crianças?

- Foram todos embora, para Salinas, no norte de Minas. O homem


branquelo, o que usa um terno branco também foi com eles. Eu não
tenho medo de homem, mas ele parecia ser bravo. Estava sempre xin-
gado a moça, sempre. A gente até acordava com seus xingamentos. Mas
você sabe, mulher é assim mesmo; gosta de homem que xinga, que bate,
de homem bravo, valente. É um bicho bobo mesmo. Eu mesmo, para
agradar Donana, de vez em quando, tenho que dar uns tabefes nela.
Não gosto, mas é preciso. Foram todos. Não deixaram nada, só dívidas.
Parece que estão devendo a padaria, o aluguel do barracão e o armazém
da esquina. Os bagulhos, esses eles levaram todos. Eles te devem?

- Oh, não, não, nada! Nada mesmo! Deixaram algum recado para mim,
com alguém?

- Que eu saiba, não. É um povo muito esquisito, de pouca conversa. A


uma hora dessas, devem estar longe. Foram dentro de um caminhão de
carvão, na gaiola dele. Sefira e o moço foram na boléia e os outros, no
meio da sujeira. Não quer mesmo um cigarrinho? Eu tenho mais fumo
lá dentro, não vai me fazer falta. Pode aceitar. Eu gosto muito de assun-
tar com gente esclarecida.

- Não, obrigado. Obrigado pelas notícias, falou com imensa dificuldade,


imaginando até pegar um dos cigarros oferecidos.

- De nada. Engraçado, né? Agradecer uma notícia ruim. Pelo que sei, a
gente devia agradecer coisas boas. Mas não te apoquente, mulher é assim
mesmo: são todas iguais, trai a gente à toa, por nada. Você é novo. Tá

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na hora de aprender. Para esquecer uma mulher, a gente deve arrumar
outra, desconfiando dela também pois a mais santa pode te trair mais
ainda. Um amigo meu me ensinou a viver com elas. Eu aprendi: a gente
deve pensar que todas vão nos trair. Assim, quando somos passados prá
trás, não ficamos chatiados, pois nem fomos enganados, nem traídos, a
traição já era esperada; assim, ela não existiu.

- Até logo. Mais uma vez, obrigado, despediu-se aborrecido com a con-
versa.

- Não há de quê. Não quer entrar para tomar um cafezinho? Depois,


você fuma um pito. Está precisando. Fica mais um pouco. Tenho poucas
pessoas para conversar...

Lucinho saiu dali como se tivesse levado um violento soco na face. Não
foi fácil levantar-se do velho banco, caminhar pelas ruas escuras do
bairro, até o ponto do ônibus. Devia ter aceito o café de Sô Roberto. Pen-
sava, atordoado, no que acabara de ouvir; parecia ser verdade. Agora ele
rememorava e começava a perceber o que Sefira sempre mostrara e ele
não notava, pois a paixão o cegara: o pouco interesse por ele.

Entrou no ônibus e o trocador o olhou espantado; dava a impressão de


que ia desmaiar, ali mesmo. Estava pálido. Caiu sobre um dos bancos
vazios do ônibus que, naquele horário, felizmente, trafegava quase sem
passageiros. Abriu o mais que pôde a janela ao seu lado, deixando o
vento forte açoitar sua face fria. Não conseguia conter algumas lágrimas.

Olhava para fora, para longe, para as fracas e pequenas luzes, que pouco
iluminavam os casebres da vila por onde passava. Em cada casa, ele
imaginava estar vivendo, descansando, dormindo uma Sefira, bela, son-
hando e sorrindo, como naquela noite saudosa da rua Guaicurus.

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A Comédia Humana
Virgínia telefonou para Lucinho poucos dias após ter-se casado. Queria
mostrar-lhe as fotografias tiradas no hospital. Ele não queria lembrar
do hospital. Entretanto, devido a insistência de Virgínia, ele se dispôs a
recebê-la. Naquele fim de tarde, Virgínia chegou sorridente à sua casa:

- Hei, Lucinho. Dê-me um abraço. Como vai?

- Tudo bem? Está bonita!....Chique, hein? falou com dificuldade Lu-


cinho.

- Não foi ao meu casamento! Senti sua falta. O meu médico, também,
nada! Psiquiatra é assim mesmo... Apenas me mandou um telegrama.

- Não tive jeito de ir... Estive muito ocupado. Voltei a trabalhar no


depósito de meu pai.

- Não faz mal. Irá no próximo. Tenho tanta coisa para te contar.

- Eu também... lembrando dos encontros com Sefira.

- Está triste? perguntou Virgínia.

- Mais ou menos. Tenho pensado em sair de casa, mudar de vida, res-


mungou Lucinho.

- Por que? Aqui parece ser tão bom, calmo...

- Você não sabe nada...Minha casa me lembra coisas desagradáveis...

Virgínia não estava interessada em ouvi-lo e, sim, em lhe contar o que se


passava com ela.

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- Deixe-me contar um caso...Ele é alegre, vai te fazer bem.

- Não vai me dizer que está pensando em casar com outro, brincou.

- Ainda, não. Antes de me casar fiz o curso para casamento. Esses que
a Igreja exige, tem um nome...é Preparação para o Casamento. Não
importa... eu e Erotides. Você não acredita! O padre Teófilo, responsável
pelo curso, apaixonou-se por mim.

- Não diga! O padre? É brincadeira sua. Nunca sei quando está falando
sério.

- Desde a primeira aula, eu percebia seus olhos escuros excitados de


desejo.

- Você ficou encantada...Comentou.

- Sou esperta nisso. Coloquei mais lenha na fogueira... caiu feito um


pato. Telefonou-me, dizendo que eu faltara num dia importante...que
estava preocupado comigo... outras bobagens desse tipo. As conversas
de sempre...finalmente, como era de se esperar, convidou-me para ir à
igreja...tinha uma coisa séria para conversar comigo. Fomos eu e Deus.
Gosto de assistir às cantadas e, ao mesmo tempo, representar o papel da
vítima, brincou Virgínia.

- Como sabia? Podia não ser cantada...

- Oh bobo..., é fácil. Havia um olhar e tom de voz, bem como o nervosis-


mo...Chegando à casa paroquial, ofereceu-me café, biscoitos, chocolates,
só faltou uísque ou vinho sagrado. Tudo desajeitadamente; o que con-
firmava minhas hipóteses. Comportei-me como uma moça recatada: ol-
hando para o chão, falando baixo, com poucos gestos, o necessário...Ele,
por outro lado, limpou a garganta várias vezes, tossiu... pediu desculpas
por estar resfriado. Depois dos rodeios processuais de sempre, final-

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mente, chegou onde queria. Era fácil adivinhar...completou Virgínia.

- Fez uma bela declaração de amor.

- Que nada! Você não entende disso! Ele não tem cancha, já lhe falei. Ele
está acostumado a cantar velhas beatas, que nada exigem. Encantam-se
facilmente, principalmente com os padres.

- É... Não sei, não sou bom nisso. Deve ser fácil conquistar beatas...

- Velhas solitárias e abandonadas, provisoriamente abrigadas na igreja...


Ele falou o trivial - seduções vindas do representante de Deus na Terra:
disse-me que era linda, que, desde a primeira vez que me viu, ficou
apaixonado...O que todos falam, o que ouvi milhares de vezes; nem
precisava continuar a falar, após cada palavra, já sabia a que viria, seguiu
o padrão, brincou Virgínia.

- Interessante. Existem frases que a gente sabe como elas vão terminar...
Todos completam as frases dos gagos, interrompeu Lucinho, achando
graça e começando a ficar interessado no caso.

- É uma delícia ser cantada e observar como esta é feita. Ficar ouvindo,
presente ao ato e, ao mesmo tempo, ausente... Olhei para ele com olhos
apaixonados, usei uma voz mais rouca e melodiosa - dá mais tesão. É
bom dominar os homens, principalmente, os por quem tenho antipatia...

- Antipatia? Como? Você não aceitou seu convite? Exclamou, sem en-
tender.

- Não gosto e nem tenho atração por ele. Se fosse inexperiente iria logo
para a cama...ou, quem sabe, choraria de emoção pelo encontro quase
divino. É bom tê-lo em minhas mãos... como ele gosta de ter as ovel-
has presas. Quando puxou a linha, certo de que o peixe estava fisgado,
levantei-me tranqüila, sorridente pela trapaça... Mudei a voz e os gestos,

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falando firme. Saí da sala. Era outra, a crítica, a consciente. Desta, ele
tem medo, respeito e mais tesão...arrematou Virgínia.

- O que ele disse após o fracasso de sua missão evangélica?

- O discurso religioso, com bênção e oração: “minha paixão dominou


meus ideais sagrados, aprendidos na Igreja”, “há muito não durmo,
devido ao peso da consciência” . Tudo tinha um só objetivo: levar o
crédulo ou a crédula para a cama. Esconder, com as palavras, a realidade
desejada por ele, atingir o pretendido sem que a vítima ludibriada per-
cebesse. Muitas sentem-se satisfeitas por estarem servindo a um homem
tão honrado e piedoso - uma cantada, mistura do sagrado e divino com
o corpo impuro e pecador. Eu sei que se por acaso cedesse, deitaríamos
ali mesmo, dentro da igreja, para a apoteose final. Para o inferno com
tudo. A voz de Virgínia mudou, nesse instante, mostrando seu ódio ao
padre Teófilo:- Tratou-me como doadora de esmola, que deveria imolar
o corpo à Igreja para o sacrifício final. Sabe?... Penso que não gosto de
homem algum...

- O quê? Falou espantado Lucinho.

- Isso mesmo. A cada dia, tenho mais raiva dos homens. Perdoe-me.
Você também é homem, mas tenho raiva deles, no geral... não, de cada
um, do particular...Ele, depois...procura-me sempre. Dei-lhe até um
presente.

- Como? Então passou a gostar dele?

- Nada disso! Respondeu Virgínia. Lá vem você com suas maluquices.


Presenteamos também pessoas de quem não gostamos...a quem detes-
tamos. Já fiz isso outras vezes. Queria testá-lo, fazer minhas pesquisas
idiossincráticas. Dei-lhe as reproduções de pinturas de Van Gogh.
Acontece que o livro nada custou. Foi roubado numa livraria...Ele sabe
que tenho essas manias. Queria verificar a coerência existente entre os

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princípios pregados para o povo e a conduta real, diante de seduções ou
tentações; se as crenças eram firmes ou se balançavam...é fácil resistir a
um objeto pelo qual não somos atraídos, mas não ao cobiçado...

- O que aconteceu?

- O Padre Teófilo agradeceu a lembrança comovido. Disse-me que


amava Van Gogh. Amava mais a mim.

- Ah! Aceitou o livro roubado?

- Tentou dar a impressão de que o recebia para me agradar. Em seguida


pediu licença, cheio de mesuras, para me abraçar em retribuição. Já
esperava tudo...Deixei... para completar o “script”. Eu estava curiosa.
Assistia à cena programada e interpretava meu papel. Veio como um
sapo para a boca da cobra... manso, ingênuo, imbecil, torto...continuou
Virgínia animada.

- Mas você o desejava?

- Deus me livre! Detesto esse tipo de homem...Só serve mesmo para o


deboche. Algumas mulheres se casam com esses homens para se di-
vertirem, diariamente.

- E aí? Perguntou curioso Lucinho.

- Quando entro num jogo desses, não sei seu final. O alvo inicial imagi-
nado pode ser mudado durante o processo, por outro muito diferente do
pretendido...concluiu Virgínia.

- Como o jogo de futebol ou de xadrez.

- É... Conforme o lance do adversário, muda-se a estratégia...É preciso


ficar atenta... Se distrair, a pessoa passa a ser controlada pelo adversário,

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perde-se em meandros não desejados. O objetivo mais alto deve estar
claro para não ser mudado durante o percurso.

- Qual seria esse objetivo? Desejava alcançar duas metas: o sexo e o


deboche.

- Criticar eu sempre quero. Mas, eu mesma não sei tudo o que queria...É
possível que buscasse duas metas. Mas uma coisa eu sei...Ele não me
agradou. Tinha mau hálito, um suor gosmento na testa, tremia. Só faltou
correr ao banheiro. Tive pena...Parei: o importante já tinha acontecido...

- Como? Ainda não tinha acontecido...exclamou Lucinho.

- Você não sabe de nada! Queria tê-lo preso a mim. Sinto-me bem
quando faço isso, mesmo com um estúpido e incompetente, tanto na
área religiosa como na sexual. Para a maioria das mulheres, ir para a
cama não tem grande significado...Desejamos dominar a fera...

- Apenas isso? Não é pouco?

- Durante a conquista, ao imaginar ir para cama, ou estando nela, os


homens ficam dóceis e maleáveis, fazem o que desejamos. É isso que nós
mulheres queremos: enfraquecer o sexo forte, transformá-lo em fraco,
inferior.

- Deve ser bom ter alguém preso a você, como um gatinho no seu colo,
esperando o próximo carinho... ele lembrava-se de Sefira no quarto, nos
seus braços.

- Não devemos nos ligar em demasia. Acorrentados ao parceiro corre-


mos o risco de cair no abismo, um preso ao outro. O sexo propriamente
dito, com homem algum, nunca me interessou.

- Não vai me dizer que gosta de... interrompeu Lucinho.

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- Que é isso? Não sou dessas coisas, não. Gosto das conquistas. Quero-o
conquistado, para depois largá-lo, logo que noto que ele me pertence...
Quanto mais estranhas e difíceis, mais elas me emocionam, completou
Virgínia.

- A dificuldade é que atrai?

- Sim, penso que tudo é assim. O complicado e difícil atraem. Não é só


com o sexo, não...Sou atraída por objetos nas casas comerciais, princi-
palmente chocolates. Se vou a uma loja onde não há risco para o roubo,
vou embora sem tirar nada.

- Você havia me falado. Não deseja possuir o que você roubou?

- Claro que não. Compro os chocolates que desejar, tenho dinheiro para
isso. A emoção emerge com a loja cheia, com guardas por todos os la-
dos...diante do risco. Só assim sinto-me atraída. No momento do roubo,
qualquer objeto sem valor algum serve.

- Mas, e com o padre, você teve dificuldade? Perguntou Lucinho.

- Nada de estranho...havia novidade. A emoção da vida vem disso.


Eu não sabia aonde ia chegar. Foi o primeiro padre de minha vida. O
próximo não vai me emocionar, devo desistir antes de começar. Comen-
tou, emocionada, Virgínia.

- Prefiro comprar, em vez de roubar.

- Sinto-me atraída e gratificada pelo ato de roubar, não pelo produto ou


resultado do roubo.

- Estranho...

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- Nada! Você é burro! Todas as pessoas se parecem comigo. Ficam
satisfeitas com o processo, as estratégias usadas, não com o fim do ato.
Cada um de nós busca as emoções agradáveis durante as ações, não no
término delas. O fim não dá prazer, o processo, sim. As pessoas ficam
tristes após as vitórias, uns se embriagam, outros dormem e há, também
os que se suicidam.

- É. Talvez tenha razão. Vou pensar. Nunca imaginei roubar para me


excitar.

Lucinho se lembrou de quando quis matar a professora, a excitação,


o bem-estar, a energia sentida. Até mesmo a crise diante da família,
quando jogou tudo pelos ares. “E se tivesse matado D. Francisca?”,
perguntou-se. “Sentir-se-ia bem ou mal?”

- Comecei tirando chocolates nas Lojas Americanas. É a loja preferida.

- Por que Lojas Americanas?

- Não sei bem. Acho que por ter-me habituado...do mesmo modo que as
pessoas, numa cidade, resolvem suicidar-se, pulando de um certo prédio
e não de outro, e os comícios acontecem numa praça. É um prédio,
um espaço que atrai; cada um tem sua simbologia. Talvez pelas dificul-
dades...

- Eu não tenho essas certezas. Ora fujo dos riscos, ora os procuro...

- Imagine um jogo de futebol, onde uma equipe é muito melhor do que


a outra; a torcida tem certeza da vitória do melhor. Quem irá assistir a
esse jogo? Ninguém. Talvez, alguns idiotas.

- Mas gostamos de ganhar e não de perder, argumentou Lucinho.

- É difícil saber quando ganhamos. Muitas vezes, pensamos estar gan-

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hando mas, na verdade, estamos perdendo. Outras vezes, ocorre o con-
trário. Posso ganhar com respeito a uma característica, e perder com res-
peito a outra; cada uma com seu significado particular, examinada com
os valores da minha cabeça. Um paciente que perdeu sua capacidade de
amar, pode, ao ficar doente, ganhar o afeto dos médicos e dos familiares,
que antes não tinha. Trocou um valor - saúde - por outro: ser cuidado.
Qual é o mais importante?

- Compreendi. Atuamos em busca de vários objetivos ou valores, ao


mesmo tempo. O prazer da vitória depende do referencial adotado.

- Certo. Não atrai pichar um prédio fácil de ser pichado, todos podem
fazê-lo. Pichar prédios não é uma tarefa, por si só, que traga grandes
emoções. O prazer está no desafio, no risco. Tudo é assim. Estamos,
constantemente, tentando superar-nos. Portanto, que graça teria namo-
rar um homem facilmente conquistável... que nada nos acrescenta...
Seria como pichar o muro de nossa casa. Precisamos sentir que estamos
crescendo. Se tenho êxito numa empreitada difícil, se me supero - quan-
to mais rápido melhor - fico feliz e animada comigo; aumento minha
auto-estima. O prazer vem dessa caminhada em busca dos objetivos
desejados e alcançados. Uma vez nascidos, fabricamos nossos caminhos
buscando superar o que éramos antes, sempre tentando ir além. Mar-
chamos em direção ao não vivido, mas, inexoravelmente, amarrados
e direcionados pelo já vivido, pelos antigos valores. São eles que dão o
significado às nossas ações. Viver é caminhar, expandir-se, preso ao eixo
de cada um, completou Virgínia.

- Mas roubar? Seria uma meta?

- Claro. Mas não é só isso. Todos os atos têm algo em comum...precisa-


mos perceber a semelhança. O que tirei dou ao padre ou jogo fora...O
objetivo foi a conduta arriscada, é ela que seduz.

- Nunca foi pega, roubando? Perguntou Lucinho.

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- Muitas vezes. Eles, quando me vêem bem vestida e bonita, xingam-me
e me perguntam se tenho dinheiro. Assim, fica tudo resolvido; mandam-
me embora após passar no caixa. Mas, às vezes, não sinto nada, expli-
cou Virgínia. Fico excitada pela ação empreendida e pelas dificuldades
encontradas. Caminho pela rua, decidida a entrar na próxima loja, desde
que seja semelhante à anterior, Lojas Brasileiras, por exemplo. Ali, con-
tinuo minha tarefa interrompida... Ela precisa ser completada, para que
eu me estabilize, volte ao nível de excitação ótimo.

- Não me diga que ... vai roubar em outra loja? falou baixo Lucinho.

- Tenho vergonha também, o que, por um lado, afasta-me. Mas prossigo,


tenho um plano fixo que me ordena o que fazer. Tento, até dar certo...
Realizando o planejado, fico tranqüila. O ato tem mais poder do que a
barreira existente: o medo e a vergonha.

- Você chama essa conduta de crescimento, de maior maturidade?

- Sei lá! Você é um chato. Vive querendo explicar e entender os fatos; é


teórico demais. Quem me orienta é meu organismo. É com ele que con-
verso antes das ações, ele me dá as dicas do que irá me proporcionar: um
bem ou mal-estar. Já observei: quando sou pega e repreendida, emocio-
no-me, mas a excitação me faz sentir bem. As pessoas caminham numa
direção ou em outra para fugir do vazio, da falta de “excitação ótima”. O
que faço, nada mais é do que um ritual particular, que visa a aumentar
minhas emoções agradáveis. Um remédio que todos usam. A fórmula
pode ser diferente, mas leva aos mesmos resultados, serve para a mesma
doença a qual todos nós sofremos. Precisamos de estímulos para con-
seguirmos detonar as emoções desejadas. O mundo possui diversos
estimulantes disponíveis; prontos para serem usados;. Cada um escolhe
o seu. Inventamos as metas que nos farão alcançar o ponto ótimo de ani-
mação. Agarramos, naturalmente, as que funcionam; largamos as out-
ras, as que provocam o não-prazer... É preciso descobrir o estimulante

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apropriado para cada um, concluiu Virgínia.

- Tudo para alcançar esse estado, essas emoções?

- Exato! O que mais nós buscamos durante nossa vida? Todas as nossas
ações, desde a simples à mais complexa, são inventadas para produzir as
emoções prazerosas. Elas podem ser geradas pelos mais diversos meios.
Usamos bebidas ou drogas quando não conseguimos usar as estraté-
gias corretas para alcançar esse estado desejado. As drogas nos levam
ao prazer sem ser preciso alcançar nada ou, com sua ajuda, ficamos
insensíveis ao desprazer. Uma pessoa mata a outra para sentir emoções
prazerosas. Outra, se assim o fizer, sofrerá.

- Até matar? Exclamou Lucinho.

- Desde que seja uma necessidade interna, que traga alívio emocional ou
prazer. Vivemos egoisticamente: ou na busca de emoções positivas, ou
fugindo das negativas. As metas procuradas variam de pessoa para pes-
soa. Por isso achamos estranho o objetivo do outro, a ação que o anima;
para seu crítico, a ação pode provocar o desânimo.

- Mas há os que passam a vida realizando objetivos determinados pelos


outros: educadores, governadores e, principalmente, pelos familiares.

- Essas tarefas são procuradas porque seu executor acredita que elas
sejam corretas, por serem elogiadas e valorizadas pela sociedade ou as
evita por serem criticadas. Mas elas têm o mesmo fim das outras: pro-
duzir um estado emocional agradável, uma ligeira alegria, bem-estar,
energia, escapar do mal-estar. Uns roubam, outros fazem penitência,
alguns trabalham incessantemente, diversos compram sem parar, uns
transam e transam, tudo tem o mesmo fim: promover o equilíbrio
biológico, arrancar-nos do vazio, do tédio, aumentar a produção das
“cocaínas”, dopaminas e endorfinas produzidas pelo nosso organismo.

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- Você simplifica, ao extremo, as grandes metas do homem. E se nos
faltam meios para aumentarmos nossos estoques empobrecidos dos
energizantes internos? O quê fazemos?

- Há vários recursos. Em nosso país, a população, no início da semana,


fica excitada, por um ou dois dias - não mais do que isso - para discutir
os problemas apresentados pelas revistas publicadas no domingo. Essas
informações provocam emoções em quem não é capaz de produzi-las
com um padrão de vida próprio. A discussão dos assuntos semanais
anima a pessoa. Através desse remédio fornecido pelas revistas, os
“pacientes” melhoram - ao discutir: “vende-se ou não a Vale”, “o aborto
deve ou não ser liberado”. O observador desatento poderá imaginar
que a solução desses problemas é vital para o desvalido leitor, explicou
Virgínia.

- Todo povo tem sua “Veja” ou “Isto É” para ler e comentar, animada-


mente, os problemas inventados pelo repórter.

- Claro! Essas revistas, como vários programas das televisões, enchem a


vida das pessoas. Os telespectadores ficam animados, desejosos de dar
suas interpretações sobre os fatos expostos. A maioria dá opiniões, geral-
mente fabricadas pela mesma imprensa que lançou o problema para ser
discutido. Na semana seguinte outros medicamentos aparecem, quando
os antigos não mais conseguem despertar os leitores.

- Mas eles morrem já na terça-feira... Fica um espaço vazio...

- Mas entram novos excitantes: os jornais diários. Nesse trabalho tera-


pêutico, os jornalistas procuram a droga mais eficaz para o leitor: o fato
simples, inusitado e escandaloso: este é o mais usado; que não permite
imaginação. Essas “drogas” diárias, a preços populares, são consumidas
avidamente, sem que os leitores ou telespectadores sejam importunados
e proibidos, pela Lei e Polícia, de usá-los, explica Virgínia.

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- Não poderia ser diferente. Como vão agir? Eles não têm alternativas...

- Os excitantes são diversos: ora é um desastre aéreo; ora, um crime bem


estranho; às vezes, uma atriz que fere, com unhadas e dentadas, o namo-
rado; ocasionalmente, é o suicídio de um político. Não faltam notícias.
Elas são procuradas com cuidado, se não nascem no estado de origem,
buscamo-las em outro estado ou na China. Mas sempre é o escândalo,
o esquisito, se possível, com pessoas provisoriamente famosas, ligadas
ao povo sem nome pelo seu charme, prestígio, poder, beleza, bumbum
e carisma. A atração pode ser um criminoso matando. Sendo famoso, é
um notável que, com sua energia, estimulou a nação adormecida.

Alguns, além das notícias, xingam e brigam, defendendo suas ideologias


utópicas. Entretanto, paradoxalmente, se seus desejos são realizados,
eles, em lugar de ficarem felizes, retornam ao tédio anterior. Buscam,
ansiosamente, um outro problema para defender ou, principalmente,
atacar. Como viciados, precisam de mais doses da droga salvadora, fina-
liza Virgínia.

- Nesse caso, é bom as pessoas sofrerem. Assim, têm motivos para


viverem e imaginarem soluções.

- Sim. Se tivéssemos estoques dessas substâncias, supridos pelas próprias


metas, que nos dão prazer e sentido, não nos engajaríamos em diversas
procissões à procura do nada. Mas quem as tem? Todos os governos
interessados no bem-estar do povo estão atentos para produzirem di-
vertimentos populares: festas, circos, teatros, esportes, leituras superfi-
ciais, notícias e mais notícias. Ocupadas com esse mundo de diversões
e de trabalho, as pessoas se animam, sem questionar os desejos do seu
controlador.

- Não tenho capacidade para entender tudo isso, comentou Lucinho,


com amargura.

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- Precisamos nos ocupar com alguma coisa. Como essa nossa conversa
começa a ficar incapaz de nos excitar, não nos custa buscarmos outras
excitações.

O papo foi momentaneamente interrompido pela entrada de Cândida,


na sala, avisando que havia preparado o lanche. Virgínia prontamente
aceitou o convite. Durante o lanche, diante do Dr. Adamastor e Rosária,
a conversa foi outra, os assuntos preferidos da família: criticar a empre-
gada, o preço alto das roupas e a desonestidade das pessoas.

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Jogo de Palavras
De volta à sala, Virgínia pega o jornal diante dela, na página policial e lê
algumas notícias:

- “Mulher mata marido a machadadas”; “Artista assassinado”; ”Fazer


vida: programa de fim-de-semana de milionária”. Mas tem mais: “A
primeira-dama visitou a creche Menino Jesus, tendo ficado impressio-
nada com a dedicação dos funcionários. Abraçou, sem nojo, as crianças,
que cantaram espontaneamente, para ela, que se emocionou e chorou”.
Tudo isso diverte e anima o povo, fornece-lhe fatos para discutir, na aus-
ência de outros, noticias fáceis de digerir e de guardar. Viu que interes-
sante? Comentou Virgínia.

- Muitos só lêem isso, fatos e fatos, sem comentário algum. Fico imagi-
nando: o que será que leva essas pessoas a devorarem apenas esses fatos
e nada mais?

- Acho que é o mesmo que leva muitas a ficar o dia todo num bar,
bebendo cerveja, ouvindo músicas barulhentas, batendo papo. Outros
poderiam estar melhores na luta contra o câncer de útero ou no combate
ao colesterol e, por que não, investindo contra os acidentes nas estradas,
no combate aos seqüestros, contra os perigos de comer carnes...Todos
estão à procura da animação, como te falei...

- Os que buscam o sofrimento: que fazem penitências nas procissões,


andam de joelhos, fazem jejuns prolongados, orações continuadas,
reclusões nos conventos…Eles, também, estão à procura do prazer?
Indagou Lucinho.

- Claro! Pense o contrário: estão fazendo isso para sofrer? É insensato


imaginar que o ser humano possa agir contra ele próprio. Sempre age
em busca de alguma meta imaginada onde obtém o prazer, que pode ser,
por exemplo, chicotadas no próprio lombo.
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- É possível, concordou Lucinho lembrando dos próprios sofrimentos.

- Uma pessoa passa anos estudando para fazer um concurso. Ela está
buscando o sofrimento? Não! Busca alcançar uma meta a longo prazo:
passar no concurso, ter, talvez, uma vida melhor no futuro. Do mesmo
modo, o penitente “sofre”, como o estudante, para obter prazer no
futuro. O estudante, durante os estudos, está se sacrificando, mas sabe
que poderá chegar aonde deseja: ser classificado. O filho imagina ser um
bom filho, caso siga as idéias, tidas, numa época, como absurdas, ensi-
nadas por seus pais. Portanto, todos os que buscam o sofrimento estão
gozando; eles alcançam metas mais importantes do que o sofrimento
aparente, visto pelos olhos do observador externo. É sempre uma outra
meta, não muito clara, mais importante, que predomina e coordena as
aparentes ações estranhas. Veja meu caso: com minhas ações, alcanço o
que desejo. Explicou Virgínia.

- Esquisito, estranho. Dá o que pensar. Essas idéias vão contra alguns


pensamentos meus.

- O prazer ou o “sofrimento” em busca do prazer, produz, no organismo,


as mesmas substâncias que nos fazem sentir bem e eliminam o vazio.
Precisamos desses atos. Até a prisão pode ser desejada e prazerosa, pode,
por exemplo, pagar sentimentos de culpa, produzindo o estado de alerta
e energia agradável. Já leu “Crime e Castigo”? Este romance mostra de
forma brilhante, tudo que falei, argumentou Virgínia.

- Que loucura! Gritou Lucinho, refletindo acerca do seu sofrimento.

- Você, por acaso, é normal? Sabe o que é um louco? Pode parecer lou-
cura você, ao mesmo tempo, amar e odiar a pessoa. Mas nós todos so-
mos parecidos. Quantos ficam vigiando uma barata, às vezes, por muito
tempo, depois correm atrás da coitada, quebram uma coisa e outra, com
a idéia fixa: ”vou matá-la”… É a ordem interna que manda. Se as pessoas

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pensassem porque ficam aflitas com a vida da barata, ficariam perplexas,
pois sabem, no fundo, que outras e outras virão. Entretanto, é aquela,
símbolo de todas as outras, determinada, que precisa ser morta, vinga-
da... A morte dela é que provoca o prazer. Alcançado nosso objetivo, nós
nos aliviamos, atingimos nosso equilíbrio. Assim, acontece comigo ao
roubar chocolates. Caso minha empreitada tenha sucesso, chego em casa
animada e começo a preparar um ritual particular, que se inicia geral-
mente à noite.

- Para matar pernilongos, fico quieto, ouvindo o barulho, de olho nele,


pensando: “uma hora te mato”. Minha raiva vai crescendo à medida em
que ele escapa. Quando não consigo exterminá-lo, deito-me derrotado,
com ódio dele e de mim. Até perco o sono, por ter fracassado.

- À noite, assento-me relaxada, depois de um banho demorado e morno,


começou seu relato Virgínia. Os bombons repousam, envoltos em papéis
brilhantes, espalhados numa chocolateira vinda da Índia, colocada em
minha cama. Seduzem-me, com o cheiro misterioso, parecem sor-
rir, enquanto esperam o início da orgia. Apago a forte luz do quarto e
acendo a do abajur, junto à cabeceira da cama. O quarto aconchegante
está iluminado apenas por uma penumbra cinzenta e morna. Solen-
emente, caminho até o toca-discos e o ligo; começa a tocar, baixinho,
aumentando num crescente, a “Abertura de Tannhauser”. Nessa noite
de comemoração, visto-me a rigor: uso uma camisola preta, rendada,
leve, esvoaçante, a mais bela delas. Perfumo-me com “Animale”. Virgínia
continua: - Observo os bombons de longe, aproximo-me de onde estão.
Assento-me vagarosamente na cama macia; recosto-me nos travessei-
ros, ajeitando-os, com gentileza, às minhas costas relaxadas, desnudas.
Examino-os, com olhar lânguido, um a um. Então, aproximo-os da face;
sinto-lhes o perfume tentador. Com as pontas dos dedos, aliso-os, pas-
sando as mãos nas suas vestimentas provisórias e coloridas. Sinto sua
textura macia e delicada. Com maestria e sem feri-los, retiro o invólu-
cro. Examino a nudez triste, os contornos tentadores e atraentes. Passo
os lábios finos e úmidos na superfície lisa e delicada. Parto-os, ao meio,

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com uma leve mordida, sem machucá-los. Expostos, examino o interior,
as diferentes colorações e asperezas, o segredo encantador que guardam
dentro de si. A música sai brilhantemente do disco. O perfume trescala
adocicado, penetra, em ondas, no meu ser carente de amor. Tudo me
encanta: a beleza, o perfume, as formas delicadas, a passividade e sub-
missão ganham vida, atraem-me, excitam-me. Um a um os bombons
vão sendo triturados. Ali, no calor de minha boca, umedecidos, rolam
esfacelados sob a língua inquieta, que extrai do seu corpo todo o sabor
delicioso. Aos poucos, eles vão desaparecendo e tornando-se parte do
meu organismo.

Nessa noite de orgia, posso comer todos: um, mais outro, outro mais,
dez, vinte, até o último. Em nada alterarão meus planos de não engordar.
Como o máximo possível. Algum tempo depois, sinto-me como se fosse
estourar. Entretanto, estou animada, cheia de vigor, de poder. Dentro
de minha alma, imperam a calmaria e a segurança. Sinto-me como se es-
tivesse orando numa igreja, sozinha, diante do altar, em comunhão com
Deus. Como você vê, sou magra e detesto engordar. Após comer todo o
chocolate que consigo, eu sei que o ritual da comilança está se aproxi-
mando do fim.

- Você é mesmo uma louca! Agora, compreendo melhor por que você foi
internada para tratar de sua bulimia. Não é este o nome?

- É...Deixe-me contar o resto: nada mais faço do que praticar meu ritual
particular. Todos os têm. Você já participou de procissões, aniversários,
casamentos e outros rituais? Não há diferença. Todas essas cerimônias
cumprem as mesmas funções: ligar-nos a algo, relacionar-nos, fazer com
que nos tornemos um todo. Na comilança, ligo-me a dois propósitos:
comer e emagrecer. Escapo, por momentos, do mundo confuso e com-
plexo em que vivo. Terminada a cerimônia orgiástica, restam os papéis
sem vida, pois perderam seu conteúdo. Sem mais algum para degus-
tar, caminho, ao som dos últimos acordes da música, direto ao banheiro.
Enternecida e pesarosa, diante do vaso, faço uma reverência, abaixo a

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cabeça, despeço-me do sonho vivido, do chocolate comido, que, nesse
momento, irá abandonar meu corpo. Enfio o dedo na garganta, busco a
náusea. Meu organismo resiste, esforça-se para manter o ingerido. Faço
mais uma tentativa. Dessa vez, mais forte. Meu estômago não tolera o
novo estímulo e devolve tudo o que foi comido. Vomito. Vomito tudo.
Retorno à minha vida solitária, triste, séria, ciente de ter cumprido o
prometido a mim mesma. Para os psiquiatras - eles gostam muito de
nomes bonitos - eu tenho Bulimia e Cleptomania. Para mim, que sofro
as conseqüências dos meus atos, faço o que gosto, tenho direito a agir
assim. Eles me interpretam com suas teorias, eu, com as minhas. Quem
tem razão? Para mim, eu; para eles, eles. Acredito que a maioria dos
psiquiatras defende, também, como valor máximo, a liberdade de es-
colha do seu cliente. Se pensarmos desse modo, encaixo-me nesse valor,
no mais alto por eles defendidos: a liberdade. Esta me permite roubar,
comer, vomitar. Por que não? Esse ato não é tão estranho, como parece.
Muitos, principalmente vocês, os homens, trabalham duro, ganham o
difícil dinheiro e o jogam fora.

- Como?

- Vão ao bar e bebem até não poder mais; gastam o que não podem, para
depois vomitarem ou desmaiarem. Dias depois, repetem o mesmo ritual.
Outros chegam em casa para descansar após um penoso dia. Ao entrar,
começam a discutir e xingar os familiares. Muitas vezes, espancam-se
mutuamente. Depois, exaustos das brigas, terminam o ritual e dormem
aborrecidos. No dia seguinte, recomeçam o sofrimento. Tudo como faço.

- Estou descobrindo que você se parece comigo, com minha mãe e com
todas as pessoas que conheço, comentou Lucinho. Pensando assim, to-
dos nós, ricos e pobres, inteligentes ou idiotas, estamos ligados a certos
rituais que visam à execução de objetivos; todos buscamos prazeres
particulares. Cada um crê que seus objetivos são mais elevados do que
os outros. Será isso?

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- Estranhamos o ritual do outro. Bobagens, tudo bobagens. Nossa vida
não passa dessas pequenas idiotices, que cada um agarra como se fosse
uma grande empreitada, vital para ele. Será mais elevado orar, trabalhar,
lecionar do que discutir, ou roubar chocolates, para depois vomitá-los?

- Eu acho que sim. Sei que você não pensa assim! Expressou Lucinho.

- Aprendemos um tipo de meta e de ritual, se quiser pode chamar


de estratégia, para alcançar nosso objetivo. O que fazemos, enquanto
vivemos? Perseguimos metas que foram impressas nos nossos genes ou,
ainda muito cedo, foram aprendidas. Para o resto da vida, estaremos
seguindo essas marcas grudadas em nosso ser. Marcas sujas ou limpas,
feias ou bonitas são seguidas até a morte: todos buscamos a sua con-
secução. Poucos tentam mudar essas cicatrizes. Se a transformação for
muito acentuada, a pessoa perde a identidade, vira outra, não mais se
reconhece.

- É essa meta ou ideal perseguido que dá sentido à sua vida? Perguntou


Lucinho, continuando: caso você se desviasse do seu caminho, deixaria
de ser você? Não pensa se seu ato é bom ou mau? Para você, o vômito, o
roubo e estupro podem ser um objetivo a ser perseguido para satisfazer
motivos diferentes, dos aparentemente visíveis?

- Lógico. O vômito pode, no meu caso, simbolizar um alívio final. Mui-


tas vezes, tomo um banho para tirar ou limpar as coisas ruins que ouvi
ou fiz; alguns tomam banho de “descarrego”, falou Virgínia, debochando.
Das cerimônias usadas para alcançarmos as metas propostas, muitas
chamadas de altruístas, que de fato são sempre egoístas, algumas são
engraçadas. No colégio onde estudei, nós éramos treinadas para praticar
a caridade, por sinal, uma grande meta na vida do cristão. Para isso, foi
imposto que deveríamos dar esmolas. Para a realização desse ato, que
era público, os pedintes eram selecionados pelas freiras: todos educados,
gentis e limpos. Praticávamos a caridade arrumada previamente, du-
rante o horário de 3h45min às 4h, todas as quintas-feiras. Esses cuidados

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eram tomados pelas freiras para que, durante o contato com a miséria,
nós, alunas frágeis, ricas e sensíveis, não ficássemos impressionadas e
sofrêssemos com ela. Diante da pobreza real, poderíamos perder o sono
- isto não era bom. Assim, ela devia ser maquiada. Precisávamos praticar
o bem - um valor a ser atingido - sem sermos, nem impressionadas, nem
incomodadas pela pobreza em si - um atributo do qual devíamos fugir.
As irmãs eram sábias, como são os ricos: sabem praticar o bem sem
serem perturbados pela desgraça “chata” e desagradável. À medida em
que a gente compreende as metas e as necessidades dos outros, começa-
mos a compreender a pessoa e, por isso mesmo, a simpatizar-nos com
ela. Gosto de você, te admiro. Se pensamos assim é porque começamos a
entender as razões escondidas dentro da pessoa.

- Engraçado. Há condutas, valores e gostos para todas as pessoas. Para


cada cabeça, há caminhos diversos... Passei a gostar de você. Antes, no
hospital, tive medo.

- Eu quero me curar? Que seria de mim se ficasse sã? Tornar-me-ia uma


moça bem comportada. Deus me livre! Possivelmente, morreria. Tenho
nojo dos normopatas, os desajustados ajustados, iguais a todos. São uns
chatos, os homens sem entropia.

- Mas ao criticar, ao interpretar as interpretações, você está filosofando.


Continuo a achar que você, não querendo pensar, raciocina mais do que
supõe! Pensa, às vezes, até profundamente, melhor do que muitos.

- Somos animais que não nos aceitamos. Inventamos as mais esquisi-


tas tarefas para mudar nosso caminho natural, na vã tentativa de evitar
pensar acerca do que somos, do que seremos e para onde vamos. Não
devíamos ter começado a pensar. Seria melhor se tivéssemos paralisado
nossa evolução na fase das abelhas. Viveríamos mais felizes, sugando
néctar das flores, polinizando as plantas, cheirando o universo. A vida
seria mais fácil...Descubra os indicadores que poderão fazê-lo feliz, com-
pletou rindo Virgínia.

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- Que conversa estranha...

- Nada disso! Vou dar um exemplo: os homens gostam de mulheres que


os tapeiam, que fazem pouco caso deles. Por isso, gostam de mim. Meu
marido não ganha muito, entretanto obrigo-o a fazer dívidas, desde o
namoro, para vê-lo apertado. Assim, torno-o satisfeito com a vida.

- Piorou. Agora não entendi nada, estou confuso como nunca...

- Conheço os homens. Forço meu marido a comprar um anel que de-


sejo. Ele reclama um pouco, faço meu jogo sedutor. No fim da tarde, ele
chega alegre, sorridente; abraça-me com carinho e me entrega o presente
pedido. Mostro minha alegria, não pelo presente alcançado, mas por
tê-lo feito feliz por sacrificar-se por mim. Dominando-o e explorando-
o, fazendo-o de idiota, transformo-o de infeliz em feliz! Assim, ajudo-o
e reforço nossos elos matrimoniais. Depois, guardo o presente; poucas
vezes o uso, algumas vezes, jogo-o no lixo.

- Para você, ajudar um homem a se sentir feliz é forçá-lo a fazer dividas


por nada, ou melhor, para que a esposa possa continuar no caminho
tortuoso? Argumentou Lucinho.

- Cada um pensa e age de modo diferente, Erotides sente-se feliz por


realizar os desejos da sua querida mulher. Esse é seu ideal principal, o
mais importante de sua vida, igual a muitos homens. Por que não? Nos-
sos ideais se casam. Eu o exploro para que ele se sinta feliz. Os casamen-
tos que dão certo são assim: um manda, outro obedece. Um se sente
bem agradando o outro. Já falamos sobre isso: o eleitor não fica feliz ao
eleger seu candidato? O serviçal, por fazer o serviço bem feito, fazer a
alegria do patrão? Um gosta de bater, outro, de apanhar. Um ganha din-
heiro para que sua mulher gaste a rodo. As separações ocorrem quando
os dois têm os mesmos ideais. Assim, se os dois gostarem de bater, man-
dar, gastar ou trabalhar exageradamente, fatalmente irão se separar.

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- Interessante. Um precisa complementar o outro. Um gosta de gastar, o
outro, de economizar. Se os dois gastassem, o dinheiro acabaria. Mas, se
os dois juntassem dinheiro?

- Também não daria certo. Eles ficariam enfadados de tanto trabalhar


e guardar. Desfrutariam de poucos prazeres. O homem rico fica feliz
quando encontra uma amante que lhe toma, aos poucos, todo o din-
heiro. Sua felicidade dura apenas o tempo em que o dinheiro vai desa-
parecendo. Quando acaba, fica furioso por ter sido tapeado. É preciso
que um contrabalance o outro. Só assim, será encontrada a harmonia
necessária para formar uma união estável.

- No seu caso, você pensa que seu marido está feliz?

- Tanto ele como o padre. Eu amo Erotides porque ele contribui, sem
reclamar, para o nosso bem comum. Acha-me a melhor das mulheres,
coopera para que eu alcance meus caprichos secretos. Isso ocorre com
todos os pais: trabalham duro, gastam pouco com eles mesmos; com o
dinheiro economizado, imaginam, com alegria, qual presente irão dar ao
querido filho: uma bicicleta, um video-game, uma viagem aos Estados
Unidos da América. Podem, até, depois, ficar devendo e queixando da
dura vida que levam. Mais tarde, o filho faz outra exigência. Mais uma
vez os pais se esforçam para realizá-la, fazem o possível e impossível,
só ficarão felizes quando cumprirem esse compromisso. Mesmo que
tornem a se queixar. É preciso que haja esse jogo, no qual, cada um faz
um papel que ajuda o outro, tudo bem ajustado. Se, por sorte, encontrar-
em-se, a vida correrá tranqüila, expressou Virgínia.

- Você, às vezes, lembra-me o vírus que destrói a célula que o hospeda.

- De jeito nenhum. Cultivo os que me auxiliam a viver e que querem


fazer tudo para me ver feliz. O que é o amor? Nada mais do que o ego-
ísmo a dois, a exploração de um pelo outro. Quando uma pessoa diz que

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ama a outra, está afirmando que precisa dela, não pode viver sem ela.
Por quê? Porque ela lhe dá algo; fornece-lhe o de que necessita. Sempre é
o egoísmo que impera, de um lado e do outro. Amamos alguém porque
ele melhora nossa vida. Eu melhoro a vida do meu marido, ganhando
seus presentes, agradecendo a ele, exigindo mais. Portanto, eu o amo.
Ele me ama porque seu destino é presentear sua amada, fazer tudo por
ela. Assim ele fica feliz. Se eu não pedisse ou aceitasse seus sacrifícios,
ele não gostaria de mim, já que não estaria cumprindo seus objetivos su-
periores: doar, sofrer, trabalhar em beneficio da amada. Ele se encontra
e cresce durante suas doações, para a alegria e felicidade de sua querida
mulher. Por isso mesmo é que alguns casamentos dão certo, correm
suavemente, conforme as regras aceitas implicitamente, ou de forma tão
secreta que os próprios cônjuges desconhecem o segredo. Os estranhos
à família, não tendo acesso a essas regras íntimas, a esses segredos de
estado, não compreendem como o casamento perdura. Aparentemente,
temos a impressão de que um explora o outro, mas de fato, um comple-
menta o outro. A vida de todos nós é assim, entendeu agora? Perguntou
Virgínia.

- Vou pensar melhor sobre isso. Suas idéias têm uma certa lógica. Não
sei se concordo...

- Continuo a falar com o padre Teófilo, mesmo depois de casada. Ele


sempre viveu de esperança: eu lha forneço. Se lhe desse outras coisas, a
esperança acabaria com a doação. Ele entraria em tédio, iria buscar out-
ros objetivos para ter sua esperança renovada. Enchi sua cabeça de son-
hos, do que ele mais gosta, a essência de sua pregação. Ele me visitou, faz
uma semana, enquanto meu marido trabalhava. Fiz o jogo programado,
excitei-o, animei-o, dei-lhe as esperanças esperadas. Garanto que ele saiu
satisfeito, sonhando, e deve voltar.

- Mas você não inventou esse modo de agir... Você segue as idéias de
quem?

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- Com certeza a dos rebeldes. Do povo, não! Eu já segui o povo... Hoje,
sou uma renegada. Poucas vezes, ajo com a massa. Examino o que o
povo pensa e, como orientação, procuro fazer o oposto; é minha única e
firme aliança com ele. Quase sempre dá certo. O que dá errado é segui-
lo. Há os que afirmam que o povo sabe o que faz; esses que assim agem,
fazem o mesmo que eu faço com o padre. Divertem-se à custa da vítima.
Nunca fui de ficar presa aos trilhos, quanto mais sair deles, melhor.
Como sou livre, obstinada pela liberdade, sigo os caminhos ordenados
pelo meu interior; assim, tento terminar minha construção até a morte.
Não estou presa nem às minhas afirmações, num momento, digo uma
coisa, a que me serve, noutro, afirmo outra...Elas, muitas vezes, são con-
traditórias. E daí? O que me obriga a ser coerente? Nada! Minha coerên-
cia é a minha incoerência.

- Assim, você fica dividida, deixa de ser uma.

- Que importância tem? Quem não é partido? Houve evolução, a socie-


dade mudou porque houve alguns loucos, os que tiveram coragem para
pensar diferente. Um dia, todos poderão segui-los. Essa postura per-
turba as mentes seguras de que só existe um caminho a seguir. Enterrei
o passado religioso, os velhos hábitos e princípios, tudo que me impedia
de ousar viver minha vida plena. Busco algo novo dentro de mim, não
fora, nos outros.

- Mas, jamais, escapará. Se suas idéias foram construídas em contra-


posição aos velhos princípios, às idéias antigas, se são baseadas na
revolta contra alguma coisa, você está, inexoravelmente, presa ou ligada
a elas; suas idéias novas foram geradas pelas velhas mães, cheias de vício.

- Eu sei disso! Não podia ser de outro modo, reafirmou Virgínia. -


Como, nascidas do nada? Todo os desenvolvimentos de idéias surgiu
do combate às outras. Lamentavelmente, continuo, por mais que deseje,
presa às antigas idéias. Se as combato, foram elas que possibilitaram
minha declaração de guerra particular, pois me apoiei nelas. Vamos

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pensar: as idéias, que comandam as novas, nasceram das antigas; tudo
certo. Mas tenho procurado outras e outras, para derrotar todos os
comandantes do antigo exército. Tento, como posso, ficar livre das idéias
iniciais que me dominaram, escravizaram-me e fizeram-me sofrer. Um
dia conseguirei...

- Jamais terá essa alegria, debochou Lucinho. - Sempre você estará presa
a elas. Você nunca as deixará, jamais será outra, diferente da Virgínia,
acorrentada à sua própria história, à história de todos os homens que
nos precederam, de todos os animais que vieram antes do homem.

- Sempre seremos homens, com alguma coisa de chimpanzé, presos, até


à morte, a outros bichos; viemos da mesma fonte produtora. Estamos
ligados a tudo isso, à poeira cósmica que nos precedeu. Mas, continuo
a sonhar: uns poucos conseguem se libertar, mostram, um pouco mais,
sua individualidade, seu próprio caminho, completou Virgínia.

- De qualquer modo, é bom e salutar desejarmos nos soltar dessa cadeia.


Por isso te admiro e te louvo. Até invejo seu esforço dramático. Tenho
tentado o mesmo, através de outros caminhos. Creio que todos os seus
esforços não vão levá-la a nada, mas faço votos para que prossiga e que
tenha êxito, embora não acredite que seja possível. Receio que fique
caminhando em círculos, sem jamais escapar deles. Possivelmente fas-
cinada pela beleza e atração da circunferência bem descrita, comentou
sarcasticamente Lucinho.

- Para mim, isso é sem importância. Só de imaginar estar me conduz-


indo conforme meus princípios, sonhando estar me libertando, ficarei
satisfeita, mesmo se estiver enganada, disse Virgínia, já cansada de tanto
falar e aprofundar.

- Não foge ao que todos somos: o padre, seu marido e todos os demais
homens do planeta Terra. Você é tapeada pelas suas teorias, mais do
que os outros, pois crê não estar sendo. Todos pensam ser capazes de

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esclarecer os mecanismos da vida e do universo. Caminhamos, sim,
muitas vezes, para trás e, algumas vezes, damos alguns passos tímidos
para frente. Quando acontece isso, percebemos, horrorizados, que nossa
ignorância era muito maior do que imaginávamos, afirmou Lucinho.

- É essa procura que vale... Que mais podemos fazer além disso? Eu ap-
enas imagino que dirijo minha vida, que sou livre... Sei que minto para
mim mesma, mas eu, também, preciso disso. Não quero discutir, pois
não chegaremos a lugar algum, não há meios de saber se estou ou não
certa; suspeito, apenas isso. Também, para quê as certezas?

- Não se esforce muito para descobrir aprofundando, verá que seus


pensamentos atuais se apóiam sempre em estacas podres, fincadas no
brejo, como qualquer outra base na qual procuramos nos apoiar. Mas
são elas que sustentam e dirigem todas suas ações e pensamentos. Você,
minha cara amiga, está enganada, como todos nós, disse rindo, Lucinho,
olhando, com pesar, para Virgínia.

- Não sei... vou pensar mais. Hoje devo beber um pouco, para me im-
pedir ir mais a fundo nessas divagações dolorosas. O poder...

Neste instante, ela olhou-os com seus olhos azuis brilhantes, sem nada
falar. Era o sinal de que estava na hora da visita ir embora. Eram oito e
meia da noite, ela ia assistir a novela e queria a sala livre. Lucinho, desa-
jeitado, levantou-se, convidando Virgínia para entrar no seu quarto. Ela
preferiu se despedir. Também, para quê continuar?...

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Rompendo o Silêncio
A longa e estafante conversa que Lucinho teve com Virgínia, aumentou,
ainda mais, sua confusão acerca do caminho a tomar. Anteriormente,
preocupações semelhantes levaram-no a sofrer crises nervosas e a se
submeter a tratamentos psiquiátricos. Em virtude da pouca melhora
obtida com os tratamentos, ele decidiu consultar com um conhecido
professor universitário, já com o tempo de aposentadoria vencido, que,
teimosamente, continuava dando cursos e fazendo pesquisas na Univer-
sidade.

O eminente professor acreditava estar perto de construir uma teoria


psiquiátrica magnífica, capaz de fornecer todas as explicações acerca da
conduta humana; uma mistura de Psicanálise, Bioquímica e Teoria do
Desenvolvimento. O ponto central dessa teoria - o complexo de “De-
lirius Mater” - descrevia o relacionamento sexual involuntário e precoce
entre um dos pais com o filho ou filha. Foi esse ponto que passou a ser
investigado com profundidade pelo professor.

A teoria do Prof. Pinelli parecia ter sido criada especialmente para os


dramas vividos por Lucinho, principalmente, os fatos relacionados à sua
mãe. O professor esperava, com a publicação de suas idéias, revolucio-
nar a psiquiatria mundial e outras teorias do comportamento humano.

Os trabalhos iniciais foram mostrados em congressos nacionais e in-


ternacionais, sendo Lucinho o exemplo vivo do possuidor da Neurose
“Miserere Dolorosa”, devido ao complexo “Delirius Mater”.

Essa notoriedade, evidentemente, funesta, em lugar de entristecer o


paciente, deu-lhe imensa e estranha alegria. Passou a acreditar na cura e
que a teoria do professor era sua última salvação.

Sua análise com o Prof. Pinelli, que durou meses, teve várias fases e a
ajuda de outros profissionais interessados na teoria, discípulos e ex-
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alunos.

Para aprofundar-se mais em suas teorias, o professor conduziu Lucinho


até um terapeuta especializado em hipnose, pedindo-lhe que fizesse
uma regressão no paciente. Desejava ter dados mais ricos a respeito dos
abusos sexuais.

Ele foi convidado a se assentar numa poltrona confortável e reclinada,


onde ele ficava quase deitado. Devia ficar bem relaxado, desapertar a
fivela do cinto, deixar as roupas soltas. O encarregado da hipnose, Dr.
Walter, começou a falar usando sua voz sonífera e fanhosa. Tudo ali
era feito lentamente. Tirou, com extrema calma e demora, do bolso da
camisa preta, uma caneta dourada, amarrada a uma linha branca com-
prida. Segurando esta, com as pontas dos dedos, começou a balançar a
caneta diante dos olhos aflitos de Lucinho. Pausadamente, o hipnotiza-
dor começou a falar:

- Inicialmente, você deverá fixar os olhos nessa caneta que estou balan-
çando diante de você. Daqui a pouco, vai se sentir sonolento, bastante
sonolento. Quando isso acontecer, você irá fechar os olhos e prestar
atenção às minhas palavras; apenas nelas, não deverá ter sua atenção
despertada para mais nada. Entendeu? Olhe para a caneta. Ela irá balan-
çar de um lado a outro, você prestará atenção à minha voz. Certo?

O Dr. Walter continuou a falar nesse tom:

- Relaxe todo o corpo, dos pés à cabeça. Você está inteiramente con-
centrado na minha voz. Só preste atenção a ela. Bem relaxado... muito
calmo… o mais tranqüilo possível. Certo? Agora você está bem calmo,
relaxado e se sentindo muito bem; prestando sempre atenção à minha
voz... concentrado nela… somente nela… você começará a sentir uma
onda de calor agradável, que vai se iniciar no alto da cabeça. Essa onda
de calor irá, pouco a pouco, descen...do... vaga...rosa...mente... bem
lenta...mente; ela começa na cabeça, depois... des...cerá para a testa... aos

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poucos, alcançará os olhos... nariz... boca e lábios... vai descendo mais...
e mais.... o relaxamento, agora, está passando pelos maxilares.... que-
ixo.... pescoço.... tórax... braços. Uma onda caminha; uma onda de calor
muito...muito agradável, relaxante... vai agora para o abdome.... para a
barriga... bacia... nádegas... coxas e, mais lentamente, ainda, esse cal-
or passa pelos joelhos... pernas e atingirá os pés, que agora estão quentes
e relaxados.

Após esse preâmbulo, que durou uns dez minutos, repetido mais de uma
vez, Lucinho ficou ligeiramente hipnotizado. Ao lado dele, assentado,
estava o Prof. Pinelli. Entretanto o professor adormeceu mais depressa
e mais profundamente que Lucinho; após se debruçar sobre a mesa de
trabalho do Dr. Walter ele começou a roncar. Preocupado com o ocor-
rido, sem fazer barulho, o professor foi acordado pelo hipnotizador para
que assistisse ao interrogatório.

- Você, agora, está regredindo para uma idade anterior a que você tem
no momento. Aos poucos, você vai retornando a um período de vida,
quando você era um adolescente. Vamos voltar no tempo que já se foi,
que ficou para trás, quando você foi se matricular no segundo grau do
colégio Dom Silvério. Lembre-se da escada em frente ao colégio... Agora
você vai subir a escada, um degrau, mais outro...

Nesse momento, as pernas de Lucinho imitaram os passos de subir


degraus.

- Sobe mais um degrau. Pronto! Agora chegou ao saguão do colégio…

Diversas outras instruções foram dadas. Ele ia, aos poucos, regredin-
do, conforme as instruções do doutor. Visualizava a sala de aula do
primário, onde estudou no grupo escolar Barão do Rio Branco. Depois,
regredindo mais ainda, alcançou o tempo de criança, antes de entrar
para a escola. Era o momento mais esperado da regressão. O professor,
nesse instante, mostrava-se não só mais atento e ansioso, como também,

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cansado com a demora. Ele assistia a tudo, esperava por essa fase crucial
e decisiva para suas pesquisas.

Apressadamente, o professor, sem ser convidado, entrou em cena; tomou


a frente do trabalho e, sem esperar as instruções do Dr. Walter, com a
voz rouca e metálica, começou a sugestionar o cliente, para situá-lo na
época dos contatos com a mãe:

- Você, agora, está entrando no quarto de sua mãe. Deita-se, ela abre a
porta, etc. etc.

Dr. Walter, ex-aluno do professor, não gostou da intromissão, da pressa,


nem do tom de voz usado para entrar no inconsciente de Lucinho. En-
tretanto, devido ao respeito que tinha pelo ex-professor - não, por achar
que ele agia certo - decidiu permanecer calado, prevendo um fracasso
no processo que se iniciara bem.

Não deu outra. Nesse instante, começou a chorar e chegou a abrir os


olhos, que foram prontamente fechados pelo professor. Novas perguntas
e novos choros. Não faltaram xingamentos dirigidos ao professor. Este
forçava Lucinho a relatar o desejado, já imaginando um possível fra-
casso. Após algumas tentativas frustradas, com o paciente acordado, não
mais hipnotizado. O Dr. Walter desistiu de continuar o trabalho.

Irado, o Prof. Pinelli continuou, ali mesmo com o inquérito. Nesse mo-
mento, como ocorre nas delegacias de polícia, o professor pressionava o
réu para confessar o que era desejado. Lucinho, teimosamente, continu-
ava calado e, a cada minuto mais, recusava-se a falar sobre fatos, para
ele, dolorosos e, para o professor, excitantes e intrigantes.

Infelizmente, para decepção dos dois: o professor e Dr. Walter, o conteú-


do lembrado e verbalizado não continha o material esperado. Lucinho,
acuado e forçado a falar acerca do problema, sentiu-se culpado por não
conseguir enxergar as cenas desejadas. Mas ficou, também, irado com a

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pressão sofrida. Teve a sensação de ser um criminoso, confessando seu
crime diante de autoridades poderosas, que o forçavam, de todos os mo-
dos possíveis, a dar mais detalhes dos crimes cometidos naquelas noites.

A partir desse acontecimento, as relações entre Lucinho e o professor se


estremeceram. Ele continuou a procurá-lo no consultório, acreditando
na sua teoria, satisfeito com o papel que tinha nela. Entretanto, perce-
bia que a relação antiga já não era mais a mesma, houve uma ruptura
grave entre eles. O professor, mais experimentado nessa área, para azar
de nosso herói, foi cortando os encontros, alegando viagens, doenças,
excesso de trabalho ou dando várias outras desculpas.

Por outro lado, as melhoras esperadas com a teoria fantástica não ac-
onteceram. Diante da falha da hipnose, diversos medicamentos impor-
tantes foram receitados e tomados pelo paciente obediente, dentro do
esquema teórico do Prof. Pinelli. Após uma série de contratempos, Lu-
cinho, abandonado pelo seu gênio salvador, foi enviado para um outro
terapeuta, mais desocupado e com idéias menos mirabolantes.

É sabido que todos nós, diante das incertezas e dos grandes sofrimentos,
das barreiras intransponíveis e impossíveis de serem vencidas, passa-
mos a usar crenças fantásticas, mágicas, que resistem a qualquer lógica.
Quase todos nós, em alguma fase de nossa vida, nos ligamos, com
entusiasmo e muita fé, a uma idéia filosófica, a uma ideologia política
ou religiosa, acreditando estar ali a salvação da humanidade. Mais tarde,
decepcionados, percebemos que nos enganamos. Ele, apesar dos fracas-
sos, continuou acreditando que a teoria do professor seria sua salvação
e com ela seus problemas estariam descobertos e resolvidos. Ele era seu
Messias. Imaginava que, a partir de então, não só teria uma idéia precisa
de si, como também, poderia dar asas a sua grande inteligência, uma
inteligência de gênio, como afirmou o professor.

Assim, sonhador, imaginava que, o que sempre buscou estava prestes a


ser alcançado, um conhecimento de si mesmo, de seus recursos, obje-

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tivos e talentos. Apesar do fracasso e da desistência do professor, imagi-
nando conhecer os problemas e as soluções para eles, ufanava-se: era
preciso apenas usar a teoria e tudo seria explicado e resolvido.

Para fugir do cliente, o professor indicou o Dr. Erasmo, psiquiatra com


grande experiência, muito prático e de grande nome, que mantinha uma
independência na maneira de pensar. A consulta foi marcada rapida-
mente. Lucinho estava ansioso e esperançoso por encontrar um outro
Prof. Pinelli, um seguidor fanático do seu mestre.

Dr. Erasmo era baixo e um pouco gordo. Os poucos cabelos que tinha,
dos dois lados da cabeça, eram grisalhos e ralos. Usava, desde os tempos
de rapaz, um pequeno e fino bigode. Suas maçãs do rosto, muito vermel-
has, pareciam ter sido pintadas com ruge. Andava rapidamente como
se estivesse dando pulinhos. Ele evitava fitar o paciente de frente, mas
estava sempre atento a qualquer gesto ou palavra dele.

Ao entrar no consultório, Lucinho foi gentilmente conduzido pelo


Dr. Erasmo até a cadeira onde devia se sentar. Distraidamente, sem se
lembrar do telefonema, recebido dias antes, Dr. Erasmo perguntou-lhe
quem o enviara:

- Quem o indicou para consultar comigo?

- Então, não sabe? Meu analista, Prof. Pinelli. Foi ele quem, após longos
estudos, descobriu que sofro de um mal, por sinal, raro; sou um caso
quase único no mundo. Os profissionais poderão aprender com meus
problemas e meu comportamento.

- Como? Não entendi.

- Fui indicado pelo Prof. Pinelli, disse, falando alto, ligeiramente agres-
sivo, esperando uma resposta. Desgostoso com o silêncio do médico,
continuou, falando alto: - Você o conhece, não é?

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- Sim, foi meu professor. Ah, agora me lembro; ele me telefonou. Certo.
Lembrei-me.

- Ele é famoso, faz conferências no mundo todo, é um dos maiores no-


mes da Psiquiatria mundial e suas idéias, as mais modernas, são discuti-
das pelos mais estudiosos em todos os lugares.

- Sim, respondeu Dr. Erasmo, mostrando pouco entusiasmo com a con-


versa. Ele esperava que o cliente começasse a falar de seus problemas;
já ouvira, por diversas vezes, essas frases onde se elevava o indivíduo às
alturas. Muitas vezes, o elogiado não passava de um charlatão. Imagina-
va mesmo sabendo que podia estar errado, que todos os “muito famosos
e sábios” faziam sua propaganda particular, distorciam a verdade em
beneficio próprio; muitos deles eram possíveis enganadores, interessados
na fama ou, principalmente, no lucro. “Seria esse o caso do professor?” ,
especulava Dr. Erasmo.

- Eu me tratei com ele por muito tempo. Devido ao grande número de


clientes que ele tem e por ser meu caso muito complicado, tomando
muito tempo, ele me confiou ao senhor. Mas já tem o diagnóstico e o
modo de me tratar. Como agora não mais preciso dele, pois está mais
fácil o tratamento, qualquer um poderá continuar o trabalho iniciado.
Disse-me que o senhor o conhece, bem como sua teoria e, portanto,
estaria apto para completar o tratamento.

Dr. Erasmo ficava cada vez mais apressado; seu tempo ia se esgotando
com aquela conversa inútil. Lucinho rodeava, rodeava, não entrava no
assunto.

- O quê o traz aqui?

- Você é apressado, hein? Agora mesmo irei lhe contar. Desejava ap-
enas colocá-lo a par dos meus tratamentos anteriores, principalmente

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do último, pois se fosse contar tudo, todos os tratamentos realizados,
ficaríamos aqui muitos dias. Já fui a mais de vinte terapeutas diferentes;
alguns, ótimos, excelentes, daqui, do Rio e de S. Paulo. Depois que con-
heci o Prof. Pinelli, descobri que fui enganado. Na verdade; não sei não.
A maioria dos psiquiatras com os quais tratei era ignorante. Ele é muito
superior a todos; sabe muito mais, é muito mais culto e inteligente do
que esses psiquiatrazinhos com os quais consultei.

- Tudo bem! Espero não fazer parte dessa sua listinha, ironizou Erasmo.

- Tudo começou há muitos anos; a primeira vez que fui a uma psicóloga,
eu era uma criança, tinha em torno de cinco anos...não me lembro
mais...

Ele foi contando seus problemas, desde o dia em que deu uma dentada
na prima, depois quando pegou o revólver do avô para matar a profes-
sora, D. Francisca. Contou, também, sobre as crises e internamentos.

- Muito bem. Creio que poderei ajudá-lo, apesar dos problemas que
enfrentou. Você está bem, apenas um pouco ansioso... ligeiramente mi-
nucioso, obsessivo. São problemas simples, semelhantes a muitos... Não
graves... Já tratei de muitos outros parecidos.

- Não! Nada disso! Deixe-me explicar: você irá aprender, interrompeu,


irritado com a comparação, pensando que seu caso era fácil e que pode-
ria ser tratado como outros milhares…

- Estou velho para aprender...

- Deixe-me falar! Disse com impaciência. Ele precisava mostrar o que


sentia e como estava diagnosticado: não era um casinho qualquer. - O
professor, continuou, tratou de mim durante muito tempo; não foi uma
sessão, não. Não se faz um diagnóstico tão rápido. No início, foi difícil
e sofrido. Dei muito trabalho a ele, hoje, vejo quanto o perturbei. Mas

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penso que, também, o ajudei. Foi através dos meus problemas, do meu
caso, que ele construiu sua brilhante teoria. Já publicou um livro sobre
ela, baseada na minha vida. Já fez até conferências, aqui e no exterior, em
vários congressos. Ele foi o único brasileiro convidado a falar no último
congresso de Psiquiatria, realizado em Quebec. Ele fala francês, inglês,
alemão e italiano, é um poliglota, um gênio! Não é de se espantar, pois
como um dos expoentes da psiquiatra mundial, vem pesquisando o
comportamento humano há um longo tempo. Quebrou a cabeça, no
início, antes de me conhecer; depois, escreveu seu primeiro trabalho a
meu respeito. Nessa ocasião, ele descreveu um esboço de sua teoria; de-
pois, outro e, finalmente, um livro. Agora, já publicou mais outro e está
no terceiro. Nesse último, ele descreve as observações obtidas através
de minhas análises. O livro deverá ser publicado nos próximos meses.
O meu caso será descrito em detalhes. Fui seu principal cliente, eu o in-
spirei, falava Lucinho sem parar, entusiasmado com o relato: - Para que
ele pudesse me estudar melhor, eu ia, diariamente, ao consultório, no
início do tratamento. Posteriormente, percebemos que eram necessários
contatos mais freqüentes, pois tratava-se de estudos altamente complica-
dos. Você deve saber, não é?

- Sim, respondeu Erasmo; sei. Isso é...não sei...É muito difícil..., desani-
mado e desinteressado por todas essas considerações indigestas, repetiti-
vas, que não levariam a nada e que detestava.

- Pois bem. Aos poucos, foi penetrando mais nos meus problemas, na
minha vida mental e emocional, principalmente, no meu inconsciente,
no ID. Ele pesquisou todo meu passado, antes e depois dos três anos,
quando começaram meus problemas. As idéias importantes que sur-
giam eram muitas e precisávamos de mais tempo. Ele, bem como seus
assistentes, estava altamente interessado no meu caso. O grupo, por
ele chefiado, extraía os conhecimentos básicos, da teoria que construía
através de minhas análises. Essas idéias foram transmitidas para os
grandes cientistas deste planeta. Ele descreveu, com minúcias, como
funciona uma mente distorcida. Penso que o senhor, como estudioso

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do assunto, segundo me informaram, conhece e sabe que essas teorias
antigas - Psicanálise, Comportamental, Cognitiva, Neuro-lingüística e
outras - estão erradas. Como é sabido, elas não mais funcionam. Todas,
com exceção da teoria do professor, descrevem e explicam apenas certos
fatos da conduta, não todos. Algumas delas só tratam dos sintomas, das
conseqüências, e não das causas. Nesse caso, o paciente sempre continua
doente, pois, se as causas continuam, não foram erradicadas, não se
curou a pessoa. Isso é claro como água! Todos sabem...

O Dr. Erasmo encontrava-se, a cada momento, mais aborrecido. Já ou-


vira tudo aquilo, por milhares de vezes, todos defendendo teorias difer-
entes que combatem as causas, que para ele, nenhum cientista jamais
descobrira. Mas, Lucinho insistia nas suas ponderações.

- A maioria das teorias são superficiais, sem fundamentos válidos. A


Psicanálise é carregada de misticismo, suas explicações são metafóricas
e, como toda explicação mítica explica a complexa conduta através de
um ou dois conceitos; é ultra-simplificada, por isso, errada. É preciso ir
além. Todas essas teorias antigas serão, no futuro, dinossauros, velharias
sem valor, irão para o lixo, isso não demorará. Ou você usa apenas as
últimas? Perguntou, repentinamente.

- Não... Sim, já estudei todas. Nunca fui muito preso a uma teoria es-
pecífica. Critico-as todas. Cada uma tem suas virtudes próprias, seus
ensinamentos, mas também, suas falácias, os resíduos inaproveitáveis.

- Não gosto de palavras sofisticadas. Vim aqui porque me falaram que o


senhor está estudando a teoria do professor. Disseram-me que o senhor
é um homem simples, sem afetação.

- Sim. Li os trabalhos, assisti a suas conferências e notei que ele tem


idéias interessantes, não tão novas...falou nesse momento, o Dr. Erasmo,
num tom mais baixo possível, para não ser ouvido.

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- O quê? Espantoso! O senhor é o primeiro a falar uma bobagem dessas.
É o que existe de mais moderno! Parece que o senhor não anda a par do
que existe de mais correto. Eu, hoje em dia, penso que conheço Psiquia-
tria mais do que a maioria dos médicos-psiquiatras; dos psicólogos, nem
se fala: são uns ingênuos, alguns, imbecis completos. Penso, às vezes,
que poderia dar aulas para os alunos das Universidades, acerca dos meus
problemas e do que ocorreu comigo. Não me formei em Medicina, ou
em Psicologia, porque não quis. Há muita discriminação. Os diretores
e reitores protegem aqueles que têm diplomas e não dão oportunidade
aos que têm o conhecimento sofrido na alma, a sabedoria...Os que não
sabem, que nunca adoeceram, escrevem teorias a respeito dos pacientes;
entretanto, o conhecimento dos que sofreram e não dão aulas, é, muitas
vezes, mais profundo e correto do que o dos medalhões...Já entrei em
vestibulares e passei em todos que tentei. Depois, acho uma besteira o
que estou ouvindo e abandono o curso; entro noutro; largo-o, também...
pelos mesmos motivos.

- É a Lei. Você, como todos, tem de se adaptar a ela. Alguns, não forma-
dos, podem ser julgados por uma comissão de professores universitári-
os e receber o título de “ Notório Saber”. O candidato a esse título deverá
possuir um grande conhecimento na área na qual é candidato, mesmo
não tendo o curso superior. Por que você não tenta isso?

- O Prof. Pinelli falou-me acerca disso. Penso nisso. Mais tarde, darei
conferências ou aulas acerca das minhas descobertas sobre o compor-
tamento humano. Fui convidado por uma amiga, que tem problemas
semelhantes aos meus para, juntos, darmos cursos para os que não têm
acesso a essas informações que consegui penosamente. Nós, clientes,
sabemos mais do que os terapeutas a respeito das doenças, apenas não
possuímos o vocabulário apropriado para explicá-las. Já me convidaram
até para fundar uma nova religião, eu seria o teórico, ela seria a pastora;
ela é mais desinibida, eu não falo bem. Lucinho pára um pouco e dá um
suspiro profundo e retoma a conversa. - Adquiri conhecimentos com
grande sofrimento. Penso, se tudo der certo - em dar cursos, como mui-

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tos que são anunciados nos jornais. Poderia até ganhar algum dinheiro,
mais do que com o meu trabalho na loja do meu pai; ajudaria as outras
pessoas. Não é o que os psiquiatras fazem?

- Sim. Eles ganham a vida tentando auxiliar os outros.

- É o que se diz; mas, muitas vezes, em vez de ajudarem, atrapalham.


Um deles já me receitou Haldol, achando que eu era esquizofrênico; um
outro, Tofranil, pensando que eu estava deprimido; vários receitaram
Valium, Frontal, Lexotan, Lorax e outros tranqüilizantes, afirmando que
o que eu tinha era ansiedade. Para um deles, o de São Paulo, eu tinha
Transtorno Afetivo Bipolar - um nome até bonito; receitou-me Carbon-
ato de Lítio. Um, imaginou que eu tinha cisticercose cerebral e receitou
Rivotril; depois trocou por Gardenal. Deu tudo errado. Você sabe o que
é cisticercose, não é?

- Sim. É um ovo de tênia que, através da circulação, vai até o cérebro e


fica lá, podendo causar certos sintomas...

- Exato. O senhor sabe. Não precisa falar mais. Um outro fez tomografia
computadorizada, um exame moderno, caro, para ver se tinha lesões
cerebrais. Nada encontrou. Um deles, famoso que, às vezes, costuma
aparecer em programas na TV e cobra muito caro - até escreveu livros
bonitos para um público imbecil...é melhor não falar devido a ética...
achou que eu tinha que fazer um mapeamento cerebral para verificar se
a circulação estava correta. Disse-me que havia um pequeno problema
nas ondas cerebrais, que me impedia de pensar com exatidão e cautela,
de planejar, o que me levava a agir impulsivamente. O tratamento, por
sinal muito caro, não seria demorado: pouco mais de dois anos. Você
conhece esse tratamento? É famoso.

- Mais ou menos.

- Não conhece? Todo mundo sabe de que se trata. Então, não vê TV?

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- Você acertou! Vejo pouco.

- É nisso que dá. A TV, ás vezes, nos ensina, bastante. E a “Folha”?


Vai ver que não lê nem a “Folha”, ou as revistas mais lidas como: “Isto
É”, “Veja”. Em todos esses informativos já saíram artigos acerca disso.
Você lê esses jornais e revistas?

- Também, não. É claro, às vezes, quando não tenho coisa melhor a fazer,
passo os olhos.

Nesse ponto da consulta, ele começava a se preocupar com o modo do


Dr. Erasmo. Imaginava que ele poderia não ser tão capaz assim, pois
parecia não possuir os conhecimentos esperados. Isso era terrível para
Lucinho.

- Mas esse tratamento apareceu até no Fantástico. Nem esse programa


você vê? De onde vêm os seus conhecimentos? Apenas das notícias anti-
gas lidas nas revistas médicas?

- Não, não vejo! Respondeu; começando a se envolver com as perguntas


e agressões. Ao mesmo tempo, recriminava-se por estar sendo manipu-
lado por aquele jovem. “O que está acontecendo comigo? Começo a
perder a cabeça, facilmente”. Dr. Erasmo, nesse instante, lembrou, mo-
mentaneamente, de sua mulher que estava internada no CTI do Hospital
das Clínicas.

- Não sei se devo prosseguir; imagino que eu não serei entendido. Acho
que você deve entender, não é possível! Falaram tão bem a seu respeito!
Deve estar troçando de mim, falando que não sabe dessas coisas tão ba-
nais, comparadas com o meu caso que é muito mais complicado. Talvez
isso seja um jogo seu. Os psiquiatras são mestres nisso, falam uma coisa
e fazem outras. Está fingindo, troçando e isso não é ético.

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- Não existem milagres. Muitos profissionais são charlatães, falou, Dr.
Erasmo com certa aspereza, lembrando de casos e tratamentos mal feitos
que presenciou: - É o que mais existe na Medicina, na Política e, princi-
palmente, nos que formam as opiniões, na Imprensa. Todos esses grupos
atraem muito os desonestos, os que visam apenas o dinheiro e o poder.
Mas isso não vem ao caso: Prossiga, pode me contar sua história, ar-
rematou arrependido de ter falado mais que devia; não era seu habitual.
Estava sendo manipulado pelas provocações daquele cliente simpático e
simples.

- Charlatães? O senhor é louco! O que quero te contar é que já fui a


diversos psicólogos e psiquiatras bons, sabe? Tem muitos ruins, eu sei...
Lucinho continuou falando, agora mais nervoso: - muitos melhores do
que o senhor. Eles conhecem Psiquiatria. Fui também - não deveria falar
mas não tenho medo de suas críticas, pois já sei quem sou eu - até a
curandeiros...a videntes, numerólogos, cartomantes. Vai ver que você
pensa que isso não vale nada! Grandes políticos... Conheço, também,
até embaixadores e juizes que procuram essas pessoas. Eles ajudam aos
necessitados. Alguns deles descobriram, sem sequer me conhecer, o
que tinha acontecido comigo, e mais, o que estava ocorrendo. No inicio,
achei bom, parecia que tudo estava dando certo, entretanto...mais tarde...
Nesse momento, Lucinho teve uma crise de tosse e continuou com di-
ficuldade: - Percebi que havia erros em suas previsões; eles não estavam
acertando tudo! Alguns estavam totalmente equivocados! Certa vez, fui
a uma vidente ou cartomante, sei lá, ela trabalhava com cartas, búzios
e outras coisas do gênero; também cobra caro, é muito conhecida: a
Isaurinha, conhece? Ela é psicóloga e socióloga; foi aluna do nosso presi-
dente, gente sábia como ele.

- Não. Nunca ouvi falar.

- Não conhece o Presidente? Desisto. O senhor não conhece ninguém!


De onde vem seu conhecimento?

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- Nunca ouvi falar de Isaurinha! Quanto ao Presidente, até hoje não fui
apresentado a ele, ouço-o, às vezes, a contragosto, sem desejar e sem en-
tusiasmo. Não presto muito a atenção no que ele diz, nem no que se fala
acerca dele, seja mal ou bem. Deixe isso pra depois...

- O senhor é casado?

- Para que quer saber? Falou rápido Dr. Erasmo, muito espantado.

- Por simples curiosidade. É proibido dizer? Todos falam. O professor


contou-me tudo a respeito dele: ficou viúvo três vezes. Sua última mul-
her morreu há quatro anos. Eu já me tratava com ele... ele ficou muito
triste com sua morte; mas foi até bom, pois foi, a partir dai, que se estre-
itaram nossas ligações. Já lhe disse: cheguei até a dormir em sua casa. Ele
é um homem educado, fui muito bem tratado... é... depois tivemos uma
briga feia.

- Como?

- Isso mesmo. Muitas vezes, dormi lá! Foi um modo que ele arrumou
para estudar meu caso melhor. Ele queria anotar meu sono e, princi-
palmente, meus sonhos, no momento de sua realização. Além disso, ele
estava muito deprimido com a morte da mulher; quase não dormia e,
assim, pude ajudá-lo um pouco, também. À noite, ele ficava à beira da
minha cama, observando quantas vezes eu virava o corpo, o que falava,
se meus olhos mexiam e quantas vezes isso ocorria. Fazia centenas de
anotações acerca do meu sono e sonho. Aprendi com ele, mas sei que o
ajudei muito, acredito que mais do que ele me ensinou.

- Bem... - fazendo uma cara de desaprovação bem clara.

- Você é do tempo antigo. Acha que um psiquiatra não pode ter esse tipo
de intimidades com seus pacientes. Por que não?

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- Hum... hum...

- Um dos terapeutas que consultei só falava desse modo: hum, hum.


Você estudou com ele O Prof. Pinelli acha que os que falam assim, nada
sabem; fica fácil trabalhar desse modo. Tudo fica por conta do cliente:
hum, hum, hum. O cliente deita no divã, começa a falar e ele fica res-
mungando; hum... hum... hum... No fim, a gente paga uma consulta que
nada ajudou... para isso, seria melhor que eu treinasse um papagaio e
falasse para ele ou, se quisesse ser um pouco mais sofisticado, usasse um
gravador, fica mais barato e divertido.

- Concordo; é complicado...

- Você fala duas idéias ao mesmo tempo. Concorda com quê? O quê é
complicado?

- A cada hora você troca de assunto, ainda estou pensando, meu raci-
ocínio é mais lento do que o seu... replicou Dr. Erasmo, desanimado
com o andamento da sessão.

- Ah, que saudade do professor. A psiquiatria era complicada antes da


teoria dele... ficou muito mais fácil, mais simples, após seus estudos e
explicações.

- Vamos terminar a consulta, seu horário já se esgotou há muito tempo.

- Não gosto dessas frescuras de horário terminado. Detesto isso: “seu


horário terminou”, nada de útil falamos. Com o professor, não havia
isso, ficava lá o tempo que quisesse.. duas, três horas, até terminar o que
precisava, até cansar-me. Ele queria aprender com o meu caso, que é
raro, ou único. Se o tempo fosse pouco, passava lá à noite para terminar
a conversa. Tomava até um vinho com ele; dizia que o álcool ajudava a
ab-reação. Durante a catarse, eu falava mais, colocava meu inconsciente
para fora e, assim, ele lia melhor minha mente interior.

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- Tenho outros clientes para atender, cada um tem seus afazeres próp-
rios; preciso de seguir os horários marcados.

- O senhor parece obsessivo, preso a esquemas rígidos; não é capaz de


abrir exceções, ainda mais para casos especiais e raros iguais ao meu. O
que os outros clientes vêm fazer aqui? Contar baboseiras, besteiras do
dia-a-dia: o filho que teve diarréia, o marido que dormiu fora de casa,
a empregada que roubou o pó de café, tudo sem interesse algum, não
é? É mais interessante para o psiquiatra tratar pacientes melhores, mais
inteligentes e cultos, com quem ele próprio poderá aprender, como
meu caso. Eu falo acerca de teorias complicadas e não de fatos isolados;
associo idéias, tiro conclusões; relatar fatos isolados, qualquer jornal
vagabundo faz.

- Não sei bem.

- O senhor tem medo de dar opiniões, perdoe-me, mas sou capaz, agora,
com meus conhecimentos atuais, de afirmar que o senhor tem, também,
o complexo de “Delirius Mater”, não é?

- Não sei o que está querendo dizer. Meu tempo, como já disse, ter-
minou. Estou atrasado, conversaremos mais acerca disso no próximo
encontro, certo?

- Eu pago outra consulta, assim, fico mais tempo, vai ser melhor para o
senhor.

- Não se trata disso! Até logo!

- Que dia volto?

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Irmãos entre Quatro Paredes
- O que foi? A essas horas num quarto fechado? Está doente? Perguntou,
gentilmente, Agostinho

- Não amole. Faço o que quero, respondeu, asperamente, Lucinho.

- Foi ao médico? Gostou?

- É um chato. Colocou-me mais minhocas na cabeça. Já não sei o que


fazer...quando me sentia seguro, compreendia-me, com as interpretações
do Prof. Pinelli...

- Como? Agostinho continuou o inquérito.

- Dr. Erasmo não disse claramente o que pensa. Você sabe como são os
psiquiatras, falam por rodeios, como você. A gente nunca sabe o que
estão querendo expressar; muito menos pensando, retrucou Lucinho.

- Eu? Falo claro. Não afirmo coisas de que não tenho certeza. Possivel-
mente não tenho certeza de nada! falou, orgulhoso, Agostinho.

Nesse momento entra Roberta, procurando um livro seu que havia


sumido.

- Estão falando de psiquiatra? É o que ele mais entende; sempre viveu no


meio deles. O que ele já gastou com esses tapeadores daria para con-
struir uma usina, para fornecer energia e luz para uma cidade de dez mil
habitantes. Suas análises pioraram sua cabeça, escureceram com fuligem
sua mente que nunca foi clara...

- Não encha o saco. Estou melhorando, começo a entender o meu mal;


as causas dos meus problemas; já lhe expliquei mil vezes as teorias do
professor...Ele é um cientista inteligente, sabe o que fala...Não é um idi-
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ota como você. Afirmou, Lucinho, dirigindo-se a Roberta.

- Ah, ah... Acho uma graça. Mudou de drogas: trocou maconha por
cocaína ou vice-versa; não sei bem. Usava as drogas excitantes de D.
Rosária, de Dr. Alberto, Pedro, Antônio, agora, passou a usar os calman-
tes do Prof. Pinelli. É difícil descobrir qual é a pior.

- Não é de sua conta! Uso os ensinamentos que desejar, além do mais,


não quero ouvir suas opiniões, muito menos suas metáforas.

- Levanta dessa cama! Onde está meu livro? gritou Roberta.

- Eh... está me mandando? Acha que pode me dar ordens, retrucou.

- Você estrila à toa, todas as vezes que alguém fala com você... Não foge
ao padrão maternal, puxou a mãe, aquela fil... ela continuava a xingar,
enquanto ele permanecia deitado.

Agostinho, sem saber o que fazer, olhava aborrecido a parede nua do


quarto fechado, onde não entrava um feixe de luz.

- Sua também, ouviu? esbravejou Lucinho, enquanto olhava firme, com


olhos brilhantes, em direção à irmã. Nossa! Ainda será como ela; é a
praga que te rogo, ninguém foge ao seu destino.

- Nada disso! Deus me livre! Você, muito mais do que eu, a puxou.
Parece muito com ela, nunca abandona suas idéias...Eu, nem a considero
minha mãe...Tenho idéias diferentes. Minha mãe está morta, enterrada,
há muito tempo; encontrei outras. Nem sei mais se, para mim, ela exis-
tiu, algum dia. A sua, essa megera toda-poderosa, habita todos os pontos
do seu reduzido mundo, invadiu, dominou e escureceu todos aposentos.
Sua deusa, essa desgraçada, objeto de sua devoção, controladora de to-
dos os seus pensamentos e ações, é que lhe dá direção, sossego e amparo.

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Roberta conversava como se soubesse de tudo; deu um sorriso irônico e
continuou:

- Ela tem feito todas as suas vontades, todas elas. Ao por no mundo esse
imbecil, ao construí-lo, exigiu de sua cria uma fidelidade estrita ou a
morte. Você preferiu a proteção, suas velhas idéias, em lugar de pensar e
decidir por si mesmo.

- Eu te mato! Gritou. Não gosto de falar sobre isso, nem mesmo com
os psiquiatras. Detesto certos assuntos, esse é um deles. Já discuti isso,
muitas vezes, com quem entende melhor do que...

- Você, no fundo, sabe que vai ao psiquiatra para representar... Para


inventar mentiras para eles, acerca do seu falso crescimento; dos seus in-
teresses, que nunca foram seus; das novas idéias, que, de fato, são velhas.
Tudo é mentira que, no fundo, eles querem ouvir. São idéias falsas, adap-
tadas e arrumadas para preencherem as teorias bonitas, caprichosas e ar-
tificialmente elaboradas. Ouvindo as narrações enganosas, os terapeutas
sentem-se gratificados, sonham estar ajudando o cliente. Mas, de fato, é
o cliente que está ajudando o psicólogo. Essas elucubrações lançadas por
eles nas mentes inocentes fornecem aos ingênuos pacientes como você, a
sedutora idéia de tranqüilidade. Suas belas interpretações criam a ilusão
da captação do incompreensível. Palavras, apenas palavras, tudo para
esconder a realidade feia...

- Idiota, não estou interessado em saber como você interpreta as inter-


pretações.

- Essas “redes” interpretativas, continuou Roberta sem ouvi-lo, essas


suposições coloridas com esmero, carregadas de palavras retiradas dos
mitos e vestidas com símbolos atraentes são, como os mitos que lhe de-
ram origem, ficções inúteis. Para que criar um nova mentira, se já existe
uma? Duas idiotices seriam melhor do que uma? Só os imbecis, como
você, não percebem que as teorias utilizadas pelos terapeutas são inven-

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ções para reunir comportamentos separados e incompreensíveis, para
acalmar e ludibriar seu próprio construtor e, muito mais, seus segui-
dores. Os pseudo-esclarecimentos fornecidos nas análises são abstrações
genéricas fingindo fazer parte do indivíduo; selecionam partes de um
conjunto complexo e afirmam descrever a totalidade. As interpretações
pouco ou nada têm a ver com a realidade que cada um de nós vive. Você
diz que deseja escapar das falsas idéias impostas pela nossa mãe mas,
ao mesmo tempo, submerge-se nas fantasias dos psicólogos, embarca
nos seus sonhos. Pagará caro por isso! Eu te conheço, mais do que eles;
tenho instrumentos melhores para te estudar do que as teorias improv-
isadas deles. Eu te observo agindo livremente nesse mundo real, não
no artificial do consultório; por isso sei quem você é. Quer te conhecer
mais? Vou falar o que penso a seu respeito!

- Não! Já lhe falei. Não! Não quero ouvir nada de você! Eu te odeio! ber-
rou Lucinho.

- Um vagabundo, aproveitador, medroso, que nunca fez nada; se diz


doente para receber esmolas dos que estão aflitos e necessitados de dá-
las. Sempre encontramos os que desejam aplacar seus sentimentos de
culpa. Faz tudo para não crescer, foge dos riscos, das responsabilidades
do adulto; usa a inteligência infantil. Para que ir ao psiquiatra? Para que
ele lhe diga asneira, de um modo mais civilizado e gentil, principalmente
falso?

- Estou trabalhando, estou tentando me mudar. Pare! Eu te mato, já te


disse... Desgraçada!

- Viu, como te atingi? Se minhas palavras nada tivessem a ver com


você, nessa hora, estaria dando boas gargalhadas das besteiras que falei.
Entretanto, reagiu, acertei no alvo, porque há feridas, marcas antigas que
sangram facilmente, desde que usemos o código apropriado. Coitado
é o que é agarrado à saia da mãe. E que mãe! A mesma que fez gerar,
em nossas mentes, as idéias mais absurdas e falsas do mundo; ela mere-

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cia morrer antes da gente ter nascido. O mundo grande, o de fora da
família, não se adapta às noções aprendidas em casa, ele não se importa
com seus desejos e necessidades, nem se encaixa nas utopias dos psicól-
ogos; não foi treinado para viver nele. Esse mundão é governado por
outras regras, bem diferentes das que imperam nessa casa suja e imoral.
Preso às imbecibilidades ensinadas por D. Rosária, busca, lá fora, uma
realidade para adaptar às suas idéias idiotas. Isso não é possível. Para
que ocorresse isso, você precisaria construir tudo de novo, tendo como
receita a forma do seu pensamento. Lá, no mundo real, onde você tem
medo de ir, tudo é diferente do que existe em sua imaginação - arrema-
tou Roberta séria.

- Isso eu já sei. Não precisaria ser dito. Dei muitas cabeçadas, usando
as velhas idéias. Agora, estou, depois do Prof. Pinelli, acertando meus
passos, sabe? Nem devia te responder. Essa sua conversa me enoja... Não
preciso dela. Tenho orientadores melhores, gemeu Lucinho.

Agostinho, em pé, tenta, desanimado, apaziguar os ânimos, coisa que


já fez inúmeras vezes; para isso, usou sua voz calma, as idéias neutras.
Volta-se para Lucinho, com suavidade.

- Tenho procurado ajudá-lo...O esboço do mundo que você aprendeu,


principalmente de nossa mãe, é muito diferente desse...do real... Nesse
ponto, concordo com Roberta. Eu tive e ainda tenho minhas dificul-
dades.

- Oh! Isso é óbvio; não posso ter uma idéia das coisas, das pessoas, em
geral, como você tem; como não posso usar sua maneira de ver o mun-
do...ou dessa puta - olhando com os olhos brilhantes para a irmã. - Cada
um imagina a realidade a seu modo. Uma coisa eu sei: a idéia que tenho
de mim e das coisas não tem funcionado. Ao agir, percebo que esbarro
em situações intransponíveis, não tem dado certo...Espero uma coisa e
acontece outra, estou encurralado no labirinto resmungou.

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- O que deve fazer é examinar seu modo de pensar, errará menos, caso
comece... comentou Agostinho, seguro do que falava.

- Mas, como? O que mais venho fazendo, desde que nasci? Tento desco-
brir e incorporar uma idéia mais bem adaptada para viver, uma melhor
idéia de mim mesmo, tudo para poder acertar mais. Você pensa que a
realidade que você enxerga é mais correta do que a que percebo? Que
as suas representações e suposições do mundo são as certas? Que a vida
que você leva é melhor do que a minha? Você, também, está querendo
me crucificar com suas certezas! Sei muito bem disso, depois, é claro,
das análises com o professor...Tudo está mudando; vejo-me e compreen-
do-me, agora, de modo diferente; entendo melhor o mundo ao meu
redor, incluindo vocês.
Roberta dá uma gargalhada e caminha para o canto do quarto à procura
do livro que não é encontrado. Agostinho vira-se para Lucinho e arre-
mata:

- Oh, coitado! Não imagina que a realidade, olhada sob a ótica ensinada
pelo professor, pode ser mais inadequada, mais inexata ainda do que a
existente na sua mente, imposta pela nossa mãe.

- Você não sabe nada! O professor é um sábio, conhece muito mais o


comportamento do que você. Muitas coisas ensinadas por ele, mesmo
algumas de nossa mãe, funcionam e me alegram... Dão-m paz.

- Acertou! Paz, sim. Alegria, sim, mas, infantil, tola; alegria dos bobos,
continuou Roberta. A busca da paz, que você tanto procura, só é al-
cançada através do falso conhecimento, pela imposição de dogmas que
descrevem o falso, o imaginário e ilusório. Você só terá paz durante os
sonhos ou nas idéias utópicas. Estes sim, tranqüilizam, a realidade, não!

- Quem disse que essa sua afirmação é verdadeira? Pode, também, ser
mais uma besteira...

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- Tanto é assim que basta aparecer alguém, como ele - comentou Rob-
erta, sem ouvi-lo - lançando alguma idéia, teoria ou tratamento idi-
ota e absurdo, para que, rapidamente, uma multidão de náufragos se
lancem à procura desse salva-vidas milagroso, correm para agarrá-lo,
na vã esperança de que, com a posse desse instrumento, estarão a salvo
das tempestades, abrigados e protegidos. Estarão sim, tapeados, como
antes estavam sob a proteção de outras quimeras. É muito simples; se
existisse uma idéia certa, uma melhor do que as outras, ninguém ficaria
procurando por elas. Você sabe que o lançamento de novos modos de
viver, de aconselhamentos, é o que mais existe. Não há certeza em nada,
apenas probabilidades! E olhe lá! Ouviu? A todo momento surge um
novo Messias, como seu mestre Pinelli, usando idéias falsas, prometendo
o inalcançável. Aí é que está o mal!

- O mal? retrucou Lucinho, confuso. As terapias buscam isso: idéias


mais adaptadas para cada cliente. 

Agostinho vira-se e completa:

- Mas as idéias já conhecidas, as familiares, essas protegem, nos dão a


paz por serem conhecidas, usadas, muitas vezes; apesar de que elas este-
jam ultrapassadas para a nova realidade.

- Já desmoronaram há muito tempo - entrou Roberta na conversa. -


Ouviu? Bumba... A construção foi destruída, os alicerces estavam as-
sentados na lama. Você não percebe? Mas não adianta ficarmos atrás de
outras idéias, das externas e milagrosas, as que dão segurança eterna,
como as idéias que nossa mãe insinuam. Não existem fórmulas para nos
fazer ver um mundo ordenado, cheio de pessoas santas e honestas. É um
sonho, isso foi o que aprendemos quando éramos crianças, veja onde:
no catecismo. Se acreditarmos nisso, também devemos acreditar nos
demônios e bruxas. Você está sempre buscando o milagre da teoria boa,
da mãe boa, do pai bom. Isso nunca existiu. Nossos pais, como todos os
outros, ensinam-nos maneiras distorcidas para pensar, noções equivoca-

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das e ilusórias do que eles aprenderam com seus pais. Nesse ponto, não
podemos culpá-los, também eles aprenderam erradamente - continuou,
animada com suas idéias, vermelha de emoção.

- Como?

- Você já está velho. Deveria ter entendido isso há mais tempo -


prosseguiu Roberta. Quanto mais apoio e esperança tivermos nas idéias
emprestadas pelos outros, menos vamos usar as nossas próprias; desse
modo, ficaremos com menor experiência, seremos mais irresponsáveis
e sofreremos mais decepções...teremos mais paz, como disse Agostinho,
devido a ignorância dos perigos e da nossa pobreza mental.

- Somos idiotas, então? - resmungou Lucinho, decepcionado com essas


idéias. Lembrava-se dos seus pensamentos, reflexões e como tentava se
enganar. Mas continuou em voz alta, seu raciocínio: - As terapias nos
permitem ver as saídas, as portas que nós mesmos temos que descobrir e
abrir, que devem ser melhores... argumentou, sem entusiasmo, receando
ser percebido por sua irmã. Mas, ainda perguntou, com medo da res-
posta, já sem forças: Para você não existem saídas?

- Você não vê isso: “o cliente é que deve descobrir seu caminho!” Isso é
uma teoria, uma bússola do terapeuta, na qual nem ele mesmo acredita.
Quem falou que isso é que é o certo? O que é isso: “descobrir seu camin-
ho por si” ? Nesse caso, para quê os cursos que todos fazem? Para quê
as escolas ou as terapias se cada um aprende por si mesmo? E, se pen-
sarmos assim, os pais não deveriam ensinar nada aos filhos, estes dever-
iam ser deixados para que aprendessem sozinhos, sem ninguém, possiv-
elmente com as baratas. Isso tudo é um modo de pensar, uma crença dos
que paradoxalmente, ordenam o cliente a ser livre. Ouviu ? Ordenam!

- Ora, você sempre acha que pensa melhor, os outros estão errados. Só
você sabe - ironizou.

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- Além disso, como você examina as idéias dos terapeutas geniais e a
validade delas? Com que idéias você está me criticando? Naturalmente,
tem que ser com as suas idéias, as que habitam sua cabeça. Ora, se sua
cabeça não presta, pois ela trabalha com idéias defeituosas e confusas, o
resultado da sua investigação ou crítica, fatalmente será também confu-
so, errado, como foi o instrumento usado para isso. Você está medindo a
febre com o termômetro defeituoso. O resultado não é confiável.

- Você também acabou de fazer isso. Suas considerações foram realiza-


das por qual cabeça? Pela sua, tão defeituosa quanto a minha.

- Concordo, em parte...Eu e você ficamos presos às idéias inadequa-


das para examinarmos os fatos que nos rodeiam. Mas, eu me livrei
mais cedo da família. Se não arrumarmos outras idéias, repetiremos os
mesmos erros ao interpretar os acontecimentos. Não posso tirar uma
pressão arterial com uma agulha; esta não é construída para isso. Do
mesmo modo, se tenho dentro de minha cabeça idéias para brincar de
roda, ou para me queixar diariamente aos médicos, não posso, com elas,
examinar se devo ou não me casar ou fazer ou não tal curso superior.
Isso me parece mais complicado. A maioria das pessoas, iguais a você,
defende o uso do raciocínio simples, o mesmo usado para ligar o som do
toca-disco, para decifrar e conduzir os grandes problemas.

- Continua a usar sua mente distorcida para dar ordens - reclamou Lu-
cinho.

- Vou te dar um exemplo: os jornais perguntaram a diversos transeuntes


de quinze a vinte anos, como resolver a política cambial do Brasil; se o
nosso governo é bom ou ruim; se a Vale deve ou não ser vendida. To-
dos deram opiniões baseadas em conhecimento zero acerca de cada um
desses problemas. Deram a resposta com a primeira bobagem que lhes
veio à tona, usando, para isso, o mesmo raciocínio empregado para fin-
tar o cobrador do ônibus, ou para agredir o torcedor do time adversário.
Não prestamos atenção à existência de outras possibilidades capazes de

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interpretar e organizar os fatos questionados de forma mais profunda e
adequada e nem mesmo as examinamos.

- Não estou entendendo o que você está querendo dizer; largamos algu-
mas idéias, as mais adequadas, em benefício daquelas sem valor? Isso é
um disparate! Você me perturba...

- Você demorou a falar, creio que estava pensando...estava examinando


o que falei para relacionar as idéias antigas que tem em mente, deriva-
das da convivência com nossa mãe, com as teorias dos seu terapeutas,
comentou Roberta, entusiasmada com seus argumentos.

- Não disse nada de mais, cada idéia ou cada raciocínio é realizado desse
modo: ligo uma idéia à outra já existente; isso Agostinho já disse mil
vezes. Ligo minha idéia a uma na qual acredito ou desejo combater...
Uma serve de apoio à outra...comentou com calma, Lucinho.

- Esse é o mal: ligamos uma idéia - a que desejamos defender ou atacar


- a outra idiota - que lhe serve de apoio - a um pensamento que nada
tem a ver com o anterior, como falei acerca das respostas dadas pelos
entrevistados na rua. Não posso me julgar feliz pelo que a cartomante
falou, baseada na presença de um ás vermelho, quando tirei uma carta.
Não devo ficar tranqüila, deixar a vida correr e não me esforçar, porque
o pai-de-santo me garantiu que estou protegida. Uma coisa não tem
relação com a outra, uma não atua na outra, essas afirmações são idiotas.

- Claro. Isso todo mundo sabe, resmungou, sem entusiasmo.

- Claro, nada! Toda a população utiliza desses meios mágicos para


conduzir sua vida. Você não está também utilizando esse meio mágico?
As teorias psicológicas são mágicas mais sofisticadas, mais difíceis de
descobrir onde se localiza o engodo. A maioria fornece explicações
que nada têm a ver com os fatos vividos, retrucou Roberta, sem prestar
atenção ao argumento de Lucinho. Tudo é interpretado através da teoria

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utilizada - sem auxílio de outras, desse modo, sempre as interpretações
serão certas. Eu sei que não vai gostar: as próprias teorias dos psicólogos
servem de apoio para eles. Os psiquiatras se sentem seguros e anima-
dos ao defenderem uma concepção acerca da conduta, principalmente
quando eles percebem a existência de vários seguidores que acreditam e
seguem, muitas vezes mais do que eles próprios, suas crenças, mesmos
as esdrúxulas.

- Não fale bobagens, murmurou Lucinho, refletindo: “pode haver algu-


ma verdade nas palavras de Roberta; ela pode perceber o que não noto”.

- Desse modo, eles se apoiam no apoio dos outros, passam a acreditar


que o que falam é o certo, gritou Roberta. Uns tapeiam outros, muitos,
a si mesmos. A aproximação com a verdade é difícil e amedronta, pode
quebrar nossos assentos, derrubar nossos fundamentos.

- Nunca sei, ao certo, com quem está a mentira: eles ou você.

- Quer saber a verdade? Ninguém! A segurança principal, buscada por


todos homens normais do século XX - antes, parece, que não era assim
- é estarem agrupados; seguir os mesmos mitos; caminhar na procissão,
passo a passo, em ordem, seguir a hierarquia, sem jamais levantar a ca-
beça para olhar ou tentar desvendar os mistérios da caminhada silencio-
sa. Como sonâmbulos, os fiéis sentem-se seguros, por estarem reunidos
num bando, todos caminhando para o desconhecido matadouro. Basta
pertencer ao grupo...Alguns chegam a dizer: “ A voz do povo é a voz de
Deus”. 

- Como você chegou a isso?

- Não vê as pesquisas de opiniões? O que elas contêm? - continuou raci-


ocinando Roberta. Quantos imbecis acreditam em uma idiotice. Todos
ficam felizes por pertenceram ao grande grupo dos estúpidos, dos que
crêem no disco-voador, nos duendes, nos anjos da guarda, na outra vida,

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nos espíritos, alma de outro mundo, fantasmas, extra-terrestres e toda
uma gama de bobagens, infantilidades inventadas para encher mentes
vazias. Entusiasmados, muitos formam grandes sociedades congregando
os diversos idiotas que têm a mesma crença. Reunidos, uns elegem out-
ros, cantam, fazem discursos, escrevem, vão a congressos, tudo para pro-
teger as mentiras defendidas pela seita onde estão abrigados. Quando o
número de adeptos e adoradores da crença é grande, a estupidez passa a
ser aceita até pelo Governo, adorada e procurada, com vigor, por todos,
como verdades elevadas e sublimes, que devem ser seguidas até a morte
e, pior, muitos dedicam sua vida a essas idéias e alguns morrem por elas.

- Você está louca! Precisa ser internada! gritou com raiva Lucinho. Basta
de palpites; essas são as idéias mais idiotas que já ouvi. Você só fala
asneira! Como criticar, com sua mente, as crenças dos outros! Além do
mais você não é uma profissional em nada. Você fala acerca do que vai
dentro das aspirações de cada um, sem nada compreender, sem nunca
ter pesquisado. Sem saber, inventa, para combater certas teorias e inter-
pretações seguidas pela maioria, você cria suas próprias interpretações
acerca dos teóricos. Além disso, com suas teorias, agride a todos. Só
você está certa? Oh, meu Deus! Tenha piedade dessa pobre de espírito,
argumenta, já sem força e desanimado.

Nesse momento, pensativo e com a voz calma, entra, novamente, na


conversa, Agostinho.

- Você tem razão, Lucinho; ela está falando de modelos, está expondo
seu meta-modelo, isto é, uma interpretação sua das teorias interpreta-
tivas, das maneiras de enxergar o mundo. Mas, não sei se ela está exag-
erando ou brincando; a gente não sabe quando ela ironiza ou não...

- Nunca falei tão sério, retrucou Roberta, rindo debochadamente. Todos


dão conselhos. Por que não posso dar os meus? Os psicólogos, então...
Eu sei que seu prato principal é o sexo; é o que eles mais gostam de
falar...Mas, falam, também, a respeito de muitas outras coisas; são peri-

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tos em viver bem. O que eu conheci, nada conseguiu, um fracasso, mas,
mesmo assim, continuava vomitando suas teorias em cima dos clientes
incautos...Entretanto, sua belas idéias jamais deram certo para ele. Como
poderiam dar certo para os outros? Eles falam até da roupa que devemos
usar, da morte, da outra vida, do sexo dos anjos. É o seu ganha-pão. Se
não fizerem isso, o que vão fazer? Eles estão bem acompanhados. Pro-
liferam, junto deles, outros conhecedores da alma humana: adivinhos,
cartomantes, sensitivos, pais-de-santos, leituristas de mente e da íris,
hipnotizadores. A lista é enorme. Todos esses profissionais, muitos...mas
muitos mesmo, vivem disso, de impor suas idéias esquisitas sobre nós,
exigindo que nos comportemos de acordo com seu catecismo ingênuo.

- Você sempre tentou me deprimir. Não estou bem, estou confuso e des-
animado...Você percebe, principalmente depois das descobertas que fiz...
Imagino, às vezes, que não tenho mais motivos para me alegrar...Nem
mesmo para viver. Relembrei coisas desagradáveis nas sessões terapêu-
ticas, de coisas que não gosto nem de pensar e de falar. Às vezes, penso:
para que ir atrás da salvação, de arrumar uma saída para minha vida, de
me cuidar? Seria para viver bem ou escapar da morte? Estou chegando à
conclusão de que é exatamente do viver que fujo...Como quase todas as
pessoas. Evito construir meu próprio caminho; ocasionalmente, busco o
dos outros; que é a não-vida; a morte. De quando em quando, entrego-
me às diversões, tudo para não pensar na minha própria existência. Mas,
em vão. Poucas vezes consigo fingir que estou bem, mostro, somente por
fora, um vigor que não tenho; que nunca tive...Noto que, muitas vezes,
represento bem, outras, nem tanto. No fundo da alma, quando converso
comigo, vejo que tudo está mal, não gosto do que sou, das idéias que
grudaram em minha mente...Idéias dos outros que não me largam...
Corpos sinistros que estão incrustados às outras idéias. Não consigo
diferenciar as que são úteis para mim, as que podiam me levar a alcançar
minhas metas, das que me atrapalham...Nem bem sei, atualmente, o que
quero; não mais sei quais são meus objetivos. Além disso, não sei como
me liberar desses invasores maléficos. Entendeu? Não quero discutir,
muito menos brigar com você, tenho problemas demais para pensar.

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Não quero tocar nessas feridas que sangram facilmente.

- Pelo menos imite as idéias que lhe parecerem menos antipáticas,


ironizou Roberta, mas mostrando ter sido tocada pela emoção de Lu-
cinho. Existem umas idéias menos ruins do que outras. Boas? Essas não
existem! Desista de encontrá-las.

- As menos antipáticas podem ser piores ainda... lamentou.

- Eu sei o que deve fazer, comentou Agostinho, entrando em auxílio do


irmão. Existem idéias que criticam as idéias, ela está, por querer ou sem
querer, fazendo uso disso com freqüência. Algumas delas ajudam a com-
preender as explicações, as que estão acima das idéias acerca dos fatos;
são as grandes, as mais amplas, as que criticam as próprias idéias.

- Oh! Não vê que isso é o que estou tentando fazer há anos? O que as
idéias dos terapeutas fazem? Nada mais do que criticar nosso modo de
vivenciar ou de interpretar o mundo, lamentou Lucinho, continuando
com sua voz triste: - Parece que querem me dizer que todas estão erra-
das... Agora, estou preso à última que encontrei, à do Prof. Pinelli. O quê
fazer? Se essa, também, estiver errada, como as outras, se for sem sen-
tido, estarei sem rumo. Além do mais, para executá-la, terei um trabalho
absurdo. Será que a cura valeria o custo dela? Não sei... Seria bom se eu
pudesse...

- É um problema difícil de resolver, os custos de uma mudança...argu-


mentou Agostinho, pensativo.

- Não consigo me despojar das cinzas que se agarraram ao meu corpo,


produzidas pela queima das velhas árvores...Elas são estranhas à minha
vida...Fazem-me mal, não me largam, por mais que me esforce. Entre-
tanto, não consigo usar outras melhores; estou preso, exatamente, às an-
tigas, às que me martirizaram e me fornecem uma direção inadequada.
Faço mais em benefício dessas idéias...do que das que gostaria de usar.

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Muitas vezes, na minha confusão, troco uma pela outra; não diferencio
mais nada - gemeu Lucinho desesperado.

- Não existe homem puro, feito dele próprio; isso é uma ilusão, pon-
derou Agostinho. Todos nós somos uma mistura de homens, algumas
partes não têm nada a ver com o que pretendemos ser. Você não tem
nada de genuíno; é fabricado pela mistura de corpos estranhos, que for-
maram sua individualidade; no fundo, todos somos extra-terrestres.
Daí, o sucesso dessa ficção, pois eles são examinados através dos nossos
extraterrestres internos.

- Então, para que falamos em seguir o que nós somos, em sermos espon-
tâneos? Todos nos incentivam a sermos naturais, a buscar nossa indi-
vidualidade. Mas, se somos uma mistura de outros, ponderou Lucinho,
tenso: onde encontrar essa espontaneidade? Qual individualidade
usarei?

- Nenhum homem chega a ser ele próprio, livre dos outros...apesar de


ser o sonho de alguns... A tendência atual da sociedade é inversa: valor-
iza o ser parecido com os outros, o ser sem individualidade; o engolido
pelo “social” ou “povo”; o desfigurado ou despojado de sua identidade
particular, comentou Agostinho, entusiasmado, como se estivesse dando
uma aula.

- Isso é desanimador...Prefiro não acreditar, toda minha vida busquei


a autenticidade, o natural...O que fazer? Os psicólogos jogaram essa
crença em minha mente - falou, cansado.

- Entretanto, todos eles não são espontâneos: todos usam os cacoetes da


seita: jargões, tom e timbre da voz, lêem os mesmos livros, freqüentam
os congressos, assistem às mesmas peças de teatro e filme, comentou
Roberta rindo.

- Cada um se apodera do que consegue para se construir: noções boas e

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más. Todos tentamos eliminar certas impurezas, mas cultivamos outras;
jamais chegaremos à pureza almejada, comentou Agostinho, no mesmo
tom.
- Você apenas guardou as impurezas, principalmente, os dejetos lança-
dos pelos seus orientadores, mais precisamente, a borra excretada pela
sua querida e honrada mãe, entrou na conversa Roberta, rindo das suas
próprias palavras e brincadeiras.

- Gostaria, se pudesse, de viver num ambiente cheio de pessoas difer-


entes dessas com as quais convivo, longe, principalmente, de você. Bem
longe, para que não mais interferisse em minha vida, que não desse pal-
pites...Gostaria de estar afastado, até de mim mesmo, com meu espírito
despojado das idéias alheias, ou sem idéias, puríssimo, imaculado, uma
folha em branco, comentou com lágrimas, Lucinho.

- Você? É o que mais procura pessoas para receber deles suas idéias para
ouvir, com imenso interesse, o que elas pensam de você; se conhece
através do espelho das idéias dos outros, não das suas. Além do mais,
um lugar cheio de pessoas interessantes, agradáveis, honestas, de con-
vivência fácil...esse paraíso todos querem, mas, meu irmãozinho que-
rido, jamais esse lugar existirá... na realidade, todos sonhamos com ele,
mas, depois de Adão e Eva, ele implodiu...

- Você só sabe gozar as pessoas. Por um momento, durante essa dis-


cussão, imaginei, burramente, que você estivesse raciocinando sério,
resmungou Lucinho.

- Tudo é brincadeira, a vida é um jogo ou uma brincadeira de mau gosto


e que só termina com a morte. Não leve a vida a sério. Onde você escon-
deu meu livro? Eu sei que foi você que o tirou do meu quarto... comple-
tou Roberta. Onde está meu livro?

- Não gosto de você. Olhando com rancor para ela, continuou: não gosto
das pessoas em geral... Ah! como é triste! Pior é perceber que me pareço

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com todas elas...Com todas as que detesto, até com você, isso me faz
sofrer mais ainda.

- É péssimo nos observar através das imagens refletidas dos outros. Isso
é triste, meu irmão, eu sei disso...

- Não entendi...

- Você faz isso sem parar e não compreende? Como é burro! continuou
Roberta: - Como não há solução certa e segura, como não há garantia,
todos nós agarramos a primeira bandeira que nos aparece para escapar-
mos das incertezas e desgraças. A fé é fundamental, a direção pode ser
qualquer uma. Uma vez acreditando na via salvadora, passamos a nos
sentir bem, confortáveis e seguros. Examine a vida das pessoas: cada
uma se agarra a um ideal, a uma meta, mais acertadamente, a uma
mentira: uma crença religiosa, um trabalho, uma ligação afetiva, ideo-
logia ou, naturalmente, uma teoria psicológica, do Prof. Pinelli, por
exemplo. Devemos nos prender a essas atividades com bastante fé para
termos a ilusão - ilusão compreende? - de estarmos salvos, livres dos
perigos, tranqüilos, para não mais nos preocuparmos com as outras pos-
síveis soluções...Não devemos, jamais, discutir o valor dessa. Somente
assim escapamos da maldita incerteza! Entendeu agora?

- Já vem você com suas agressões, precisava citar o professor? Eu procu-


ro viver sem essas bandeiras...Você, sim, precisa sempre delas para fugir
do inesperado.

- Ora, essa. Já aprendi a lidar com os infortúnios da vida, se espero que


tudo possa ocorrer, inclusive o desastre não desejado, o desencontro,
conforme meus desejos, fico protegida, vacinada, pois o que acontece, é
esperado; assim, não sofro decepções. Sua bengala, desde que nasceu, é
D. Rosária; como não enxerga!

- A sua é me criticar para esquecer das próprias críticas que faz sobre

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você mesma... ninguém escapa... comentou, agora mais interessado, ao
se lembrar das várias terapias a que se submeteu, com muita fé. Pensan-
do no fracasso da maioria delas.

- Não. Ninguém escapa! Mas, seria pior sem as crenças. O caminho


seguido pelo outro é idiota para aquele que não o segue. Um dos obje-
tivos pode ser: “nunca fazer nada e colocar a culpa nos outros”, como
sempre você fez...Ou acreditar nas interpretações absurdas dos analistas,
ironizou Roberta.

- Como você está fazendo agora: jogando interpretações em cima de


mim. E você que leva a vida como uma brincadeira? Pior ainda: de mau
gosto... Essa é sua bandeira: a brincadeira, a irresponsabilidade.

- E, daí? Cada um faz o que pode ou dá o que tem, como afirma nossa
mãe. Você lamenta a vida, eu rio dela...Debocho da vida e da morte...
Não me preocupo se ela vier mais cedo ou mais tarde. Já vivi bastante.
Cada um gosta de uma coisa; segue seu ideal, sua mentira atraente, que
é examinada através de outras inverdades, muitas delas, pouco a pouco,
ganham o “status” de verdades. Isso não importa; precisamos disso.
Talvez você se sinta mais feliz, pois tem mais companheiros, o número
dos lamentadores é bem maior do que o daqueles que não se queixam,
dos que riem.

- Pode ser ... gemeu Lucinho. Como não queixar? Todos se queixam, a
vida é ruim para todos.

- Sim, concordo; alguns vivem só para isso...Outros vivem, exclusiva-


mente, para não pecar... não fazem o que mais atrai as pessoas. Tudo,
qualquer coisa, a que a gente se dedica com vigor, nos acalma. Vários
ficam felizes, comentando as desgraças dos outros, outros, a própria;
mas, todos se tranqüilizam, agarrando-se às crenças falsas, que sempre
governaram a história dos homens, afirmou Roberta.

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- Tudo são, de uma certa forma, crenças. Uma coisa é a realidade, esta é
inatingível, a outra é o que se fala a seu respeito, comentou Agostinho,
sério. Falamos e falamos; acreditamos mais nos sons que ouvimos ou
emitimos, nas interpretações nossas ou dos outros, acerca de nossa vida,
do que na nossa própria experiência vivida; comemos gatos por lebres,
acreditamos mais no cardápio do que na comida.

- Para que tentar descobrir a verdade, se ela é inatingível? Você, como


todos nós, acredita na sua verdade; entretanto, quer me forçar a aceitá-
la, como se fosse minha verdade. Já as tenho de sobra, comentou, viran-
do-se para ela.

- Não é bem isso, discordo do seu modo de fugir delas; todos fugimos,
eu também. Penso que há fugas mais nobres. É melhor viver longe da
realidade... Não é Agostinho?

- Penso um pouco diferente. Quase todas as explicações ouvidas acerca


da realidade, principalmente aquelas acerca de problemas complica-
dos, como essas discussões nossas, bem como as teorias dos psicólogos,
dos religiosos, das ideologias trabalhistas ou comunistas, supõem estar
descrevendo a realidade “verdadeira”, altamente complexa. Mas, de fato,
descrevem um mundo simplificado, de fácil entendimento, lamentavel-
mente, inadequado. Os cientistas sabem que suas descrições não são cer-
tas; estudam algumas partes isoladas arbitrariamente de um todo. Temos
dois caminhos: um é assimilar esse arremedo de mapa, essa descrição
simplória dos fatos, com muita fé; o outro, é penetrar nas difíceis e com-
plicadas explicações, que sempre nos levam a outras, mais difíceis ainda,
sem jamais alcançarmos a totalidade do fato. O garimpeiro disposto a
isso irá passar toda sua vida em busca desse topázio imaginário, desse
ouro que lhe fornecerá a luz. Ora, o povo usa o falso mapa do mundo
para decifrá-lo e compreendê-lo, trabalha com o simples, para decifrar
o complexo. Além de nunca o alcançar, imagina o estar compreendendo
sem notar que trabalha com o arremedo dele; se utiliza de um mapa que
pouco representa do território que está sendo examinado. Entretanto,

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apesar de serem descrições muito falsas - as nossas também são - eles
acreditam nelas; por isso mesmo, erram, constantemente, em suas pre-
visões e ações, mas, por outro lado, não gastam seu precioso tempo com
a procura. Essas noções elementares do povo servem para solucionar
questões práticas e simples. É o que eles desejam, conforme seus mod-
elos. O maior mal disso é que o povo imagina que suas suposições são
certas; ele não sabe que não sabe. 

- Você também gosta de impor suas mentiras...suas ideologias ou seus


mitos. Explica tudo fácil e simples... Por que acreditar nas suas idéias?
Elas também podem ser falsas, como qualquer explicação. Que garantia
tenho? gaguejou Lucinho.

- Garantia nenhuma... retrucou Agostinho seguro do que falava; eu ajo,


possivelmente, como todos. Procuro desbravar meu próprio caminho,
o que de melhor consigo e aceito ser o adequado para mim. Há uma
diferença: eu afirmo uma coisa, como estou fazendo agora, mas afirmo,
também, que meus princípios e raciocínio podem e devem estar errados;
eu próprio tenho dúvidas acerca deles. Trabalho como todos, com min-
has representações ou suposições...Escolhi ser filósofo, criticar todas as
noções, examinar a validade maior ou menor do conhecimento, inclu-
sive o meu saber. A minha segurança é: não ter segurança. Penso que só
assim posso desenvolver meu pensamento e conhecimento, verificando
meus erros, armazenando novos conhecimentos.

- E, novamente, armazenando idéias erradas, suposições que mais tarde


serão destruídas... comentou, zombando, Lucinho.

- Certo. O que mais posso fazer? Ficar eternamente preso à mesma


bobagem e agir com ela? Muitas pessoas, como os insetos, jamais du-
vidaram do seu caminho, agem sempre com os mesmos pressupostos, de
milhões de anos atrás, não o examinam nunca.

- Ótimo! Chegou onde queria. Não quero ouvir outras idéias além das

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que conheço. Desejo continuar com as minhas... antigas e erradas; quero
segui-las, sem interferência de ninguém, sem pensar, “não me dê consel-
hos, sei errar sozinho”, não é assim a frase popular? Comentou Lucinho.

- Ora, ora, quem está falando! Nunca mais tire minhas coisas, tá ouvin-
do? gritou Roberta, que estava ao lado dele. Não mexo nos seus objetos.
Precisa continuar imbecil, você só tem esse pensamento. Se largá-lo, es-
tará perdido; é perigoso. Sem a ajuda desses alicerces de mil anos, ficará
mais idiota, se é que tem jeito de aprofundar mais na imbecilidade, que
já possui em alto grau. Sem as idéias da mamãe querida ficará sem nada
para apoiar seus pensamentos. Só tem eles.

- Sua filha da puta...

- Temos a mesma mãe. Foi ela quem deu origem a todos os pensamen-
tos primitivos que possuímos, tudo parido da mesma puta..., concebido
da mesma semente. Nesse caso, concordo com você; desde que nasci,
considero-me uma filha da puta; nossa mãe, mandona, chata, histérica;
talvez tenha nos atrapalhado mais que ajudado... Isso é o que penso dela,
posso um dia mudar. Não sei...

- Vamos parar, vocês só conversam brigando, entra novamente, Agostin-


ho. Aprenderam com quem? Da pessoa que criticam. Agem, automatica-
mente, como ela sempre foi. Como é difícil escapar! Voltando ao assun-
to: se você passar a ler somente os livros e as idéias do Prof. Pinelli: se for
apenas à sua igreja, se escutar seu raciocínio e dos seus companheiros,
jamais duvidará e nunca mudará de opinião... Muitos fazem assim.

- Não precisa xingar tanto. Posso, se permitir, não desejar conhecer além
do que conheço e não adotar suas idéias. Fico mais feliz com minha
pobreza e limitação... Penso que é melhor viver satisfeito com minha
ignorância, com a crença de uma teoria psicológica correta e eterna, do
que viver como você... Morrerá desesperado com sua sabedoria acerca
dos problemas insolúveis. Deve haver soluções mais simples para essa

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vida...

- Ora, quem está dizendo... criticou Roberta.

- Não quero mais conversar sobre esses problemas complicados e chatos.


Vocês não deveriam me dar conselhos, falou Lucinho. Nenhum homem
deveria mandar no outro. Ninguém sabe o que é o melhor; ninguém
pode saber das causas, muito menos das causas das causas...nem das
conseqüências delas.

- Você vive de acordo com as regras dos outros, principalmente de


uma... você é um pária, um inútil, isso é o que é! 

- Lésbica, vagabunda, gostaria de te ver morta, longe...Retrucou Lucin-


ho, com ódio.

- Chega! Vamos parar! Vá para seu quarto, Roberta...Eu também vou


sair...disse Agostinho.

- Ainda desconto o que você me falou, bicha enrustida.

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CTI - A Um Passo do Fim
Dr. Erasmo, nos últimos dias, passara parte do seu tempo, na ante-sala
do CTI. Yeda, sua mulher, há alguns dias, estava internada no Hospital
das Clínicas, após ter tentado o suicídio com um tiro dado no ouvido.
Não havia mais esperanças dela sobreviver. Ele estava tenso naquele fim
de tarde. 

Imaginando o pior, após ter engolido um pequeno lanche, foi direto para
o hospital. Decidiu caminhar em lugar de usar o carro, conforme seu
hábito, principalmente nos momentos de maior tensão. Essa técnica lhe
acalmava.
Uma chuva miúda e enjoada caía há quase uma semana sobre a cidade
cinzenta; um vento frio fustigava a face contraída e tristonha do Dr.
Erasmo, tornando mais vermelha ainda as maçãs do seu rosto. A água
escura e suja, de mau cheiro, que escorria pelas ruas, era lançada sobre
os pedestres desprotegidos e encharcados. Todos andavam depressa,
alguns corriam, desejosos de escapar daquela balbúrdia. Ora ele se
desviava de um transeunte, ora de outro. Os carros presos no trânsito
caótico buzinavam histericamente. Ele atravessou uma rua, esperou um
sinal abrir, cumprimentou um conhecido; agia como um autômato. Seu
olhar, aparentemente dirigido para os acontecimentos da rua, examinava
o interior de sua mente. “Como estará ela agora? Estará viva?”

Dr. Erasmo sentia, mais do que nunca, o desespero e o tédio das pessoas.
Caminhava cabisbaixo e, automaticamente, pensava no sofrimento que
teria que enfrentar após a morte da mulher.

Eram 7 h da noite. Chegando, o porteiro, por não o conhecer, apesar do


Dr. Erasmo ter trabalhado naquele hospital toda a sua vida, exigiu dele a
carteira de identidade, que deveria ser ali deixada. Por mais que tentasse
explicar quem era, o que ia fazer no quarto andar, onde se localizava o
CTI, não escapou às exigências do eficiente porteiro, que mostrava uma
satisfação escondida ao impor autoridade e poder.
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Sem capacidade para grandes raciocínios, imaginou, num relance, como
seria bom se desse um tiro nele. Se assim o fizesse ficaria aliviado, pelo
menos por algumas horas enquanto fugisse, arrumasse um advogado...
seria obrigado, durante sua fuga - todos achariam normal, a abandonar,
por dias, o hospital, o consultório, os problemas intoleráveis que es-
tava vivendo. Mas desistiu da idéia, ainda não matara ninguém. Achou
menos difícil obedecer ao exigente funcionário e submeter-se aos seus
caprichos. Subiu pela escada sem pressa; atrasava, por querer, sua che-
gada ao CTI.

No 4º andar, medrosamente, apertou a campainha. Uma jovem aten-


dente, fria e sisuda, cumprimentou-o com amabilidade. Conhecedora
do seu sofrimento, deu-lhe um sorriso sem graça. O ambiente assustava
os não acostumados ao lugar; os que ali trabalhavam calçavam botas de
pano por cima dos sapatos e vestiam aventais brancos, muito largos; os
usados pelos residentes mostravam manchas e respingos de sangue.

Após se preparar para entrar - o que tomava alguns minutos e era uma
cerimônia realizada no mais profundo silêncio, na qual todas as fisio-
nomias mostravam-se muito sérias - o visitante da morte caminhava
até uma grande pia. Ali, suas mãos eram lavadas com um sabão líquido
especial e secas no ar quente, aberto pela atendente. Era aconselhado,
após a colocação da roupa especial e de ter lavado as mãos, a não tocar
em nada, inclusive no paciente visitado. Apesar de ali não ter espelhos,
não era difícil para o visitante imaginar como ele estava estranhamente
vestido; bastava olhar para os que ali transitavam: médicos, enfermeiras,
visitantes, todos usavam a mesma vestimenta.

Dr. Erasmo entrou no CTI deslizando suavemente; sua mulher agoni-


zava... No amplo salão iluminado por lâmpadas frias e claras, imperava
o silêncio. Ouviam-se apenas os silvos desafinados dos instrumentos
vigilantes que não paravam de funcionar; anunciavam, pronta e rapida-
mente, as falhas ocorridas nos organismos moribundos. Ajudados pelas

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máquinas, pulmões esgotados soltavam, de tempos em tempos, lamentos
roucos. O ar expelido com dificuldade, ao atravessar o tubo da traquéia,
misturava-se aos líquidos corporais não deglutidos, produzindo sons
desafinados que assustavam. O ruído parecia indicar a proximidade da
morte dos que ali estavam prostrados e sem esperanças. Naquele lugar se
travava a batalha final, lutava-se, na maior parte das vezes, inutilmente,
para evitar a passagem do paciente para a sala ao lado: último leito dos
que sucumbiram diante do sofrimento. Daquela sala tenebrosa, a ida
para a sala lateral era uma questão de tempo.

Yeda permanecia esticada no seu leito, nua e com o rosto voltado para o
teto, como quase todos ali. Agonizava. Era difícil saber se ela estava viva
ou morta.

Dr. Erasmo caminhava pelo salão fúnebre com o coração apertado.


Tentava, contraindo voluntariamente os músculos faciais, olhando, tola e
inutilmente, para uma e outra parede; tentava não prestar atenção a sua
dor. Mas todos, naquele lugar, detectavam e compreendiam facilmente o
sofrimento do outro.

Tosses repentinas de um senhor foram ouvidas; sussurros tensos dos


médicos e enfermeiras. Tudo causava pânico no visitante ao observar
esse ritual macabro.

Parecia que os que ali trabalhavam dançavam um balé ao som dos


lamentos. Os bailarinos, suspensos no ar, deslocavam-se, sem jamais to-
car o piso emborrachado. Andando de leito em leito, seus olhos atentos,
detectavam os acordes indicadores de risco e davam ordens ao corpo
para que este tomasse as medidas necessárias. No fundo do amplo salão,
o silêncio é quebrado:

- Ai! Aiiii! Ouvia-se um grito, que se iniciou forte mas, pouco a pouco,
tornou-se lento e fraco. Uma enfermeira, que não devia ter mais do que
vinte e cinco anos - deslizou até o leito e, imediatamente, olhou para

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outra. Através desse sinal - não foi preciso nada falar - ela pedia so-
corro à companheira mais competente que estava no leito ao lado. Esta,
mais madura, era uma morena forte, um pouco obesa, aparentando ter
quarenta anos. Ela assistia a um senhor velho, de olhar distante, que
dava a impressão de estar hipnotizado ou orando, contrito; aspirava,
com a ajuda de um aparelho manual, uma gosma grossa e sanguino-
lenta que se encontrava presa à garganta dele, impedindo-o de respirar.
Largou, por instantes, seu paciente e falou firme e baixo para a mais
nova:

- Seda! Vamos, seda! Dava-lhe uma ordem e parecia aborrecida com


aqueles gritos que ainda continuavam:

- Ai, Soltem-me, quero ir embora; vou reclamar à diretoria. Ai! Quero


ver minha filha.

Quem gritava era uma senhora, diferente das que ali estavam: além
de bem nutrida, forte, conseguia respirar sem ajuda dos aparelhos e
pronunciava bem as palavras. Havia tomado uma grande quantidade
de comprimidos para morrer. Pela terceira vez tentou esse meio para
terminar com seus sofrimentos; uma técnica geralmente ineficiente para
acabar com a vida. Foi amarrada no leito, pois, quando se levantava,
andava pela enfermaria, criando problemas para todos. Uma injeção a
fez dormir rapidamente, por instantes. Possivelmente, tentaria durante
uma nova briga com o marido, o suicídio. Um dia seu esforço poderá ser
coroado de sucesso; havia falhado novamente. A enfermeira mais forte
sussurrou nos ouvidos da mais nova:

- Devíamos deixá-la morrer, se é isso que ela quer. Até que não é feia...
Seu marido deve ter razões para não a querer.

Nesse instante, a fisionomia da enfermeira mais velha se alterou; foi


possível perceber em sua face um sorriso irônico, de curta duração. Em
seguida, ela voltou a cuidar do paciente que estava com dificuldade para

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respirar. A mais nova, aos poucos, ia se acostumando com aquele ambi-
ente e as brincadeiras ali possíveis de existir. 

Num outro leito, debruçados em frente a uma paciente, estavam um mé-


dico bastante idoso, acompanhado por dois residentes e uma jovem en-
fermeira estagiária. Diante deles, em coma, jazia uma mulher de cabelos
avermelhados descoloridos, sob os quais apareciam raízes de cabelos
finos e brancos. O carro em que ela viajava foi esmagado por uma pos-
sante carreta. Ela foi a única que escapou da morte.

O grupo, comandado por esse médico, tentava de todos os modos, salvá-


la. Enquanto isso, indiferente a tudo, o monitor, com seus sons típicos,
dava o alarme, mostrando os fracos batimentos cardíacos. Os médicos,
principalmente os mais jovens, olhavam atentos e com apreensão para
o aparelho. Percebiam-se suas faces sérias demais para aqueles rostos,
quase todos de crianças. Os olhares agora destoavam do normal para
essa idade, já que estão, habitualmente, brincando e rindo.

Uma mulher de mais de sessenta anos jazia despida num leito, tendo
ao lado, possivelmente, uma filha aflita, que orava e segurava as mãos
cadavéricas da paciente.

Uma pequena cortina de plástico cinzento separava, num outro leito,


uma criança que ali estava há vários dias. Era uma menina de apenas dez
anos que estava em coma e vivia seus últimos dias, em virtude de um
câncer ósseo. O tumor invadiu e dominava seu frágil organismo, há dois
anos.

Adiante um rapaz muito claro e magro, sem esperança de recobrar a


consciência. Devia ter uns quinze anos e fora brutalmente atropelado
por uma moto, dirigida por um motorista bêbado.
Perto, agonizava uma moça, que ainda teimava em mostrar sinais de
beleza. Há dois anos, fora miss em sua cidade. Em virtude de uma leuce-
mia, no seu estágio final, não mais reagia à ação dos dedicados médicos

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e dos seus medicamentos, algumas vezes milagrosos.

Num leito via-se uma maior aglomeração de profissionais: médicos,


enfermeiras e atendentes diversos. Todos se mostravam aflitos; lutavam
contra a morte do rapaz de vinte anos, estudante de Medicina, conhe-
cido de todos, que foi acidentado, há poucos dias, com a ponta de um
guarda-chuva. Ao sair de casa, percebendo que começava a chover, ele
gritou para seu irmão pedindo-lhe que jogasse, pela janela, o guarda-
chuva. Por azar, o rapaz não o segurou adequadamente. Tendo escapado
de suas mãos, ele perfurou os ossos do crânio, penetrando no cérebro.
Nesse instante, o rapaz, apesar da luta dos que desejavam salvá-lo, mor-
reu. Todo o trabalho foi inútil.
No CTI os fracassos, na luta contra a morte, eram mais freqüentes do
que os sucessos. Por isso, era difícil para os próprios profissionais de
saúde, trabalhar naquele lugar. Depois da morte desse estudante de
Medicina, pouco a pouco o grupo foi se dispersando. Todos camin-
havam de cabeça baixa, a maioria limpando as lágrimas que escorriam
dos olhos brilhantes, tristes e decepcionados. Durante alguns segundos,
ninguém falou naquela procissão improvisada e não desejada. Ouviu-se
apenas o desabafo de um deles:

- Aprendi mais uma coisa: não há justiça nessa vida; dei alta, esta tarde
a um malandro, alcoólatra, que nunca trabalhou, que sempre viveu às
custas da exploração de pessoas, inclusive do hospital...Ele já foi interna-
do por diversas vezes, voltará outras tantas. Entretanto, Otávio, que era
sério, bom estudante, tinha um grande futuro, é acidentado de maneira
tão rara e morre. Este mundo não tem mais comando...Ocorre o que a
natureza injusta escolhe...

Nesse momento, ouve-se uma voz mais alta:

- Prefiro morrer! Vou pular a janela!...Era um senhor que tivera um


infarto e que não aparentava, externamente, estar tão mal; não estava en-
rolado em tubos e conseguia reclamar. Ele queria urinar e, para isso, foi

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designada uma enfermeira para levá-lo ao banheiro já que, no seu caso,
não era necessário urinar no “marreco”. Entretanto, ele, que jamais havia
adoecido, achava preferível morrer a ser auxiliado por uma mulher para
simplesmente urinar, coisa que ele sempre fez sem ajuda. Depois de al-
gumas considerações e devido a firmeza de seu desejo, foi-lhe permitido,
apesar dos riscos, que entrasse no banheiro, desacompanhado. Feliz-
mente, diante dos olhares apreensivos, ele voltou sem ter morrido.

Erasmo assistia a tudo. Naquele instante, concordava com o que ouviu


do médico desiludido. Solitário, meditava acerca de tudo o que via. Um
ex-aluno, de andar lento e estudado, aproximou-se. Continuava tran-
stornado pela morte do amigo e sofria. Fitou Dr. Erasmo, com os olhos
vermelhos e umedecidos, o rosto pálido demonstrava cansaço. Esforça-
va-se para ser gentil.

- Professor Erasmo, como vai? Sua voz custou a sair; ainda estava choca-
do com o fracasso ocorrido antes e continuou: - o quadro de sua esposa
continua estável, nada mudou, o prognóstico é sombrio...
Procurava os termos médicos, se possível sem conotações emocion-
ais e evitava mostrar a gravidade do estado de Yeda; tentava falar sem
provocar emoções desnecessárias. Ele fixou seu olhar nos olhos do Dr.
Erasmo; esperava iniciar um diálogo...

- Ela não recuperou a consciência? perguntou, apenas para preencher o


silêncio que surgira. Sabia que ela estava em coma; continuava a ob-
servá-la.

Yeda, envolta em aparelhos e tubos diversos, estava, naquele momento,


respirando por uma abertura feita na traquéia, logo abaixo do seu que-
ixo. O ar que por ali entrava fazia um barulho desagradável, lembrando
um cano ao ser desentupido. Imóvel em seu leito, dormia, para nunca
mais acordar. De tempos em tempos os músculos da face contraíam-se
por segundos, indicando dor.

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Fixando seu corpo inerte, nu e frio, Dr. Erasmo entrega-se às suas
recordações... “Quantas e quantas vezes abracei este mesmo corpo
aquecido, agitado, cheio de vida e ternura, envolto em roupas limpas e
cheirosas, atraentes e coloridas.“

Agora Yeda dava-me seu último adeus, através do único sinal de vida
visível: sua respiração barulhenta. Estava prestes a abandonar tudo; não
mais dava resposta para nada... Ela, como uma planta criada sem terra
e sem sol, ainda vivia, devido ao adubo e à luz artificial. Olhava-a com
pesar e, ao mesmo tempo, ouvia o Dr. Juarez usando frases e palavras
contaminadas pelo sofrimento:

- Compreendo sua dor, sempre há esperanças, mas, demorou a con-


tinuar, elas, você sabe, como médico que é, são poucas; não deve esperar
muito. Não faz muito tempo, sua respiração parou; tivemos que lutar
muito; fizemos respiração artificial...Demos choques ... Injetamos... Só
com muito custo ela voltou. Agora, houve uma melhora, uma pausa.

Dr. Juarez, olhando para cima, examinou o monitor; ondas frágeis e


lentas, enviadas pelo coração de Yeda, teimosamente, continuavam. Os
batimentos cardíacos, transformados em pequenos riscos, ameaçavam a
todo momento parar, para sempre. Dr. Juarez continuou:

Mas, a qualquer momento, tudo pode reverter. A lesão no cérebro foi


grave, entretanto, se recuperar, ela não terá movimentos do lado direito.
Ela é canhota, não é? A bala entrou no ouvido esquerdo; possivelmente
não mais irá falar... nem mais pensar como antes...

Ao pronunciar isso, fitou-me; seus olhos se encheram de lágrimas, sua


voz sumiu...

Eu bati no seu ombro, com ternura. Observava esse jovem diante de


mim. Tive vontade de abraçá-lo, como se faz com um filho, um filho que
jamais tive. Timidamente, não fui além de um leve tapinha no seu om-

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bro. Esse cumprimento, terno e meigo, serviu como despedida. Nós dois
estávamos abafados; precisava sair, andar. Ali, tudo era insuportável.
Sentia que podia, caso não saísse, desmaiar. Tive vontade de chorar, de
ser amparado por alguém, de me ajuntar com os que, como eu, sofriam
amargamente naquele local difícil de perceber a vida.

Minha mulher, indiferente a tudo, estava alcançando o que ela mais de-
sejava, a paz, a ausência de sofrimento, o nirvana, uma vida diferente da
experimentada por ela. Possivelmente, nesse momento da agonia final,
ela estivesse sonhando com o outro mundo, um mundo que ela sempre
desejou. Ele existe? Não sei. Sinto-me confuso. Como é difícil enfrentar
tudo isso; tão próximo da morte. Sinto-me atordoado, às vezes atraído
por aquele descanso. Como gostaria de sumir. Virava meu rosto para
outro lado, olhava para cima, para os lados, para o crucifixo, principal-
mente em direção a janela, para a vida que lá fora continuava, corria,
sem ligar para meus sofrimentos. Naquele salão, ao contrário do mundo
externo, o fim rondava e impregnava todos os cantos, a morte estava em
todos os corpos. A vida no CTI era percebida com mais lucidez, pois ela,
todos sabiam, podia terminar a qualquer momento.

Caminhei para o pequeno vestiário, colocado ao lado da entrada. Antes,


dei um adeus a Yeda, com um olhar desesperado; pressentia que era essa
a última vez que a veria viva, fitei-a, mais uma vez, despedindo-me dela;
não tive resposta.

Arranquei, lentamente, as botas brancas colocadas por cima dos sapa-


tos; o largo e imenso avental foi retirado com a ajuda da moça séria da
portaria. Despedi-me de todos, caminhei até à sala de espera, ao lado do
CTI, onde decidira passar o resto da noite. Não havia intenção de retor-
nar à minha casa. Para quê? No meu apartamento vazio a solidão seria
mais penosa ainda; lá estaria só, diante da morte, diante de mim; aqui,
ao lado da enfermaria, tinha companheiros, padecendo do mesmo mal
que eu sofria. Todos, naquele instante, eram capazes de compreender a
minha dor, como eu compreendia a deles. Na minha casa, aprisionado

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ao meu silêncio, não teria rostos para olhar, para expressar minha soli-
dariedade e compreensão.

Assentei-me numa poltrona. Observava os pingos d’água que caíam


vagarosamente nos vidros da janela; um a um; escorriam em direção
à terra. Mas provocavam um som suave e acolhedor, que contrastava
com o barulho angustiante do CTI. Sentia frio. Olhei para os lados, de
soslaio; pude ver que eram poucos os meus companheiros. Esperávamos
solidários a chegada da morte.

De um lado, pude ver um rapaz, aparentando, no máximo vinte anos,


que calçava chinelos de alças, vestia bermuda azulada e camiseta preta
- parecia não sentir frio. Ao seu lado, dando-lhe as mãos, erguia-se uma
moça, um pouco gorda, da mesma idade, que, constantemente, o abraça-
va e beijava. Pareciam estar amando, vivendo, enquanto esperavam o fim
de alguém. Os dois, sem conversar, entrelaçados um ao outro, iam até à
janela, paravam, olhavam para fora como se observassem atentamente
alguma coisa e, voltavam para o mesmo lugar onde antes estiveram. Eles
permaneciam calados; não olhavam para ninguém.

Um velho assentado a minha frente, cabisbaixo, olhava com tristeza para


a janela, perdido, distante. Parecendo frustrado, ele abaixava o rosto e
desviava o olhar para o chão, para a cerâmica cinzenta do piso. Tossia,
engasgado; uma tosse seca, nervosa, aborrecida. Todo barulho, ali, abor-
recia. Tirava do bolso de trás da calça creme e bem talhada, um lenço
branco amarrotado, com o qual limpava o rosto enrugado, salpicado de
manchas pretas. Sua face cansada transmitia uma espera do pior. Ali,
tudo exalava tristeza e desilusão.

Tive vontade de me aproximar, transmitir um pouco do meu drama.


Quem sabe isso poderia me aliviar? Mas fui o de sempre: escondi meus
problemas, examinava o dos outros.

Lembrei-me do casamento, do consultório, de minha vida como médico

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e professor. Entrei nesse mundo para me aliviar; abandonava mental-
mente e por instantes aquele lugar.

Recordava as conversas que tivera com Yeda. Em lugar de ouvi-la e as-


similar o conteúdo com naturalidade, examinava-a, para verificar em
que ela acreditava; como ela deduzia suas idéias dos fundamentos e,
principalmente, seus erros lógicos. Não concordava com a maneira dela
pensar: “como pensava mal”, apesar de minhas críticas indiretas, que
mais tarde se tornaram diretas; ela continuou a usar princípios falsos e
inadequados para formular toda sua rede de raciocínio.

Examinava, entre outras coisas, o modo pelo qual percebia a nossa


relação: a maneira dela se vestir e se alimentar. O nosso amor já tinha
terminado há muito tempo, muito antes de seu desespero final. Percebia
que estávamos, há muito, afastados, mesmo quando nossos corpos esta-
vam bem colados, um abraçando o outro. Ficava a olhá-la, enquanto ela
falava; queria dar-lhe a ilusão de que estava prestando atenção, interes-
sado na sua conversa. De fato, criticava tudo.

Eu me culpava por tratá-la desse modo; de despi-la, diante de mim, sem


que ela notasse. Recriminava-me, também, por não mais amá-la e não
ser capaz de contar-lhe a verdade; não mais estava ligado à vida de Yeda,
uma mulher, que um dia, amei e lutei para ser minha. Estranhamente,
depois de alguns anos de casados, torcia para que algum poder mágico,
vindo de fora, a afastasse para bem longe, inclusive do meu pensamento.
Tudo isso era enjoado.

As discussões dos problemas do cliente, os temas discutidos milhares de


vezes com os alunos. Como tudo aquilo me excitou numa certa época.
Como tudo mudara! Aos poucos, o que me interessava, tornava-se, dia
após dia, insuportável. Naquele momento, deprimido, cercado pelo
sofrimento e pela morte pensava: “Até quando continuarei a ouvir as
conversas dos clientes, a discutir com um jovem aluno que nada mais
me acrescenta, meninotes ingênuos, que supõem saber o que não sabem,

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que ainda não construíram uma critica acerca do que pensam.”

Cada um se julgava mais importante do que o outro. O que leva certas


pessoas inteligentes a apresentarem raciocínios tão infantis? Pensava na
procura de todos da identidade perdida no tempo, o sonho de se apossar
de uma teoria que pudesse explicar sua vida complexa, a eterna busca
do homem de uma ideologia salvadora. Comparava a cabeça dos alunos
com a minha: eu, também, na minha juventude, procurei compreender a
mim mesmo e, depois, meus complicados clientes, através de uma teoria
correta, que explicasse tudo e que fosse boa para todos. Como fui enga-
nado pela Psicanálise freudiana! Depois, por outras e outras suposições
teóricas. Sinto raiva de mim mesmo, de minha burrice. Agora sabia que
uma teoria que explicasse tudo jamais existiu ou existirá. Perguntava-me
como as teorias psicológicas são, na maioria das vezes, falhas, absurdas,
anti-científicas e, por isso mesmo, altamente buscadas, defendidas e
aceitas como explicações para todos os fatos da conduta humana.

Sei que, ao ouvir as conversas desinteressantes dos alunos e dos pa-


cientes, obrigo-me a esquecer minhas dores, abandono o que me abor-
rece. O cliente, postado à minha frente exigindo minha ação, forçava-
me a não mais pensar, nem mesmo refletir acerca dos meus problemas
preferidos e idiossincráticos. Por momentos esquecia-me que estava
sendo também ajudado...Irritava-me por estar ali, diante de pessoas
que choravam desesperadas, relatando que haviam discutido com um
transeunte na rua; que o filho não quis escovar os dentes, o que resul-
tou numa briga; que a namorada não telefonou na hora marcada; que
a viagem à cidade histórica, no fim da semana, não pôde ser realizada;
que, naquela noite, o cliente sofrido só conseguiu dormir sete horas pois
acordou com o som alto do vizinho. Fingia não perceber que o excesso
de trabalho era minha terapia; ao ajudar os clientes, tratava-me: evitava
pensar na vida que escolhi. Será que escolhi? Não seria isso o que a
maioria das pessoas fazem?

O que leva um problema a ser percebido como sendo mais grave do que

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outro? Apenas por ser nosso? Do indivíduo? Os meus são mais graves?
Ou existem outros fatores que podem servir de indicadores da gravidade
deles? Jamais encontrei uma resposta para essas indagações. Eu mudava
constantemente de opinião, não me apegava a nenhuma, por um longo
tempo.

Já fui religioso e, noutra época, comunista. Depois, tornei-me anti-


comunista e anti-religioso. Imaginava poder transformar o mundo,
encontrar uma saída e um Messias para resolver o drama humano.
Presentemente não mais sonhava, não era nem uma coisa nem outra;
não se sentia capaz de ir a favor ou contra essas idéias. Não acreditava e
nem lutava em defesa ou contra nenhuma. Sabia que, posteriormente, eu
próprio a criticaria com o mesmo vigor com que a havia defendido.

Mesmo quando tudo parecia certo e muito bem explicado, descobria,


numa tarde cinzenta de tempestade e de ventos fortes, que, mais uma
vez, as belas e sedutoras descrições do mundo não passavam de su-
posições falsas. Tinha sido, milhares de vezes, enganado pelas expli-
cações acerca dos fatos dessa natureza, onde se inclui o Homem.

Já caí demais nisso, espero não mais ser enganado. Quem sabe estou
sendo enganado agora? O único mundo que posso entender, a cada mo-
mento, é o meu; jamais penetrarei no mundo do cliente.

Hoje, sei que também os fatos vistos, ouvidos por nossos órgãos dos sen-
tidos, são percebidos de outro modo, pelos órgãos dos sentidos de out-
ros animais: os olhos da águia vêem mais movimentos e cores do que os
nossos; o focinho do cão sente mais o cheiro do que o nariz humano; os
órgãos sensoriais da formiga percebem movimentos de luz com maior
sensibilidade que nosso pobre organismo. Pergunto-me: qual é o mundo
verdadeiro, o meu ou o da águia? Tudo isso me leva a pensar que não
somos animais superiores; somos, apenas, diferentes. Só temos acesso ao
mundo humano e, por isso, o julgamos superior; talvez os pernilongos
ou as bactérias, nas suas tertúlias, também pensem que seu mundo é

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superior, mais evoluído do que o dos outros, como todos os clientes pen-
sam. E quem, em sã consciência, poderá afirmar o contrário? Eu sei que
uma simples e criticada barata seria capaz de correr mais rapidamente
do que um homem, que um sujo besouro carrega, relativamente, muito
mais peso do que um homem forte, uma pulga pula, percentualmente,
dezenas de vezes, mais alto do que um campeão olímpico. Tudo isso me
desanima, me emperra, impedindo-me de discutir comigo mesmo ou
com clientes envaidecidos de suas descobertas, como Lucinho e outros
jovens, com as mesmas disposições.”

Dr. Erasmo foi despertado do seu devaneio pela atendente fria. Esta lhe
pediu para entrar no CTI.

O Dr. Juarez, chegando até à porta, veio lhe dizer, agora num tom de voz
mais firme, que sua mulher acabara de falecer. Não houve susto nem
decepções, como tudo que é esperado.

Era preciso agir, preparar o velório, comunicar aos familiares e tudo o


mais. Ainda bem que não tinha filhos, dizia a si mesmo, consolando-se.
Sabia que era um consolo tolo. Não havia saídas, depois daquele dia tu-
multuado que o esgotara era encarregado de tomar as providências para
a terrível missão.

Partiu em direção a elas; na realidade, um pouco aliviado por entrar


em contato, novamente, com o mundo externo, o mundo sensorial dos
estímulos, dos fatos concretos, quase sempre mais fáceis de notar e re-
solver do que o das elucubrações filosóficas e éticas.

Rapidamente abandonou aquele lugar; começou a cuidar do fim de Yeda


e do novo começo para si. Como seria agora? Perguntava-se angustiado.

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Consulta Libertadora
Dr. Erasmo, após o sepultamento de Yeda, aprisionado em casa, não
conseguiu ler nem ouvir suas músicas preferidas. Achou melhor voltar
ao consultório três dias após a morte de sua mulher, retornar para sua
“terapia” habitual. Era insuportável ficar em casa sozinho ou andando
pelas ruas, sem se ligar a nada de concreto, de simples.

Teria, no seu retorno, um grande número de clientes; isso era bom e


ruim. Pretendia não conversar acerca da morte de sua mulher com os
poucos clientes que ficaram sabendo do seu falecimento. Queria evitar,
tanto quanto possível, tornar-se um cliente do cliente, um papel que ele
sempre criticara; estava ciente disso. Não deixava de estar preocupado
com as possíveis críticas, poderiam vê-lo como incompetente por não
ter evitado o suicídio da esposa.

Soprava uma brisa agradável, própria dos dias chuvosos, que tornavam
a temperatura quase fria. O céu estava parcialmente escuro; viam-se
fendas azuis no horizonte: tufos de nuvens, colorida pelo sol, formavam
cachoeiras avermelhadas...Isso dava àquela tarde um colorido calmo.
A tarde era boa para reflexões, que se desenrolariam naquela velha sala,
palco de grandes e pequenas confissões, de momentos de profundas
tristezas, mas também de alegres comemorações.

A velha e cansada poltrona esperava pelos clientes. Ela, que já abrigou e


protegeu velhos e crianças, pobres e ricos, inteligentes e débeis mentais,
ainda estava vazia. Dr. Erasmo olhava-a e lembrava de alguns clientes
que ali estiveram, principalmente os mais raros e estranhos; “São eles
justamente os que mais nos marcam; os mais diferentes da gente. Os
outros, a maioria deles, não nos incomoda, não nos chama atenção e é
esquecida. Os jornais não dão notícias comuns: “Um homem atravessou
a rua e não foi atropelado” ou “Foi ao banco e não foi assaltado.” As notí-
cias são os fatos mais raros: “Matou a esposa que tanto amava; degolou o
pai e a mãe para receber a herança mais cedo.”
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Dr. Erasmo pega as fichas e reflete. “Hoje, parece que tudo trabalha para
meu bem-estar; não está incluído, nenhum dos clientes que me abor-
recem, que resistem e criticam qualquer fala... E Lucinho: como estará?
Acredita tanto no modelo aprendido do Prof. Pinelli... Coitado...Será
o primeiro a entrar... É um rapaz simpático, um pouco ansioso; busca
interpretações milagrosas. Acredita ser importante por ter dado origem
às teorias “certas”, acerca do comportamento e que, segundo o autor
delas, já tinham sido defendidas em assembléias mundiais, congressos
e revistas como a Psychological Review, famosa por relatar as teorias
psicológicas mais sérias e respeitadas.”

Lucinho entrou como sempre:

- Boa tarde; como passou? Perguntou Erasmo.

Esforçava-se para mostrar seu modo habitual, empostou a voz e tentou


esconder seus problemas.

- Mais ou menos... Saí daqui insatisfeito. Não falei o que queria, quase
nada, ou melhor, nada! Não lhe expliquei como sinto agora, tentando
me compreender após as interpretações do professor.

- Mas você poderá me explicar isso hoje. Por que não?

- Eu sei, mas o tempo aqui é tão pouco; acaba não dando para contar as
coisas importantes. Além disso, às vezes penso que o senhor acha que é
bobagem o que falo e não acredita em mim...Assim, fico em dúvida se
devo ou não falar acerca de meus problemas, do que agora descobri a
meu respeito... Essa última frase foi dita com ênfase e bem lentamente.

- Pois, comece a contar, estou pronto, interessado em ouvi-lo.

Dr. Erasmo, por mais que evitasse, comparava os fatos da vida de Lu-

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cinho com a sua. Pensava antes dele entrar: “A gente sempre pensa que
nossos sofrimentos são maiores do que os dos outros, acho que todos
têm razão, só podemos sentir o que nos acontece: as nossas emoções; as
dos outros, não sentimos, somente pensamos acerca delas. Entretanto,
temos certeza de que elas não são nossas, que elas não nos atingem. É
fácil compreender e suportar a dor do outro... A nossa, ao contrário, é
incompreensível, insuportável e destruidora.”

- É penoso entrar direto onde quero. Preciso lhe dizer, antes, coisas im-
portantes para que compreenda por que a teoria do professor se encaixa,
melhor do que as outras - dezenas delas - no meu modo de ser.

- Você é quem decide. Poderá primeiro relatar as interpretações e, de-


pois, de onde elas nasceram ou, ao contrário, primeiro, os fatos e, poste-
riormente, as deduções ou teorias acerca dos fatos.

- Você me interrompe e me atrapalha. Já esqueci onde estava, o que que-


ria dizer. Seria melhor você não me cortar... ficar calado.

- Como achar melhor. Pode começar...

- Já me interrompeu de novo! Tornou a me confundir. Quando inicio


um pensamento, tenho um objetivo, aonde quero chegar, o fim dele,
entendeu?

- Hum...

- Hum, hum. Isso também não me agrada. Se começo e você faz um


comentário, presto atenção, começo a pensar acerca dele...Assim, aban-
dono minha meta, a conclusão que tinha em mente e fico confuso sem
saber o que falar. Entendeu?

- Sim.

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- Eu fico chateado e ao, mesmo tempo, sentindo-me culpado por ter
sido grosseiro, não gosto de ser mal-educado. Minha mãe me acusou
disso a vida toda; colocou em minha cabeça os mais pesados e humil-
hantes adjetivos: burro, sem educação, desengonçado, desobediente, e
muitos outros... O pior é que acredito nela, mesmo criticando-a. Jamais
fui chamado de valoroso, bonito, elegante, inteligente. Somente o Prof.
Pinelli me deu uma outra idéia, a que começo a ter de mim, agora. Daí,
quando o senhor interrompe, fico preocupado. Não quero mais fazer
mal, nem brigar com ninguém mas, ao mesmo tempo, quero.

Após uns instantes, retorna:

- Eu fugi do assunto, é sempre assim... quero falar uma coisa e falo outra.
O que eu ia mesmo dizer? O senhor se lembra?

- Você falou várias coisas: criticou-me e sentiu culpa; falou dos rótulos
que adquiriu de sua mãe, lembrou que queria descrever alguns fatos de
sua vida, os quais foram analisados pelo professor e deram origem às
interpretações sobre você, das quais você tanto gosta...

- Gosto não, elas são reais... elas mostram o que eu sou. O senhor fala:
“que eu gosto”, como se fosse uma simpatia a uma teoria... mas, é uma
realidade. As interpretações que agora tenho a meu respeito retratam
o que sou. Elas são aceitas por todos, o único que parece discordar é o
senhor. É uma teoria científica, ouviu?

- Segundo me contou houve uma época em que você achava verdadeiras


as interpretações dadas por sua mãe, a seu respeito. Não houve, também,
um tempo, no qual você percebeu que as interpretações eram palpites,
agressões à sua pessoa? Você não aceitou, em épocas sucessivas, inter-
pretações diferentes, de coisas diferentes, talvez até opostas?

- Não o entendo! Querer relacionar as bobagens ditas por minha mãe


com as sábias teorias do professor, que foram observadas, enquanto

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as idiotices de minha mãe eram palpites, opiniões retiradas do nada...
”Serão mesmo?“ comentou, consigo próprio, Lucinho.

- Você já fez consultas com outros psiquiatras ou psicólogos, não é?

- Claro, você sabe disso: dezenas deles.

- E cada um lhe falou coisas diversas; interpretaram sua conduta con-


forme um modelo ou um esquema de interpretações mais ao gosto
deles. Você acreditou nelas, numa certa ocasião, não só pela autoridade
de quem o disse, mas também pela aparente certeza com que eles a
apresentaram, fazendo a partir delas deduções lógicas. Certo? Entre-
tanto, você, tempos depois, duvidou delas, percebeu que outros terapeu-
tas tinham modos diferentes de selecionar ou abandonar alguns fatos,
de enfatizar aqueles que julgavam de maior relevância, e de agrupá-los
teoricamente. Qual garantia você tem agora da veracidade da teoria do
Prof. Pinelli ? Alguns de seus amigos ou inimigos sabem a seu respeito
coisas que você jamais pensou sobre si mesmo. Isso indica que eles têm
razão? Não! Apenas que cada um pensa ou interpreta as pessoas de um
jeito próprio...

- O que senhor está querendo dizer? Interrompeu Lucinho, preocupado


e confuso. Pensa que eu estou errado? Que não há uma certeza para me
apoiar? Você, em lugar de me ajudar, está me embaraçando com essas
idéias. Eu vim aqui para ser socorrido, para ser protegido e receber um
apoio. Entretanto, você me vem com essa conversa de relatividade, ou de
probabilidades, não sei mais o que... Eu sei o que tenho, sei porque fiquei
assim, o que devo fazer para viver bem...ele me esclareceu. Muito bem!
Estou esperando um leve empurrão de sua parte para me tornar uma
outra pessoa. E digo mais: o senhor deveria aprender um pouco com ele,
ler mais o que ele escreveu. Ele conhece a realidade do comportamento
e as causas dos problemas mentais e emocionais, coisas que o senhor
desconhece.

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- Somos diferentes...O que ele disse serão sempre suposições acerca de
situações...

- Não tem mesmo jeito...Estou vendo isso, claramente. Essa bobagem


não precisava ser falada. Às vezes penso que estou perdendo meu tempo
vindo aqui. Hoje, como há quinze dias, nada falei de valor. Já me perdi
de novo... não sei bem o que desejava falar... Não quero ser cortado! Não
quero saber de suas idéias ou de seus problemas! Já os tenho de sobra!
Sei quem sou!

Nesse instante, Dr. Erasmo lembrou-se de Yeda, do suicídio. Lucinho


continuou:

- Um dos primeiros psicólogos com quem me consultei...meio bobinho...


até que acertou... em parte, meu problema. Ele me disse que eu tinha
“carência afetiva”; que estava querendo alguém para me amparar, para
me proteger dos traumas causados pela maneira como fui criado.

Nesse instante, sem querer, ele lembra das noites que passou junto à
mãe; dos abusos sofridos. Lembrava, com ódio, essas cenas. Pára e olha
para Dr. Erasmo, perguntando-lhe, timidamente:

- Já lhe contei os fatos referentes à minha mãe? Mostrando-se pertur-


bado - lembra-se?

- Sim.

- Pois é. Fui educado erroneamente. Eu não recebi carinho de minha


mãe, recebi aquilo que você sabe, que me dá nojo, só de lembrar. Recebi
mensagens, muitas, por sinal, credos e mais credos, que não me largam.
Essas cicatrizes atrozes não saem de minha alma. Não recebi amor de
meu pai, que sempre esteve afastado. Por isso, por não ter introjetado ou
assimilado uma boa mãe, estou ainda na idade adulta buscando a mãe
que jamais tive. Minha irmã me critica por isso. Pior, ainda, procuro

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sempre a pessoa que jamais pode me dar alguma coisa. Adquiri uma
baixa auto-estima, por não crescer com naturalidade... nunca me senti
bem... Como não me amo - me odeio - também não sou capaz de dar
aos outros o amor que não encontro em mim. Não posso amar se não
encontro amor dentro de mim. Entende? Você está me ouvindo? Parece
estar longe!

- Claro, pode continuar, estou entendendo.

Dr. Erasmo estava realmente longe; rememorava seus problemas. Ao


mesmo tempo, esforçava-se para manter-se atento - ou fingir - à fala do
cliente.

- Como o início foi quebrado - houve um defeito no desenvolvimento,


ainda muito cedo - eu não evoluí de uma fase para as outras. Estagnei-
me na fase infantil. Sei que estou preso à minha mãe, até hoje. Revolto-
me contra isto e critico-me. Não recebi o que penso que deveria ter
recebido. Vivo procurando um amparo, não em mim, mas fora, aquilo
que não tive nos meus primeiros anos de vida.

- Sim, essa é uma das explicações acerca de certos comportamentos de


adultos! Existem outras... Dr. Erasmo entrou na conversa para escapar
das próprias reflexões que o atormentavam.

- Não quero ouvi-las! Ouviu? Já as conheço! Andei por toda minha vida
à procura de minha identidade; tentando escapar do labirinto onde
entrei; busquei saídas usando idéias ora de um ora de outro... Sei que a
explicação do professor também é falha. Sei disso, mas gostei dela. E daí?
Tudo bem! Vejo, com claridade, que ela não revela tudo. Não mostra o
que minha mãe fez comigo para que eu ficasse com pavor dela...Quais
idéias tiveram maior peso, me dominaram e me paralisaram... ? Não
consigo abandonar essas sujeiras... Elas me fazem tão mal...

Dá um suspiro e continua:- O que faço e penso tem muito pouco daqui-

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lo que quero mais internamente. Meu pensamento colabora mais para
reforçar as minhas idéias negativas do que das positivas; são as ruins que
impregnaram-se em minha mente doentia, lamentou Lucinho. 

- Podemos explicar uma conduta ou qualquer fato de vários modos


diferentes, continua seu raciocínio o Dr. Erasmo, sem se importar com
os desejos de Lucinho. Todos podem estar certos... Assim, posso expli-
car uma conduta, conforme os vários pontos de vista dos psicólogos,
outro a explicará através da Sociologia, da Antropologia, do Direito,
da Bioquímica, da Biologia, e até da Física. Assim, a compreensão do
fato dependerá do ângulo, das suposições científicas, do ponto de vista
existente na mente de quem examina e explica o acontecimento... Cada
explicação se apoia em determinados fundamentos ...é tecida ou costur-
ada em teorias diferentes, partindo de verdades diversas e parciais acerca
do evento; assim é que, também, tira conclusões, cada uma a seu modo.
O difícil, ou impossível, é trabalhar com todas as explicações em pro-
fundidade. Por isso, usamos as idéias simplificadas, naturalmente não
muito adequadas. São mais fáceis... O que é uma explicação? Nada mais
do que o relacionamento de um fato a outro ou a vários outros conhe-
cidos. Ora, só podemos relacionar um fato a outro que temos na cabeça
e, além disso, a própria visão é nossa. Os conhecimentos de outros, não
podemos usar no seu original mas, apenas, sob nossa interpretação! Veja
as doenças: sempre foram propostas ou inventadas várias explicações
para elas; umas, mais rigorosas, chamadas de científicas, outras, mágicas,
religiosas, etc. as não-científicas.

- Quem está falando em doenças? Você agora quer me catalogar de


doente?

- Não se trata disso! Estou tentando lhe explicar, generalizando... Toda


explicação médica se acha presa a princípios ou “medicinas” diferentes
- emprestadas de outras teorias, que, por sua vez, provêm de outras e
assim por diante. Todas elas examinam o mesmo problema, mas, cada
uma, através de referenciais diversos. O que eu quero te dizer, em con-

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clusão, é nunca há certeza, vivemos no mundo da probabilidade, da
dúvida. Foi essa preocupação que deu nascimento ao que chamamos de
cultura e nisso incluem-se as diversas explicações dos psicólogos.

- Eu sei disso, cada um segue uma teoria diferente: um é psicanalista,


outro jungiano, outro, gestaltista, neurolingüista, outro faz uso de hip-
nose; alguns usam a Teoria dos Sistemas; outros a Cognitiva. Não havia
necessidade de ser dito. Eu sei disso! Tem de tudo. O senhor segue qual
linha?

- Como? É...bem... a “Erasmista”. Ela resume tudo que já li, vivi e pensei
acerca da conduta humana. Procuro ser um pouco mais livre...

- Ah...Ah...Nunca vi coisa igual. O senhor é esquisito mesmo! Atira para


todos os lados.

- Agora, por exemplo, posso lhe dar uma interpretação baseada na Teo-
ria dos Sistemas! “Você precisa se manter doente para viver, para você
seria perigoso sarar”. Ela é certa?

- Isso, minha irmã, que é uma ignorante, já falou...Grande


descoberta!...O senhor sabe o que é “sarar” ?

Dr. Erasmo, sem se importar com o comentário insultuoso, continuou:

- As teorias psicológicas que você tanto adora - sempre viveu atrás delas
- são esboços grosseiros da conduta das pessoas em geral. O indivíduo
particular não pode ser entendido por essas generalidades. Esse é o
grande erro das interpretações.

Contaminado pelo sofrimento, Dr. Erasmo falava emocionado, sem


perceber. Aos poucos, abandonava o papel de terapeuta. Excitado - e,
possivelmente, gostando desse estado - ele continuava:

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- Jamais teremos uma idéia precisa do mundo com respeito às relações
humanas. Os fatos dos psicólogos derivam das teorias adotadas por
eles - suas “realidades” fictícias. Observe as análises a que se submeteu,
principalmente as palavras usadas para designar o seu caráter: todas
elas descrevem as transações, um acordo entre você e as pessoas, ou
entre você e o meio-ambiente. Entretanto, erradamente, sempre falamos
como se a característica pertencesse à pessoa. É um grave erro. Nenhum
homem é “dependente”, “otimista”, “mau”, “bom”, num vazio... sem se
estar relacionando com algo. Cada uma dessas palavras são abstrações -
todas retiradas de relações - descrevem modos de trocas. Confundindo
uma coisa com outra, confundimos a troca ou relação pelo seu nome...
Alguns julgam a veracidade da teoria pela fé - uma espécie de conversão
religiosa - e pelo número de seus seguidores; desse modo, a que tiver
um maior número de crentes possuirá a verdade. Entretanto, a maio-
ria das teorias que mais seguidores têm, partem de crenças, não com-
provadas; sonhadas. Cada uma conclama os desorientados a fazerem
parte do grupo, irmanados na mesma idiotice. Seu número é grande; os
seguidores das mentiras. Você coleciona teorias psicológicas diversas e,
presentemente, dá muita importância as obras do Prof. Pinelli. 

- Não é bem isso! - retruca Lucinho espantado: - Fiz análise com ele,
aprendi muito; penso que o que ele me ensinou; ajudou-me mais do que
essas interpretações desconexas. O senhor está me enlouquecendo...

- Você fez tratamentos com vários especialistas, entretanto segue sendo


o mesmo. Em que mudou? Nada! Talvez agora saiba, como ninguém,
relatar as idéias de um e de outro, só isso. É muito pouco. As interpre-
tações que você ouviu não foram diluídas em você, não se transfor-
maram em condutas e mudanças no modo geral do pensar. Parece que
se esforça para continuar sendo o mesmo, apesar de ser capaz de repetir,
pois tem boa memória, as idéias dos terapeutas. Não sei se seria mel-
hor você mudar; se “curasse” tornar-se-ia responsável, adulto...sua vida
poderia ficar pior, mais vazia... toda sua família precisaria criar novos
encantamentos para sobreviver, pois, em grande parte ela vive em torno

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do seu problema...

Geralmente durante as entrevistas ele falava apenas o essencial, come-


didamente, sabendo representar seu papel de psiquiatra. Naquela tarde,
ele transbordou; não suportou a pressão interna. Cada vez mais o Dr. Er-
asmo, transformado, deixava sair, sem notar, suas idéias desencontradas.
Um outro Erasmo comandava seus pensamentos. Ele agora se expres-
sava como um homem qualquer, angustiado, desesperado. Prosseguiu,
contraindo todo o corpo e elevando o tom de voz:

- A doença dá sentido à sua existência e à de sua família; através de suas


crises todos escapam da vida monótona em que estão presos. É o medi-
camento, o seu lenitivo. Eles, sem um rumo interno, agarraram-se aos
seus problemas; orientam-se por ele, por isso mesmo, você, doente, é
importante para eles. Todas as famílias desajustadas têm seu “Lucinho”,
como fonte de orientação e adoração.

- Por que o senhor me ataca dessa maneira? Não estou entendendo...


Não pretendo brigar... “Mas sempre acabo brigando...Não sei por que,
arrependo-me, depois. Na verdade, não nasci para isso, não entendo a
razão pela qual vivo provocando certas pessoas ou respondendo às suas
provocações...Não são todas, apenas algumas... O que será que fiz para
provocar o Dr. Erasmo dessa maneira?” perguntava-se Lucinho. Lem-
brava-se, nesse instante, de sua mãe.

- Estou lhe ensinando... Vivemos num mundo cheio de armadilhas...


Ignoramos quando seremos presos nas arapucas, continuou, tenso, Dr.
Erasmo. Eis a desgraça do homem: ter consciência de sua impotência, de
sua ignorância por não saber quando virá o desastre, a morte. E ela vem
sempre. A vida humana é uma luta constante; uma busca para evitar as
doenças, desastres, separações, a velhice e a morte, o fim. Buscamos, pri-
mordialmente, fontes de segurança para nos apoiar, para fugir do incer-
to. Todas as terapias, ideologias e religiões tentam isso. A sociedade está
confusa; as pessoas fogem, sem saber pra onde, do perigo, do descon-

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hecido. Há muitos caminhos disponíveis, entretanto ninguém sabe
escolher o que quer. Estamos, a cada dia, mais desadaptados, aumentam
o número e a complexidade dos problemas para todos, mas ninguém
percebe e todos continuam a explicar os fatos com as mesmas idéias
antigas, simples e míticas. Cada um usa sua droga particular para evitar
encarar os dramas encenados diante deles. Os mais corajosos, tendo al-
gum tempo para pensar, tentam, incessantemente, saídas mais honrosas,
criando ou produzindo algo. Certamente, num futuro próximo, iremos
desaparecer, como aconteceu e acontece com diversas espécies animais...
Nosso dia chegará...
- Na sua opinião, nós caminhamos para isso? Acredita mesmo nisso ou
está debochando? O senhor parece mais deprimido do que eu...O que
aconteceu? perguntou espantado, procurando ser solidário.

- O Homem, desde que largou seus primos, os chimpanzés, tem guer-


reado e matado, sem parar, em busca do poder e da riqueza. A sociedade
vive, inutilmente, tentando domesticar a fera existente dentro de cada
homem. Estamos sendo enganados pelas ideologias. Quais são nossas
metas? Acumular e acumular; destruir; destruir até a si mesmo - o que
ele mais odeia: a espécie da qual faz parte. Nós somos o nosso maior
inimigo, esforçamo-nos para fugir do que somos. Habituamos a tudo,
acostumamos com a confusão constante, quando não as temos, as pro-
vocamos. Não mais suportamos a calmaria, o simples. Entediamo-nos,
facilmente. O homem tem, através dos tempos, tentado o impossível,
entender o incompreensível...a complexidade onde estamos incluídos -
através da mente, uma outra complexidade, que, por sua vez, nunca foi
nem jamais será entendida. Temos que prosseguir... continuar a viver.
Entretanto, não sabemos ao certo de onde viemos, onde queremos che-
gar.

Dr. Erasmo, cansado e abatido deixava fluir sua própria fala desorde-
nada, perguntando-se: “Por que teria de ser diferente? Para que ser
coerente? Tenho o direito de deixar, num dia desses, de ser o psiquiatra
controlado, como o exigido pelas bobagens inventadas pelos sábios-

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ignorantes, donos do poder da Psiquiatria”.

- Conversei com muitos terapeutas - nesse instante Lucinho cortou,


bruscamente, a verborréia do Dr. Erasmo. Demonstrava calma e soli-
dariedade e prosseguiu: - Cada psiquiatra tem sua história; suas nódoas,
como todos nós; eu pescava isso nas entrelinhas. Não é difícil perceber,
estou acostumado, todos são contaminados pela sua vida, família, credos
escondidos, todos têm suas marcas próprias, idéias gerais, filosofia e,
naturalmente, terapia. Cada terapeuta me contou, sem o desejar, implici-
tamente, seus segredos escondidos; alguns interessantes, muitos até me
ajudaram...Mas... suas idéias são mais estranhas ... Causam-me espanto!
Tenho medo delas...chegam a me deprimir. Estou transtornado. Noto,
ao mesmo tempo, estranhamente e sem o desejar, que sou atraído por
este seu jeito de hoje, pois me parece natural, espontâneo; chego a gostar
da forma...Admiro os que assim agem, tenho simpatia por esse modo,
mesmo quando não concordo com o conteúdo que expressa...

- Aprenda isso - Dr. Erasmo olha para Lucinho, sério e encurvado, à


sua frente, como um pai olha para um filho, dando o conselho crucial.
- Você se queixa de que é criticado; porém, ao o criticarem, todos estão
imaginando algo, provisoriamente, sobre você, conforme a emoção e o
desejo do momento, semelhantemente às interpretações terapêuticas.
Mas, aprenda para sempre: eles estão dizendo muito, às vezes somente
acerca deles próprios e, não, a seu respeito.

Dr. Erasmo percebia que todo o seu pensamento estava contaminado


pela tristeza e desespero, entretanto, sentia uma pressão interna para
continuar:

- Somos enganados pelas afirmações, pensamos que aquilo que ouvimos


nos diz respeito. Nada disso! Podemos, devido às sugestões, até perder o
sono ou chorar, ao imaginar que somos o que foi falado. Em lugar de ex-
aminar a si mesmo, diante das interpretações, das acusações dos outros,
examine e interprete a pessoa que falou a seu respeito, tente descobrir

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seu modo de pensar, como ela, e não você, está vivendo. Descubra quais
são os princípios que estão servindo de base para seu raciocínio ou de
que forma ela chegou àquelas conclusões. Assim você poderá conhecê-
la, enquanto ela crê, erroneamente, estar conhecendo-o profundamente.
Entendeu? O que dizem a nosso respeito não deveria nos preocupar;
quase sempre não tem nada a ver conosco... Pode até ter... Tudo tem um
pouco a ver com todos nós, mas aquilo que alguém diz traduz muito
mais, acerca daquele que emitiu a opinião. Nesse momento, Dr. Erasmo
tinha consciência, confusamente, de que ele próprio se revelava ao
emitir essas opiniões.

- Mas, balbuciou Lucinho. - Como ir além das conclusões dessas opin-


iões dos outros? Como ir além desse verniz enganador? Se eu não
enxergo nem meu interior, como irei descobrir o do outro? Fico num
beco sem saída, caminhando de um lado para outro, sem chegar a lugar
algum.

- Por que se assustar? A maioria das coisas que encontramos é estranha


à nossa vida. Isso é o normal. Deveríamos nos surpreender caso ocor-
resse o oposto. Devíamos ser humildes, saber que não conhecemos e
que jamais conheceremos a maioria daquilo que ocorre conosco. As-
sim, deveríamos interromper as explicações que tentamos tecer a nosso
respeito. Viveríamos mais felizes...

- A cada momento entendo menos...Vim aqui para entender-me mel-


hor... o senhor fala o oposto... Essa conversa está jogando fora meus fun-
damentos, podres por sinal, como você sugere, mas que me serviam....
Pior agora, quando começo a ver que não tenho mais nenhum firme,
ao mesmo tempo que tenho muitos, assentados num brejo. Onde as-
sentarei meus tijolos? Preciso de um apoio para erigir meu pensamento,
qualquer um serve, sem ele desapareço, morro... Não é esse o trabalho
dos psicólogos? Descobrir, descrever, compreender e esclarecer os
princípios onde o cliente se apoia?

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- Sim, mas isso é difícil, ou melhor, impossível. Alguns, por ignorância
ou safadeza, prometem curas milagrosas. A toda hora surgem os charla-
tães de toda espécie, os vendedores de panacéias, que resolvem todos os
problemas. Esses escrevem livros que são os mais vendidos, dão cursos
nos quais a população briga para se inscrever, curam tudo facilmente,
sabem tudo, inclusive, o que os profissionais honestos não sabem. Esses
tipos humanos, trapaceiros de longa data, hoje são mais raros nas áreas
de Física ou da Química, mas proliferam nos campos da Psicologia, Eco-
nomia, Sociologia e etc. Na Psicologia eles crescem: são eles que mais
atraem o público ávido por idéias ou curas milagrosas. A linguagem
dos charlatães copia a fala popular, que, na verdade, é a mesma dos que
desejam ser enganados; daí a facilidade que conseguem na comunicação.
Os iguais se compreendem melhor. O charlatão fornece ao crédulo a
comida que ele busca, falando de um modo vago, de um modo que
abrange tudo, de forma simplificada, portanto, que sempre dá certo. Se
prestarmos atenção, há pouca diferença - quando ela existe - entre o que
muitos psicólogos afirmam - os chamados profissionais - e as interpre-
tações populares, ou seja, as dos amadores.

- O senhor está criticando tudo! Até sua própria profissão, seu trabalho!
Onde quer chegar?

- Estou lhe ensinando; quero ajudá-lo. Veja: uns e outros usam as mes-
mas palavras, os mesmos chavões, todos falam do mesmo modo, de
acordo com a linguagem popular. Ouvimos sempre: “na minha opin-
ião”, de um lado e de outro, onde cada um tira, do fundo da cartola, as
crenças que defende, confundindo-as com a descrição da realidade que
é muito mais complexa. O que diferencia, muitas vezes, o profissional do
amador é que um afirma ter o título de psicólogo e o outro não chega a
tanto; um se assenta na cadeira principal; o outro, na secundária. Ouço
interpretações belíssimas acerca das condutas humanas, que me fasci-
nam. Mas, é uma pena, pois, mais tarde, ouço outra, acerca do mesmo
assunto, de outra escola mais bonita que a anterior; afirmando o con-
trário da primeira, mas que se diz, também, absolutamente certa.

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- Oh! Entendi. Para o senhor, não existe uma idéia certa? Todas estão
erradas? Nesse caso: só a sua é certa?

- Sim e não!

- Como?

- Estou falando acerca das teorias e não acerca da validade das idéias de
uma delas. Certas teorias se aproximam mais da realidade psicológica
que tem sido aceita atualmente como razoável; outras se afastam mais
dessa realidade. Nem uma nem outra descreve a “realidade” psíquica,
esta é inalcançável, como ocorre nas descrições propostas no campo de
qualquer ciência: Física, Química, etc. Umas descrevem melhor o seu
campo e usam instrumentos teóricos mais viáveis; outras ainda não
alcançaram este estágio. Não existe teoria verdadeira ou certa, pois não
temos referenciais do que seja absolutamente correto. Por isso, é fácil
e difícil ser psicólogo. Como é fácil e difícil viver. Vivem juntos sábios
e imbecis e ninguém sabe quem é quem. Esse é um grande problema
para os considerados sábios. Serão eles os inteligentes? Quais os crité-
rios usados para afirmar isso? O critério usado é melhor do que outros,
nos quais os sábios poderiam ser considerados imbecis? Portanto, quem
ocupará a cadeira de juiz ou examinador? Ninguém, em sã consciên-
cia, poderá afirmar quem está mais próximo da verdade. Quem sabe,
os mais desadaptados ao nosso mundo atual, os que mais se afastaram
dele, são os mais ajustados à verdadeira natureza humana? Acredito que
os homens mais adaptados seriam os que mais longe estão do homem
moderno; aqueles que mais se parecem com as vespas, baratas ou formi-
gas, animais altamente adaptados ao seu mundo, continuou, possesso,
Dr. Erasmo.

Naquele instante, ele vivia o que dizia. Próximo de enlouquecer, ele


continuava: - Cuidado! Há uma tendência dos psicólogos, religiosos,
advogados, políticos, pais, amigos, afinal, de nós todos, de dar palpites

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em tudo, acreditando que sua crença é a verdadeira e que esta deve ser
seguida. Jogue todas essas pregações fora! 

- Jogo fora, também, o que você está dizendo agora?

- É possível, respondeu assustado e interrompendo, por segundos, sua


fala. Mas, automaticamente, continuou: - Verifique se lhe serve...Se lhe
serve para alguma coisa...Não sei, você decide...

- O senhor está diferente! Às vezes, acho que me pareço com o senhor,


neste estado de agora. Eu, de vez em quando, fico assim, momentos an-
tes das crises. Tem certeza de que está se sentindo bem?

- Sim, pigarreando e prosseguindo: - A consulta terminou, há muito.


Falei mais do que desejava...

- É uma pena, comentou, educadamente, - Gostaria que continuasse...


essa consulta foi ótima...hoje gostei do senhor. Até à próxima.

- Boa tarde.

Após a despedida, Dr. Erasmo retorna a ser psiquiatra. Perturbado


por momentos, ele se transformou num homem comum, com todas as
emoções e idéias soltas, envolvido com os problemas pessoais, com as
dúvidas, os sonhos e desilusões. Retornou, apenas por instantes, à seu
estado humano, sentindo necessidade em infringir as regras do bom
profissional, neutro...Estava aliviado por ter se libertado, em ter voltado
a ser Erasmo, o antigo, um homem que tem também o direito de ficar
“doente”, desorganizado e desadaptado. Largou, por instantes, a más-
cara de psiquiatra, abandonou o papel exigido para o geral, dilacerou a
camisa-de-força imposta pelos órgãos de classe aos filiados a ela, a regra
do “terapeuta exemplar”, em vigor e aceito sem discussões.

Entretanto, lamentava sua pouca coragem; sabia que sua liberdade

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duraria pouco; daqui a algumas semanas ou, poucas horas, ele entraria
novamente para a “prisão”, passivamente voltaria a agir como classe de
pessoas, a dos terapeutas, sujeito e obedecendo, sem reclamar, a todas
as imposições dessa ordem; não mais agiria como ser individualizado,
como ele próprio....Entraria, mais uma vez, para a família das térmitas.
Descobriu, infelizmente, que ao agir como doente, na verdade, por uns
poucos minutos, curou-se.

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Dores do Envelhecimento
Dr. Adamastor, ao se casar, foi obrigado a mudar sua maneira de viver,
diante das pressões e dos chiliques continuados da mulher. “Como era,
antes de começar a namorá-la; como ainda sou, diante de outros e como
sou, agora, junto a Rosária? Não me reconheço. Aceito tudo, submeto-
me aos seus caprichos mais idiotas... Para quê?”, dizia-se, enquanto
caminhava para a geladeira para pegar uma garrafa de cerveja.

- Vai beber cerveja a essas horas? São nove horas da manhã! Gritou
Rosária.

- Exatamente...Ouviu? Certo? não vejo nada melhor para fazer. Real-


mente, por que não beber? Sempre gostei de cervejas, como sempre
gostei de trabalhar... Agora, estou me aposentando. Mereço uma boa
velhice, de preferência regada a álcool, para obliterar minha obsessão
pelos horários e pelas coisas certas e pela honestidade... “Preciso beber,
beber, até ficar embriagado. Só assim posso agüentar essa mulher e essa
maldita vida”, concluía para si mesmo Dr. Adamastor.

- Honestidade! gritou. “Não sei qual! Como pode mentir assim? Ainda
mais para mim, que o conheço totalmente”, ela dizia para si lembrando-
se de Silbene, a secretária com quem ele teve um caso. Continuou a falar
para ele ouvir:

- Você sabe que é mais velho do que eu. Nessa idade nossa - sua, prin-
cipalmente - é preciso ter cuidado com a saúde. Olhava e examinava
o marido: “Ele está mais velho; os cabelos já caíram, quase todos; os
últimos existentes estão totalmente brancos. Está encurvado; antes, ele
parecia ser mais alto, suas bochechas estão caídas, seu andar está, a cada
dia, mais lento e desequilibrado, mesmo abrindo as pernas o mais que
pode. E, ainda, bebendo desse jeito, todos os dias... Não vai viver muito...
penso que o melhor, para mim e para ele, é morrer. Ele não mais faz
falta. Para que quero um homem desse?” lamentava para si.
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Dr. Adamastor se embriagava facilmente, não precisava mais tomar
muitas garrafas de cerveja. Já na segunda, passava a falar com língua
enrolada, repetia a mesma frase várias vezes. Estranhamente, quando a
quantidade de cerveja excedia seu limite ele começava, em lugar de criti-
car, a elogiar Rosária; abraçava-a e beijava-a; principalmente confundia
a Rosária atual com a antiga, a ex-namorada que era bonita e jovem,
pela qual se apaixonou, no baile do carnaval. Para piorar, algumas vezes
trocava-a também por outras mulheres, com as quais já tinha tido en-
contros. No dia seguinte, ele mal se lembrava das cenas por ele vividas.

Naquela manhã, após ter tomado duas a três garrafas de cerveja, en-
quanto a mulher dirigia os trabalhos da casa, ele começou a persegui-la.
Olhava para cima, com sua cabeça grande, examinando-a, cuidadosa-
mente. Começava a imaginar estar conquistando uma bela jovem e
para conseguir o que desejava, recitava frases açucaradas, decoradas no
tempo de estudante. Alucinado pelo espectro, observava a moça bonita
do diretório, dançando, cheia de vida, à sua frente; agora relacionava-se
com a antiga mulher que se transformou numa outra, completamente
diferente; velha, gorda e cheia de trejeitos desagradáveis. Através do
físico desta, que ele detestava, ele conquistava, inebriado de amor, a
atraente mulher que um dia ele adorara.

Durante a conquista do fetiche, Dr. Adamastor arrumava os raríssimos


cabelos que tinha; puxava-os para um só lado da cabeça, para disfar-
çar a calvície...Sua voz pastosa, quase incompreensível, era a mesma
usada quando ele cantava as secretárias na empresa de construção civil.
Alegremente, no seu delírio erotômano, regressava satisfeito ao passado
longínquo; estava rodeado por uma jovem faceira, ou mais de uma,
mistura confusa da antiga com as diversas secretárias. Ele olhava para
sua distraída mulher e começava a elogiar seus belos cabelos anelados,
os bonitos dentes, o corpo escultural, o perfume adocicado que se exa-
lava de sua pele sedosa e muito branca; tudo isso o excitava. Tudo era
ilusão, nada mais existia. A realidade amarga e triste era outra.

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Rosária escutava, com pesar, a voz pastosa do Dr. Adamastor elogiando
sua beleza. Lembrava do passado, comparava-se com a jovem que fora.
Recordava, com grande sofrimento, que, agora, ela não tinha mais nada
do que o marido dizia. Concordava que já teve tudo aquilo, que sua
figura e simpatia fizeram muitos homens elegantes e bonitos se apaixon-
arem por ela. Se nunca tivesse sido bonita, o sofrimento seria menor. In-
corporando a mocinha cobiçada, ela representava a fantasia do marido.
Não era tão difícil assim, duraria apenas uns poucos minutos. Era mais
penoso suportar os agarramentos, os beijos com mau hálito e os abraços,
reais demais para serem encenados. Tolerava e se sentia envaidecida,
com as declarações de amor repetidas quase diariamente. Impossibili-
tada, pelos anos, de viver um presente como o recitado na declaração
de amor, esforçava-se, ao máximo, para se iludir. Por mais que se esfor-
çasse, conscientemente, não mais conseguia viver a juventude plena da
cena, o representado nos momentos da “folie a deux”: “eu sei que isso
não mais existe, tenho consciência, mas como dói, sou uma mulher
feia, sem atrativos, que só os mais humildes, velhos e feios, procuram,
aceitam ou toleram. Estou sendo enganada, mas engano ele também. E
daí? A vida é feita de enganos e ilusões, do nascimento à morte. Tudo
é ilusão...Não é somente na velhice; antes, quando mocinha, era tão ou
mais tapeada do que agora. Cada homem acredita naquilo que dá a ele
felicidade, num certo momento. Mas, o que são nossas alegrias? Uma
maneira falsa, quase sempre passageira, de enfrentar a realidade tola e
chata. Os mais espertos depois percebem, quando não são muito burros,
que tudo não passava de um erro, que o mundo era outro. Eu, também,
como todo mundo, tenho o direito de fingir acreditar, por uns mo-
mentos, sem estar embriagada, de que sou uma mulher bonita, gostosa
e desejada... Por que não? Quem nunca fez isso para agüentar a vida
ruim que leva? Temos que mentir para nós mesmos... Precisamos dessas
tapeações para continuarmos vivendo. Sem elas seria melhor morrer”.

O físico do marido não mais a agradava: a grande barriga que, feliz-


mente, quase o impedia de abraçá-la, o hálito e o bigode cheirando a

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cigarro e a álcool, mais nos momentos mais encantadores da encenação
da fraude. Ele, com suas mãos finas e grandes, a agarrava, desajeitada-
mente, na presença de Cândida, que achava tudo uma pouca-vergonha.

Da camisa aberta, saíam fios de cabelos encaracolados, enormes, do seu


tórax proeminente e largo, molhado de suor provocado pelo calor, álcool
e excitação. Ao cantar Rosária, muitas vezes, trocando seu nome pelo
de outras mulheres, ele falava com dificuldade, pois a bebida provocava
um aumento da saliva que escorria pelos seus lábios semi-abertos. Ao
relembrar as antigas frases, para causar impacto na presa, ele chupava
os dentes de um lado da boca, provocando um barulho desagradável e
um assobio agudo.

Assentado à mesa da sala, bebendo sua cerveja, ele olhava, demorada


e languidamente, para o traseiro da mulher, enquanto ela guardava as
vasilhas. Ao vê-lo, murcho e melancólico, Dr. Adamastor parecia estar
com o pensamento muito distante, como o médico que examina, pensa-
tivo, diante de um prognóstico sombrio, o tumor maligno, imaginando
se fala ou não com o paciente à sua frente. Dominado pela embriaguez,
fixado no passado, ele modificava o modo usual de falar; sóbrio e longe
daquele teatro, falava baixo. Tinha um aspecto sombrio, quase nunca
olhava diretamente para as pessoas. Geralmente falava uma a duas frases
e interrompia a conversa, esperava o resultado do que havia dito, imagi-
nando que sua idéia podia não ser aceita ou estaria sendo criticada. Mas
durante as manhãs em que ele se embriagava, se transformava:

- Minha linda garota! Minha Flor de Lis! Bela e exuberante! - exclamava,


num tom alto; palavras geralmente não usadas.

Olhava para os olhos azuis da mulher, enquanto parecia se esticar e


quase alcançar a sua altura. Suas mãos passavam, vagarosamente e sem
medo, pelo pescoço e ombros de Rosária, arrastavam-se por seus cabe-
los, sempre desarrumados principalmente àquela hora da manhã.

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- Deixe-me. Que chatura! Agora? Isso é todo dia! Não agüento mais...
reclamava Rosária.

Mas, de fato, ela gostava. Gostava, principalmente, dos símbolos


mais abrangentes, usados pelo marido: garota, bela, flor. Eles tinham
maior poder de penetração: forneciam ilusões, despertavam emoções
agradáveis, todas antigas, de uma existência, onde, a cada dia, elas se
escasseavam, ou já tinham desaparecido. Percebia com clareza, que, à
medida que envelhecia, só recebia carinhos dos seus pretendentes, en-
quanto embriagados.
Mas Rosária não vivia só ilusões durante esse ritual. Ela percebeu que o
marido, embriagado e apaixonado, igual à maioria dos homens, tornava-
se menos preocupado com o dinheiro. Assim, ela passou a usar esses
momentos para conseguir mais dinheiro para as despesas pessoais e
da casa, que ficava em poder do Dr. Adamastor. Ele, não embriagado,
reclamava dos gastos exagerados, entretanto, não se sabe se por preguiça
ou fraqueza, evitava tomar iniciativas para diminuir as despesas, que ele
afirmava serem altas.

- Meu bem...

Nesse momento, a voz de Rosária tornava-se meiga, doce, macia, muito


diferente do tom costumeiro:

- Benzinho: precisa de ajuda? O quê deseja, benzinho? Um abraço, um


beijo, o quê mais?

De quem seria aquela voz? Ele confuso, imaginava estar, naquele mo-
mento, num prostíbulo, frente a uma prostituta que finge amar seu
freguês.

- Abraça-me, minha bonequinha dengosa. Estava com saudade de você.


Há quanto tempo nós não nos vemos. Sou louco por você. Te amo
muito! Hoje você está linda. Semana que vem voltarei para te ver...

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- Eu te amo, meu queridinho, sussurrava, com voz de falsete, rouca e
quente, ao pé do ouvido do marido.

Ela envergonhava-se, por momentos, do papel ridículo que represen-


tava, baixando a voz quando Cândida passava por perto.

- Dê-me meu pagamento benzinho, continuava, - Pode ser um cheque...


caso não tenha dinheiro vivo… Quinhentos reais para minhas despesas,
queridinho. Para que eu fique bonitinha e cheirosa, só para você. Farei o
que desejar, pode pedir. Venha me visitar sempre... Sou tua, meu amor...

A conversa continuava fluindo nesse pé. Rosária, amargurada pensava:


“Eu sei que, nesse estado, ele daqui a pouco estará deitado e dormindo.
Não custa nada sofrer um pouco. Também mereço alguma recom-
pensa, por agüentar esse traste. A cada dia tenho mais asco por ele. Está
acabado. Deve morrer em breve... está desnutrido e barrigudo...Próximo
do fim... Mas continua apegado a mim, adorando-me. Hum...Péssimo
gosto, gostar de mim. Que bela escolha! Preso para sempre...Tenho
dó dele, às vezes raiva, por nada ter feito para impedir-me agir como
eu quis. Nunca tomou conta de mim ou me mandou pra valer, como
fizeram outros homens que conheci. Foi um inútil, um fraco. Continua
pedindo amor, sem nunca ter dado...Só dinheiro, que devo tomar en-
quanto estiver assim, quando melhorar então voltará a ser o usurário de
sempre. Tantos anos juntos!… Como pude agüentar? Sinto vontade de
vomitar diante desse relacionamento a dois, que me levou a fazer quase
tudo o que não queria... Procurei um homem para me casar e encontrei
um trabalhador apaixonado, exageradamente apaixonado...mas incapaz
na arte de amar. Nada mais sabe fazer do que levar a vida a sério. Tam-
bém já me desacostumei do sexo. Minha vontade é gritar; gritar o mais
alto possível para todos, para mostrar como é nossa vida... Mas tenho
que fingir, como sempre fiz em toda a minha vida... Aprendi cedo, com
a professora que me pôs no mundo, minha mãe, “Nós, mulheres, temos
que fingir. Aprenda isso, minha filha. Tudo é aparência; só verniz.” Para

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os de fora, formamos um belo casal - o casal vinte... Que idiotice! Como
serão os outros casais? Iguais a nós?“

- Deixe-me tirar o cheque. Onde está?

O Dr. Adamastor procurou nos bolsos do pijama, imaginando estar ves-


tido com o paletó gasto que usa quando vai aos bancos ou repartições.
Ela, prontamente, corre ao quarto, tira da gaveta do criado-mudo, bem
no fundo, o talão de cheque, que ela mesma preenche rapidamente antes
que ele recobre a consciência, ou desmaie e entrega-lhe para assinar. En-
quanto isso, beija-o, com nojo, limpa, com as costas dos braços a saliva
fétida, que escorreu da boca do marido e passou para seus lábios. Entre-
tanto, fingia uma grande ternura, da qual até ela, às vezes, duvidava.

- Só quinhentos? Quero lhe dar uma jóia, um anel... ou uma aliança,


representando nossa união. Quanto custa? disse, dando gargalhadas
enquanto assinava o cheque, já quase sem força.

Rosária guardou o talão rapidamente no mesmo lugar de onde fora


tirado. Cantarolou alegremente, pela sala, o “Beijinho Doce”. Cuspia, de
tempos em tempos, no lavabo da cozinha e bochechava com água e sal.
Cândida assistia a tudo. Não entendia essa cena freqüente.

Aos poucos, ele foi levado até seu quarto, amparado por Rosária e
Cândida, para dormir um sono reparador, após o qual, tomaria bastante
sopa para cortar a ressaca da bebedeira daquela manhã. Depois, a vida
normal do casal recomeçaria a ser o que sempre foi. Ele seria tratado por
ela como um cão e escorraçado de sua presença.

Como é comum entre os idosos, Dr. Adamastor passou a se preocupar


exageradamente com os fatos triviais, as pequenas tolices do seu mund-
inho, onde, a cada dia mais, tudo parecia não mais ter valor algum,
deixando de lado os acontecimentos importantes.

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- Rosária! gritou, ao acordar, ainda um pouco tonto, depois de ficar
algumas horas dormindo. Onde estão minha calça jeans e minha camisa
grená?

- Coloquei sua roupa aí perto de você. Olhe em cima da cadeira, gritou


da cozinha, com a boca cheia de batatas tiradas da geladeira.

- Não é essa que eu quero. É nova e aperta. Quero aquela velha que ando
sempre com ela.

- Ela está sendo lavada... Você, ontem, emporcalhou ela de cerveja.


Ainda não foi passada, completou Rosária engolindo.

- Vá passar prá mim. Não gosto de roupas modernas! gritou do quarto,


sem se levantar. Ele sabia que, daqui a pouco, a calça estaria diante dele,
arrumada como queria. Examinou o chão do quarto para verificar se o
velho sapato marrom estaria colocado no lugar de sempre. “Vou tomar
um banho frio. Isso vai me despertar e melhorar meu estado. Faz bem
à saúde. Eu não mando em todos mas na minha mulher eu mando.
Ela, como eu, tem que tomar banho frio, em qualquer época. Com isso,
economiza-se energia, massageia-se o corpo e, também, é bom para a
saúde.”

- Onde estão o sabão e a toalha? gritou do banheiro.

- Devem estar na gaveta. Olhe aí. Vou levar a toalha. Espere! Não de-
moro.

- Que merda! É sempre assim. Nunca acho as coisas que desejo nos lu-
gares certos, resmunga, enquanto deixa um filete de água fria cair sobre
o corpo, que ainda conserva os últimos traços de beleza, que teima em
continuar, como o nariz bem feito. Sai do banho andando nas pontas
dos pés, muito levemente, elegante, andar que passa a ter quando está
terminando a embriaguez. “Não me lembro de nada que fiz...vou per-

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guntar a ela...Não adianta; ela nunca fala a verdade.”

Rosária, após ter almoçado e descansado, preparava-se para assistir à


novela da tarde, a que ele, obrigatoriamente, mesmo sem gostar, assistia
antes de ir para o serviço. A cada dia isso se tornava mais penoso e mais
raro. Os dois, assentados diante da TV, mãos dadas, procuravam conver-
sar. Nos seus rodeios, ele buscava sempre a opinião da mulher, antes de
dar a sua própria:

- O que você está achando dessa novela, Adamastor?

- Realmente. Ouviu? Entendeu? Bem... Ela me parece interessante…


exatamente… é... Penso que ela vai agradar...

- Também penso assim. Ela é muito boa. Prende a atenção da gente...

- Exato. Temos as mesmas opiniões - entendeu? A gente fica interessado


no que vai acontecer...Fico muito curioso...

- Sim, mas tem hora que aborrece... Como, curioso? Ela é repetida! Eu,
até você, já sei como terminará...

- Isso mesmo. É... é o que eu ia falar. Chateia; muitas vezes cansa... mas


a gente finge, por dentro, sabe? Finge que não sabe. Sabe? Aí, é que está,
como ia dizendo...entra a curiosidade. Exatamente...Nesse instante ele
dá um longo suspiro, para mostrar que estava pensando e para reforçar
mais sua opinião.

- Nesse ponto, sempre tivemos opiniões iguais...Somos muito pareci-


dos...meu benzinho, afirmou desanimada.

- Como? Assustado: - Sim, realmente…É ... Como eu sempre te falei.


Acho que concordamos na maiorias das coisas. Nossas divergências são
pequenas...coisas sem nenhuma importância...enfatizou Dr. Adamastor.

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- Às vezes, chego a imaginar que você não gosta de ver novelas. Fica
vendo para me agradar.

- Não! respondeu, amedrontado. - Isso não! Sim, realmente, ou mel-


hor, não exatamente, eu gosto de sua presença ao meu lado… Só isso...
bastaria...mas, também, gosto das fotografias, dos cenários, até dos
comerciais...É... Tem uns ótimos; aquele da cerveja, por exemplo...
Uma maravilha. Gosto demais também dos papéis dos personagens.
São grandes atores: Lima Duarte, Tarciso Meira... como é mesmo o
nome daquela que gosto...É... Nós sempre nos demos bem... As pessoas
parecem ter inveja do nosso modo de viver… exatamente…da maneira
como nós combinamos...Entendeu?

- Não sei bem, tenho dúvidas...

- Dúvidas? Sim, exatamente... Você tem razões que a razão desconhece.


Por sinal, uma bela frase. Mas há dúvidas que são comuns a nós dois.
Por isso mesmo, nós somos parecidos: duvidamos e discordamos de
coisas parecidas, às vezes das mesmas coisas. Entramos até em atrito.
Mas, é nossa discordância que nos une. Eu gosto muito de ouvir você
falar acerca das novelas. Pronto. Era o que queria dizer! Você entende
muito delas. Essa, por exemplo, é muito boa. Estou percebendo que você
a aprecia...

- Que isso! Não acho tão boa assim. Sinto sono...como lhe falei.

- Sim, realmente, esqueci...mas agora lembrei-me. É o que eu imagi-


nava. Preparava-me para lhe falar isso. Vi você bocejando... há pouco.
Também, depois de almoçar...Eu, na verdade, acho que existem novelas
melhores...Não é também sua opinião?

- Claro, seu bobo...

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Essas conversas eram freqüentes, após as brigas ou bebedeiras, quando
ocorriam as pseudo-relações. Ele evitava se expressar abertamente di-
ante de Rosária. Sempre representava o personagem que ele julgava ser o
da preferência dela; com isso evitava brigas e ser abandonado. Imaginava
que ela não mais gostaria dele e o largaria, caso o conhecesse melhor,
se soubesse como ele pensa. Daí, o seu cuidado ao conversar com ela,
evitando falar acerca dos seus gostos e idiossincrasias. Os cuidados para
conviver com a mulher aumentavam, mais ainda quando ela estava
irada. No início do namoro ele bem que tentou; corajosamente mostrou
seu modo de pensar indo contra os desejos de Rosária. Foi um fracasso,
não conseguiu o que queria - não ir assistir ao filme desejado por ela -
além disso, teve que se defender de vários sopapos.

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Dias Amargos
Dr. Adamastor envelhecia. Não mais conseguia sair de casa para trabal-
har. O que era fácil de ser feito, passou a ser difícil: uma simples troca
de lâmpada, o conserto da torneira que pingava ou dar um telefonema,
eram adiados para o mês ou ano seguinte; às vezes, para sempre. Aos
poucos tinha certeza de que a maioria dos seus planos jamais realizar-
se-iam, faltava-lhe energia; sua vida não mais era administrada pela sua
vontade.

Lembrava, com saudade, de um tempo distante, quando controlava,


ainda, uma boa parte dos fatos à sua volta. Hoje, continua a percebê-los
como durante sua juventude, mas, dentro dele, não mais existe o jovem
do passado, capaz de provocar ou evitar os acontecimentos; ”Sou um
velho: entretanto, continuo pensando, muitas vezes, com minha cabeça
de jovem, esta não me larga. Vejo uma moça de vinte anos e a desejo,
como se eu também tivesse sua idade.”

Ele vivia, como todo velho, de recordações, de um passado que jamais


retornaria. Quanto mais sentia as forças se extinguindo, a débil vontade
diante dos fatos incontroláveis, mais ele abrigava-se no passado. Lá, na
sua toca, ele se resguardava da tirania do presente, bem como da insen-
sibilidade do futuro. No passado, bonito e forte, tinha sonhos; imaginava
poder controlar seu destino; hoje, derrotado e alquebrado, dominado
pelo ambiente, sente-se empurrado para um futuro cada dia mais es-
treito, afunilado, com uma única saída.

Consciente de tudo, desesperado por conhecer sua incapacidade cres-


cente, ele aguardava, a qualquer momento, sua última ancoragem. Não
sabia quando e nem onde. Tinha pavor da chegada. Sua mente maldita
mostrava-lhe, com clareza, o que temia e evitava: a perda do controle do
barco; comandado, há muito, pelo leve sopro de um vento caprichoso,
oscilante e sem rumo.

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As recordações agradáveis ocorridas durante a infância e juventude,
transformam-se, pela sua mente envelhecida, em lembranças nostálgi-
cas. Sua mente, por mais que ele quisesse ludibriá-lo, o alertava de que
era somente uma sombra do antigo Dr. Adamastor, um espectro horrip-
ilante. Do passado, restam a saudade e a tristeza. No presente se dissi-
pava ao submeter-se à natureza que o consumia sem importar com sua
dor ; servia, como escravo, ao indiferente senhor alheio ao sofrimento
do servo.

Nos seus devaneios, retornava à antiga solidão do passado; infeliz, sem


dúvida, mas melhor do que agora. Hoje, ligado a Rosária, tinha que
falar e discutir todos os dias com ela, pela qual não sentia mais nada;
entretanto, assustava-se pela possibilidade de ficar só. Estava preso para
sempre a um relacionamento formado pelos desencontros e não pelas
alianças. Fugia dela como podia; evitava olhá-la, escondia-se dentro de
sua clausura; ficava mais tempo no banheiro; na cama - fingindo dormir;
ligava a TV, mesmo quando nada desejava ver. Mas precisava dela. Du-
rante o namoro, ao contrário, fazia tudo para vê-la: a esperança tornava
seu mundo diferente; viajava centenas de quilômetros para se encontrar
com ela, alegre, principalmente otimista.

Olhando para ela, Dr. Adamastor refletia com pesar: “á medida que o
tempo passou, o meu esforço para viver bem com Rosária foi em vão. A
relação amorosa, que antes imaginei existir, transformou-se em brigas e
mais brigas, discussões inúteis, pirraças, desencontros, traições de am-
bos os lados; tudo do que antes eu tinha pavor. Como somos outros!”

Naquela manhã, ele demorou a sair da cama, como vinha acontecendo.


Com muito custo, lentamente, sentou-se à mesa para tomar o lanche.
Ele emagrecia; a cada dia seu apetite era menor. Sem ter tomado o café
da manhã, maquinalmente, foi à geladeira pegar uma garrafa de cerveja,
observado pelos olhares curiosos e críticos de Rosária. Entretanto, nem
mesmo a cerveja o atraía mais, tudo para ele era aborrecido e difícil de
terminar.

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Nuvens escuras cobriam quase todo o céu; um vento úmido e frio, se-
guido de trovoadas e relâmpagos, anunciavam a pesada chuva que cairia
daqui a pouco. Os dias chuvosos e escuros sempre lhe fizeram mal; sua
bronquite e reumatismo pioravam, aumentavam as dores nas costas e
nas mãos, dores, a cada dia mais insuportáveis, principalmente as do
calcanhar, terríveis, logo ao se levantar.

Ela buscou um cobertor e o colocou sobre os pés esqueléticos e fracos;


pôs o café forte e grosso, coado na hora, na xícara preferida, com carin-
ho, mas sem deixar de esbravejar:

- Não vai ficar aí, parado o dia todo! Ontem ficou o dia todo deitado,
hoje, depois que saiu da cama, encostou na cadeira-do-papai. Que
preguiça! É isso. Aposenta; não quer fazer mais nada. Fica deitado como
morto.

- Sim, exatamente, você acertou: estou me sentindo assim, balbuciou


com dificuldade, - Não estou bem... De uns dias para cá, comecei a pen-
sar se vale ou não a pena continuar a viver...não consigo fazer mais nada!

- Vire essa boca prá lá. Que idéia idiota. Você, de vez em quando, tem
essa mania de ficar pensando acerca da vida... do significado... A vida
foi feita para ser vivida, quanto mais sem sentido melhor; não para
ser pensada. Se filosofarmos muito, não agiríamos, pois cada ato seria
criticado antes de sua realização, já dizia um filósofo. Faça como eu: em
vez de pensar, mexo em coisas; arrumo uma mesa, lavo um copo, dou
um telefonema, assisto a uma novela, vou à loja. Não sigo uma linha
invisível que coordena tudo; tudo para mim tem o mesmo valor. Se não
tenho nada para fazer, nada mesmo, discuto sobre qualquer coisa. Fico
boa logo.

Mas, Rosária, enquanto se expressava, conversava também consigo


mesma. Nesse instante ela olhava para ele e o examinava: “Há bastante

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tempo perdi o meu interesse por você. O que há agora que me atrai?
Nada, nada mesmo. Parece mais morto do que vivo; velho, feio, doente e
bêbado. Nunca foi lá essas coisas, não é e nunca foi carinhoso... Foi, até
anos atrás, trabalhador, hoje só sabe queixar de tudo... Sinto vergonha
desses pensamentos, mas eles são meus, não posso me enganar. Tapeio
os outros, a mim não...”

- Vamos, tome seu café antes que esfrie e eu tenha que arrumar outro.
Tenho muito que fazer! voltou a reclamar.

- Eu sei disso, você se anima com qualquer coisa, com qualquer


bobagem, como lavar uma roupa, passar uma calça ou com suas novel-
as...gemeu, examinando-se, comparando-se com o que era: “Estou cada
vez pior, com essa dentadura que parece estar sempre saindo da boca,
careca, deixando tudo cair das mãos sempre tremendo. Repetindo as
mesmas histórias contadas. Os que me vêem sabem que não estou bem,
alguns chegam a evitar me encarar, de dó. Tenho sono durante o dia
e, muitas vezes, cochilo quando não desejo. Quando me deito, durmo
rapidamente, mas acordo logo, várias vezes. Nesses momentos, levanto-
me e vou ao banheiro. Depois, sem sono, caminho pela sala, olhando
os móveis tristes e solitários como eu, velhos conhecidos meus. Dialogo
com eles acerca de nossas ligações, de acontecimentos que eles testemu-
nharam...dos segredos que eles guardam.

Como invejo seu silêncio e imponência. Não gosto desses pensamentos


estranhos. Esmagado pelo silêncio da casa, vou até à janela na esperança
de ver algo interessante na madrugada vazia. Fico na expectativa de
presenciar um roubo ou crime. Quem sabe será hoje? Nunca observo
nada, só o vazio, a quietude escura, dormindo. Nem os gatos aparecem
para me estimular, para que sinta, pelo menos um pouco, da vida que se
esvai. Diante da indiferença daquele mundo, automaticamente dirijo-
me à geladeira, não tenho fome nem sede, verifico se a porta está bem
fechada; examino se não vaza gás, se as janelas estão bem fechadas. Re-
torno ao banheiro, acendo a luz e conto os azulejos da parede, tentando

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descobrir qual deles foi colocado erradamente...amolado com essas im-
posições tolas, perco totalmente o sono. Espero o demorado nascer do
dia. Imagino que, daqui a pouco, terei que encontrar minha mulher. Ela,
como eu, está cada dia mais feia. Que bom ela dormir no outro quarto,
fico longe dela, pelo menos à noite. Entretanto, apreensivo, espero a
repetição, pela manhã, de sua conduta, sempre a mesma. Sei que após
acordar ela irá ao banheiro fazer seu demorado xixi, cantarolando “ com
minha mãe estarei/ na santa glória um dia...” e outras modinhas das pro-
cissões. Depois dá, com raiva, demoradamente, a barulhenta descarga.
Mais leve, vem procurar-me para conversar: despenteada, dentro de sua
camisola de cetim azul, engraçada, larga e velha. Entra no quarto nas
pontas dos pés mas, ao mesmo tempo, esbarrando em tudo, fazendo um
barulho incrível para verificar se já estou acordado. Para isso, pergunta-
me se já acordei. Respondo que não, que falta muito ainda para que isso
ocorra. Diante de mim, ela lambuza os braços e pernas com um creme
branco e uma colônia malcheirosa de alfazema. A conversa, sem direção,
começa: “Desculpe, benzinho... não sabia que estava dormindo.” Detesto
essa palavra: “benzinho”; ela me lembra as prostitutas da zona boêmia
da cidade. Todas elas, todas mesmo, chamavam seus clientes desse
modo. Fui chamado várias vezes, por diversas delas, com esse mesmo
termo usada por Rosária. Não sei com quem ela aprendeu esse som que
nunca me largou. Depois desse “benzinho” fingido, com o mesmo tim-
bre e tonalidade ela continua ” Vim saber se está tudo bem como você”.
Sem mais nem menos, começa a recitar a poesia: “Bom dia amigo Sol...”:
onde ela declama o frescor da manhã, a beleza do céu azul e claro, o sol
ardente. Esta poesia, a única que ela conhece, foi decorada no tempo em
que ela estudava no Colégio Santa Maria. Nessa ocasião coube a Rosária
recitá-la para suas colegas no início da primavera. Ela repete sempre essa
chatura, mesmo quando o céu está escuro e chovendo como hoje. De-
pois me pergunta se não tive nada durante a noite, isso é, se não morri,
o que ela mais quer. O que ela espera é, numa bela manhã de sol anil,
como descreve a poesia, me encontrar já frio. Sei que gritará ao me ver
esticado na cama. Comentará chorando, durante o velório, que fui o seu
grande amor, a pessoa mais importante na sua vida. Mas, após o enterro,

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estará cantando, rindo e recitando “Bom dia amigo Sol”, um pouco mais
alegre e entusiasmada do que nos outros dias. Mas não fica só nisso, logo
em seguida começa a comentar:

“Você reparou ontem como Lucinho estava nervoso? Penso que os


tratamentos estão errados. Que crise! Terrível! Esse novo psiquiatra, tão
bem recomendado, ainda não mostrou serviço. Roberta não dormiu
em casa, nem deu notícias, nem um telefonema; deve ter dormido na
casa daquele seu amigo travesti. Não tem jeito com ela, não. Agostinho
tossiu a noite inteira. Você ouviu? É aquela maldita tosse que ele tem
desde pequeno; acho que é alergia, minha mãe também sempre teve;
já falei com ele para ir ao médico, ele não vai... Pode ser pneumonia,
ou pior ainda, uma tuberculose, acaba morrendo! Ai, como eu sofro
com essas coisas!” Terminada toda essa logorréia chata, ela passa a
falar acerca de Cândida, a empregada: “Cândida ainda não acordou,
fica rezando até tarde em vez de dormir. Quando não está rezando,
está ouvindo o radinho que demos a ela. Eu falei para você: não dê esse
tipo de presente. Você não quis me ouvir. Essa gente não pode ter essas
coisas, não. Ao ouvir rádio, fica à-toa, além disso gasta muita energia.
Não entendo para que tantas orações! Será que ela tem muitos pecados
que não sabemos? Acho que ela rouba, não muita coisa: um pouco de
farinha de trigo e de arroz, também uns panos de prato. Eu sei que ela
leva essas coisas para o barracão da irmã, a que ficou viúva. Lá não tem
nada; você não conhece o lugar, mas eu já fui lá por duas vezes. Nossa
casa está cheia de poeira. Ela limpa muito mal. Penso em mandá-la
embora, mas depois, quem vamos arrumar? Você não acha?” Falava e fa-
lava... Sem esperar qualquer comentário meu ela continua: “É tão difícil
uma boa empregada... Antigamente era mais fácil, era só ir ao interior
e trazer uma, todas boas e trabalhadeiras e não pediam um salário alto.
Hoje, tudo mudou, o mundo é outro. Essa gentinha manda na gente, se
a gente bobear - você é que não entra na cozinha, e não observa es-
sas coisas - ela nos passa para trás. Homem nenhum olha isso, eles só
sabem reclamar. Por isso, benzinho, é que todo homem sem mulher
fica pobre. As empregadas desperdiçam tudo, não têm dó da gente. Os

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homens não enxergam, quando vêem, nada falam. Nós, mulheres, não,
ficamos ali, olhando, vigiando. Elas não gostam, ficam com raiva. Que
me importa, eu gosto de tudo certo, no seu lugar. Comigo é assim, tudo
como eu gosto. Se não fosse eu, que sou econômica, seu dinheiro já
teria desaparecido. Às vezes, tenho pena de você e penso: como irá se
arrumar se eu morrer antes? Os filhos, você sabe, não ligam para nós,
só pensam neles mesmos. É cada um pra si”. Eu ficava parado fingindo
estar ouvindo, continuava Dr. Adamastor, nas suas reflexões. Ela sempre
tentou mudar os fatos fazendo comentários, principalmente queixas,
a respeito deles. “Ela falava a respeito de tudo; da conversa acerca da
empregada, passava, com facilidade, para as queixas sobre as dores nas
costas, nos joelhos, nas pernas, nos dedos ou para as doenças da mãe de
Cândida, do filho do vizinho. Tudo tinha a mesma importância para ela,
seus valores nunca obedeciam a uma hierarquia de preferências. Para
alegrar-me, ela fingia, por segundos, estar interessada nas minhas dores,
mas mudava rapidamente de assunto, logo que pensava que já tinha
gasto tempo bastante longo com problemas insignificantes. Sabia que
no fim do ano ela piorava. Tornava-se mais falante, animada, raivosa e
pintava os cabelos de cores brilhantes, ficando mais feia ainda. Era um
tormento vê-la tendo os olhos esbugalhados, constantemente, falando
com a boca espumando, sobre qualquer coisa. Depois, lentamente, ficava
quieta, com o cenho triste, balbuciando poucas palavras. O seu guarda-
roupa era mudado. Passava a usar vestidos cinza e deixava de pintar os
cabelos, ficando grande parte do seu tempo na cama. Suas conversas,
nessas ocasiões, eram queixas acerca de tudo, principalmente de sua
saúde; imaginava estar com câncer, tuberculose, hepatite e toda a gama
de doenças graves que porventura existam. Começava a ir aos médi-
cos, quase diariamente, fazia exames e mais exames, ficando aborrecida
quando lhe afirmavam que ela não tinha nenhuma doença e que tudo
era “psicológico”. Olho-a, numa fase ou outra, com uma grande tristeza e
desanimado, ora acusando alguém, ora com suas queixas intermináveis.
Consigo, com muito custo, lembrar-me da mulher que encontrei, há
muito, no baile do DCE, de como fiquei encantado com ela, com imenso
desejo de abraçá-la e beijá-la. Agora, por essa que se encontra na minha

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frente, sinto aversão. Não mais residem nela os encantos que existiam
naquela bela e faceira moça que conheci. Pergunto-me: onde andam
seus lábios avermelhados, grossos, sedutores, hoje, murchos; seus ol-
hos azulados, vivos e brilhantes, hoje, opacos, quase mortos; seu corpo
sedutor, seu busto firme, sua cintura delgada? Tudo isso não existe mais.
Ela transformou-se. Sei que o mesmo aconteceu em relação a mim. Eu
também era outro, um jovem apreciável, que não precisava ter vergonha
de se mostrar, como tenho agora. Até meu nariz, que era o meu charme,
parece ter crescido e abaixado, mais nada tenho de apresentável. Não
atraio mais ninguém, nem mesmo minhas antigas namoradas, que,
também não estão lá essas coisas...Até elas, se puderem, escapam de
mim...Também pudera! Só mesmo fugindo. As mulheres desconhecidas,
estas, nem me notam. Para elas não existo como homem, sou olhado
como um velho que necessita de piedade. Seria aquela ali, encurvada
na cadeira, com suas grossas pernas abertas, a mesma mulher na qual
eu percebera existir uma grande inteligência, ter alma boa, ser pura e
atraente? Procurava de todos os modos enxergar algum resto da moça
que encontrei, embriagado, no DCE, naquele baile de carnaval. Fechei os
olhos, tentando, em desespero. Tudo em vão. Nada! Visualizava vestí-
gios, disformes. A antiga desaparecera no tempo, não restava mais nada,
morrera. O que pensaria de mim minha querida Silbene, se me visse
agora? Será o mesmo que Rosária pensa? Creio que sim! O que Rosária
pensa de mim? Ela ainda desconfia de minhas saídas, quando vou ao
médico tratar de minha hepatite crônica. Imagina que vou à procura de
alguma mulher. Que bom seria se assim fosse...Mas, o que adiantaria?
Nesse estado, eu não seria aceito. Do mesmo modo, eu também escondo
o que penso dela e dos filhos. Sou obrigado, pelas circunstâncias da vida,
velhice, hábito , estupidez e muitas outras coisas que não compreendo,
a viver com uma mulher que nada tem a ver com a desejada por mim.
Melhor teria sido se a tivesse largado. Rosária é desajeitada, corpulenta,
desarrumada, até sem higiene, porca mesmo, envelhecida, tudo o que
não queria, principalmente no fim da vida. Ela, da antiga, tem o nome,
este ainda não mudou, e o tom de voz esganiçado...Ela não pára de falar,
só se cala quando descobre que não estou mais junto dela. Eu, em lugar

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de escutá-la, observo-a negativamente, como age o médico diante do
cliente, diagnosticando uma doença ruim. Num certo momento ela se
levanta e caminha para a cozinha, resmungando por ter que lavar os
talheres que Cândida não lavou. Infalivelmente, sempre repete: “Minha
vida é tão ruim! Não sei por que me casei...Você precisa conversar com
sua filha, já que ela não me obedece. E uma vergonha para nós, prin-
cipalmente para você, ter uma filha desmiolada como Roberta, uma
vagabunda é o que é, para não falar outros nomes.” Nomes que ela fala a
toda hora... Eu continuo a olhá-la e a procurar a Rosária que sumiu, que
conheci há anos. Não a encontro, só vejo imagens nebulosas. Todas as
minhas manhãs começam assim...”

Até esse momento, o Dr. Adamastor estava parado, assentado na cadeira,


diante de seu café que Rosária lhe havia servido, sem tomá-lo, quando
Roberta chega em casa.

- Bom dia, pai, dormiu bem?

- Sim e você? “Ela sabia que estava mentindo. Perguntou já sabendo da


verdade: tinha certeza de que eu havia dormido mal. Como dormir bem
naquele inferno? Ela também fazia parte da farsa, da peça teatral famil-
iar, exibida diariamente e na qual, nós éramos autores, atores e platéia.
Tínhamos que continuar a representação até a morte. Nunca ninguém
perguntou para quê e por quê encenar aquela tragicomédia. Parar,
nesse momento, quebraria o sistema construído há anos. Todos está-
vamos acostumados com essa peça, nossa vida fluía e dependia de sua
representação. O teatro da vida familiar tinha vários atos: festinhas de
aniversário, de casamento, as comemorações do Natal, o dias das Mães.
Essas atividades foram incorporadas à rotina familiar; eram necessárias
para dar os significados à vida. Ninguém duvidava ou ousava quebrar
essa tradição. Iríamos repetir o ritual até à morte; era preciso seguir essa
rotina; caso agíssemos diferentemente ninguém mais saberia como e o
que conversar; o que e quando fazer; como e para que viver... Éramos
reconhecidos, assimilados e aceitos agindo do modo esperado, conforme

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o “ script” decorado pela mente conformada de cada um dos persona-
gens obstinados. A família se acostumara com tudo isso, estava bem
adaptada. Vivia nessa harmonia conhecida, ao trocar mensagens falsas.
O expressado era muito mais para esconder o pensado do que para
mostrar o imaginado. Se alguém ousasse quebrar a estratégia doentia,
onde o saudável era o doentio, todos estranhariam a nova tática usada.
Estávamos habituados às falsidades de cada um, como regras de um
jogo. Todos, implicitamente, aliaram-se para encenar a farsa, não havia
mais criatividade para provocar mudanças. Se alguém, mais ousado,
tentasse questionar as leis e os dogmas ali adotados, seria excomungado
do grupo familiar. Como cada um foi gerado por essas regras e se identi-
ficava com elas, caso ocorresse uma transformação, eu não mais seria eu;
seria visto como outro, um completo desconhecido. Do mesmo modo,
cada um dos membros da família ficaria irreconhecível, pois acostu-
mamos a nos ver através dos reflexos desse espelho partido, estreito e
fechado, que nos aprisionou para sempre. Todos na família se conhe-
ciam, reconheciam e se relacionavam ajustados, pelas máscaras usadas
no papel designado para cada um, determinadas pelo comando abstrato.
Penso em perguntar a Roberta por que não dormiu em casa, não me
atrevo a tanto, poderia ser agredido. Essa indagação, há muito, não pode
ser mais cogitada.”

Chega à mesa Agostinho, que ainda não lavou o rosto.

- Bom dia para todos, dormi demais; tive sonhos estranhos. Sonhei que
estava num lugar diferente daqui, parecia um grande e poderoso mar.
Tentava realizar um trabalho e não sabia como era nem como fazê-
lo. Não podia pensar sobre minha atividade pois não tinha conceitos,
símbolos, para denominar cada fato e os processos do trabalho. As ações
eram feitas ao acaso; como um cego eu não sabia que caminho deveria
tomar. Vocês já imaginaram um mundo diferente, no qual teríamos que
agir sem essas bússolas: as idéias que aprendemos; um mundo onde só
existissem imagens não interligadas, que ainda não receberam nomes
ou classes e estão soltas no tempo e espaço, precisando ser organizadas

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e ninguém sabe como? Acho que os outros animais são assim e, nos
sonhos, nós também perdemos boa parte de nossa capacidade para clas-
sificar os atos e o mundo à nossa frente.

- Tá muito difícil, para mim, compreendê-lo, replicou, com displicência,


Roberta.

- Não tem importância, o sonho é meu e deve ser entendido por mim.
Seria arriscado reconstruir o já construído, o conhecido. Já nos acostu-
mamos com esse modo de organizar os acontecimentos. A maioria não
suportaria a confusão de um mundo diferente.

Dr. Adamastor continua suas reflexões: “Estranhamente, noto muito


contrariado que nos últimos anos, quando ia visitar minha amiga, uma
vez por semana, não mais conseguia ficar entusiasmado como antiga-
mente. Antes falávamos amenidades, brincávamos, nos amávamos, ag-
ora, quanto mais me aproximava de Silbene, por mais que eu desejasse,
começava a me queixar de Rosária, da velhice, das dores. Passei a falar
apenas das coisas ruins. Por isso, quase não a procuro mais. Também
para que, para queixar-me? Não vejo saída para meus males, sinto-me
perdido! Deve ser o fim que está próximo...”.

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Deixem-me Viver
Naquela tarde, após a discussão com os irmãos, Lucinho, a cada mo-
mento mais confuso, recordava as conversas tidas com Virgínia e as tera-
pias a que se submeteu. Começava a duvidar de tudo: “A verdade não era
nada mais nada menos do que um modo de ver o mundo particular de
cada um num certo momento!” Devia desistir de encontrá-la?

Sentia raiva de Roberta mas, ao mesmo tempo, tinha por ela simpa-
tia; via seu esforço para esconder a tristeza, a dificuldade de encontrar
seu próprio caminho. Ela se parecia muito com ele, todos se pareciam,
concluía. Pensava nas saídas possíveis para escapar do labirinto onde
se aprisionara. Algumas vezes pensou em se matar, acabar com o tor-
mento que o dominava, outras em abandonar a busca. Refletia acerca
do conselho de sua irmã: “ através da fé, poderia, como muitos, se sentir
em paz, ficar imune às amolações do dia-a-dia.” Mas, as terapias às quais
se submeteu, todas foram assimiladas com muita fé, entretanto nenhum
resultado tiveram. Sua vida talvez tenha piorado.

“Como me examinar com mais profundidade?” Chegava também à


conclusão de que isso não era possível; era um sonho transmitido pelos
analistas. Foi nesse estado em que Lucinho se encontrava, ao se assentar
para o jantar, mesmo não sentindo nenhum apetite.

Estava atormentado, tomado por idéias contraditórias; não conseguia


organizá-las harmonicamente. Percebia que uma coisa é ter boas idéias,
outra é assimilá-las e segui-las, sem pensar, nos momentos de emoção.
“O que fazer?” Ele continuava a discutir consigo mesmo:

“Será que sempre terei que usar idéias dos outros? Ando cheio delas...
Mas não consigo ter as minhas. Aceito as idéias dos outros como se elas
fossem melhores do que as minhas. Eu não tenho capacidade para fazer
boas escolhas, minha mente está cheia de idéias negativas a meu res-
peito!
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Cada um dos terapeutas que procurei acreditava possuir a verdade.
Demorei para encontrar um que parecia saber mais que os outros, caio
no Dr. Erasmo, que imagina saber mais do que todos juntos. Ao mesmo
tempo que não quero ser comandado por ninguém, mas, lamentavel-
mente, não acredito no meu próprio comando. Ora, continuadamente
endeusando raciocínios que seus donos não seguem e nem mesmo neles
acreditam! Como saber qual será o melhor para mim? Sei que a clareira
que abri não tem me levado aonde quero. Essa é uma certeza, uma das
poucas que tenho.

Para complicar, penso que, se tenho direito à liberdade de escolha, posso


não querer ser Eu próprio e buscar ser um outro Eu, o alheio, o que seg-
ue e imita os outros. Por que não? A maioria imita. Todos vivem a vida
que lhes foi imposta pelos que os educaram. Educação não é exatamente
impor normas e valores? Obrigar-nos, sem que percebamos, a pensar
de um modo? Os educadores inocularam a vacina nas nossas mentes
antes que tivéssemos meios de refutá-las. São essas marcas alheias e
antigas que me dominaram. Muitas dessas, nem sei quais, dissolveram-
se, suavemente, na minha água cerebral, aparentemente sumiram, mas
marcaram-me para sempre. Não mais distingo as idéias úteis das noci-
vas, as alimentadoras das destruidoras.

Critico os terapeutas com as idéias do professor. O Dr. Erasmo critica


as idéias dele... Todos criticam todos. Como saber se as idéias que tenho
vão me levar a ficar mais perto ou mais afastado de mim? Escutei con-
versas e palpites, tudo transmitido como se fossem ensinamentos corre-
tos e profundos. Entretanto, a maioria, me confundiu. Não mais sei onde
me apoiar...

Não sei se foi bom aprender ou se seria melhor ignorar o que vai pelo
mundo; continuar a ser, eternamente, criança. Por que fui crescer? Que
saudades da irresponsabilidade! Que lembranças ternas e saborosas do
tempo de menino. Lembro-me do calor do leite sugado da mamadeira,

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inocente, deitado no colo acolhedor de minha mãe, ouvindo canções
cheias de sonhos românticos. Tudo isso me confortava, me trazia a paz
que hoje não mais tenho. É difícil viver como adulto... isso me obriga a
estar sempre de olhos abertos... Seria tão bom se pudesse não pensar em
nada, agir sem refletir... Sonho com a liberdade mais elevada, livre de to-
das as obrigações impostas pelas crenças assimiladas. Sei que isso é im-
possível mas posso desejar. Estou acorrentado para sempre às pressões
impostas pela sociedade. Tenho que decidir, escolher uma profissão e
trabalho, casar ou não, ter filhos ou não, comprar o oferecido e usado
por todos, pagar as contas, respeitar os outros. Tenho que administrar
minha vida aprisionado aos desejos que não são meus. Para tudo há
regras e mais regras; vivemos cercados pelos deveres diversos, absurdos
e conflitantes; tudo para que nos tornemos bem adaptados socialmente...
Pior ainda, estou cada dia mais aprisionado às doutrinas que foram ensi-
nadas para me libertar.

Estou plantado no lamaçal que deu origem ao que sou. Deste nasceram
muitos espinhos, poucas flores. Em certa época, aparecem espinhos,
noutra, flores...Todos brotaram das mesmas sementes...Por que uma
produz mais espinhos, outra mais flores, mais idéias saudáveis do que
doentias? Seria, como no alfabeto, conforme a distribuição das letras? As
letras do alfabeto são poucas em número...mas com elas formamos todas
as palavras, feias e bonitas, boas e más, frias e quentes. Mas o que dirige
ou determina essa distribuição? Ela acontece aleatoriamente? Talvez o
número de idéias armazenadas seja, mais ou menos, semelhante para
todos nós... Mas sua coordenação, numa certa ordem, é que faz a difer-
ença... Meu azar foi estar organizado defeituosamente. No meu cérebro
as letras criaram mais pesares do que alegrias.

Percebo que posso tomar vários caminhos...Entretanto, um mais po-


deroso me domina atrapalhando o exame dos outros, dificultando o
exame de novas idéias.

Para o professor, sou um homem de valor; tenho tudo de bom. Mas ess-

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es instrumentos para me examinar pertencem a ele, que me vê assim. Eu
não! Antes, tinha outras medidas para me avaliar. Só agora as percebo
como erradas. O que eu pensava de mim era mentira. E agora concluo o
quê? Sou uma pessoa bonita e feliz, para as explicações do professor... E
para mim? Ou tudo não passa de outra mentira, na qual passei a acredi-
tar provisoriamente? Nunca sei se sou uma coisa ou outra... É a ordem
na desordem, já era tempo...Mas já fui tapeado tantas vezes; tenho medo
de estar entrando em outra enganação. Não sei se lucidez é irracionali-
dade ou racionalidade...

Todos afirmam que a verdade tem que vir de mim. Mas essa afirmação
não é uma verdade dos outros? Devo segui-la? Gostaria de ser outro.
Quem garante que com algumas de minhas idéias eu conseguirei ex-
aminar as outras? Ninguém! Sempre busquei certezas... A cada dia mais
percebo que estas, de fato, não existem. Ou existem? Tudo está escuro...
Estou mal...Acho que vou ter uma crise...Não me controlo”.

Lucinho se levanta da cadeira, caminha pela sala e, por onde passa, joga
ao chão tudo que está à sua frente, tudo muito rápido. Não se altera
diante do olhar crítico da irmã, que chega apressada da cozinha ao ouvir
o barulho. Agostinho tenta agarrá-lo. Roberta sai da sala, rindo, desani-
mada.

Ele, correndo, enfia as mãos onde estão guardadas as louças usadas para
as visitas e joga-as longe, quebrando tudo num só tempo. Entra Dr.
Adamastor, xingando e ordenando-lhe parar; Lucinho não dá importân-
cia. Diante do barulho, Rosária sai do banheiro, arrumando, desajeita-
damente, suas roupas mal colocadas. Pára diante dele, séria e sem nada
dizer. Olha fixamente em sua direção. Neste instante, como por milagre,
seus olhos, até então, furiosos, tornam-se dóceis. Há uma pausa, um
momento de silêncio; magicamente, Lucinho se transforma; paralisa-se,
abaixa a cabeça diante dos olhos azuis brilhantes de sua mãe, como se
examinasse os cacos de vidros de cores, formas e tamanhos diferentes,
que se espalharam. Mostra uma mistura confusa de emoções, ira, amor,

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pavor e obediência. Aprisionado ao domínio e proteção, ele começa a
soluçar como uma criança impotente diante da mãe poderosa. Regride,
enfraquece-se, dobra-se, docilmente. Seus músculos, antes tensos,
amolecem como geléias; lágrimas escorrem pelo seu rosto pálido. Sua
boca se abre como que pedindo o leite materno. Lucinho caminha a pas-
sos lentos, em direção a sua mãe, sua segurança e fonte de energia, que
o recebe com braços abertos. Ele passa de violento e forte a dócil e fraco.
É, nesse estado, que ele abraça a mãe, suplicando:

- Ajude-me, preciso de você, tenho vontade de morrer. Não me aban-


done!

Volta-se para o pai e protesta com raiva, interrompendo o choro convul-


sivo:

- Você é o culpado! Você é o culpado!

O silêncio retorna; ouvem-se apenas os soluços de Lucinho, que camin-


ha trôpego para o quarto, amparado pelos braços da mãe, segura de sua
força. Prontamente, deita-se, respira fundo, serenamente dominado
pela sua presença... Agora, ele é outro. Logo depois já está dormindo.
Deitado no colo da mãe, mostra um sorriso dúbio: misto de felicidade e
desesperança. Descansa, por instantes, aprisionado nos braços flácidos e
fracos, mas protetores e poderosos, de Rosária.

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O Desespero
Lucinho, ainda sonolento, tentava compreender as razões de sua crise e
o que o levava a ficar tão controlado pela mãe. Ao sair do quarto cruzou
no corredor com Roberta, que, como sempre, comentou, em voz alta,
para ele ouvir:

- Está com uma cara de mau! Parece furioso... Hoje, está mais encur-
vado... fungando; até seu cheiro mudou...Pelo que vejo, a terapia não está
funcionando...somente a dela dá resultados...

Ele retornou desorientado ao quarto, caminhou até à janela; ali ficou


parado; olhava para o horizonte ensolarado, muito distante... Não sabia
onde fixar seu olhar oscilante... na rua, nas montanhas azuladas e fortes,
nas pessoas que passavam, ou nele próprio...

“Estariam preocupados como eu?” perguntou-se. “Ao ouvir Roberta,


percebi, com nitidez, que as pessoas têm acesso fácil à intimidade dos
outros. Imaginava que meus segredos, bem como meu modo de ser,
eram coisas minhas, não públicas; que ninguém nem se preocupava com
minha intimidade. Entretanto, percebo, mais uma vez, que estava enga-
nado. Como vivo iludido! Minha mente, para me proteger ou enganar,
esconde ou deforma a realidade que me é apresentada.

Que pistas eu dou? Que sinais brotam do meu corpo, dando origem às
conclusões que cada um forma a meu respeito? Notava que uns sele-
cionavam trechos da fala, outros isolavam aspectos visíveis da conduta.
Alguns iam mais longe, descobriam os “traços” por trás da conduta,
o motor gerador de várias condutas, “ele é dependente”; “ ele procura
riscos e novidade”. Através desses traços - abstrações, puras abstrações,
jamais percebidas, meu interlocutor e observador atento ia mais longe,
imaginava outras possíveis condutas não observadas: “se é dependente
ele procura seguir as opiniões a respeito das roupas que deve usar, dos
lugares onde se divertir...” Do mesmo modo como os fatos eram sele-
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cionados aleatoriamente, as interpretações também o eram, seguiam a
mesma desordem lógica. Mas todos acreditavam nas suas profecias, com
muita fé...

Tornava-se claro para mim que fornecia pistas às pessoas, sinais que
lhes indicavam meus objetivos, emoções, até minhas idéias, tudo que
julgava estar bem escondido. Mostrava, ora um corpo mais encurvado,
ora a testa franzida, também um tom de voz mais alto, uma mudança na
cor da pele, uma inquietação nas pernas, uma tosse seca, um suor que
escorria. Tudo me exibia, escancaradamente, para os olhares e mentes
atentas. As pessoas me conheciam mais do que eu imaginava. Não eram
apenas os psicólogos que faziam interpretações acerca da conduta ou
do modo de pensar e reagir, eram todos... Todos me interpretavam, de
vários modos...

Notei que eles, como eu, possuíam e eram possuídos por algumas teorias
leigas vulgares, o que permitia o entendimento e a comunicação de-
lirantes ou alucinatórias, entre elas. Nós éramos capazes de decifrar e
interpretar, as pistas exibidas, usando as mesmas idéias e palavras, que
faziam parte do corpo do esquema delirante comum. As noções falsas,
os óculos embaçados de cada um, serviam de fundamentos para decifrar
os fatos ocorridos. Não foi difícil descobrir que ser mineiro, belo-hori-
zontino, andar encurvado significava, conforme essas suposições: medo,
reserva e timidez. Todos concordavam, pois todos tinham a mesma
teoria, a mesma lógica; tudo sustentado nas mesmas crenças infundadas.
Mas fungar e cheirar mal? Nunca havia prestado atenção a isso, tam-
bém nunca havia sentido odores diferentes no meu corpo, quando fico
nervoso. Sua interpretação era um enigma para mim. Roberta devia ter
maior sensibilidade, ou a dedução dela poderia ser singular e falsa? Já
me falaram que as mulheres têm olfato mais apurado do que os homens,
um maior número de receptores no nariz. Seria verdade?

Mas nada podia fazer contra essa invasão da privacidade. Desvairado,


percebia minha impotência diante das interpretações de cada pessoa que

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encontro. Nada podia fazer! Aquele homem que passou, do outro lado
da rua, me olhou por segundos, observou-me à vontade mas nada disse.
Eu, sem querer, fiz o mesmo. Que idéias ele teve de mim? O que ele me
sugeriu? O outro, de calção e camisa rasgada, parecia pedinte. Bela mul-
her; de saias curtas, parece “piranha”. Mas, como tirei essas conclusões?
Serão preconceitos meus, escondidos? Existe nessas idéias alguma reali-
dade? Posso acreditar nessas conclusões, nessas generalizações, a partir
de um ou dois sinais?

Como reunir fatos tão separados, possivelmente não associados, e deles


tirar conclusões - formar um conjunto - com tanta segurança? E o pior,
posso tomar decisões, às vezes, importantes, a partir das suposições
geradas devido a um vestido mais curto ou um tipo de corte de cabelo?
Ou todas essas conclusões são falsas, idiotas, fruto de minha mente dis-
torcida, arbitrária e doentia? Ajo como se a reunião de sinais, bem como
as deduções tiradas desse conglomerado, fossem verdadeiras. Como
acreditar no que observo ? Posso estar enganado. Se penso que a moça
é piranha, poderei tratá-la como tal. E se ela não for? Cismei que todo
homem bem educado, que anda elegantemente vestido e que usa bigode
e cavanhaque, bem aparados, de olhar distante, é gay. Será? Também não
sei como cheguei a essa conclusão maluca. Roberta já me chamou de
bicha. Por quê? Agora me classificou de outras coisas, mas imagino que
ela tenha outras idéias a meu respeito que não foram verbalizadas. Por
que não? Seriam piores ainda de se ouvir? É possível que ela tenha per-
cebido minha raiva, que custo a notar. Tenho sido analisado por profis-
sionais competentes, mas continuo a não me conhecer; entretanto, sou
“conhecido” facilmente, por todas as pessoas. Para os não profissionais,
é fácil me compreender e me interpretar. Seriam eles, uma vez livres das
teorias sofisticadas dos terapeutas, mais capazes de interpretar a conduta
humana? Tudo é possível. Bastava um simples olhar meu, um rápido e
superficial bate-papo ou, até mesmo, uma saudação, para que tivessem
certeza de me conhecer. Alguns interpretadores iam mais longe: davam
diagnósticos clínicos. Em virtude de minha magreza, uns afirmaram que
eu tinha diabetes; outros acharam que devia tomar lombrigueiros...

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Desde criança fui bombardeado pelos diagnósticos dados pelos diversos
psiquiatras; agora, percebia que cada pessoa com a qual convivia dava-
me também diagnósticos não-médicos; mais grosseiros e perniciosos do
que os dos médicos. Sei que para um clínico fazer um diagnóstico deve
testar suas hipóteses, confirmá-las ou refutá-las, examinando os fatos
encontrados de acordo com princípios aceitos. O leigo, diferentemente,
não precisa disso. Era bobo, por nada; por devolver o troco recebido a
mais. Os diagnósticos dos leigos são, principalmente, morais; colocam-
me como errado, raramente como certo. Para não ser criticado e escapar
dessas interpretações, preciso fazer tudo o que as pessoas pensam?

Essas avaliações parecem variar conforme o instante e o aspecto da


conduta selecionado, geralmente um. O atributo isolado pelo observa-
dor, mostra a sua maneira de organizar os acontecimentos e as condutas.
Cada modo - dependendo da organização - me coloca numa ordem ou
classe diferente; cada um valoriza ou desvaloriza determinados aspectos
do comportamento e não examina outros: vagabundo, sério, trabal-
hador, bom estudante, feio, desonesto, confiável... A maioria dos rotu-
ladores, ao me enquadrar nessas taxionomias rígidas, do que é certo ou
errado, não comenta, nem descreve que suposições usou para me apri-
sionar numa ou noutra classe. Possivelmente, nem ele sabe. Entretanto,
para minha desgraça, cada espião age, inconsciente e automaticamente,
conforme essas interpretações.

Para esses observadores apressados, a denominação dada é fácil e sim-


ples. Qualquer sinal é uma evidência indiscutível e basta, para ele, supor
ou imaginar a existência de uma realidade em meu organismo, nascida
de suas crenças. A conjetura, ela própria, surge como uma iluminação
ou revelação; para ele, uma garantia de certeza: “Pedro é bandido”; Ma-
ria é bonita”.

Lucinho lembrava dos rótulos recebidos... “O que fiz para ser tachado
de tímido? Que fiz para ser xingado de burro? E aquela moça que foi à

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loja? Ela me olhou várias vezes. Surdina, empregado do meu pai, foi logo
me falando, com absoluta certeza:

- Vá em frente, parece bobo; ela está dando um bolão para você.

Fiquei em pânico. Tachou-me de bobo, sem que eu soubesse por quê.


Mas foi mais longe, concluiu, com segurança, que a moça me desejava.
Não descobri como ele chegou a essa conclusão, de modo tão fácil e
rápido. O que a moça estaria pensando a meu respeito? Seria o mesmo
que Surdina observou? Isso era notável, extraordinário - caso houvesse
essa identidade.

Ao classificar a bola dada pela moça, que aspecto julgado excitou e ofus-
cou a mente de Surdina? O que o levou a não examinar outros atributos
exibidos por ela? Que poder teve essa cor forte para predominar e domi-
nar sua mente predisposta. Seria o mesmo que ocorre quando muitos
dizem: “é uma negra, formada em Engenharia”; focalizando, primeira-
mente, o que mais lhe chamou a atenção - a cor da pele - e só depois
completou, com o segundo aspecto; “que se formou em Engenharia”.
Num outro caso, poderia ter dito: “é uma engenheira”, quando sua cor é
branca; a cor “natural”, não é notada nem enfatizada. Nesse último caso,
o que chamou a atenção foi a profissão. Mas o que estou a fazer? Classifi-
cando Surdina e outros, do mesmo modo como os estou criticando.

Há certeza nas suas afirmações, certeza de que me falta...os atributos se


manifestam por eles mesmos...Todos sabem...A realidade percebida por
Roberta, por Surdina, não precisa ser testada, ela é verdadeira, aceita
sem críticas, sem as imposições ou chatices de outras possíveis “reali-
dades”, nascida do desejo ou tendência momentânea dela. As inter-
pretações dos médicos e psicólogos não seriam também assim? Quem
poderá saber? Para bem viver devo me enquadrar nas interpretações de
todos os classificadores?

Aprofundei-me nesse ponto tentando descobrir as pistas ou estímulos

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que têm maior poder de penetração levando a pessoa a chegar às suas
conclusões. Para isso isolei certas interpretações comuns feitas por
todos: ” este é um homem gentil”, ‘’burro”’ , “educado”, “confiável”, etc.
Examinei quais pistas atraíam mais o classificador e o impediam de
examinar as restantes. Anotei-as com cuidado. A partir daí comecei a
transmitir às pessoas o comportamento que eu queria que elas imaginas-
sem que eu possuía; inteligente, burro, gentil, conforme meus objetivos.
Tornei-me um perito nisso. Representei tão bem esse papel que, após al-
gum tempo, nem eu mesmo sabia se era ou não aquilo que representava.
Com o uso perdi meu referencial e não mais sei se estou representando
ou se tornei-me o que represento. Eu, que desejava controlar a conduta
das pessoas com a minha representação, passei a ser manipulado pelo
papel decorado e exibido.

Para ser “reconhecido” como “inteligente”, mostrava, diante de determi-


nadas pessoas - só dessas - certas condutas esperadas: ao contar um fato,
franzia a testa de um certo modo, fingia entender do assunto, elevando
o rosto para cima, olhando demoradamente para longe. Mas não era
só isso, precisava ainda modular o tom de voz, falar num ritmo que
fornecesse a impressão de estar pensando profundamente; de quando
em quando, soltava frases de efeito, criava, em certos momentos, certas
expressões faciais dignas do inteligente, comentava, com entusiasmo
comedido, filmes, peças teatrais, esculturas e livros, tidos e estabelecidos
como dignos do grupo dos “inteligentes”. Com a teoria na cabeça, não
havia erro, era aplaudido e admirado por todos como inteligente, por
encaixar-me, adequadamente, no modelo esperado. É lógico que sabia
fazer também o oposto.

Deveria ainda para continuar a receber esse diagnóstico, assistir e


comentar certos programas de TV, assistidos somente pelos “inteli-
gentes”; jamais falar que assistia a outros, os apropriados aos débeis
mentais. Após alguma luta, consegui entrar numa associação, que só os
intelectuais freqüentavam. Nas nossas reuniões, eu, como todos, falava,
usando certas palavras, gesticulava e fazia comentários da maneira

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esperada pelo seleto grupo. Devia, sistematicamente, ler certos jornais,
não outros, passear em determinados locais, gostar de certos autores e,
além disso - pasmem - precisava freqüentar certos restaurantes, apre-
ciar certas iguarias, morar em determinados bairros e vestir as roupas
esperadas. Consegui, por uns tempos, pertencer a essa elite. Entrei e fui
aceito no clube dos inteligentes.

Burramente, ainda aprisionado ao meu padrão antigo, duvidei da es-


colha. Achei o empreendimento difícil e, sobretudo, enfadonho. De-
pois de muito pensar, ou melhor, de não pensar, decidi continuar a ser
idiota; estava mais acostumado a essa denominação, além disso ela não
me assustava como a outra. Tinha mais receio de ser “inteligente”, de
saber tudo, do que de ser burro. O meu grupo, o de imbecis - tratava-se
de um pequeno grupo em extinção - fazia também suas classificações,
eles próprios se denominavam ignorantes e viviam contentes com esse
rótulo. Não sei se fiz uma boa escolha.

O que mais Roberta sabia a meu respeito? E Agostinho, minha mãe,


meus amigos e colegas? Muitas vezes, nas nossas conversas, percebia que
Agostinho falava para mim, suas mensagens tinham um alvo certo, eu!
Todos, talvez, imaginavam me conhecer mais do que eu próprio. Que
ignorância! Se não sei se me conheço ou não, como eles poderiam me
avaliar?

Começava a não mais acreditar na veracidade da teoria do Prof. Pinelli,


ao confrontá-la com as idéias escutadas nos últimos dias. Para que fui
procurar o Dr. Erasmo? Só para me perturbar? Uma teoria não bastava
para me conhecer; era preciso conhecer outras a meu respeito: a de Rob-
erta, a de Agostinho, a do meu pai, a teoria esquisita de minha mãe, que
me classificava de tudo o que é ruim? Que dados eu havia fornecido para
que ela me visse dessa maneira? Não sabia.

Pensava no niilismo do Dr. Erasmo, imaginava que sua teoria poderia


estar certa. E eu, que tanto o critiquei, agora começava a lhe dar razão.

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Não gostava desse meu pensamento; preferia não tê-lo tido. Até meus
pensamentos parecem não ser mais meus, não me obedecem, emergem,
espontaneamente, sem esforço. Eram idéias intrusas, que se rebelaram
contra o comando central, dando palpites indesejáveis em questões
íntimas. Não queria ter pensado: “Gostei da consulta com Dr. Erasmo”;
gostaria de ter imaginado: ”ele é um chato; só fala besteira”.

Como posso avaliar uma afirmação dos outros, ou mesmo, minha,


usando minha mente? Minha cabeça está cheia de hipóteses contra-
ditórias, sem fundamentos; uma mistura confusa de idéias, muitas delas
estranhas, que nascem sem meu desejo. Perguntas, não respondidas
por mim, muitas e muitas, acumulavam-se... Afinal, quem sou eu? Um
lençol de pobre, remendado, feito com sobras de retalhos velhos e man-
chados? Como costurar, com um fio único, tecidos tão variados, onde
cada um tem uma cor diferente? Os pedaços de tecidos que entraram
na minha formação estão mal costurados e desorganizados. Ora era
mostrado um trapo, ora outro. Do mesmo modo, como o caixeiro exibe,
ora um tecido mais barato, ora um mais caro e bonito, dependendo do
que ele imagina ser a intenção e disposição do comprador.

Mas, oh, Que lástima! Eu tomava consciência de que minha conduta


dependia das idéias que eu próprio tinha a meu respeito e das que
imaginava ter do outro. Portanto, se essas estivessem confusas e contra-
ditórias, necessariamente meu comportamento seria, também, confuso e
contraditório. Se trabalho com idéias erradas, falsas ou semi-falsas, para
fabricar as outras, jamais chegarei a conclusões adequadas acerca dos
acontecimentos ou da conduta dos outros.” 

O pensamento de Lucinho vai ficando desordenado, desagregado, tran-


stornado. O conhecimento de si e dos outros o vai enlouquecendo.

“Se minha irmã tem suas idéias acerca do meu modo de ser, cada um
deve ter outras diferentes das dela, observando algumas coisas, não
percebendo outras. Ouvi muito frases como: ”Os paulistas são trabal-

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hadores”; “ O brasileiro gosta de levar vantagem em tudo” ou “o mineiro
é desconfiado”. Como essas conclusões, imaginadas e seguidas como
verdades, foram construídas? Não tinha a menor idéia.

Seria eu desconfiado e reservado, como todo bom mineiro? Mas ouvi


o contrário; muitas afirmações, ditas com a mesma segurança e ênfase,
classificaram-me como desinibido. Já fui categorizado como gordo, em
seguida, um me perguntou espantado: “O que aconteceu com você que
emagreceu tanto assim?” Estava engordando ou emagrecendo? Por um
longo período, imaginei-me como obsessivo, perfeccionista, mas fui
também denominado desmazelado e bagunceiro. Como construir uma
idéia bem ordenada de mim, se eu, bem como as pessoas com as quais
me relacionava me rotulavam de modos tão diferentes? Para uns eu
era um santo, para outros, um demônio. Afinal, quem seria ? Santo ou
demônio, bonito ou feio?

Comecei a me isolar para fugir à classificação continuada. Queria me


proteger. Sem a presença dos rotuladores, não teria ninguém para me
avaliar. Mas fui enganado, pelo menos em parte, por mais que fugisse
de todos, na ilusão de deixar as avaliações distantes, não consegui. Em
todos os lugares onde me escondia, continuava a ser seguido pelas idéias
que eu próprio tinha dos pensamentos das pessoas das quais tentava
fugir. Minhas idéias antigas, contaminadas pelas dos outros, seguiram-
me, sempre coladas a mim. Minha mãe não me abandonava; estava
lá, no fundo de minha alma, sempre presente. Tiranicamente, ela me
perseguia, me vigiava, em todos os lugares, principalmente nos pesade-
los. Eu fui seguido, como um criminoso, em todos os cantos, por todos
os que me marcaram com seus estigmas.

Verifiquei, desalentado, que quase todos os classificadores estavam


certos. Eu me transformava numa outra pessoa, diante de cada um dos
interlocutores. Conforme a pessoa com a qual me relacionava, alguns
aspectos meus escondiam-se, outros acentuavam-se. Em certos lugares,
diante de uma pessoa, eu era alegre e falante mas, diante de outra, ficava

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triste e calado, como um doente. Também minhas conversas variavam
conforme as pessoas com as quais dialogava. Com um, falava acerca de
futebol, com outro, de “putaria”, com a namorada, transformava-me no
amante apaixonado e usava palavras e voz mais adocicada. Diante de
certos amigos, ficava sério, discutia num tom de voz alto e firme. Falava
sempre num tom queixoso na presença dos psicólogos, lamentava, às
vezes, chorava, tornava-me um paciente. Com os amigos bagunceiros,
dava gargalhadas, contava anedotas, fazia planos atraentes, alegres e
juvenis. Tornava-me, sem querer, educado e respeitador diante de Ago-
stinho. Com Roberta, era grosseiro e ‘burro”. Bastava a presença de um
deles para ocorrer a metamorfose. Diante de minha mãe, eu regredia,
transformava-me numa criança. Ficava preso ao tom de voz dela, domi-
nado pelos seus gestos, olhares e palavras: “Venha cá, meu filhinho; deita
no colo de sua mãezinha; ela te ama tanto”. Nesses momentos, paralisa-
va-me, encolhia-me, desmanchava-me nos seus braços.

Fui mais a fundo, percebi que possivelmente todas as pessoas, há muito,


haviam notado o que descobri. Ah! Seria eu o último a saber? O que
as levava a jamais serem espontâneas e sempre fornecerem pistas fal-
sas a seu respeito? Essa conduta se repetiria, também, nos consultórios
psiquiátricos? Possivelmente. Verifiquei que vivemos unidos às pessoas
que jamais conhecemos - elas não se mostram - exibem os disfarces
possíveis de serem representados; pistas falsas, informações usadas para
tapear. Todos fingem? Como ter certeza ao decifrar seus enigmas? Por
isso cada um pensa acerca do outro milhares de coisas. As máscaras usa-
das são diversas, pois temos várias delas à nossa disposição - usâmo-las
conforme a pessoa à nossa frente, num certo momento. Agora percebo
que, até mesmo para mim, eu mudo, conforme o dia e a hora. Deixo vir
à consciência, sem querer, informações falsas; tudo para ficar coerente
com o papel representado para mim mesmo no momento; assim evito a
incongruência interna, fico calmo. Como tapeamos e somos tapeados!

E as teorias? Munidos delas, explicamos o que não sabemos. Abandona-


mos o indivíduo chato e singular - que jamais iremos compreender; o

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impossível de ser enquadrado. Mas com a teoria construída para o geral
- que muitas vezes pouco tem a ver com o particular - vestimos o indi-
víduo examinado; tranqüilamente passamos a afirmar que a vestimenta
se adequou a ele, portanto, é correta, digna de crédito. Esquecemos que
a pessoa pode ter exibido o desejado pelo enfermeiro encarregado de
colocar a camisa de força.

Na minha casa, se mostrasse o que sou, se me desnudasse, seria expulso.


A Justiça me prenderia se soubesse o que fiz e penso. Para a Igreja, eu
seria excomungado e tido como o maior dos pecadores. Para o povo
hipócrita, que faz o que faço e vive igual a mim - os que não percebem
isso - eu seria linchado como monstro de várias faces, por pensar coisas
tão estranhas e não dignas dos homens bons. Como eu reagiria a mim
mesmo caso me mostrasse despojado das defesas? Sou um ser estranho
para todos e eles para mim. Mas continuamos a pensar que conhecemos
todos...

Percebia que o meu conhecimento pouco ou nada adiantava para prever


minhas ações na sociedade e na família onde vivia. Além disso de-
pendia dos conhecimentos que os outros possuíam a meu respeito. Os
julgamentos meus e deles, feitos apressada e irrefletidamente chegavam
prontamente ao diagnóstico, quase sempre sombrio. Essas sentenças
tinham o poder de lei e, portanto, funcionavam. Não adiantava eu pen-
sar que era honesto se, diante do gerente do banco, ele me imaginava
caloteiro. Com essa decisão, ele jamais me faria empréstimo algum; era
sua resolução que prevaleceria. Fui, certa vez, acusado de estar colando
numa prova, que foi anulada; de fato, eu estava distraído, olhando para
dentro de mim, como sempre fiz. O professor não teve dúvida: estava
colando do colega. Tentei conquistar uma mulher, usando toda minha
habilidade de conquistador: gentileza, simpatia, afetividade, entretanto
a moça cobiçada “teve certeza” de que eu não era nada do que represen-
tava; diagnosticou-me como um aproveitador. Perdi uma grande mul-
her. Mas ela podia estar certa...Quem sabe, se, quando eu imagino-me
estar sendo gentil e simpático, na realidade dela estou sendo grosseiro

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e antipático? 

Como conviver com as pessoas se não temos instrumentos confiáveis


para conhecê-las e, ao mesmo tempo, nem sabemos como nos criticar?
Acabaram-se as amarras que me ligavam aos outros. Aumentaram as
desconfianças e tensões. Desconectado, submeto-me a uma conversa
padronizada, arrumada e forçada, tudo para criar um falso diálogo; falar
por falar. Seu objetivo é fingir existir uma comunicação mas, na verdade,
ela a esconde, servindo para impedir o silêncio desconfortável, indica-
dor da ausência de ligação e de amor. Seria de tudo? Sinto medo...

Diante das pessoas, as conversas não prosseguiam, não encontrava


pontos comuns. Sei que estou isolado. Mas é preciso fingir que existe o
elo inexistente. Torço e desejo que o falso encontro se acabe logo, que
surja algo para que ele termine. Sou cercado de pessoas que têm valores
opostos aos meus, que têm objetivos e preferências, que para mim são
aversões das quais fujo. Porque não sou como elas? Aceitando tudo
como normal...Esse desencontro motivou muitas brigas; recebi críticas:
“você está agindo errado”. Eu, por minha parte, não notava nenhum
erro.

Fiz outra descoberta, esta não mais me surpreendeu : era percebido e


avaliado, diferentemente, pelas pessoas, conforme elas estivessem bem
ou mal comigo. Assim, caso encontrasse uma moça que estivesse in-
teressada em me conquistar, sua percepção era verbalizada com in-
formações muito mais positivas a meu respeito, e não era fingimento
de minha amiga. Nesse caso, ela selecionava e acentuava os aspectos
favoráveis sobre mim. Ao contrário, quando brigávamos, minha ex-
admiradora e amiga tornava-se inimiga feroz: só extraia as característi-
cas denominadas negativas do meu comportamento. Para piorar ela os
acentuava, os generalizava e, pior, negligenciava ou nem notava o que eu
tinha de positivo e que antes ela havia percebido.

Fui tendo algumas “certezas”: uma delas é que não havia certezas e nem

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objetividade, como me ensinaram. Descobri, também, que todos nós
agimos e reagimos conforme as representações nascidas no nosso cére-
bro, aleatoriamente, no momento; de acordo com os estímulos do meio
ou de nossa própria cabeça que as despertam. Fiquei triste por perceber
que eu não amei a mulher “real”, sensorialmente percebida com “objetiv-
idade”: amei , sim, a “Sefira” existente em minha representação. Convivi
com um espectro, a mulher sonhada, desejada e fabricada pela minha
mente sedenta! Esta mulher representada na minha cabeça explodiu de
repente, transformando a agradável quimera num pesadelo aborrecido.

Também tive outra certeza: nós só nos apoiamos nesses “espectros” -


nada mais temos para fundamentar nossa razão - reagimos, apenas, às
fantasias - ou fantasmas - que temos, construídos com a ajuda de certos
fatos selecionados pelos nossos desejos momentâneos através de nossa
mente tendenciosa. Estamos, continuamente, encarcerados nas repre-
sentações detonadas no instante; jamais alcançamos o de fora, o externo.
Ligamo-nos à realidade com a ajuda dos pensamentos; este é fabricado
com material próprio, muito e muito diferente do material que compõe
os fatos e as coisas.

Que orientação interna teria que usar para chegar onde desejava? Onde
encontrar a verdade verdadeira? Começava a me desanimar, pensava
que era chegado o momento de parar a procura... Cada um tinha a sua
verdade, provisoriamente, por instantes e ela mudava rapidamente. A
mentira tornava-se verdade e a verdade mentira. Começava a duvidar de
minha dúvida...

Minhas incertezas cresciam; devo procurar outros psiquiatras e psicól-


ogos? O que eles dizem a meu respeito possui alguma validade? Ouvin-
do-os, irei conhecer-me mais? Ou chegou a hora de encerrar a busca,
jamais encontrarei segurança alguma?

Notava, em pânico, que minha maldita cabeça, ao receber os sons emiti-


dos pelos psicólogos, traduzia seus belos ensinamentos para minhas

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próprias teorias e palavras, noções erradas e idiotas, enterradas profun-
damente na minha cabeça, desde criança. Era terrível o poder dessa “es-
trutura interna e profunda” que dominava, gerava e direcionava todos
os outros pensamentos - sem minha vontade - que formulava ou recebia
dos outros. Minha mente transformava tudo; funcionava como um
liqüidificador onde colocamos uma bela laranja, uma maçã mais bonita
ainda e um mamão vermelho e perfumado; uma vez trituradas, as frutas
se transformam numa massa gosmenta, avermelhada, semelhante ao
vômito; uma composição que pouco tinha a ver com a maçã, o mamão
e a laranja entrados na mistura. Quem viu as frutas separadas e depois
misturadas, não reconhecerá, no produto final, os ingredientes do início.
Assim também era minha cabeça. As lâminas cortantes de minha mente,
impulsionadas pelas idéias decodificadoras, esfacelavam as informações
fornecidas pelos psiquiatras em peças deformadas antes de assimilá-las.
Era minha fôrma que dava forma ao recebido, contendo sempre meu
sentido particular, minha cor acinzentada, muito diferente das recebidas
dos mestres. Desse modo, em lugar de armazenar as informações trans-
mitidas por estes profissionais eu, inocentemente, reforçava os conheci-
mentos, ou a falta deles, acumulados em minha mente obtusa. Mantinha
bem preservada minha estrutura rígida, restos poderosos de idéias anti-
quadas, armazenadas com extremo cuidado pela minha cabeça tacanha,
que não permitia a entrada de belas e promissoras idéias.

Alienado, eu selecionava, não o que me foi comunicado, mas sim, o


discurso modificado e estruturado pelo “caldeirão de idéias” já existente.
Eram estas minhas idéias tácitas, conceitos intuitivos totalmente im-
penetráveis, mas, sobretudo, imperialistas, que me dominavam, que
modificavam tudo que escutava ou observava; sem que eu percebesse a
diferença entre a informação original e o produto final. Acreditava, com
segurança, que o lixo impuro que guardava eram as conversas sábias dos
psiquiatras, as elegantes palavras dos conferencistas, que escutara, en-
cantado. Sempre ficava, na minha mente, após ouvir as pérolas pronun-
ciadas, um líquido sujo, de mau cheiro, contaminando os pensamentos
restantes.

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Foi nessa confusão crescente que erigi minha personalidade: de um lado,
estavam os diversos aspectos impostos e verbalizados pela minha mãe,
quase todos negativos, que me davam uma idéia ruim de mim mesmo,
gerando uma auto-estima baixa. De outro lado, recebia algumas de-
nominações elogiosas através dos diversos tratamentos de namoradas e
amigos; com esses, fui formando, ao contrário, uma auto-estima alta. O
resultado final foi trágico; criou-se uma desconfiança, uma sensibilidade
e irritabilidade exagerada. Não sabia, ao certo, se tinha ou não algum
valor; se minhas ações eram ou não bem recebidas e elogiadas. Ora uma
parte de minha mente me depreciava e meus atos eram percebidos como
de causar vergonha, ora a outra parte me elogiava e minha conduta era
valorizada e digna de orgulho.

Fiquei aprisionado às contradições; um indivíduo extraordinariamente


sensível, tanto para os pequenos elogios, quanto para insignificantes
críticas. Quando recebia aplausos, sentia-me orgulhoso em excesso;
quando falhava, nas menores questões, sentia-me altamente enver-
gonhado e deprimido. Qualquer fato me depreciava e me ofendia, me
derrubava: um conhecido que não me olhou, um troco recebido errado,
um olhar de mulher, um pequeno elogio do freguês na loja. As duas
mentes se digladiam, constantemente, sem existir um vencedor. Ia, de
um lado a outro, a cada instante.

Também, nesse ponto, os tratamentos foram negativos. Antes, munido


predominantemente com as idéias negativas, eu quase não tinha lutas
internas; sabia que eu nada, ou quase nada valia, nem para mim, nem
para os outros. Tinha certeza dessa afirmação, isso dava-me segurança,
tranqüilidade e, principalmente, direção. Agora nem mais isso tenho.
Passei a sentir-me mal quando sou bem tratado, imagino ficar devendo
um grande favor à pessoa, sinto-me culpado em não poder recompensá-
la. Sou um homem solitário e sem rumo.

Desconfio de tudo; até diante de pequenos problemas: imagino que

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alguém poderia pensar que participei de ações com as quais nada tinha
a ver: roubaram um caminhão na minha rua, quando recebi a notícia
através de um vizinho, imaginei que ele poderia estar insinuando, ou
tendo certeza, de que roubei o veículo. Ao andar pelas ruas passei a
tomar todos os cuidados possíveis para não criar problemas com os
transeuntes. Construo, para mim mesmo, explicações para serem da-
das ao motorista que possa imaginar que eu o fechei por querer. Tenho
sempre prontas diversas respostas para acalmar o raivoso inimigo, que
só existe na minha mente esquisita. Para completar as contradições que
me assustam, jamais fujo a uma briga; nos raros momentos em que isso
aconteceu, não me importei com o resultado. Posso perder tudo, mas
não devo perder a disputa.

Deito-me na cama, olho as marcas do teto, uma pequena mancha escura


que lá estava há mais de um ano; passo em revista os sofrimentos e os
diversos rótulos que recebi desde criança. Meus pensamentos ficaram
distantes... Estava na sala de aula, tinha sete anos; era o primeiro dia de
aula, no Grupo Escolar Barão do Rio Branco. Medrosamente, assentei-
me numa das últimas filas. Na frente, estava a velha professora: gorda, de
cabelos pretos, suando, falando alto, num tom de voz rouco e cavernoso.
Ela me amedrontava...Era D. Edina, minha primeira professora. Eu,
sozinho, tremendo e apavorado, olhava os rostos desconhecidos dos co-
legas. Não tinha onde me apoiar. Eles, como eu, tinham medo. Não sabia
o que fazer naquela prisão sem grades, da qual não ousava fugir. Não
era capaz de me levantar, caminhar, falar, pedir ou, até mesmo, implorar.
Meu corpo estava rígido, não conseguia mexer-me. Respirava, tentando
não expandir por demais meu tórax, para não fazer barulho e não ser
notado, minha vontade era desaparecer...

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O Retorno: Sombras do Passado
A vida de Antônio, o primeiro filho de Rosária, adotado por um casal de
alagoanos, sem filhos: Dr. Marcelo Alves Durães e Ruth Oliveira Durães,
ambos médicos de Maceió, inicialmente, ocorreu sem novidades. A situ-
ação financeira dos pais adotivos de Antônio sendo estável, ele cresceu
sem problemas de ordem material, teve o que quis, quando criança.

Antes de completar cinco anos, a conselho de uma psicóloga, Antônio


foi informado de que não era filho biológico do casal com o qual vivia.
Isso não o assustou; talvez nem compreendeu o significado de adoção.
Assim, o que foi imaginado como um estresse, nada causou à sua mente
infantil; sua vida continuou serena e feliz como sempre fora.

Sendo um menino inteligente e esperto, ele concluiu o primeiro grau


facilmente aos quinze anos. Até essa data, Antônio foi, além de um bom
aluno, um excelente e promissor atleta. Sendo muito forte, tornou-se um
bom jogador de futebol e lutador de karatê. Mas, no primeiro ano do se-
gundo grau, começou a ter problemas que preocuparam seus pais: falhas
às aulas, notas ruins, distúrbios disciplinares na escola e em casa, uma
conduta muito diferente da que era esperada. Começou a chegar em casa
de madrugada, demonstrando haver ingerido bebidas alcoólicas. Seus
pais a princípio não se preocuparam com seu comportamento e im-
aginaram tratar-se de um problema próprio da idade. Por isso mesmo,
não tomaram nenhuma providência. Mas, em lugar de melhoras, houve
pioras; ele aumentou a ingestão das bebidas e abandonou a escola, onde
cursava o segundo ano. Seus pais bem que tentaram, inutilmente, seu
retorno aos estudos. Percebendo que não seria apenas o tempo o fator
necessário às mudanças, Dr. Marcelo começou a repreendê-lo, a cada dia
mais. Tudo continuou sem mudanças. As discussões em casa aumenta-
ram, cada vez mais alteradas e, a cada dia que passava, notava-se um
afastamento maior entre os pais e filho.

Certa noite, após sua chegada em casa completamente bêbado, ampara-


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do por um amigo de farras, houve uma discussão pesada com seu pai,
que o esperava. Dr. Marcelo, cansado de tolerá-lo, decidiu por um ponto
final naquela conduta que se arrastava. Nesse dia, as altercações foram
mais intensas do que as habituais; os ânimos se exaltaram, chegando
quase às agressões físicas. Pela primeira vez, Antônio argumentou, em
sua defesa, que ele não era seu pai e, portanto, não tinha o direito de
lhe falar como estava falando. Terminada a discussão, Antônio decidiu
abandoná-los e ir morar em outro lugar. Houve, da parte dos pais, um
certo susto com a decisão, mas também, um alívio. Ultimamente, o casal
vivia em torno desse problema, sem ter conseguido nenhuma solução.

Sem lugar para se alojar, Antônio procurou o abrigo que mais conhe-
cia: o bar que freqüentava. Ali, com ajuda do proprietário, conseguiu
um lugar para dormir e seu primeiro e provisório emprego. Sua função
seria limpar o restaurante, após a saída do último freguês, geralmente
de madrugada. Essa limpeza diária, cansativa e desagradável, só termi-
nava quase pela manhã. Nessa hora, Antônio ia se deitar no seu pequeno
quarto onde se acumulavam engradados vazios de cerveja e material de
limpeza. Às dez horas, ele se levantava; nesse horário, o restaurante já se
preparava para servir o almoço popular que começava às onze.

Apesar das dificuldades, ele a princípio não abandonou seu vício de be-
ber, apenas o diminuiu, nos primeiros dias. Dormindo e alimentando-se
mal, emagreceu e enfraqueceu. Durante esse tempo, passou a se queixar
de dores gerais, gripes e outros sintomas, próprios das pessoas desnutri-
das e maldormidas.

Sem forças, abandonou a prática do karatê e do futebol, pois não con-


seguia fazer nenhum esforço mais pronunciado. Continuava, apesar das
dificuldades, a dançar e a beber como anteriormente. Sendo inteligente,
não lhe foi difícil arrumar, no próprio restaurante, um emprego de
garçom. Empregado, ele viu melhorar sua vida, além da possibilidade de
sair do quarto mal cheiroso e desconfortável do fundo do restaurante.
Mas não ficou nesse emprego por muito tempo. Logo depois, a partir de

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uma conversa que teve com um dos fregueses, conseguiu o que desejava:
mudar de emprego. Passou a trabalhar num dos bancos da cidade, onde
o freguês era gerente. Antônio era um amante da natureza, das belas
coisas, das mulheres bonitas, dos prazeres da boa mesa, do bom vinho,
de passeios e, principalmente, de acampamentos com grupos jovens;
detestava compromissos com hora marcada. Era um vegetariano, não
muito rígido, inspirava-se nas idéias orientais, principalmente as india-
nas. Dizia-se místico e defensor das teorias acerca de Xamãs, Karmas
e outras, sobre as quais discutia com extrema facilidade. Freqüentador
desses grupos, bem acolhido entre seus companheiros, era ali que mais
conquistava as mulheres, suas paixões constantes. Não tinha dificul-
dades nessa atividade prazerosa: quase não tinha ansiedade ao se aproxi-
mar das suas candidatas. Após o emprego no banco, comendo melhor,
voltou a ter sua cor morena e o belo porte atlético. Era um galanteador,
bem como, também, bom dançarino, e, sobretudo, sedutor. Do emprego
do banco, passou a ser corretor de seguros e, à noite, nas horas vagas,
trombonista em restaurantes, onde completava seu salário. Foi nessa
época, quando mais ganhava dinheiro, que resolveu, a convite de amigos
viciados, experimentar cocaína. Não acostumado, logo nas primeiras
doses ele exagerou a quantidade inalada, além de usá-la misturada ao ál-
cool. Após ter ficado muito falante e excitado, sentiu-se mal e desmaiou
depois de ter sofrido uma convulsão. Os companheiros, apavorados,
imaginando sua morte próxima, levaram-no, às pressas, ao hospital. Foi
salvo graças aos esforços médicos, a boa saúde anterior e a juventude.
Devido a gravidade, foi obrigado a ficar internado por uma semana para
observações e exames complementares.

Desintoxicado da cocaína e do álcool, sem o que fazer, o que não lhe


acontecia há muito tempo, pôde refletir sobre sua vida, acerca de suas
origens e começou a pensar: “Onde estariam meus pais? Será que tenho
irmãos? Como serão eles? Como descobri-los?”

Com essas idéias em mente, decidiu, após a alta, teimosamente, procurar


os pais biológicos. Fez uma visita, o que não fazia há tempos, aos pais

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adotivos, que o receberam bem, imaginando, com alegria, que ele
decidira voltar para casa. Ficaram decepcionados com sua intenção;
entretanto, mostraram-se receptivos com a idéia de descobrir seus pais e
ajudá-lo.

Não foi fácil localizar a família do médico obstetra, Dr. Paulo César
Bezerra, que fizera o parto. Lamentavelmente, ele havia morrido há
anos. Entretanto, através de telefonemas diversos, foi possível localizar
e falar com seu filho, também médico em Maceió, que sabia que seu pai
trabalhara, durante toda a vida, no Hospital Previdência de Alagoas,
onde fizera a maioria dos partos. Os pedidos e as pressões foram mui-
tas, o trabalho grande. Com ajuda de advogados e, principalmente, de
funcionários do hospital, foi feita uma busca nas antigas anotações do
ano de nascimento de Antônio. Após mais de seis meses de procura, fi-
nalmente, descobriu-se que os pais dele eram Adamastor e Rosária e que
eles moravam em Belo Horizonte.

Fez-se nova procura para localizar a residência e o telefone deles. Agora,


já eram várias as pessoas empenhadas em ajudar Antônio a realizar
seu sonho. Esse desejo, a cada dia mais se tornava realidade. Antônio,
preocupado com o acontecimento esperado, passou a beber novamente,
para, segundo ele, acalmar-se da apreensão de encontrar seus pais, pois
vivia um momento de alta tensão. A cada nova descoberta, novo passo
dado, novas emoções e fantasias surgiam. “Estariam vivos?” perguntava-
se, curioso.

Afinal, quem seriam seus pais? Teriam posses? Finalmente a última


descoberta: o endereço e telefone de Dr. Adamastor e Rosária. Naqueles
últimos dias, Antônio não mais conseguia dormir. Imaginava sua mãe
e, estranhamente, começava a se apaixonar, romanticamente, por ela, a
mulher que o pôs no mundo.

Chegou o dia de entrar em contato com sua família; sua respiração


estava rápida e curta, sentiu medo de desmaiar, quando ouvisse a voz de

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sua mãe. 

De posse do número, assentou-se diante da mãe, Dra. Ruth, que o aju-


dava e que lhe trouxe um pouco de uísque; nesse momento, ele pre-
cisava disso e até ela, aflita, tomou uma pequena dose, apesar de detestar
bebidas alcoólicas. Marcelo, o pai, mais prudente, explicou-lhe que eles
poderiam lhe tratar mal e até não querer vê-lo; que devia ter cuidado.
Além disso, poderiam ter morrido; fez outras considerações próprias
dos homens experimentados e práticos. Mas, de fato, essas conversas
tinham um outro objetivo: o seu medo de perder, em definitivo, o filho.
O momento havia chegado, depois da longa pesquisa. Antônio de-
morou, ainda um pouco, para começar a discar, tomou mais uma dose
da bebida, colocada ao seu lado. Do outro lado da linha, uma voz femi-
nina atendeu:

- Alô!

- Mora aí uma senhora chamada Rosária?

- Sim. É aqui mesmo, respondeu.

- É ela quem está falando?

- Não. É Cândida, a cozinheira dela. D. Rosária tá na sala, tá vendo tel-


evisão; tá na hora da novela. 

- Eu desejava falar com ela.

- Ela, quando tá vendo novela, já te falei, quando tá vendo novela ela não
atende o telefone, não. Telefone mais tarde. Nesse momento, sem esper-
ar, Cândida desligou o telefone. Antônio ficou decepcionado e furioso.
Tornou a ligar.

- Sou eu, novamente. Eu preciso muito falar com ela. Chame-a, por

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favor, implorou à Cândida, segurando a emoção violenta que invadiu o
corpo ao saber que sua mãe estava viva.

- Como é seu nome? É a respeito de quê?

Ele, nesse instante, quase despejou em cima de Cândida tudo que tinha
na garganta. Respirou fundo, segurou um pouco e tentou falar, fingindo
calma:

- É um filho dela; moro em Maceió...

- Filho dela? Os filhos dela moram aqui. O senhor tá doido. Agora, estão
todos em casa...Por causa da chuva que cai; ninguém saiu hoje; Agostin-
ho tá no quarto lendo, como sempre faz; Roberta, ouvindo música; Lu-
cinho, deitado na cama, pensando; ele gosta de ficar sozinho. Eu acho
que você está passando um trote, ou discou errado.

- Não. Não, por favor. Fale com ela. Sou filho dela e de Sô Adamastor.

- Diabo. Tá brincando comigo. Eu estava rezando, quase dormindo; é


muita maldade debochar de uma pessoa que nunca fez mal a ninguém...
Eu sei que é trote; todo dia tem dessas coisas...

- Não é, não. Estou falando sério! Falou firme: Fale com ela, pelo amor
que você tem à sua mãe, implorou novamente Antônio, desesperado, e
conclui, quase chorando: Pelo amor a Deus.

Ao ouvir essas palavras, Cândida se assustou; “amor à sua mãe e a Deus,


devia ser alguma coisa séria; ninguém brinca com o nome de Deus e da
mãe.” Mesmo sem entender, foi até à sala onde os dois assistiam, emo-
cionados, à novela da noite.

- D. Rosária. Aconteceu uma coisa esquisita...Tem um homem estranho


no telefone, querendo falar com a senhora, de qualquer jeito.

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- Não atendo nessa hora, já te falei; fale que não estou...ou, que não
posso...

- Mas, D. Rosária, isso eu falei. Ele pediu até pelo amor de Deus e pelo
amor à minha mãe...

- Quem é ele? Perguntou ela, mais interessada, largando, por momen-


tos, a novela. Nesse momento, Dr. Adamastor quis se levantar para ir ao
telefone para escapar de ficar ali preso...

- Ele disse que é... Cândida custou a falar; - tenho vergonha de te dizer;
acho que ele é doido...

- Quem ele é? gritou Rosária, voltando a falar como sempre o fazia,


quando estava com raiva. Fale de uma vez, Cândida de uma figa, gritou.

- Ele disse...é, falou que é seu filho... A senhora me desculpe, mas foi o
que ele falou.

- Filho! Assustou-se.

Rapidamente lembrou-se, aterrorizada, de todos os casos que tivera. Sa-


bia que jamais tivera um filho com seus amantes; isso ela tinha certeza,
já falara com muitos que estava grávida, para assustá-los... Era tudo
mentira, a não ser que....sim, a não ser que, antes de se casar... Nesse
momento, deu um pulo da poltrona e correu ao telefone, esforçando-
se, como podia, para demonstrar uma calma que nunca teve e gritando
para Cândida:

- Por que você não me chamou logo? Um assunto sério desses! Falando
com a voz embargada pela emoção e medo, quase chorando, correu ao
telefone acompanhada do marido:

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.- Quem é?

- A senhora não me conhece não, ou melhor, só me conheceu quando


nasci, sou seu filho; naci aqui em Maceió e fui doado... criado por meus
pais adotivos, Dr. Marcelo e Dra. Ruth; eles estão aqui, ao meu lado.
Quem fez o parto, segundo fiquei sabendo, foi Dr. Paulo César Bezerra;
ele já morreu, mas o filho dele, Anselmo...

Antônio não parava de falar, explicava tudo o que sabia a respeito de sua
origem. Do outro lado, Rosária chorava, amparada por Cândida e Dr.
Adamastor, que ainda não tinham entendido o que estava acontecendo
e, a todo momento, perguntavam, sem obter uma resposta satisfatória.

- Meu filho! Que alegria! Você está em BH? Vem para nossa casa... Penso
sem parar em você. Como você é? Bonito? Como são seus olhos? Claros
como os meus?

E continuou com uma série de perguntas, quase sempre, sem esperar


pela resposta. Chorava, limpava as lágrimas com uma toalha, o primeiro
recurso que Cândida achou, pois era o que estava mais perto. Rosária fa-
lava agitada. Do outro lado da linha, o mesmo ocorria, Antônio conver-
sava sem parar. Cada um queria explicar mais ao outro, como estava sua
vida. Quando um começava a falar não permitia ao outro comentar ou
responder. A conversa continuou nesse pé, com extrema emoção, semel-
hante a uma paixão de dois namorados que não se vêem há muitos anos
e que se reencontram. Estavam em êxtase, diante do possível reencontro,
desejado com toda a intensidade por ambos. Rosária passou o telefone
para Dr. Adamastor, mas o tomava, novamente, à força. Muito do que
era falado já o fora antes e, novamente, era repetido, diversas vezes. A
emoção vivida e expressada pelos pais e filho foi maior do que a troca de
informações entre eles.

O telefone só foi desligado duas horas mais tarde, com o encontro


marcado para que Antônio retornasse à casa de seus pais, para visitá-

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los e, como era o desejo de Rosária, para morar. Antes da despedida,
ela conversou e agradeceu, emocionada, à Dra. Ruth e a seu marido por
terem criado seu filho com carinho e muito amor, como ela o criaria,
caso estivesse residindo na sua casa.

O encontro foi finalmente marcado e também, um passeio a Maceió,


para conhecer o casal que criara Antônio, nome de que Rosária não gos-
tou; gostaria que ele se chamasse Genaro, o mesmo nome da tia Genara,
irmã de D. Gertrudes e que a hospedou durante a gravidez em Maceió.

A chegada de Antônio, um dia depois do telefonema, foi esperada com


grande ansiedade por Rosária. Dr. Adamastor parecia não ser sido to-
cado pela vinda do filho desconhecido. Os irmãos, avisados na manhã,
olharam aquilo com desconfiança. Nenhum deles tinha conhecimento
da existência desse irmão, nascido antes do casamento. Coube ao pai
explicar aos filhos os acontecimentos, na presença dos executores da
ação, Gertrudes e Clarimundo, atualmente morando com Rosária; estes
preferiram nada falar, nem se desculpar. Depois da velhice e do fracasso
como comerciantes, parecia que tudo lhes era indiferente. Como bodes
expiatórios, eles não se defenderam.

Havia no ar uma apreensão: como seria a vida familiar com a presença


de um estranho, principalmente se ele decidisse morar, em definitivo,
com a família?

No aeroporto, no dia da chegada, apenas Lucinho não compareceu. Ao


ser informado da existência do irmão, ele, ao contrário dos irmãos, que
fizeram perguntas e argumentaram a respeito do ato dos pais, sem nada
dizer abaixou a cabeça, o mais que pôde e caminhou, desanimado, para
o quarto onde, após trancar a porta, deitou-se. Agostinho, preocupado,
bateu à porta, perguntando-lhe se desejava alguma ajuda, entretanto
desistiu pois foi grosseiramente mandado embora.

Logo que Antônio apareceu, ainda dentro do saguão do aeroporto, todos

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perceberam, pelo seu tamanho e envergadura, que se tratava dele; não
havia dúvida de que aquele era filho de Dr. Adamastor e Rosária. Houve,
durante as apresentações, muito choro, sorrisos e abraços, principal-
mente por parte da mãe que teve de ser socorrida, por ter passado mal,
após permanecer, alguns minutos, abraçada a Antônio soluçando con-
vulsivamente. Roberta e Agostinho foram mais comedidos e menos
efusivos; procuraram não demonstrar hostilidade nem exagerado amor
a um irmão que eles desconheciam e que jamais tinham imaginado exi-
stir. Dr. Adamastor, indiferente, pensando mais na morte, parecia mais
preocupado com a mulher, imaginando que ela poderia ter uma recaída
com essa volta, e as complicações que adviriam disso.

Chegaram em casa, cansados da espera no aeroporto e das emoções


daquele dia tumultuado. Lucinho continuava deitado. Não quis sair do
quarto para conhecer o novo irmão. Antônio, que fisicamente parecia
muito com o pai, no temperamento, era extremamente semelhante à
mãe: desinibido, alegre, falante e brincalhão. Desse modo, após tomar
uma dose de uísque oferecido pelo pai, entrou no quarto do irmão,
fazendo brincadeiras:

- Acorde! gritou. Está na hora de se levantar; venha dar um abraço no


irmão que você não conhece...

- Saia! gritou, Lucinho. Meus irmãos são os que viveram comigo; saia,
vamos, rápido.

Antônio tentou brincar e ficar mais um pouco mas, aconselhado pela


mãe, decidiu sair, decidido a se vingar daquele de cujos modos e trata-
mento não gostou.

A partir desse e de outros incidentes iniciais, diversos atritos foram ac-


ontecendo entre Antônio e Lucinho. Quanto mais o irmão recém-chega-
do tentava se aproximar, mais ele se afastava e mostrava um inexplicável
ódio ao novo irmão. Mas, ao restante da família, Antônio, rapidamente,

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adaptou-se.

Suas ligações com sua mãe, ao contrário do imaginado, tornaram-se es-


treitas, íntimas, cordiais; até em excesso. Rapidamente, ficaram amigos,
como compensação, devido ao isolamento e afastamento de Lucinho.
Rosária, sem se importar com o estado do filho mais novo, passou a
dedicar todo seu tempo e afeto a Antônio, ficando horas conversando e
brincando com ele.

Antônio aceitou a estreita amizade com sua mãe e compartilhou de


todos os seus jogos, gentilezas e amabilidades, bem como do carinho,
muitas vezes, extremado. Mãe e filho passaram a ter um relaciona-
mento próprio de namorados apaixonados: abraçavam-se e, até mesmo,
beijavam-se na face, diante de todos. Era comum ver Rosária e Antônio,
assentados e, algumas vezes, deitados no sofá diante da televisão, ligada,
trocando carícias.

A partir da chegada de Antônio, Rosária passou a assistir televisão com


o novo filho. Este algumas vezes deitava-se no colo morno da mãe,
enquanto ela, carinhosamente, passava as mãos nos seus cabelos longos,
pretos e ligeiramente ondulados. Nesse idílio, sussurrando, trocavam
segredinhos, mostravam sorrisos escondidos. Os afagos eram mostrados
diante de todos que, a princípio, acharam aquilo estranho. Com o passar
dos dias, acostumaram-se e nem mais observavam o que acontecia entre
eles, apesar de não aprovarem essa conduta.

Enquanto Rosária vivia em função do filho recém-chegado, apaixonada


por ele, Dr. Adamastor, isolado, passou a tomar sua cerveja matinal, na
varanda da casa, ao lado dos sogros, cada vez mais indiferentes a tudo.
As únicas coisas que ainda animavam Clarimundo era contar seus anti-
gos e repetidos casos.

- A gente trabalhava mais, dizia Clarimundo pronto para iniciar um


longo e enfadonho caso...

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- Mas éramos mais honestos, interrompia a narração Dr. Adamastor e
continuava com a voz pastosa: - Eu me lembro, quando era estudante de
Engenharia e conheci Rosária; naquela época... exatamente. Não, er-
rei; foi antes de conhecê-la... exatamente... Um ano antes, certa vez, fui
comprar...

- Agora, não existem mais homens; homens mesmo; a maioria é mar-


icas, diferente dos de lá de Maceió, retrucava Gertrudes, com sua voz
esganiçada igual à da filha. - Uma vez, eu namorei um homem, bem an-
tes de conhecer Clarimundo; depois que o conheci, nunca mais olhei prá
homem nenhum; sou uma mulher séria; não como muitas que andam
por aí...

- Tudo está diferente hoje em dia; no meu tempo os homens eram mes-
mo homens, Gertrudes tem razão, concluía Clarimundo, após dar uma
bebericada na cerveja gelada. - Uma vez, um cabra lá de Alagoas veio
tomar satisfação comigo, por causa dumas telhas que ele comprou no
meu depósito. As telhas estavam boas, umas poucas estavam quebradas
e tortas, defeito de fabricação e não fui eu que as fabricou; ele queria que
eu trocasse todas, a maioria boa; eu falei grosso para ele: “ num tenho
medo de bicho como você não; pra um desvalido de sua marca, tenho
aqui o 38, pronto... e querendo ser usado” Ah, ah! o homem deu uma
olhada por debaixo da minha blusa e viu o bichão lá; foi saindo de
mansinho, feito um cordeirinho, sem falar mais nada. Tenho, até hoje,
essa arma...

Levantou-se um pouco trôpego e foi até o quarto onde dormia, tirando,


de dentro de uma das gavetas do criado, a antiga relíquia, o Smith Wes-
son, fazendo, como sempre, questão de mostrar que, no seu tambor,
havia cinco balas:

- Deixo sempre faltando uma bala, se cair o primeiro disparo não sai.
Eta, revólver bom!

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A conversa continuava assim, por horas, enquanto dentro de casa,
Rosária ria junto a Antônio, que bebia cerveja, fumava, sem que ela nada
reclamasse.

Lucinho, afastado da mãe, quase não saía do quarto. Não mais conver-
sava com ninguém, a não ser com Cândida, para pedir-lhe o necessário.
Emagrecera, desde a chegada do irmão, vários quilos. Roberta, fazendo
agora desenhos, quando passou a trabalhar com modas, não tomava
conhecimento do que ali ocorria. Agostinho, preocupado com suas aulas
e preparando sua tese de mestrado, estava absorto e cada dia mais ocu-
pado com seus problemas.

A partir da chegada de Antônio, que nunca falava em voltar para Mac-


eió, Dr. Adamastor foi aumentando a sua dosagem habitual de cerveja.
Passou a beber durante todo o dia, já que não mais recebia as críticas
de Rosária, mas até um incentivo disfarçado. Uma vez embriagado ele
deitava-se cedo. Com esse comportamento do pai, Antônio foi tomando
seu lugar junto à Rosária. Passou a ser seu companheiro durante as
novelas, às quais, ambos fingiam assistir.

Pouco a pouco, um relacionamento não esperado e bastante estranho foi


desenvolvendo-se entre mãe e filho. Os contatos físicos entre eles foram
se acentuando cada vez mais, sob os olhares complacentes ou indifer-
entes de todos. Instalara-se uma forte e violenta paixão entre mãe e filho,
já iniciada antes do encontro.

Rosária, conforme previra Dr. Adamastor, se tornava mais animada,


falante, excitada. Suas conversas só versavam sobre sexo e compras;
começou a fazer brincadeiras pouco comuns. Sem demostrar nenhum
pudor, arrumou um motivo para que Antônio fosse dormir, de vez em
quando, no seu quarto. Ele, conversador e animado, igual à mãe, pron-
tamente, aceitou o convite, sem demonstrar inibições ou repúdio. A
partir de um primeiro encontro, que não teve obstáculo em nenhum dos

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familiares, todas as vezes que chovia mais forte, ela declarava que estava
tendo crises de nervos, que tinha pavor de relâmpagos e de trovoadas.
Por tudo isso, conforme a lógica de Rosária, depois de uma conversa
com Antônio, ele concordou, com muito prazer e orgulho, em dormir
com a mãe, nessas noites de terror, para ajudá-la, se tivesse uma crise.
A partir dessa explicação, a todo e qualquer sinal no céu de tempestade,
ainda que mínimo, os dois se preparavam para dormir no mesmo quarto
e na única cama que ali existia. Dr. Adamastor, há muito tempo, afasta-
do, dormia em outro quarto, longe do dela.

Lucinho espreitava-os, constantemente, sem ser notado por eles. Am-


bos estavam totalmente despreocupados e desinibidos e cada dia mais
indiferentes a tudo. Percebia-se, claramente, que Rosária entrara numa
crise de agitação; mudou seu modo de falar e até os cabelos. Cortou-os
muito curtos e mudou a cor para acaju, com total aprovação de Antônio,
que a acompanhou até o salão e lá ficou esperando, dando palpites como
deveria cortá-los, qual a cor que mais se adaptava a ela. Ela voltou a
sair muito de casa, trocou as roupas de cama, as camisolas: escolhendo
as mais excitantes e ”sexy” possíveis. Sem se preocupar com os outros,
andava pela casa mostrando suas grossas e brancas pernas, cheias de
estrias e dobras, exibia, também, escondidos atrás do minúsculo sutiã
preto, seus seios flácidos. Nas horas das refeições abraçava o filho que-
rido, contava piadas picantes, ria às gargalhadas e xingava, usando todos
os nomes feios conhecidos; os familiares que ousassem ir contra seus de-
sejos ou que os criticassem. Conhecedor de suas crises, Dr. Adamastor,
apático, aceitava tudo, esperando o fim de tudo aquilo, como acontecera
em outras ocasiões.

Antônio, diante daquela mãe, antes desconhecida, tendo tomado o lugar


de Lucinho, aceitava tudo, passivamente. Ele bebia a maior parte do dia;
fazendo, também, às vezes, uso de cocaína e LSD. Essas drogas e mais o
álcool, ajudado pela agitação de Rosária, o punham tanto ou mais exci-
tado do que a própria mãe.

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Assim, corria a vida da família, sem ordem e sem chefe, sem que nin-
guém fizesse nada para interromper esses acontecimentos dolorosos.
Tudo caminhava para a decomposição. A única pessoa a notar aquela
mudança e a chamar a atenção do comportamento de Rosária foi Cân-
dida; mas, de nada adiantaram suas preocupações e ações, tudo continu-
ou como antes. Todos ali já haviam se acostumados à desordem daquela
casa e a irresponsabilidade de Rosária. As outras crises foram parecidas,
quando ela saiu com o pintor, o marceneiro, o encanador, o açougueiro
e o vizinho aposentado. Agora, era o próprio filho o seduzido por ela.
Esse, devido à carência, à bebida e às drogas, talvez, devido à precoce
separação e por isso mesmo, sem a conhecer desde que nascera, encon-
trava agora um amor materno que se transformara em carnal.

Lucinho, cada dia mais distante se perturbava com tudo a que assistia.
Sentia ódio dele, dela e, também, de si próprio. Lembrava-se dos abusos
sofridos por ele quando criança, mas, ao mesmo tempo e desgraçada-
mente, sentia inveja do irmão e sentia-se culpado por sentir inveja.

Percebia que poderia ter uma nova crise e sentia medo dela, mais do
que das outras vezes. Ensimesmado, sem outra coisa a fazer a não ser
pensar sobre o que observava, via aumentar sua desconfiança. Cada dia
tornava-se mais sensível a qualquer olhar ou som que escutasse. Estava
sempre pronto a reagir a qualquer provocação. Para piorar, ele se afastou
de quem ele mais amava em casa, que era Agostinho, acusando-o de
estar sendo omisso, pois deveria fazer alguma coisa para impedir aquela
catástrofe. Começou a sentir falta dos xingamentos de Roberta; era
com ela que ele constantemente brigava, mas na realidade essas brigas
o excitavam. Tentou provocá-la várias vezes, para discutir sobre o as-
sunto, mas, ela, como os outros, desanimada, não reagiu às provocações,
apenas sorriu para ele, afastando-se.

Por último, desesperado, decidiu ir atrás de Virgínia, sua amiga do hos-


pital, que, há muito não via. Entretanto, não a encontrou, Virgínia tinha
sido internada novamente. Foi até ao hospital para vê-la e desabafar-se

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diante dela, mas as visitas estavam proibidas. Lucinho foi percebendo
que estava só; não havia mais ninguém a recorrer. Pensou nos psiqui-
atras, Dr. Erasmo, o Prof. Pinelli, mas sua desesperança acentuara-se,
não o deixando antever nenhuma saída para o novo problema que en-
frentava, jamais imaginado e discutido com os analistas conhecidos.

As teorias com as quais ele anteriormente acreditava poder explicar


tudo, e que lhe haviam proporcionado algum conforto mental e espir-
itual, não mais valiam, não funcionavam diante do que assistia.

Numa noite de dezembro, próximo das festas comemorativos do dia de


Natal, Lucinho não conseguiu dormir. Levantou-se, tendo a garganta
seca. Caminhou até a cozinha para tomar um copo d’água. Como ele
havia ido para cama cedo, imaginou ser bastante tarde, mas na realidade
ainda não passava da meia-noite.

Todos na casa pareciam dormir. Um pouco tonto, devido à confusão e


à falta de sono, Lucinho caminhou em busca do copo. Ao passar de-
fronte do quarto de Rosária, escutou risos. Na cozinha, viu em cima da
pia, dois copos usados e com restos de bebida. Cheirou-os e percebeu
o cheiro de vinho, a única bebida que sua mãe tolerava. Observou que
ainda restava meia garrafa, jogada no lixo. Examinou o cesto descobrin-
do dentro dele mais duas garrafas vazias. Em cima da mesa havia pratin-
hos com restos de queijo, azeitonas e salaminho. Imaginou, horrorizado
e enojado a cena possível que o martirizou e o impediu de voltar para o
quarto.

Postou-se diante do quarto e ficou ouvindo, amargurado, os sons que


de tempos em tempos saíam de lá: sussurros, risinhos, movimentos de
corpos, novos sons de conversas, respirações ofegantes. Do aparelho de
som, colocado muito baixo, podia-se ouvir, ao longe, a música “Plaisir
D’Amour”, que jamais saíra de sua cabeça! Ao ouvir a música conhecida,
o barulho dos corpos na cama, vieram-lhe à mente, com todo o ódio
guardado, durante anos, as cenas vividas nas penosas noites. Reviveu

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sentimentos conflitantes: prazer, por estar recebendo carinho daquela
que pouco lhe dava, e sofrimento, por ser usado por uma mãe doentia,
que provocara em sua alma uma dor terrível, que deformara, para o
resto da vida, sua mente.

Ao ouvir o relógio bater demoradamente doze badaladas, se assustou.


Sua cabeça fervia, ouvia os sons macabros e adivinhava a cena represen-
tada naquele quarto, ali, bem a sua frente. Todos em casa continuavam a
dormir. Voltou à geladeira, bebeu um pouco d’água; em seguida, bebeu
o vinho restante pelo gargalo da garrafa, cuspindo, no chão, o gosto am-
argo. Continuou sua vigília, por minutos, até sentir um ligeiro efeito do
vinho, que o colocou mais desinibido.

Desesperado, tendo sua mente inundada por pensamentos desencon-


trados, Lucinho, sofrendo, engendrou um plano ousado para aliviá-lo.
Sorrateiramente, entrou no quarto dos avós, onde Clarimundo e Ger-
trudes dormiam profundamente. Andando com todo o cuidado, para
não fazer barulho, aproximou-se do criado mudo, ao lado da cama do
casal, para tirar o antigo Smith Wesson. Nesse momento, Clarimundo,
automaticamente, girou o braço direito para dentro da gaveta aberta,
para certificar-se que a arma estava no lugar, mas, sem ao menos abrir
os olhos, retornou à posição anterior e roncou, provocando um grande
barulho. Lucinho levou as mãos à gaveta, desta vez pegando o velho
revólver conhecido, que levara à escola. Saiu do quarto já empunhando
a arma, segurando-a com a mão direita. Fechou com cuidado a porta
e respirou aliviado por estar de posse da arma. Foi até à sala de jantar
junto ao quarto onde Rosária e Antônio estavam. Ali, tristemente, mais
uma vez recordou como num filme todas as cenas por ele vividas com
a mãe. Com lágrimas nos olhos, ele lembrava de tudo; as imagens não
o abandonavam. Repentinamente, enquanto pensava e chorava, a porta
se abriu; Rosária e Antônio saíram cambaleando, alegres, abraçados
um ao outro. Ela vestia um pegnoir azul, da cor de seus olhos. Estava
totalmente desarrumada, de tal forma que todo seu corpo se punha à
mostra, Antônio parecia estar nu.

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Como tinham acendido a luz do quarto e, também por estarem eufóri-
cos e embriagados, nem perceberam a presença de Lucinho, portando
a arma diante deles e que nesse momento já estava engatilhada e pronta
para disparar.

Lucinho, imaginando que eles tivessem notado sua presença na sala,


ficou confuso. Perturbado e apavorado com tudo que presenciava diante
dele: o casal embriagado e vestido daquela maneira, indiferente a tudo.
Seu ódio ia aumentando; ajudado por ele, caminhou firme em direção
aos dois. Não mais controlava suas ações; não mais raciocinava, agia
como um animal pronto para eliminar o inimigo de sempre. Precisava
terminar com aquela tortura, o mais depressa possível.

Nesse instante, Rosária percebeu a presença de Lucinho diante dela,


bem como sua fisionomia estranha e pronta para a agressão. Apavorada,
como um animal acuado, sem refletir, deu o costumeiro grito estridente
e dominador:

- Pare meu filho! Largue isso! Depressa! Obedeça sua mãe!

Ao contrário de sempre, desta vez, Lucinho não obedeceu. Apertou o


gatilho a primeira vez, quando nenhuma bala saiu; mas não demorou
mais do que um segundo, ou menos ainda, para apertar o gatilho pela
segunda vez, apontando para a boca de Rosária. Desta vez a bala saiu,
atravessou a bochecha, ao lado do nariz; um segundo tiro acertou seu
belo olho azul. Em seguida ouviu-se um terceiro, quarto e quinto tiro,
que ecoaram fazendo um barulho seco por toda a casa que dormia. Os
cinco tiros foram dados à queima-roupa. Antônio amedrontado, quase
caindo, correu para o quarto. Todos os tiros acertaram o corpo quase nu
e balofo de Rosária, que caiu, de uma só vez, no assoalho da casa, pro-
vocando um barulho semelhante à queda de um pesado saco cheio de
água.

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Do corpo de Rosária, atravessado no peito e na face pelas cinco balas
disparadas, nasceram filetes de sangue, que escorreram, preguiçosa-
mente, pela sua pele branca formando desenhos vermelhos e sinuosos
na sua face ainda espantada. Sua respiração foi-se tornando mais difícil
e lenta. Lucinho abatido, agachou-se ao lado de sua mãe, abraçando-a
enquanto chorava convulsivamente. Suas lágrimas cristalinas caíam no
corpo da mãe, misturando-se, aos poucos, com alguma dificuldade, ao
sangue vermelho que brotava de suas feridas. Agostinho, atordoado,
tentava afastá-lo, sem o conseguir. Lucinho ali ficou, preso a ela, até
à chegada da ambulância e dos policiais. Rosária, com seu rosto en-
sangüentado, virado em direção ao filho, parecia usar o resto das forças
que lhe restavam, para se despedir e abençoá-lo.

Só com muito esforço os familiares conseguiram afastar Lucinho abraça-


do ao cadáver de Rosária estirado na poça de sangue, que inundava toda
a sala e escorria em direção à cozinha.

Ninguém fez um comentário. Um terrível silêncio se instalou, en-


quanto os policiais conduziam Lucinho, sem resistência, para a prisão.
Não houve necessidade de algemá-lo ou de forçá-lo a caminhar para o
camburão, que o esperava. O que mais ele queria, naquele momento,
era escapar daquela casa; o que ele devia ter feito desde que nasceu. Os
policiais que o acompanharam não deixaram de ter seus olhos umede-
cidos ao presenciar o quadro trágico que poucas vezes, em seu trabalho,
assistiram.

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Epílogo
A história de Lucinho continuou. Não terminou após essa tragédia.
Através de exames psiquiátricos, realizados pelos médicos que o acom-
panharam, a pedido dos advogados, foi cumprir pena no Manicômio
Judiciário em lugar de ser preso numa penitenciária; talvez, na minha
opinião, local muito pior do que a própria prisão. Depois de dois anos
ali, no meio de loucos de toda natureza, essa alma sensível e sofrida
suicidou-se com uma corda na própria cama onde dormia. Os que reti-
raram seu corpo afirmaram:

- Ele devia estar querendo mesmo morrer, pois é quase impossível enfor-
car-se numa cama, sem a altura necessária para tal.

O que ele fez parecia mentira... Como foi toda a sua existência: uma con-
stante busca da identidade; uma luta constante para escapar do labirinto
onde fora aprisionado.

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Fim

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