Medicina
perioperatória
Cláudia Regina Fernandes
Florentino Fernandes Mendes
12 Curso de Educação a Distância em Anestesiologia
Construção de um conceito
Greene, em 1992, durante a 31a Rovenstine Lecture realizada no congresso anual da Sociedade Ameri-
cana de Anestesiologia, fez uma reflexão sobre as mudanças que haviam ocorrido, nos últimos 50 anos,
na atividade do anestesiologista e propôs uma mudança do nome da especialidade para melhor refletir
as novas atividades desempenhadas pela moderna anestesiologia.1 A denominação medicina periope-
ratória (MPO) foi proposta por Saidman, dois anos mais tarde, durante a 33ª Rovenstine Lecture.2
Desde então, o termo MPO ganhou aceitação e foi agregado ao nome de vários serviços de
anestesiologia.3
Em 1998, pesquisa realizada com anestesiologistas de 60 países evidenciou que MPO era o
nome preferido por 61,3% para ser a nova denominação da especialidade.4
Pela própria definição de MPO, a prática e o escopo da anestesiologia são ampliados e di-
recionados ao cuidado médico global do paciente cirúrgico, não mais restringindo-se apenas à
administração da anestesia. Trata-se de melhorar a qualidade, a segurança e os resultados do
paciente antes, durante e depois do procedimento cirúrgico. A opção por envolver-se com qua-
lidade e segurança e com a melhoria dos resultados aproxima de forma estreita a MPO do novo
paradigma de medicina baseada em evidências5 e também das ações que visam desenvolver
qualidade e segurança. MPO é a prática da medicina que abrange todos os aspectos da atenção
ao paciente. Ela compreende uma sequência de cuidados que vão desde a decisão de realizar a
cirurgia, ou o procedimento não cirúrgico, até o momento em que o paciente tem alta do hospital
(podendo ir até mais além).6
Assim, do ponto de vista clínico, a MPO significa prover ao paciente, com base em evidências
científicas e resultados, cuidados relacionados ao preparo pré-operatório, à anestesia, à evolução
pós-anestésica, à recuperação pós-operatória e ao tratamento da dor.
Os objetivos deste capítulo são descrever a interface entre a MPO e a medicina baseada em evi-
dência; enfatizar pontos como a avaliação pré-operatória, a estratificação do risco anestésico-cirúrgico
dos pacientes e a importância da interconsulta com especialistas; demonstrar o papel da reabilitação
precoce e da interdisciplinaridade no contexto da MPO; descrever o impacto sobre custos, gestão
e indicadores de desempenho e de boas práticas clínicas quando se pratica a MPO; descrever al-
gumas etapas para estruturação de um serviço interdisciplinar de avaliação pré-operatória, sobre a
importância de protocolos assistenciais e a implantação da cultura da prevenção.
Assim, não é surpresa que exista uma tensão frequente entre o empirismo e a MBE, pois na
prática clínica o conhecimento adquirido com a experiência muitas vezes não coincide com os
resultados obtidos por intermédio de uma abordagem utilizando a MBE. A especialidade médica
reconhece que há um estado de arte na medicina. Entende-se que dados derivados de rigorosos
estudos clínicos, quando aplicados criticamente, são mais convincentes do que opiniões pessoais.
Quando intervenções preventivas e terapêuticas são consideradas, existem diferentes níveis de
evidência com diferenças hierárquicas (Quadro 1).9
Opinião desprovida de avaliação crítica explícita, baseada em consensos, estudos fisiológicos, com
5
materiais biológicos ou modelos animais
* Homogeneidade significa revisão sistemática livre de variações preocupantes (heterogeneidade) em direções e graus dos resultados entre
os estudos individuais. Nem todas as revisões sistemáticas com heterogeneidade estatisticamente significativa devem ser preocupantes, nem
todas as heterogeneidades preocupantes precisam ser estatisticamente significativas.
** Estudo de coorte de má qualidade é aquele que não define claramente os grupos de comparação, ou não mede as exposições e os desfechos
do mesmo modo (preferencialmente encoberto) em indivíduos expostos e não expostos, ou não identifica nem controla adequadamente os
confundidores conhecidos, ou não faz o seguimento completo e suficientemente longo dos pacientes.
A prática clínica deveria, sempre que possível, ser baseada em estudos com nível de evidência
1 e grau de recomendação A. Em alguns casos, entretanto, não é possível obter esse nível de
evidência para intervenções particulares.9
Um ensaio clínico bem conduzido é a metodologia experimental mais robusta e confiável para
comparar intervenções preventivas ou terapêuticas. Um estudo clínico randomizado é geralmente
considerado grande se inclui no mínimo mil pacientes.11
As revisões sistemáticas caracterizam-se pelo emprego de métodos rigorosos e explícitos de
identificação, avaliação e síntese de artigos científicos originais, obtidos de todas as fontes de in-
formação científica pertinentes à questão clínica revisada. A possibilidade de a evidência resultante
da revisão sistemática ser verificada, conferida e reproduzida é que a coloca como a evidência
mais convincente.12
Uma revisão sistemática de boa qualidade deve satisfazer alguns critérios: definição clara da
questão da pesquisa-alvo da revisão, busca ampla e sistemática de artigos originais de interesse,
estratégia de busca explicitada de forma detalhada, critérios bem definidos de inclusão de artigos,
avaliação crítica da qualidade dos artigos originais incluídos, relação dos artigos excluídos com os
motivos da exclusão, forma de obtenção dos resultados originais explicitada, análise apropriada
dos resultados, se possível por meio de metanálise, análise de subgrupo por desenho de estu-
do dos artigos originais, metarregressão pela qualidade dos artigos (na ausência de exclusão),
avaliação da heterogeneidade dos artigos originais, exploração de eventual presença de viés de
publicação, discussão sobre as limitações do estudo e das evidências obtidas.9
Além disso, verificou-se que a consulta realizada pelo clínico não indica qualquer alteração no
manejo transoperatório em 70% dos casos24 e que o uso criterioso de exames laboratoriais e con-
sultas a especialistas está associado com menor retardo e cancelamentos de cirurgias.25
O desenvolvimento de clínicas de avaliação pré-operatória por anestesiologistas é fenômeno
relativamente novo e tem sido universalmente difundido.26
A necessidade de diminuir a prática de solicitação de exames laboratoriais pré-operatórios de
“rotina”,16,27,28 aumentar as cirurgias ambulatoriais ou com internação no mesmo dia da cirurgia,13
reduzir custos,25,29 diminuir o tempo de permanência hospitalar,30 melhorar a qualidade dos servi-
ços,29,30 melhorar a satisfação dos pacientes,22,31,32 evitar o cancelamentos de cirurgias,21 estratificar
e reduzir riscos33 e melhorar processos32 tem sido citada como justificativa, isolada ou associada,
para a implantação desses serviços. A clínica de avaliação pré-operatória é um investimento posi-
tivo para o serviço de anestesia e para o hospital, porque diminui custos, melhora a eficiência do
atendimento clínico, possibilita o desenvolvimento de protocolos de avaliação clínica, desenvolve
programas educacionais e aumenta a satisfação de pacientes e cirurgiões.26
Além disso, a consultoria médica em anestesiologia, obtida com antecedência, facilita o pla-
nejamento da anestesia, da monitorização e do suporte perioperatório. A avaliação pré-operatória
anestésica ambulatorial permite melhor atendimento, por haver mais tempo para a consulta, além
de proporcionar também melhor documentação das informações obtidas.22
É importante notar que avaliações inadequadas, com falta de informações, foram identificadas
como fator desencadeante de eventos adversos, segundo estudo australiano de incidentes anes-
tésicos.34
A suspensão cirúrgica e os atrasos no dia da cirurgia são causas significantes de frustração
para pacientes e médicos,13 e a diminuição das suspensões de cirurgias e da permanência hospi-
talar são os maiores benefícios atribuídos à criação de clínicas de APOA.35
A clínica de avaliação pré-operatória é frequentemente o primeiro contato do paciente com o
serviço de anestesiologia e com o hospital. Durante o atendimento, facilidades no funcionamento
e eficiência organizacional influenciam a percepção do paciente em relação à qualidade do servi-
ço prestado pela instituição hospitalar.15 Em estudo, verificaram-se índices de satisfação de 99%,
97% e 76% de pacientes, de anestesiologistas e de cirurgiões, respectivamente, com a clínica
de APOA.31
Organização e estruturação de um
serviço de medicina perioperatória
O grau no qual o papel do anestesiologista como médico perioperatório se expandirá não está claro,
mas é provável que, em instituições selecionadas, o anestesiologista irá tornar-se o médico dominante
do cuidado médico perioperatório. Somente a adequada avaliação e o conhecimento individual da
condição do paciente podem evitar atrasos, diminuir a angústia e facilitar o cuidado ótimo, reduzindo a
possibilidade de complicações anestésicas e contribuindo para a melhora da satisfação e dos desfe-
chos apresentados pelos pacientes.36
O manejo do paciente no período perioperatório é frequentemente fragmentado, não padroniza-
do e conduzido por múltiplos grupos, com focos dispersos e variados graus de comunicação.37
Do ponto de vista do paciente o gerenciamento do período perioperatório engloba todos os
aspectos e cuidados desde o início do sintoma cirúrgico, passando pela decisão de realizar a
cirurgia, a anestesia e o período pós-operatório imediato, até o paciente ser atendido na consulta
final. Portanto o período inclui logística, comunicação e alterações médicas que deveriam ser co-
16 Curso de Educação a Distância em Anestesiologia
serviço à implantação do novo paradigma — MPO —, será necessário um tempo de maturação, pois há a
necessidade de uma mudança de cultura.
O currículo desenvolvido durante a residência médica em anestesia deveria ser voltado para
a busca do melhor resultado, focando a avaliação pré-operatória, a estratificação dos riscos, as
medidas preventivas, o tratamento da dor, a relação médico-paciente, o bem-estar e a satisfação
do paciente, avaliando-se, ao final do tratamento, pelo ponto de vista do paciente, a qualidade do
atendimento integral relacionado aos cuidados recebidos. Para se difundir o conceito de MPO, as
atividades teóricas relacionadas ao tema devem ser contempladas no currículo da graduação e
da residência médica.38
A inserção de estudantes e internos dentro do serviço de anestesia é importante, como também é
a construção de um currículo voltado para o entendimento da importância e para a difusão da prática
da MPO. É igualmente importante que os membros da equipe de anestesia inseridos no contexto
estejam disponíveis para o serviço de anestesiologia, com o objetivo de promover a avaliação pré-
-operatória adequada, conduzir a anestesia e o manejo das intercorrências, prover analgesia e cuida-
dos intensivos pós-operatórios, incluindo cuidados que têm repercussão no resultado final: adequada
analgesia pós-operatória,39 transfusão sanguínea racional,40 controle da hipotermia,41 prevenção de
infecção,42 práticas relacionadas à modulação imunológica43 e distúrbios da cognição.44
E quem é a equipe em MPO? Ela é composta de todos os membros da instituição, cujo com-
portamento influencia o cuidado do paciente cirúrgico. Nesse contexto, está incluso o próprio
paciente, os membros da recepção da instituição, o cirurgião, o corpo de enfermagem e outros
profissionais médicos e não médicos, gestores, administradores, provedores de saúde. Todo esse
trabalho em equipe deve ter como meta as melhores evidências médicas disponíveis para os cui-
dados do paciente cirúrgico, tendo como base a padronização de cuidados e condutas.
melhora na qualidade dos cuidados e dos resultados e a satisfação profissional de todos os membros
envolvidos.
Indicadores clínicos e indicadores de resultado somente podem ser obtidos quando todos os
membros da equipe assistencial aceitarem sua responsabilidade na obtenção do bom e do mau
resultado. Isso, segundo François, em 2002, deveria tornar-se uma providência essencial para
melhorar a segurança anestésica, pois, mediante processos de avaliação e feedback, reflete-se
sobre as condições do paciente, a estratégia médica e quais providências deveriam ser otimizadas
para redução do risco do paciente.29
Pollard et al. demonstraram que com esses programas seria evitada a internação de pacientes
para completar avaliações, sem previsão ou data para realizar cirurgias, além de melhorar a capa-
cidade operacional das equipes e o aproveitamento do horário disponível no centro cirúrgico.30
Em ensaio clínico, prospectivo e randomizado realizado em pacientes submetidas à histeros-
copia, o custo foi quatro vezes menor no grupo ambulatorial, quando comparado com o do grupo
internado.56
A implantação de clínicas de avaliação pré-operatória está associada com desfechos favorá-
veis que levam a reduções significantes de custos, sem afetar adversamente o cuidado com o pa-
ciente: redução dramática dos exames pré-operatórios realizados; diminuição das interconsultas
com outras especialidades e diminuição do tempo médio de permanência hospitalar. Embora a
avaliação ambulatorial anestésica esteja associada com cuidado eficiente e seguro, alguns anes-
tesiologistas acreditam que o preparo pré-operatório deveria ser uma responsabilidade primária
do cirurgião. Essa abordagem tipicamente resulta em altas taxas de exames solicitados desne-
cessariamente, atrasos significantes no início das cirurgias e frequentes cancelamentos. Mais
importante, os pacientes podem não ser preparados adequadamente para submeterem-se ao
estresse anestésico-cirúrgico.22
A redução de custos associados com a diminuição dos testes laboratoriais, com a diminuição
das consultas especializadas e com a diminuição das taxas de suspensões de cirurgias é impor-
tante, mas pequena quando comparada com a diminuição de custos associados com a menor
permanência hospitalar.22 Assim, intervenções que decrescem a permanência hospitalar podem
resultar em considerável economia.30,35
Em estudo comparando resultados antes e depois da introdução da APOA encontraram-se
decréscimo de 30% nas suspensões de cirurgias por razões médicas, diminuição no tempo de
admissão pré-operatória, aumento da taxa de admissão no mesmo dia da cirurgia e diminuição
do número de exames pré-operatórios do tipo: eletrocardiogramas (ECG) e de exames radioló-
gicos de tórax (Rx de tórax).28 Somente 13% das suspensões de cirurgias foram devidas à falta
de condições clínicas dos pacientes. O desenvolvimento de clínicas de APOA tende a aumentar
a padronização e reduzir a variabilidade nos julgamentos feitos pelos anestesiologistas do centro
cirúrgico, reduzindo atrasos e obtendo as condições necessárias para o desenvolvimento de ci-
rurgias ambulatoriais ou com internação no mesmo dia da cirurgia.57
Em estudo sobre o tema, a taxa de suspensão de cirurgias de pacientes que receberam avalia-
ção pré-anestésica ambulatorial entre 24 horas a 30 dias antes da cirurgia foi comparável à taxa de
suspensão de pacientes ambulatoriais que receberam a avaliação nas 24 horas antes da cirurgia.
Como os grupos foram similares, conclui-se que os pacientes podem ser vistos no tempo mais
conveniente, sem que isso afete adversamente a taxa de cancelamentos de cirurgias.58
Traber et al. avaliaram 500 cirurgias consecutivas realizadas como primeiro caso na programa-
ção diária e demonstraram que os pacientes que foram avaliados pela clínica de avaliação pré-
-operatória tiveram menores retardos (1,7 vez) no início das cirurgias, quando comparados com os
que não foram avaliados.59
Diversos estudos têm demonstrado uma redução no tempo de admissão pré-operatória e na
média de permanência.26,28,30 Essa redução resulta de um aumento no número de admissões no
mesmo dia da cirurgia ou de um aumento do número de pacientes que são submetidos a cirurgias
em regime ambulatorial.28,30
Metodologia clara para identificar a contribuição do anestesiologista no custo hospitalar fre-
quentemente não está disponível. Fischer25, em Stanford, demonstrou redução de 87,9% na taxa
de suspensão de cirurgias após a implantação de uma clínica de avaliação pré-operatória, com
22 Curso de Educação a Distância em Anestesiologia
maior satisfação dos anestesiologistas quando os pacientes foram avaliados pela clínica. Substan-
cial redução de custos pode ser observada por meio da redução do número de exames labora-
toriais solicitados. No primeiro ano de APOA na Universidade de Stanford a redução dos exames
determinou uma economia de 52,3%, ou 112,09 dólares por paciente, resultando em redução de
custos no ano de 1995, somente neste item, em 1,01 milhão de dólares para o hospital. Disso
resultou melhora na utilização do centro cirúrgico e maior renovação dos pacientes internados.60
Tratamento da dor
Em adição à melhora da analgesia por fatores humanitários é importante fornecer a melhor qualidade
de alívio possível da dor, pois conhece-se que a dor também tem um importante papel na fisiopatologia
da lesão tecidual e pode prolongar a recuperação do trauma cirúrgico.
O trauma cirúrgico acarreta importantes alterações neuroendócrinas, com a liberação de uma
variedade de mediadores como catecolaminas, corticoides, vasopressina, citocinas e fatores en-
doteliais que implicam aumento do metabolismo e catabolismo. Esses mediadores podem também
levar à imunossupressão e à disfunção de múltiplos órgãos.39 Muitas dessas alterações levam ao
desenvolvimento de complicações pós-operatórias e é importante que o anestesiologista entenda
Capítulo 1 Medicina perioperatória 23
a fisiopatologia da resposta ao estresse, para que possa estar atento para executar a prevenção e
diminuir os danos. Em hospitais auditados, o tratamento da dor pós-operatória é inadequado em
13% a 80% dos casos.47
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