da participação
Trabalhando com comunidades
Débora Nunes
1a Reimpressão
UNESCO / Quarteto
Salvador
2006
Este livro foi publicado originalmente em francês com o título
La citoyenneté à travers la participation – Projet pilote à Vila Verde, Brésil. © UNESCO, 2001.
“As idéias e opiniões expressas nesta publicação pertencem ao autor e não refletem, necessariamente, o ponto de vista da
UNESCO. Os termos empregados nesta publicação e os dados apresentados não implicam nenhuma tomada de posição da
UNESCO quanto ao estatuto jurídico dos países, territórios, cidades ou zonas, ou de suas atividades, nem quanto às suas
fronteiras e limites.”
Coordenação editorial:
Débora Nunes e José Carlos Sant’Anna
Foto da capa:
Fotografia aérea vergtical integrante do acervo de imagens do Sistema de Informações Geográficas Urbanas do
Estado da Bahia – INFORMS, foto 07, faixa 26A do vôo fotogramétrico de Salvador, ano 1998, escala 1:8.000,
Companhia de Desenvolvimento Urbano do Estado da Bahia – CONDER.
FICHA CATALOGRÁFICA
(Elaborada pelo Sistema de Bibliotecas da Universidade Salvador - UNIFACS)
NUNES, Débora.
Pedagogia da participação: trabalhando com comunidades / Débora
Nunes; tradução Ciro Sales; Salvador: UNESCO/Quarteto,
2002.
130p.
ISBN: 85-87243-16-0
Introdução ................................................................................................................................ 7
Este livro é o produto de uma experiência- melhoria de suas condições de vida. Aprovando
piloto, realizada no bairro de Vila Verde, na pe- a metodologia participativa proposta, a Prefei-
riferia do município de Salvador, (BA). Trata- tura se comprometeu a pôr em prática os resul-
se de um bairro projetado pela Prefeitura, e as tados advindos do processo, que passo agora a
500 famílias que, inicialmente, deslocaram-se descrever.
para o local, o fizeram por se encontrarem A essência do método testado consistia no
desabrigadas, depois dos graves desabamentos princípio de que participar e se engajar em ações
de terra e de residências ocorridos durante as coletivas significam, em si, um processo de 7
chuvas de maio e junho em 1995. Originárias aprendizagem da cidadania. A preocupação de
de diferentes regiões populares de Salvador, es- testar um método provinha da consciência de
sas famílias começaram a reconstruir suas vidas que a grande legitimidade pouco a pouco
em Vila Verde e, em razão disso, tornou-se pos- alcançada pela reivindicação de participação era
sível observar desde o início a dinâmica do bairro acompanhada dos riscos de manipulação. A re-
e testar um método participativo em um terre- tórica dos políticos e profissionais de todos os
no praticamente virgem. tipos se apropria dessa idéia como slogan, o que
Durante o ano de 1996, quando se passa- não significa que eles se disponham a enfrentar
ram os acontecimentos aqui descritos, a Prefei- as dificuldades concretas de sua realização. Para
tura pretendia intervir fortemente no bairro. O uma participação verdadeira, o puro discurso
projeto urbanístico já estava realizado, mas vá- não é suficiente, mesmo se sincero. É preciso
rias decisões referentes aos equipamentos pú- vontade política, conhecimento profissional de
blicos (prioridade, tamanho, local, construção, métodos de trabalho participativos e conheci-
modo de funcionamento etc.) deveriam ainda mento antropológico da realidade.
ser tomadas, o que sugeria ainda haver espaço No caso dos bairros populares, é preciso
para a interferência da população. Com essa ex- ainda uma disposição pedagógica e a busca cons-
periência, para a qual se obteve o acordo da Pre- tante de uma relação igualitária com os habi-
feitura de Salvador, teve-se como objetivo levar tantes. O propósito seria então retomar a ques-
Introdução
Introdução
CAPÍTULO I
O contexto da
experiência participativa
I – Contexto intelectual ço, prepará-la para adquiri-lo num processo que
denominamos de Pedagogia da participação.
da experiência Decisões de urbanismo são aquelas que,
11
tomadas em relação à cidade ou bairro, repercu-
tirão no cotidiano futuro dos seus habitantes, que
se traduzirão em ações concretas, seja de aplica-
A hipótese ção física, seja de funcionamento urbano.
Aprendizagem é o processo pelo qual um
Fui a campo com a hipótese de que A PAR- indivíduo assimila conhecimentos (e/ou), com-
TICIPAÇÃO DOS HABITANTES EM DECI- portamentos (e/ou), experiências que não tinha
SÕES DE URBANISMO em determinada área (ou tinha, mas incipientes), antes de sua vivência
pode CONSTITUIR-SE EM UM APRENDI- de “aprendiz”. A aprendizagem se passa segun-
ZADO DE CIDADANIA. Para bem compre- do alguns princípios de cognição que foram aqui
ender essa premissa, quatro conceitos-chave levados em conta.
© Débora Nunes
A palavra participação ganhou grande no- Brasil de 1988 – ao especificar que as associa-
toriedade a partir desses movimentos. Nos paí- ções representativas de moradores devem par-
ses ricos, o primeiro entendimento dessa idéia ticipar da planificação municipal – e reafirmada
era o de “dar o lápis aos habitantes”, tendo o com veemência no Estatuto da Cidade, em 2001.
profissional de urbanismo como mediador. Nos Muito antes disso, entretanto, algumas Prefei-
países pobres, a participação sempre teve um turas, dirigidas por antigos militantes de oposi-
sentido mais amplo de repartição dos poderes ção à ditadura militar, deram um sentido con-
creto à idéia de participação, unindo-a, na prá- taurar um “movimento
16
parte de cada uma das pessoas envolvidas: objetivando acordos? O que fazer para que a
“Quem consente se engaja (...) a participar de relação “intelectual/grupo” não derivasse para a
um trabalho ativo e responsável” (GRAMSCI, relação “dirigente/dirigido”, bem próxima da de
1966). A “vontade coletiva” seria o objetivo atin- “dominante/dominado?” Para evitar essas arma-
gido após um processo de negociação de inte- dilhas, enfrentamos o problema utilizando al-
resses entre os sujeitos do projeto hegemônico: guns princípios de Jüngen Habermas.
“a hegemonia pressupõe sem dúvida que é pre- A abordagem habermaniana da comunica-
ciso levar em consideração os interesses e as ten- ção consiste em classificar essas relações em dois
dências dos grupos sobre os quais a hegemonia tipos: a comunicação que visa a um acordo parti-
será exercida” (GRAMSCI, 1966). lhado entre os interlocutores (intercompreen-
são), e a orientada para a obtenção da aceitação
A comunicação de
da idéia pelo interlocutor (estratégica). Haber-
intercompreensão de Habermas
Pedagogia da participação
A terceira influência teórica, a mais impor- culo de Cultura sairiam do “universo vocabular”
tante e decisiva na elaboração desta metodologia dos alfabetizandos;
de intervenção, é a da “Pedagogia do Oprimi- 2. o meio para a alfabetização é o diálogo;
do”, de Paulo Freire, que, reflete um momento é preciso, portanto, criar situações existenciais
importante do pensamento engajado, típico dos típicas da vida dos alfabetizandos para promo-
anos 1960, quando o Brasil vivia um período de ver o debate e incitar a fala dos participantes
intensa mobilização por reformas estruturais do grupo;
crítica na qual a realidade se torna um obje-
© Verônica Lima.
ram jamais. Este princípio, na verdade, não tem vendo a realidade, os fatos, como uma força
superior, se torna fatalista.
necessidade de se limitar à alfabetização, pois é
Consciência ingênua: o homem, crendo-se
aplicável a todos os tipos de aprendizagem”. É superior aos fatos e interpretando-os como
preciso ressaltar que a “aprendizagem da cidada- quer, torna-se assim fanático.
nia” de que se fala neste livro está muito próxima Consciência crítica: o homem, vendo a
realidade através das suas relações causais e
do conceito de “conscientização” de Paulo Freire, circunstanciais, pode, assim, agir de uma forma
termo-chave da sua pedagogia, pois encerra to- flexível, analítica, inscrevendo-se na realidade
sem se adaptar nem se submeter a ela.
dos os conceitos-base dessa concepção:
2 Esta afirmação é próxima daquela de Marx, no
A conscientização implica superar a esfera de apre- Manifesto comunista: a ideologia de uma
ensão espontânea do mundo, para alcançar uma esfera sociedade é aquela da sua classe dominante.
identificação do oprimido com o opressor, que impulso da transformação”. A educação crítica,
é, ao mesmo tempo, de dependência. Esse ato ressalta Freire, compreende assim a conscienti-
não pode ser puramente intelectual, mas práti- zação. No quadro abaixo, buscou-se fazer uma
co, quando o oprimido dá espaço à própria voz, síntese das idéias de Paulo Freire, apresentan-
reconhece o valor da sua ação no mundo e se dá do-se o movimento, sempre ressaltado pelo
conta que ele transforma este mundo, ainda que educador, da passagem possível de uma situa-
modestamente, dia após dia. À medida que se ção de opressão a uma outra de libertação. Essa
apercebe de sua condição de oprimido e do seu passagem efetua-se em escalas variadas (indiví-
valor como homem, passa a ter vontade de mu- duo, sociedade, consciência), aqui consideradas.
dar esse estado de coisas. Essa transformação é
chamada de conscientização.
Paulo Freire enfatiza que a conscientização Diferenças entre a pobreza no Brasil e a
não é jamais dada e que ela é fruto da repetição exclusão na Europa
de palavras de ordem; ela é sempre construída
em cada um através de sua relação com os ou- Antes de passar à descrição e análise do con-
20 tros. Freire lembra aos líderes revolucionários, texto material e antropológico do bairro, do qual
assim como aos educadores, que o engajamento se pode dizer que se trata de um bairro “pobre”
de cada um deles numa luta maior foi precedi- e/ou “excluído” dos progressos materiais da ci-
do da convicção da necessidade de lutar: “é sua dade, é importante estabelecer-se a distinção
inserção lúcida na realidade, na situação histó- entre os sentidos dados por europeus, brasilei-
rica, que os levou à critica dessa situação e ao ros e outros povos latino-americanos aos ter-
Sentimento de pertencer a uma maioria – o povo. Sentimento de estar fora de tudo, fora da
sociedade de consumo.
Esperança religiosa de uma recompensa em outra vida, Falta de perspectivas coletivas, desinteresse
ou de vida no dia-a-dia. Em alguns casos: sonho de pela política e distância das questões
fundação de uma sociedade mais justa. religiosas.
22
Impressão de seguir um destino de pobre, herdado dos Sentimento de derrota diante do fato de que a
pais ou, às vezes, o sentimento de alguma melhora em geração precedente é mais bem-sucedida
relação à geração precedente. social e economicamente.
Convivência num ambiente gregário e vivência da Laços sociais fracos e ambiente de vizinhança
solidariedade de vizinhança. indiferente.
Suporte familiar nos momentos de derrota social. Perda de laços sociais nos momentos de
Vínculos fortes com uma família polinucleada e derrota social. Contatos reduzidos com a
sentimento de dever para com os parentes. família e desengajados.
Para a maioria, distância física dos ricos e da classe Proximidade física dos ricos e da classe média.
média. Sentimento de estar desprovido de meios de Enorme oferta de bens de consumo, sempre
inserção social e de consumo exibidos na mídia. monetarizados. Sentimento de estar
desprovido de meios de inserção.
Pedagogia da participação
Vida social paralela ao modo de vida dos ricos Ausência de vida social, perda de tradições.
tempo e capacidade para ver suas misérias. mentos sociais contra a ditadura e pela redemo-
Passa a existir uma sensibilização crescente cratização. Outros agentes sociais importantes
para os problemas sociais, talvez porque estes são as ONGs – que proliferaram na última dé-
aconteçam também fora dos bairros pobres e cada – e as Universidades, cujas experiências se
degenerem em violência urbana, a qual cresceu tornam cada vez mais presentes, contribuindo
enormemente. Alguns fatos são significativos assim, mesmo pontualmente, para mudar o qua-
para esta sensibilização. Um deles é a reforma dro do país. A experiência no bairro de Vila
Verde, em Salvador, como tantas outras
desse tipo que vêm se desenvolvendo lo-
calmente no Brasil, pertence a essa cor-
rente em que pequenas vitórias sobre o
modelo da desigualdade e da opressão
sobre os pobres se destacam para mos-
trar uma outra via de desenvolvimento,
a que é feita com a participação do povo.
Salvador
26
Ondina – convivência da formalidade e informalidade.
Desabamentos deixaram muitas vítimas em 1995, entre elas a população de Vila Verde.
cidade assistiu a tragédias na época das chuvas: as nificadas e administradas minuciosamente, pois é
inundações em ruas e avenidas provocam o caos preciso deslocar as famílias em perigo para outros
na cidade e os bairros pobres sofrem os maiores bairros e realizar obras demoradas e onerosas. Nos
desgastes, dada a precariedade de suas constru- últimos anos, em face do clamor da sociedade,
ções. Nesses locais, os desmoronamentos de ter- essas obras começaram a ser realizadas.
ras soterram as casas e provocam também o de- Alguns números permitem conhecer as
sabamento de edifícios, que caem uns sobre os condições de vida da população de Salvador, que
outros, resultando, geralmente, em casos de mor- é uma mostra mais ou menos representativa do
tes, feridos, famílias sem abrigo, perdas de bens que ocorre no resto do Brasil. De início, é pre-
familiares, e deixando seqüelas irreparáveis. ciso registrar que, na Região Metropolitana de
Pedagogia da participação
A Prefeitura ignorou durante muito tempo Salvador (RMS), os 10% mais ricos concentram
os desabamentos, pois se tratava de uma questão aproximadamente 50% dos rendimentos, en-
urbana periférica, jamais levada seriamente em quanto os 10% mais pobres detêm apenas cerca
consideração. Dentre outras razões para essa de 1%. Entretanto, Salvador é um caso particu-
incúria, sabemos que enfrentar o problema dos lar, pois, ao lado de uma população com altos
desabamentos de terra nos talvegues implica in- índices de pobreza, possui a reputação de uma
tervenções de grande porte, que devem ser pla- cidade onde reina a alegria de viver. A dança e
os ritmos da cultura popular, assim
© Débora Nunes.
como sua beleza natural e o seu
patrimônio arquitetônico exercem
uma forte atração. Essa aparência ale-
gre advém da sua organização urbana,
cujo setor “formal” se localiza próxi-
mo das belas praias e esconde por trás
dele as favelas e invasões. Contudo,
aquele que vive durante algum tempo
entre a população de um desses bair-
ros miseráveis se dá conta de que não
se trata somente de uma aparência, mas
que existe realmente essa porção de
alegria “quase gratuita” em Salvador,
que revela uma “pobreza mais auto-
confiante, mais alegre, menos triste” 27
(FARIA, 1980) 3 . Existe certamente
uma tendência a usufruir os prazeres
simples, que estão na origem também
da criatividade e da vivacidade da sua
cultura popular. É difícil dizer se a ex-
plicação desse fato se encontra no cli-
ma, na mestiçagem, na espontaneida-
de das relações humanas ou em qual-
quer outro fator, mas é útil salientar
essa constatação antes de passar aos da-
dos que mostram a pobreza existente na cidade.
situado numa colina no meio de uma grande casa tem um reservatório de água de 250 litros e
fazenda. Essa localização propicia o clima agra- está ligada a uma fossa coletiva, que derrama as
dável, muito arejado, podendo-se ver o mar de águas servidas nos pântanos lindeiros ao bairro.
alguns pontos do bairro, enquanto o verde se Varandas, muros, ampliações laterais, jardins e
estende por todo os lados. Um rio corre a 1km construção do primeiro piso foram as modifica-
de distância do bairro e diversos caminhos, pas- ções mais comuns.
sando por campos não-cultivados, levam a ou- Os primeiros habitantes chegaram em de-
© Raimudno Silva – Prefeitura Municipal de Salvador.
29
zembro de 1995 e, pouco a pouco, até setembro/ trânsito constante de pessoas nas ruas, música
31
Os contrastes de Salvador.
© Débora Nunes.
pagas da sociedade. Para os
homens: porteiro, pedrei-
ro, vigilante, operários
pouco qualificados, pintor,
marceneiro, mecânico.
Quanto às mulheres, em-
pregada doméstica, fa-
xineira, lavadeira, costu-
reira, cabeleireira, mani-
cure etc.
Se observarmos aten-
tamente, por um lado, os
dados do emprego e, por
outro, os dos salários,
34 Para esse contingente de famílias que não tem constataremos um afastamento entre ambos, pois,
salário fixo as formas de sobrevivência são os bis- na verdade, poucas famílias têm rendimento
cates e a ajuda da família ou de amigos e vizi- menor que um salário mínimo (15,8%), en-
nhos. Para os homens, é comum que eles se de- quanto em 55,5% delas o chefe de família en-
diquem a mais de uma profissão pouco especia- contra-se desempregado. Isso reflete bem a eco-
lizada, como ajudante de pedreiro ou pintor, além nomia informal brasileira, em que uma grande
de porteiro, para ter uma ocupação – às vezes, no variedade de atividades possível permite a so-
próprio bairro – durante os períodos de falta de brevivência de muitas famílias. É necessário
trabalho. As mulheres fazem serviços domésti- destacar a capacidade de adaptação das pessoas,
cos para as famílias ricas: faxina, lavagem e pas- as atividades provisórias que conseguem para
sagem de roupas etc. Como os antigos mascates, sobreviver, mas que significam, certamente, uma
fazem também venda em domicílio de produtos inquietação constante sobre o futuro.
de beleza e outros. Existe ainda a produção do- Vila Verde é um bairro muito homogêneo do
méstica de alimentos vendida em casa, na vizi- ponto de vista dos salários, pois a diferença entre
nhança ou fora do bairro por outros membros os ganhos da maioria da população ativa e os gan-
Pedagogia da participação
da família, incluindo as crianças. hos mais altos não é muito grande, contrariamen-
A outra parte das famílias, a que pode con- te ao que podemos observar na cidade como um
tar ao final do mês com um rendimento certo, é todo. O ganho familiar mais alto encontrado é de
formada pelos empregados, os comerciantes e oito salários mínimos, o que ocorre nas famílias
os autônomos que prestam regularmente servi- em que há mais de um membro da família traba-
ços. As ocupações mais freqüentes estão entre lhando e que representam 20,2% do total.
Tabela 2 Tabela 4
Rendimentos das famílias do bairro Vila Verde Escolaridade da população de Vila Verde
Rendimentos Famílias Escolaridade População
Tabela 3
Comparação entre os rendimentos da
população de Vila Verde e de Salvador
© Débora Nunes.
dro a seguir, e é necessário assinalar que, prova-
velmente, o número de analfabetos funcionais
é ainda maior que o aferido com base na decla-
ração dos habitantes6 , considerando-se que, em
alguns casos, o constrangimento em mostrar a
falta de instrução influenciou as respostas.
Pode-se observar ainda que é muito baixo o 6 Ao longo dos contatos mantidos com os
número de pessoas aptas a uma inserção num habitantes quando da implantação da escola
comunitária, várias pessoas que se diziam
mercado de trabalho que exige cada vez mais escolarizadas mostraram-se, na verdade,
um nível maior de escolaridade. analfabetas.
Relações familiares sentes das próprias casas, vários casamentos dos
pais, assim como outras características que serão
As famílias do Vila Verde são, na maior par- mostradas mais tarde, dão a marca da instabili-
te, formadas de casais (mais de 70%), com ou dade na vida dessas pessoas pobres.
sem filhos, na maioria jovens e não casados ofi-
cialmente. As pessoas separadas representam em
torno de 10% e os solteiros cerca de 20%. As Vida cotidiana das famílias
uniões não são muito estáveis e, às vezes, as pes-
soas estão num segundo ou terceiro concubina- O contato constante com as pessoas mais
to. Pôde-se observar, durante a pesquisa, diver- engajadas nas atividades pedagógicas e nas ações
sas mudanças de parceiros entre casais próxi- coletivas do trabalho de campo, assim como a
mos, estimando-se que uma grande parte das visita às suas casas, permite uma descrição apro-
famílias é constituída de um novo casamento. ximada de sua vida no dia-a-dia. Houve conta-
Ainda que as famílias sejam pouco estáveis, tos, certamente menos íntimos e menos cons-
as relações intrafamiliares e de vizinhança são os tantes, também com os outros habitantes do
pontos de referência das crianças para a vida em bairro, quando se ia de porta em porta fazendo
36 sociedade, pois a escola é freqüentada durante convites para as reuniões e atividades, realizan-
pouco tempo. Em muitos casos, o pai biológico do as entrevistas e aplicando os questionários,
se afasta por causa de um novo casamento, por ou promovidos pela necessidade de pedir em-
mudanças ligadas ao trabalho ou por mortes pre- prestada uma ferramenta qualquer ou, simples-
coces ocasionadas por doença ou violência. Para mente, pelo interesse em conversar.
as crianças, a presença mais constante é a da mãe Por ocasião desses contatos, verificamos que
e, às vezes, a da avó. Este dado confirma as dis- uma família com o salário fixo, mesmo se tra-
cussões recentes sobre a feminilização da pobre- tando de um salário mínimo (em torno de 80
za e sobre as responsabilidades que assumem cada
dólares, mais o transporte e, algumas vezes, a
vez mais as mulheres no seio da família,
alimentação do trabalhador), pode ser conside-
notadamente no meio urbano (DOCUMEN-
rada uma família com uma vida “organizada”.
TOS DAS CONFERÊNCIAS DA ONU DE
Essas famílias têm dificuldades no cotidiano e,
PEQUIM, 1995, e ISTAMBUL, 1996).
certamente, se angustiam com a falta de dinheiro
Contrariamente às expectativas, as famílias
não são muito grandes, verificando-se que 68,4% para os seus deslocamentos do bairro, para pa-
dessas são compostas por dois a cinco membros, gar o consumo de água e de eletricidade, para
Pedagogia da participação
o que decorre, em muitos casos, do fato de os custear as despesas de um modo geral, mas,
filhos do casal ou de um antigo casamento mo- comparadas àquelas que não possuem salário
rarem em outros bairros com os avós. Tal cir- fixo, seu modo de vida é próximo ao das classes
cunstância evidencia que as relações ainda são sociais mais favorecidas. Do ponto de vista ma-
marcadas pelo espírito da família ampliada, in- terial, podemos observar em suas casas a pre-
cluindo avós e tios, mesmo que esses morem lon- sença de mobiliário e utensílios domésticos mais
ge da família nuclear em questão. Crianças au- comuns – móveis, roupas, louça, aparelhos
eletrônicos e até alguns objetos de decoração. próximas dos seus pais nos bairros de origem.
Trata-se de uma arrumação semelhante à que Para além das relações parentais, muito estrei-
podemos encontrar na maioria das casas no Bra- tas, havia relações de proximidade com os vizi-
sil. Certamente o salário fixo permite crédito a nhos de longa data. A chegada ao novo bairro
essas famílias e, dessa forma, o acesso a produ- não significou um choque cultural tão grande,
tos mais sofisticados. pois a origem sociocultural comum favoreceu a
Do ponto de vista da vida cotidiana, em ra- comunicação e a solidariedade entre as pessoas,
zão da estabilidade do emprego do chefe da fa- que tinham, além disso, vivido a mesma tragé-
mília, o ritmo de vida dos membros é regular. dia. É preciso observar também que, em certos
Ou seja, há uma hora mais ou menos fixa para casos, houve acordos com os funcionários da
dormir e acordar, comer, trabalhar ou para ir à Prefeitura para colocar membros de uma mes-
escola etc. Os habitantes tomam mais cuidados ma família próximos uns dos outros.
consigo mesmo, estabelecem uma nítida separa- Com o passar do tempo, novas relações so-
ção entre as roupas de sair e as “de ficar em casa”, ciais foram criadas, baseadas sobretudo em tro-
saem mais do bairro, fazem “compras mensais” cas com os vizinhos, propiciadas por necessida-
de comida etc. Esse modo de vida tende a perdu- des ocasionais, como empréstimo de utensílios
rar ainda que se perca o emprego, desde que tal domésticos e comida e solicitação de serviços.
37
condição não se prolongue muito ou que a famí- Para as mulheres, havia ainda a guarda recíproca
lia encontre biscates para substituí-lo. das crianças, por ocasião da saída para as com-
Por outro lado, nas famílias que não têm pras e das diversas ocupações das mães. Para os
salário fixo durante muito tempo a desordem homens, a freqüência aos bares, as “peladas” e
da vida é evidente, sobretudo se essa situação se outros jogos coletivos ocasionaram os encontros.
prolonga. Há casos em que a casa é mais um Um grupo significativo de pessoas entrou em
amontoado de objetos diversos que uma arru- contato e estabeleceu relações continuadas umas
mação organizada. Freqüentemente as crianças com as outras através das atividades desenvolvi-
insígnias. O fenômeno já era notado ao aplicar- te nos finais de semana. Todavia, os locais de
se o primeiro questionário, quando 57,9% das encontro mais utilizados eram, e ainda o são, a
pessoas se diziam “católicas”; 24,6%, membros sombra oferecida pelas casas particulares, onde
de “outras igrejas”, e 17,5%, “não ter religião”. as conversações entre vizinhos são freqüentes.
Enquanto isso, 49,1% dos entrevistados diziam Devido às atividades do trabalho de campo des-
“jamais ir à igreja”, provavelmente uma grande ta pesquisa, com suas reuniões pedagógicas e
parte dos católicos; 21,9%, diziam “ir todas as trabalho comunitário, a sede da Prefeitura no
bairro, que viria depois a se tornar a sede da es- populares de rádio e televisão, em que há uma
cola comunitária, se tornou também um ponto intimidade entre os animadores e os ouvintes e
de encontro de muitos moradores. telespectadores, são muito apreciados, principal-
Sobre as relações de vizinhança, é interes- mente pelas mulheres.
sante observar ainda que as pessoas participam As áreas externas também são largamente
dos acontecimentos da vida pessoal umas das utilizadas, particularmente pelas crianças, já que
outras de forma bem mais intensa do que ocor- as atividades culturais organizadas, que atrairiam
re nas classes sociais mais favorecidas. Assim, os adultos, são raras. Os bares, pontos de en-
acontecimentos privados por natureza, como contro e lazer no bairro durante os finais de se-
brigas de casal, reclamações dos pais aos filhos, mana, são sobretudo freqüentados por homens
visitas de parentes, gravidez, doenças, abortos, e mulheres mais jovens. As pessoas tomam cer-
viagens, tornam-se acontecimentos de domínio veja ou “cachaça” e conversam, ouvindo músi-
público e os vizinhos os comentam entre si. Se, ca; alguns grupos de samba se formam e se se-
por um lado, tem-se a impressão de que a vida param nesse ambiente. O campo de futebol, que
cotidiana no bairro é monótona, pois pouca coisa já existia num terreno baldio, é utilizado geral-
acontece em termos de vida coletiva (festas pú- mente no fim do dia, particularmente pelos 39
blicas, manifestações, feiras etc.), a socialização homens.
das relações particulares imprime movimento O fato de o bairro estar situado no meio de
ao bairro e é assunto para discussões. Em campos faz com que a população possa ter al-
contrapartida, a vida privada fica comprometi- guns hábitos típicos dos meios rurais, como a
da pela promiscuidade ocasionada pela casas, colheita de frutas e o corte de madeira bruta para
muito pequenas para o número de ocupantes e usos diversos, mas também distrações como o
para uma ocupação tão densa. banho do domingo numa antiga barragem nas
proximidades, construída para o abastecimento
© Débora Nunes.
Pedagogia da participação
as associações ligadas à religião e ao esporte, que, etc. Esse tipo de ação, normalmente, não tira o
de ordinário, propõem sobretudo atividades de participante pontual de seus hábitos, de seu qua-
realização pessoal, física ou cultural, ou, mesmo, dro mental cotidiano. Trata-se de um espasmo
de caridade. O âmbito coletivo é o dos sindica- de ação coletiva, em que o participante atende
tos, por exemplo, que normalmente propõem ao apelo repentino de um vizinho, manifestan-
atividades envolvendo todo o grupo, como as do-se ou agindo a seguir, mas volta depois ao
reivindicações salariais, e que, no Brasil particu- seu cotidiano.
As relações dos habitantes com pessoas locais em que foram provisoriamente abrigados
de fora do bairro até a sua mudança para o bairro, também esteve
presente mais tarde, por ocasião dos vários acon-
Nos bairros pobres, as pessoas ficam a mai- tecimentos que chamaram a atenção da socie-
or parte do tempo no seu próprio ambiente e dade para os “desabrigados”. Mais de 70 repor-
suas relações mais freqüentes são com os vizi- tagens de imprensa, falando do bairro e de seus
nhos. No caso de Vila Verde, pela particularida- habitantes, foram publicadas, sem citar os nu-
de da sua criação, seus habitantes estabelece- merosos artigos do período dos desabamentos
ram uma série de relações com pessoas de fora nem os do jornal oficial da Prefeitura.
do bairro. Desenvolveram-se, sobretudo, rela- Afora esses contatos, acima mencionados,
ções funcionais, que foram mais importantes no com os não-residentes que vinham ao bairro,
processo de instalação do bairro. O maior con- verificaram-se contatos pessoais de cada um dos
tato foi estabelecido com os vigias da obra; em habitantes com o exterior, não só intraclasses, fa-
seguida, vinham os funcionários da Prefeitura, miliares ou de amizade, mas também interclasses.
mas também pessoas ligadas à Igreja Católica; Os contatos interclasses são raros quando não têm
por fim os operários e os funcionários das em- um caráter funcional, como os citados anterior- 43
presas de construção, que ficaram no bairro mente, salvo no que se refere à religião. Como
durante certo tempo, e sobretudo, a equipe de visto, o abismo social prevalecente no Brasil faz
pesquisadores ativos. com que existam dois mundos separados: de um
Os habitantes do bairro limítrofe, o Vila lado, a cidade formal, que pertence aos ricos e à
Verde original, surgido de uma invasão de ter- classe média, com seu comércio, serviços e lazeres
reno e chamado pelos seus criadores de reservados, e onde se anda de carro; do outro, a
“Loteamento Vila Verde”, introduziram-se pou- grande cidade intermediária e informal, onde se
co a pouco no novo bairro planejado, denomi- encontram os lugares freqüentados pelos pobres
7 Fala-se aqui em anomia no sentido usado por Merton, citado no Dictionnaire de la Sociologie
Larousse, ou seja, comportamento do indivíduo quando não vê possibilidades de chegar a um
objetivo definido pessoalmente ou prescrito pela cultura para si mesmo, e então, por uma
impossibilidade concreta, tende a se retirar da vida social e a se ligar menos aos
acontecimentos coletivos.
As questões-chave são: 1) renda; 2) tipo de família e dos próximos; 7) interesse em discutir
emprego ou ocupação; 3) escolaridade; 4) exis- os problemas do bairro; 8) vivência pessoal ou
tência ou não de lembrança sobre fatos impor- familiar de experiências de participação em or-
tantes da vida; 5) grau de interesse pelas ques- ganizações coletivas; 9) existência ou não de um
tões nacionais em maior evidência; 6) existên- sentimento fatalista perante a realidade; 10)
cia de referências – pessoas admiradas – fora da pertinência dos raciocínios práticos ante as ques-
tões relativas ao bairro.
Quadro 3
Características dos pólos indicando as tendências à participação ou à recusa
do habitantes às ações coletivas propostas 8
Pólo “potencialmente anômico”, Pólo “potencialmente engajado”
Os mais pobres (salário menor que um SM – são 15,8% Os menos pobres (salário maior que três SM - são 10,2% do
do total dos habitantes do bairro) total dos habitantes do bairro)
Os desempregados de longa data (35%) Os que possuem emprego fixo (26,5% do total)
Os analfabetos funcionais (21,9%) Os que freqüentaram a escola em torno de oito anos (30,7%);
Os que não se lembram de nada do que marcou suas Os que se lembram de alguma coisa pessoal que marcou suas 45
vidas (27,2%) vidas (particularmente a tragédia dos desabamentos de que
foram vítimas), (44,7%) ;
Os que não podem citar de memória uma notícia da Os que podem citar de memória uma notícia da atualidade
atualidade nacional que teve uma repercussão em suas nacional que teve uma repercussão em suas vidas (31,6%)
vidas (45,6%)
Os que não admiram ninguém em particular (31,6%) Os que admiram alguém pelos seus atos perante o coletivo
(artistas, esportistas, políticos, religiosos, etc.) (29,8%)
Os que não discutem jamais os problemas do bairro Os que discutem os problemas do bairro fora do contexto
(25,4%) familiar (47,4%)
atoriamente no bairro, o segundo pólo agrega e “salvadores” (o que existe, de forma variada, na
as pessoas com quem convivi freqüentemente tradição das sociedades que possuem um Poder
durante a experiência-piloto. De uma maneira Público frágil). Deve-se dizer, todavia, que vários
geral, são pessoas que participaram das ativida- traços que serão propostos, a seguir, como carac-
des pedagógicas e das ações coletivas e sobre as terísticos da pobreza (a partir do exemplo de Vila
quais se vai falar mais detalhadamente no quar- Verde), são sobretudo questões humanas, acen-
to capítulo deste livro. tuadas pela pobreza.
Horizontes de vida e de interesses conversas tidas com os habitantes durante a ex-
dos habitantes periência-piloto.
Essas respostas são próximas do que foi obser-
As respostas dos habitantes para algumas vado nas conversas no bairro. Os assuntos de con-
questões do questionário inicial já mostram versa das mulheres, por exemplo, são mais ligados
que seu interesse majoritário é ligado às ques- à vida privada, aos problemas de família e da casa, às
tões próximas, imediatas. Gramsci falava de crianças, a seus amores; elas falam também de notí-
uma “visão de mundo interior”, que jamais ul- cias da vizinhança e do que aconteceu nas novelas.
trapassa os muros da casa (GRAMSCI, 1966). Os homens discutem nos bares e seus assuntos são
Esse conceito certamente pode ser utilizado mais vastos, pois eles falam também de política,
para falar dos pobres, mas também de outras embora o assunto preferido seja o trabalho (ou an-
categorias sociais. Essas respostas serão agora tes, sua falta) e o futebol. A religião também é um
apresentadas para, em seguida, serem discuti- tema muito debatido pelos homens e mulheres,
das, com base também em situações vividas e quando eles são ligados às religiões pentecostais.
47
Tabela 8
“Quais são seus três primeiros assuntos de preocupações?”
Citada em Citada em Citada em
Preocupação
primeiro lugar segundo lugar terceiro lugar
A família 50,0% — —
A sobrevivência 35,1% 35,1% —
Os problemas mundiais 8,8% 7,0% 6,1%
Tabela 9
“Qual é o grau do seu interesse pelas informações televisivas?”
Assunto Muito Pouco Mais ou menos
Vizinhança e Bairro 64,9% 12,3% 22,8%
Salvador e Bahia 53,5% 13,2% 33,3%
Brasil e o mundo 54,4% 14,9% 30,7%
Fonte: pesquisa de campo.
É preciso dizer também que a idéia de um estreito são árduas, e isso é um dado a mais da
horizonte de interesse restrito e imediato não opressão. Pude observar em campo que a vida
implica um julgamento negativo sobre a capaci- material leva à limitação de interesses, que as
dade de raciocínio ou sobre uma “banalidade” preocupações cotidianas ocupam a maior parte
deste. A maneira como as pessoas pensam mos- do tempo das pessoas. Todavia, essa não é uma
tra-se perfeitamente lógica e em acordo com suas situação determinada somente pelas condições
necessidades, observando-se que suas estratégi- econômicas, vários outros fatores aí interferem.
as de vida são perfeitamente inteligentes e adap- Dentre as condições objetivas que consti-
tadas. Trata-se de uma espécie de resignação no tuem esse estado de coisas, podemos citar: 1)
sentido etimológico do termo, em latim, re- preocupações com a sobrevivência, que absor-
signare, que quer dizer “dar um outro sentido” ou vem o indivíduo; 2) fraca escolaridade; 3) isola-
“re-interpretar” os dados da vida de uma maneira mento físico e social e falta de informações; 4)
adaptada às possibilidades de intervenção de cada sentimento de impotência perante as questões
um. Fala-se de horizontes de interesse restrito que ultrapassam o seu cotidiano.
do ponto de vista que nos interessa aqui: a cida- Vejamos agora cada um desses dados cons-
48 dania, o compromisso histórico perante a socie- tituintes do modo de vida e que condicionam
dade, que nem todos se sentem capazes de esta- esse horizonte de interesse restrito.
belecer.
A vontade de alargar os horizontes de vida
é aliás evidente em várias situações. Por exem- As preocupações com a sobrevivência
plo, uma das respostas à pergunta “sobre o que ocupam o tempo e o espírito das pessoas
você gostaria de discutir”, foi “sobre tudo que e condicionam seu olhar sobre a vida
me faça aprender mais”. As respostas à questão
referente à Tabela 9 mostram que a maioria das Como vimos, o cotidiano dos pobres é mar-
pessoas se interessa muito por todos os assun- cado pela precariedade, em diferentes graus,
tos apresentados. Quanto ao “apetite educativo”, certamente, mas também por uma luta pela so-
do qual fala Paulo Freire, pude também brevivência ou, no melhor dos casos, pela bus-
constatá-lo fora das atividades da experiência- ca de uma vida digna. Com relação ao dado
piloto e durante os cursos da escola comunitá- “tempo” no horizonte de interesse das pessoas,
ria. O fato de as pessoas adorarem as novelas é percebe-se que a fixação em um horizonte ime-
Pedagogia da participação
também revelador de uma maneira de fugir des- diato está vinculada às situações de proviso-
se universo restrito. riedade que são constantes, causadas pela inter-
Do que foi observado em campo, deduz-se mitência do trabalho, pela fragilidade dos casa-
que, mais do que uma “cultura da pobreza”, mentos, etc. Segundo o questionário aplicado,
defendida por Lewis (1972) existe uma “cultu- 57% das pessoas do Vila Verde têm um hori-
ra do oprimido”, como diria Paulo Freire. As zonte estreito (36,8% no dia de hoje; 20,2% no
condições de vida que levam a esse horizonte ano em questão) e 43% pensam no futuro a
médio ou longo prazo. Isso quer dizer que é contínuo para adquirir o saber, mesmo o mais sim-
mais natural pensar no dia seguinte do que fa- ples, tem como efeito o desconhecimento dos
zer planos de longo prazo, pois, diferentemen- mecanismos de “aprender a aprender”. Além dis-
te do que acontece nas classes sociais mais abas- so, a disciplina, o tempo dedicado ao conheci-
tadas, o futuro para os pobres implica freqüente- mento e toda a dinâmica do que se passa em uma
mente um maior número de fatores impon- sala de aula configuram também a visão do mun-
deráveis. Assim, o horizonte de interesse restri- do e o comportamento. A leitura, por exemplo, é
to no tempo seria uma estratégia de adaptação um hábito que adquirimos ou não; a curiosidade
perfeitamente racional. também pode ser mais ou menos favorecida pela
Assim, não poderíamos mais dizer como vida em sociedade.
Beaumarchais, em seu Barbeiro de Sevilha, que No caso dos analfabetos, não se trata somente
só os indivíduos sem nenhum problema pessoal da ignorância de uma técnica, adquirida para uma
poderiam se ocupar dos problemas dos outros. função utilitária – ler e escrever. O desconheci-
Isso pode ser verdadeiro em vários casos, mas mento dessas técnicas tem repercussões cogniti-
exemplos contrários foram observados no bair- vas importantes, no sentido da “leitura da lingua-
ro. Às vezes, ocupar-se dos outros é uma ma- gem como leitura do mundo” (MACEDO e 49
neira de dar sentido à própria vida. Certamen- FREIRE, 1990). Para esses autores, não é possí-
te, tudo depende do indivíduo, de sua história, vel passar à leitura da palavra sem antes ter pas-
de seus valores. Para simplificar, digamos que sado por uma decifração da realidade. Assim,
condições materiais precárias constituem uma dominar os mecanismos de ler e escrever é um
condição restritiva à construção de um horizonte “aspecto essencial do que significa ser um agente
de interesse vasto e de longo prazo. individual e socialmente constituído” (GI-
ROUX, 1990).
Além do horizonte restrito de interesse, ve-
condicionam as pessoas a permanecer nele por habitantes graças a conversas e opiniões dife-
muito tempo, sobretudo os homens e mulhe- rentes, enriquecedoras. Desse ponto de vista, há
res desempregados. Esse isolamento configura- uma certa homogeneidade no bairro e, assim,
se numa barreira a qualquer novidade e ao aca- são menores as possibilidades de surgirem no-
so, que são típicos da vida nos grandes centros vas questões. Uma conversa sobre as novidades
urbanos e, assim, usuais para os que aí transi- da informática ou sobre o cenário cultural, por
tam. Dessa forma, muitos habitantes dos bair- exemplo, é inacessível aos pobres, pois eles não
têm, geralmente, relações com pessoas que tra- lhes permita fugir dos próprios problemas. Isso
balham nessas áreas. é confirmado pelo grande interesse dado às no-
A falta de conhecimentos variados e velas, que são dramáticas, mas onde o toque de
aprofundados é uma constante na vida dos po- humor e romance é sempre presente, podendo
bres, o que se deve não somente à baixa escola- dar ainda a ilusão, àqueles que as acompanham,
ridade que acabamos de mencionar, mas tam- de fazer parte do mundo das elites que elas des-
bém às condições econômicas das pessoas. As- crevem.
sim, é difícil o acesso aos produ-
tos culturais de qualidade, pois é Tabela 10
preciso pagar por eles; mesmo Em suas fontes de informação (TV sobretudo), quais são os
quando se trata de programações assuntos que mais lhe interessam (em porcentagem)?
gratuitas, o custo do transporte é
um impedimento. Existem ainda Em 1o Em 2o Em 3o Em 4o Sem
Programa
lugar lugar lugar lugar resposta
as restrições materiais, mesmo
Esporte 18,4 17,5 17,5 30,7 15,8
para se ter acesso à informação,
Polícia 12,3 20,2 29,8 18,4 19,3
às vezes superficial, da TV e dos 51
Noticiários 44,7 21,1 7,9 13,2 13,2
rádios. Esses veículos de comu- Novelas/Filmes 25,4 22,8 23,7 15,8 12,3
nicação estão presentes (81,6 %
Fonte: pesquisa de campo.
das casas possuem um aparelho
de rádio e 69,3 % uma televisão),
mas 30% das casas não possuem um aparelho Com mais de 66% de respostas indicando o
televisor. Diferentemente de noutros contextos, primeiro e o segundo lugares, os habitantes de
pode-se dizer com certeza que, no caso brasi- Vila Verde mostram seu apego, como o resto do
leiro, não possuir uma televisão não é uma es- Brasil, ao jornal das 20:00h. A participação nessa
sário que haja alguém da Prefeitura para vigiar os tra- larial é um pouco maior. Pela sua vivência pes-
balhos do mutirão senão haverá problemas. É melhor soal e suas características próprias, o líder é al-
que tenha alguém de fora para comandar”. guém que possui uma visão de mundo alargada
Nas discussões sobre a creche, a opinião com relação aos outros habitantes. Ele tem tam-
seguinte era muito difundida: “As mães não vão bém capacidades pessoais particulares, como a
cuidar dos filhos dos outros, elas vão bater nas crianças de convencer, seja pela sinceridade e o exemplo
e tomar conta apenas dos seus”. – a persuasão – seja pela autoridade que inspira.
Ele se distingue dos outros por uma perseveran- autoritarismo e paternalismo, com as quais as
ça particular na busca dos seus objetivos, e deve pessoas estão habituadas. O líder forte seria as-
ter também uma certa capacidade de sacrifício sim legitimado pela tradição, mas isso não é su-
pessoal, porque a liderança significa a saída do ficiente para descrever suas características. Para
mundo privado para o engajamento nos proble- exercer sua liderança, o líder forte é legitimado
mas que dizem respeito aos outros. O líder fica à também pelo seu carisma. Segundo Weber
vontade em público e se distingue sem dificul- (1991), a legitimação de um líder carismático
dades da multidão, sendo capaz, dessa forma, de vem de uma certa idealização que os adeptos
obter que as pessoas o escutem, o respeitem e o fazem a seu respeito: trata-se de características
sigam. não-cotidianas, não-medidas, vindas de um
Dois tipos de líderes foram identificados em heroísmo, de uma graça qualquer. A interpreta-
campo: um, cuja ascensão sobre os habitantes é ção que parece próxima em nosso caso é a do
baseada na autoridade ou capacidade de coman- carisma como sedução, do que serão mostrados
dar, e outro, que baseia sua ascensão na influ- exemplos mais adiante.
ência, ou capacidade de persuadir. Freqüente- O líder mobilizador, o que legitima sua li-
mente, existe uma mistura dessas duas capaci- derança pelo seu poder de persuadir as pessoas, 59
dades e os líderes foram caracterizados com base de mobilizá-las em uma luta baseada em suas
na preponderância do tipo de ascendência que próprias forças, é fruto de uma construção ex-
eles têm sobre os habitantes: aquele que funda- terior à tradição do cotidiano. Ao contrário dos
menta sua liderança na autoridade é um líder líderes fortes, os líderes mobilizadores têm ne-
“forte”, enquanto o que fundamenta sua lide- cessidade de serem impulsionados para se dis-
rança na influência é um líder “mobilizador”. tinguir. Sua legitimação parte de uma racionali-
O líder forte é o que pode convencer as pessoas dade dos “liderados” com relação ao interesse
de que ele tem um poder particular de melho- que eles têm de ter um líder assim. Esse tema
Aristeu fazia o papel de guardião dos “valo- líder com os “liderados” que o aceitaram como
res do bem”, além daquele de guardião da or- tal. Ele fala assim da legitimação da dominação.
dem, o que lhe era conferido por sua função de Não existe, segundo Weber, dominação sem
policial. Utilizava-se freqüentemente de fórmu- “um mínimo de vontade de obedecer, quer di-
las vagas, opiniões anônimas que não podiam zer, o interesse (interno ou externo) perante à
ser contestadas, para transmitir sua própria opi- obediência”. A legitimidade ou, pelo menos,
nião, tendo, assim, um lado autoritário. Essa ati- uma crença nessa legitimidade, é procurada em
todas as formas de dominação, mesmo se existe discussões comunitárias. Contrariamente aos lí-
também a autoridade imposta, aceita por fraque- deres mobilizadores, o líder forte não é do tipo
za individual e/ou coletiva. Ainda conforme que pode trabalhar em equipe. Ele não sabe es-
Weber, é a natureza das motivações ou dos inte- timular o trabalho de cada membro de um gru-
resses a obedecer que define a natureza da po, tudo devendo estar sob o seu controle abso-
legitimação e, por conseqüência, os diferentes ti- luto e seguir a sua visão das coisas.
pos de dominação. Existem motivações materi-
ais, afetivas e as que são do âmbito dos valores. A inveja despertada pelos líderes
Essas motivações podem, naturalmente, coexis- que se distinguem
tir em cada caso. Segundo o mesmo autor, exis-
Como visto, o típico líder de um bairro
tem três tipos puros de dominação legitimada: a
popular é o líder forte e sua ascendência sobre
dominação racional, a dominação tradicional e a
os demais não suscita inveja. Todavia, quando
dominação carismática. A dominação legitimada
existe um líder mobilizador em ação, a atitude
racionalmente é encontrada nas instituições de
invejosa é muito freqüente. Esse comportamen-
caráter legal; a dominação legitimada afetivamen-
to é muito difundido e, mesmo se é também
te é encontrada nas relações de respeito à pessoa,
ligadas à tradição; a dominação legitimada pelo freqüente em outras classes sociais, parece que 61
carisma é encontrada nos seguidores do líder que se torna mais agudo com a interiorização do es-
têm uma “graça” particular. tigma da pobreza. Várias hipóteses podem ex-
Em campo, foi possível observar o nascimen- plicar a inveja relativamente aos que se distin-
to dos dois tipos de líder, que não são exemplos guem: 1) a idéia de que o líder quer tirar pro-
puros como os de Weber, mas cuja ascensão so- veito de sua condição, seja para se fazer perce-
bre os outros pode ser compreendida à luz das ber, seja para enriquecer ou, ainda, para chegar
suas categorias. A emergência desses líderes e o a uma posição de prestígio; 2) o sentimento de
reconhecimento de sua liderança pelos habitan- que se é ameaçado por essa posição de distinção
É claro que essa atitude invejosa não é a Para as pessoas do bairro que não partici-
única. Existem pessoas que admiram os que as- pam do trabalho comunitário é natural que as
sumem mais responsabilidades do que os ou- ações coletivas também se tornem tema de con-
tros e reconhecem que elas são úteis, pois fa- versas: elas ouvem falar do assunto e, por sua
zem avançar as coisas, mobilizam os demais, os vez, fazem seus comentários, pois se trata de
menos capazes ou menos disponíveis. Esses lí- uma novidade interessante. Esses “outros”, os
deres são, às vezes, reconhecidos rapidamente, que não são pessoalmente engajados, podem ter
reações positivas ou negativas, que também têm buem igualmente. Muitas vezes, quando as pos-
conseqüências sobre o trabalho comunitário. Se sibilidades de participação se apresentam, a
a reação é positiva, eles admiram uma tal audá- interiorização da estigmatização impede o indi-
cia e torcem pelo seu sucesso, se colocando à víduo de se disponibilizar, bem como são em-
disposição dos engajados para ajudar em peque- pecilhos o desconhecimento dos rituais demo-
nas coisas. Essa atitude favorece um bom ambi- cráticos, as manipulações de todo tipo e a falta
ente e faz crescer a disposição do grupo que está de conhecimento dos problemas internos de
em ação. Na atitude negativa, os habitantes fa- relações humanas em um processo coletivo.
lam malevolamente uns dos outros, mesmo dos A ação coletiva contínua está fora da vivência
que não conhecem, dizendo que essas pessoas dos habitantes do bairro e não tem nada a ver
são “bestas”, que perdem seu tempo, que isso com os hábitos das pessoas, embora elas tenham
não irá funcionar, que existem intenções escu- experiências pontuais de ação conjunta. Essa
sas por trás, etc. São os boatos dos quais fala- inexperiência da continuidade das ações, que foi
mos anteriormente. A atitude negativa pode ser, percebida desde o começo, era um ponto de re-
mais uma vez, explicada pela inveja, com os ferência importante na experiência-piloto, que
mesmos fundamentos, mas é também tributá- tentava justamente preencher essa falta. As ati- 63
ria da estigmatização, ou seja, da desconfiança vidades pedagógicas que foram desenvolvidas
da capacidade do grupo de ultrapassar sozinho constituíram uma primeira etapa que devia ser
suas dificuldades. Para esses, crer que perderam seguida nas ações coletivas. Para as primeiras
logo toda a batalha é uma forma de evitar qual- dessas ações (a eleição do nome do bairro e a
quer decepção e desconfiam ou zombam dos organização da associação), mais simples e me-
que não têm a mesma atitude. nos duradouras, os problemas identificados não
se colocaram de maneira significativa. Entretan-
to, para a organização da escola e da creche, a
em seus hábitos. Eles encontram rapidamente aprendem a se controlar. Esse processo de apren-
substitutos da “autoridade externa”, que vão dizagem é longo para a maioria e, às vezes, im-
tudo resolver para eles: seja o interventor – esta possível para alguns. Face a estes últimos, o gru-
moça “branca” presente na reunião – seja mes- po deve se impor e exigir seu afastamento; isso
mo uma habitante mais ativa – “aquela que se também não é simples, pois o conflito aberto é
mete em tudo”, como alguns falavam de Ada, muito penoso de administrar. Aqui, mais uma
um outro personagem importante do bairro. Os vez, trata-se de um aprendizado.
CAPÍTULO III
O desenrolar
da experiência-piloto
A experiência se desenrolou em duas grandes A partir desse ponto, passou-se às ações co-
etapas: “Atividades pedagógicas” e “Ações coleti- letivas, que se basearam nas iniciativas dos habi-
vas”. As atividades pedagógicas foram reuniões tantes, impulsionadas por nós, visando trazer
feitas por iniciativa do animador externo e da equi- melhorias concretas em suas condições de vida.
65
pe de três estagiários que o acompanhava nesse Assim, era necessário não só continuar a motivar
momento e foram concebidas e organizadas sem a as pessoas para que trabalhassem juntas, mas con-
participação dos habitantes. Elas tinham como tinuar a encontrar objetivos mobilizadores e lí-
objetivo iniciar as pessoas nas palavras e lógicas deres para impulsionar e organizar as ações. Con-
do urbanismo, assim como nos rituais da demo- vém relembrar que o objetivo da experiência-pi-
cracia direta. As atividades pedagógicas deviam loto era a aprendizagem de cidadania, no sentido
também permitir aos participantes experimenta- de preparar as pessoas para a participação e, a se-
rem o fato de ser parte integrante de um coletivo guir, para um engajamento comunitário autôno-
maior, o bairro. Assim, ao processo natural de vi- mo e continuado. Assim, se as ações coletivas so-
zinhança dos bairros populares – compartilhar brevivessem à nossa passagem no bairro elas po-
preocupações comuns ao longo do tempo – ou- deriam ser chamadas de “trabalho comunitário”.
tras situações de encontro foram acrescentadas. Alcançar esse engajamento e essa independência
O tema “o bairro” foi assunto majoritário Como as pessoas normalmente não possuem
de todas as atividades, mas decidiu-se não co- meios de fazer repercutir suas queixas fora de
meçar por discussões dos “problemas do bair- sua família, amigos e vizinhos, o trabalho teria
ro”, pois esse tipo de discussão atrai prioritaria- sido muito mais longo, se as reuniões fossem
mente pessoas que já têm alguma experiência iniciadas pelo relato dos problemas de cada um.
coletiva. O objetivo era atrair todos os habitan- Essa questão deve ser discutida, porque a
tes, mais pela curiosidade do que por um inte- técnica da Pedagogia do Oprimido nos reco-
menda partir do vivencial – como o que as pes- a curiosidade, o medo e a timidez perante o des-
soas mais dominam é o cotidiano, elas tendem a conhecido são naturais. Assim, em todas as ativi-
falar torrencialmente disso e terminaria por ser dades sempre começamos dando um exemplo
necessário interrompê-las. Era mais interessan- que servia de ponto de referência aos que não
te que as discussões se desenrolassem natural- queriam se aventurar muito. Esse problema tam-
mente, sem reprimendas, que são nocivas à bém estava presente do ponto de vista do segui-
aprendizagem e ao reforço da autoconfiança. Dessa mento progressivo das atividades pedagógicas –
forma, partíamos sempre diretamente de ques- as atividades eram abertas a todos e as pessoas
tões gerais, do bairro e do coletivo dos habitantes, vinham quando queriam, não se verificando as-
mas tendo o cuidado de escutar com atenção o sim continuidade na presença de cada um. Dessa
relato pessoal de cada um, que vinha a exemplificar forma, a cada nova atividade era preciso começar
a questão geral em pauta, desenrolando-se a dis- pelos pontos de referência para que os ausentes
cussão com naturalidade e sem conflitos. na sessão anterior pudessem acompanhar o que
As ações propostas nas seções deveriam ter se fazia.
sempre um aspecto de novidade, de jogo, mas se Depois das atividades pedagógicas, que a se-
prestando, também, à aprendizagem e à experi- guir serão apresentadas com detalhes, tornou-se 67
ência de autonomia. Ao mesmo tempo, estáva- possível empreender ações coletivas comunitá-
mos atentos para que o aspecto “novidade” não rias, que estavam previstas desde o começo, para
fosse intimidador para as pessoas, pois, tal como lhes dar continuidade.
Atividade I:
a confecção da
© Débora Nunes.
maquete do bairro
© Débora Nunes.
trabalho das profissões co-
muns no bairro, tais como
os do pedreiro, da cozi-
nheira, do agricultor. As
pessoas respondiam sor-
rindo, como se fosse en-
graçado falar dos seus ob-
jetos de trabalho – facas,
colheres de pedreiro e pás,
por exemplo – em uma
reunião pública. Eles co-
meçavam assim a ultrapas-
sar sua timidez.
Como introdução à
68 fotos das pessoas do bairro e artigos da imprensa atividade pedagógica em torno da maquete do
sobre a história recente da construção do bairro. bairro, a equipe de animação mostrou fotos do
As pessoas entravam um pouco intimidadas, olha- Pão de Açúcar (no Rio de Janeiro) e, em segui-
vam as fotos e os artigos, reconheciam aqueles da, o mapa topográfico desse local. Essa ima-
que apareciam nas fotografias e o cenário, e, a gem foi escolhida porque é bem conhecida de
seguir, se sentavam menos constrangidas. todos e por ser muito expressiva da topografia,
O objetivo da primeira reunião foi lhes fa- que é o que se queria deixar em evidência. Mais
zer descobrir alguns dos instrumentos de tra- tarde, um artista plástico, membro da equipe,
balho dos urbanistas – a maquete e o mapa to- fez uma maquete em argila do monumento na-
pográfico do bairro – para poder, através destes, tural do Rio.
discutir os problemas da população. A maquete Após a confecção da maquete, que as pesso-
é a representação urbanística mais simples: uma as acompanharam atentamente, foram coloca-
maquete é um modelo reduzido da realidade. dos cordões onde estariam as curvas de nível
Trata-se de uma abstração de fácil identificação, imaginárias da elevação, representando, em es-
pois representa o real com as mesmas três di- cala, o morro do Pão de Açúcar. Em seguida, foi
Pedagogia da participação
69
© Débora Nunes.
paredes, que as pessoas foram chamadas a falar rências cotidianas de cada um sobre a topogra-
de coisas conhecidas – seus instrumentos de tra- fia do bairro eram importantes para o sucesso
balho – e que foi escolhido o “jogo” da maquete do trabalho coletivo. Realizar uma maquete em
do Pão de Açúcar e, em seguida, feita a do bairro. argila não é uma tarefa fácil, mas não é impossí-
O jogo cria uma relação sem disputa viva, um vel mesmo para pessoas não-habituadas, sobre-
ambiente de cumplicidade. A modelagem é uma tudo se não nos preocupamos muito com a per-
atividade que favorece também a descontração, feição dos resultados, pois se trata de um jogo.
O desafio era então encontrar o meio termo en- acordo com a competência de cada um; 4) o re-
tre certa busca de precisão na tarefa e o prazer do conhecimento de líderes. A seguir é explicado
jogo, para não haver obstáculo à aprendizagem. como cada uma delas foi posta em prática.
1) No que concerne à clareza dos objetivos,
é o animador da atividade que deve se fazer com-
Chamar a atenção das pessoas para o preender. Os participantes também devem, evi-
bairro como um todo dentemente, fazer esforços, e é a partir daqui que
as diferenças entre eles – líderes ou simples par-
Era importante começar o trabalho por uma ceiros – começam a se estabelecer.
visão global do bairro, pois a apreensão do con- 2) O respeito ao trabalho de cada um e a
junto não é um fato comum. Normalmente as harmonização dos gestos decorre do fato de que
pessoas vêem do seu bairro apenas os caminhos cada participante é portador de informação, mes-
que percorrem: algumas ruas, passeios. Essa mo modesta, sobre o bairro. Assim, se alguém se
percepção é obtida a partir de um ponto de vista lembra que uma rua cruza outra em seu caminho
de cerca de 1,65m de altura e, sob o ângulo da cotidiano, pode enriquecer sua maquete de de-
visão humana, de 111 graus, que é muito limi- talhes, sulcando o barro para indicar a rua em 71
tado. A maquete dá àqueles que a constroem questão. Como esse trabalho é importante para
um ponto de vista totalmente novo: é como se cumprir a tarefa coletiva, ele é respeitado pelos
eles fossem pássaros. Ver o bairro do alto per- outros, que podem iniciar assim um revezamento
mite ver os caminhos dos outros e, ainda, dis- harmonioso.
tanciar-se da realidade cotidiana e aproximar-se 3) Para a divisão de tarefas, é preciso conhe-
duma visão de coletivo. Como não é simples cer a habilidade de cada um dos participantes para
sobrevoar o bairro, a maquete permite uma boa lhes solicitar uma justa contribuição. Ou as pes-
vista de conjunto. soas se conheciam de antes e anunciavam os talen-
tos uns dos outros, ou cada um informava sua ha-
bilidade própria, ou o reconhecimento se dava
Trabalhar coletivamente gradativamente com o trabalho.
4) A liderança se estabelece a partir da audá-
sentes e outro, mais personalizado. Para os ani- tivas, do conflito de idéias e de interesses. As-
madores externos era importante conhecer as sim, as novas atividades foram orientadas para
pessoas, o que foi viabilizado pela abordagem um maior engajamento nos problemas reais,
individual, que oportunizou relações mais pró- evitando-se, entretanto, ficar na simples consta-
ximas. Para as pessoas é importante se sentirem tação desses e no sentimento de impotência para
acompanhadas atentamente, pessoalmente, até resolvê-los. Com essa mudança no caráter das
a realização da tarefa proposta. atividades pedagógicas, a intenção continuava a
ser a de reforçar a confiança das pessoas em si poderes públicos no bairro. Os resultados fo-
mesmas, fazendo-as viver a experiência de se- ram apresentados e a discussão incidiu na
rem importantes, responsáveis por um trabalho, pertinência dos resultados para cada um dos
capazes de estar à altura dos desafios encontra- habitantes presentes. Tratava-se de evidenciar a
dos. As atividades seguintes tiveram como tema diferença entre as opiniões pessoais e a opinião
a atualidade do bairro. da maioria. Havia cerca de 40 pessoas na sala, e
quase todas as que, anteriormente, tinham tido
experiências pessoais como líderes, estavam pre-
sentes. Para dar um aspecto mais concreto às
Atividade III:
discussões, um funcionário da representação da
A discussão das prioridades de Prefeitura no bairro foi convidado para ouvir
intervenção da Prefeitura os habitantes e falar das propostas do Poder
Público para aquela comunidade.
As discussões da Atividade III giraram em Para começar, perguntou-se às pessoas pre-
torno das prioridades estabelecidas pelos habi- sentes quem dentre elas tinha respondido o
tantes, no questionário, para a intervenção dos questionário; de fato, não havia muitas, o que 75
© Verônica Lima.
corpo social. O poder que se quer é um poder te engajadas ou potencialmente anômicas), an-
“que pode resolver as coisas” e, portanto, de teriormente mencionada.
certa forma, não pode ser exercido pelos seme- No vivo debate que se seguiu, foi preciso
lhantes, seja por que se encontram na mesma que o animador da atividade pedagógica inter-
condição de impotência cotidiana ou seja por- viesse algumas vezes para pedir o respeito à fala
que, pelas alianças com os “grandes”, poderiam de cada um e para tentar organizar as discus-
não cumprir seu papel “salvador” (CHAUÍ, sões. Se o debate estava interessante, ele corria
o risco de se perder, pois a discussão não tomava As intenções que guiaram o
um caminho concreto e desejável, que seria o de desenrolar da atividade
eleger um representante ou representantes da
comunidade. Coube ao animador sugerir a cria- Os problemas do bairro deviam penetrar
ção de uma comissão de habitantes para continu- gradativamente no conteúdo das atividades pe-
ar as discussões e/ou iniciar ações para resolver dagógicas. A idéia sendo trabalhar “com” as pes-
os problemas identificados. Diante da falta de soas e não “para” as pessoas, era preciso lhes dar
experiência das pessoas, o animador teve que a oportunidade de impor suas escolhas de dis-
explicar o processo de listar o nome dos interes- cussões e assim, pouco a pouco, foram feitas
sados em tornar-se representantes dos demais mudanças no “protocolo” de intervenção pre-
para, assim, compor-se uma comissão para tra- visto. Em seguida, durante a segunda atividade,
balhar em beneficio do bairro. ficou claro que as pessoas queriam discutir seus
Em seguida, a representante da Prefeitura problemas concretos, apesar de sua simpatia
foi convidada a tomar a palavra, comunicando pelas iniciativas mais lúdicas. Se as questões so-
sua intenção de se reunir com mais freqüência bre a atualidade do bairro não fossem coloca-
com a população para discutir seus problemas. das, provavelmente teria havido uma redução 77
Sugeriu ainda a organização dos habitantes a cada vez mais significativa do número de parti-
partir de cada rua do bairro, com o objetivo de cipantes nas atividades.
construir os passeios das casas, com o apoio Com a abordagem, na atividade III, das
material da Prefeitura e em regime de mutirão, prioridades dos habitantes para a intervenção da
após o que a reunião foi encerrada e as pessoas Prefeitura no bairro, respeitava-se o método
marcaram um novo encontro. Rute, uma habi- freiriano, que propõe partir sempre de assuntos
tante das mais engajadas, se encarregou dessa pertinentes à vida das pessoas. Depois de ter
organização com a ajuda da equipe de anima- atraído a atenção do maior número e, sobretu-
dores. No próximo encontro deveria ser inicia- do, das pessoas menos engajadas, por causa da
do o trabalho da comissão, em torno dos pro- ambientação lúdica das atividades I e II, era ne-
blemas identificados e da sugestão da represen- cessário passar para uma outra etapa. A mudan-
tante da Prefeitura de se fazer mutirões para ça de abordagem das atividades pedagógicas de-
melhorias em seu quadro de vida. A sugestão bairro – e Rute – que também desempenhou
de que os próprios habitantes poderiam agir – um papel importante no processo – destacaram-
para a organização de uma creche comunitária, se dos demais.
por exemplo – nasceu nessa discussão, a partir Também foi possível observar, nessa reu-
do relato de Ada, uma das participantes. Ada nião, o tipo de comunicação estabelecido entre
defendia a idéia de que os próprios habitantes, o representante da Prefeitura e os habitantes, à
com a ajuda de líderes saídos do seu próprio luz dos conceitos de Habermas, citados no pri-
meiro capítulo. Era evidente que se tratava de Atividade IV:
uma comunicação do tipo estratégica, que mais A discussão das regras do mutirão
visava obter o acordo dos habitantes que cons-
dos passeios
truir esse acordo passo a passo, de modo conjun-
to. A ausência de esforço para manter um diálogo
em que todos os interlocutores compreendes- Essa atividade tinha como objetivo discutir
sem bem as palavras utilizadas caracteriza tam- as regras do mutirão que deveria ser realizado
bém a comunicação estratégica que se verificou no bairro e que fora proposto pela Prefeitura,
na reunião. Isso mostra que, mesmo quando se na atividade III, ficando esta responsável por
fala da necessidade de participação, é possível fornecer os materiais para construir os passeios
manter o afastamento entre técnicos e habitan- das casas e, os habitantes, por contribuir com
tes, tradicional nas relações autoritárias. sua força de trabalho.
A gestualidade do técnico também foi ob- Tendo havido um atraso na reunião, os fun-
servada e, em seguida, revista no resultado da cionários da Prefeitura não quiseram esperar o
filmagem que foi feita de cada reunião, poden- seu início, apesar de exortados pelo seu chefe
do-se dizer que era clara a vontade de manter para que não se retirassem, demonstrando uma 79
uma distância física dos presentes. O exemplo incompreensão do significado político de uma
mais explícito do que aqui se diz foi o da atitu- reunião desse tipo. A equipe de animadores pre-
de do técnico, que mantinha constantemente sente nesse dia começou a recear o insucesso da
um classificador entre si e seu interlocutor du- reunião, pois já há alguns dias verificava-se o
rante as conversações face a face anteriores e agravamento do grande problema de falta de
posteriores à reunião. Com essas observações água no bairro: o fato é que o problema existia
não se pretende embasar um julgamento moral de longa data, mas, nesses dias, mesmo as fon-
sobre o fato, mas relatar o que se constatou re- tes alternativas de água estavam exauridas.
lativamente ao modo pelo qual se dá a interação Interrogávamo-nos, nesse momento, sobre a
entre dois mundos diferentes, dentro de tradi- pertinência de nosso trabalho no bairro, já que
ções já estabelecidas e aceitas. Além do mais, os as pessoas tinham coisas urgentes e essenciais a
habitantes não pareciam achar o comportamento resolver sozinhas, como conseguir ter água em
© Débora Nunes.
cracia participativa, previstos no projeto de in- durante essa reunião: a comissão, criada para
tervenção, foram vividos intensamente pelas compor o documento sugestivo/reivindicativo
pessoas presentes. destinado à Prefeitura, funcionou. É certo que
A discussão e o voto de cada regra permiti- o animador e sua equipe deram um empurrãozi-
ram legitimar o grupo como fórum de decisões, nho, mas isso estava previsto desde o começo.
o que pode parecer simples para os que vivem a A iniciativa de discutir o mutirão dos pas-
vida coletiva na escola, em associações, sindica- seios com a população não agradou aos funcio-
nários da representação da Prefeitura no bairro, posto médico etc., que eram as prioridades dos
apesar do acordo obtido junto ao dirigente desse habitantes. Diante da inutilidade das decisões
posto. Provavelmente, dois fatores originaram de urbanismo, que deveriam ser tomadas de
essa atitude: 1) os funcionários achavam que os forma participativa com ajuda de nossa equipe
animadores tomavam o seu lugar no bairro e 2) de animadores, foi preciso modificar a experi-
eles tiveram medo da pressão da população já ência-piloto, antecipando seu ritmo. Respei-
que não tinham certeza se o mutirão seria de fato tando os dados da realidade decidimos ser os
realizado. Quando se soube que o mutirão não parceiros dos habitantes na condução de algu-
iria acontecer, começou a ficar mais clara a fragi- mas melhorias do seu quadro de vida, ao invés
lidade de ação da Prefeitura, sua incapacidade de de intermediários da Prefeitura. O objetivo
dar seguimento aos planos, e a melhor entender- mantinha-se o mesmo, a aprendizagem da ci-
se a incerteza dos funcionários sobre o seu papel dadania e o incentivo à ação autônoma dos ha-
e suas responsabilidades. bitantes, mas o lado prático desse processo ini-
ciava-se mais cedo e de forma diferente da pre-
vista.
Observando o conjunto das ações coletivas 83
apresentadas a seguir, é possível verificar que
II - As ações coletivas elas se desenvolveram no sentido de uma maior
autonomia dos habitantes envolvidos, que to-
maram a direção dos acontecimentos de forma
A etapa das “atividades pedagógicas”, que gradativa, mesmo reconhecendo-se idas e vin-
durou mais ou menos dois meses, com reuni- das nesse processo. A eleição do nome do bair-
ões quinzenais, foi seguida da etapa das “ações ro foi, em parte, ainda uma atividade pedagógi-
coletivas”. Classificaram-se aqui de “ação cole- ca, baseada em nossa iniciativa e orientação, mas
tiva” aquelas realizadas conjuntamente pelos realizada de maneira conjunta. A escola comu-
habitantes e o (s) animador (es) externo (s), vi- nitária fez parte de uma ação bastante dirigida
sando intervir na realidade do bairro e tendo por pelos animadores externos no que diz respeito
objetivo a melhoria das condições de vida da ao planejamento do seu funcionamento, mas sua
86
Cada candidato (único, por posto) se apresenta- eleição correspondia à realização de uma obri-
va, espontaneamente ou empurrado pelos com- gação legal para se ter acesso a uma casa para a
panheiros, e deveria ser eleito pelos aplausos. creche. O Regulamento aprovado pelos presen-
Como as pessoas não o conheciam, ou pouco, a tes previa eleições em seis meses, e a idéia era
eleição era um pouco forçada. Era evidente que a que as coisas se organizariam melhor a seguir.
iniciativa de uma assembléia era desconhecida Na semana seguinte, uma nova reunião foi
dos habitantes, e os dirigentes da reunião tenta- realizada para dar continuidade à regularização
vam organizar mais ou menos as coisas. Outro da associação. Durante toda a semana, a associ-
membro do grupo, Ada, mostrava um certo co- ação foi o assunto das conversas no bairro. Rute
nhecimento das iniciativas a serem completadas foi tratada com hostilidade por alguns habitan-
e ajudou as pessoas a preencher os documentos tes, que eram contra a sua eleição para presi-
Pedagogia da participação
Um elemento a notar nesse processo: havia vamente “fechadas” e indutivas, vimos, em se-
no bairro uma homogeneidade de opiniões so- guida, com a apuração do questionário final, o
bre a necessidade e a eficácia da ação conjunta. qual continha perguntas abertas, respostas muito
Viu-se que a idéia da necessidade de mobilização próximas das citadas acima. À pergunta “Quais
popular unificada, para conseguir obter o so- as atitudes que cada um poderia ter para me-
corro das autoridades, é muito difundida, assim lhorar a vida de todos?”, 23/37 propõem inicia-
como a crença na potencialidade dessa mobiliza- tivas coletivas (união, reunir, petição, associa-
ção, mutirão; a palavra “união” aparece em 8/23 em Salvador em cada bairro para aprofundar a
dessas respostas); 5/37 propõem atitudes práti- discussão desse dado. Entretanto, o que tam-
cas individuais (limpeza, ajudar os outros); tam- bém ficou claro é que durante a experiência-
bém 5/37 mostram uma certa impotência, di- piloto não podíamos ver as conseqüências des-
zendo que “é difícil” ou que “não há nada a fa- sas idéias na prática. Mesmo tendo havido uma
zer”, ou, ainda, que “isso depende das autorida- mobilização significativa das pessoas, por exem-
des”, ou que “o problema é o desemprego”. Fi- plo, para fundar a associação, na hora do en-
nalmente, 4/37 propõem “cada um por si”. À contro para estabelecê-la ali não havia o mesmo
questão “Na sua opinião, como é possível re- número de pessoas que responderam estar in-
solver os problemas do bairro?”, 35/38 respos- teressadas. Pôde-se constatar que, mesmo se as
tas são positivas, dizendo que os habitantes de- pessoas estão preparadas “ideologicamente” para
vem se reunir, lutar, “correr atrás” das autorida- agir coletivamente, a falta de experiência e de
des, para resolver os problemas, e apenas 3/38 confiança em si as impede de engajar-se.
das respostas são duvidosas ou fatalistas. Um outro obstáculo para a ação coletiva de
Ficou evidente que algumas pessoas que- tipo pedagógico que estávamos propondo era que
riam chamar a atenção sobre si mesmas através as pessoas esperavam líderes “salvadores”. Seus 89
das afirmações de engajamento. Em todos os discursos na assembléia e, anteriormente, durante
questionários, as perguntas feitas podem levar a as discussões nas atividades pedagógicas, mostra-
um certo tipo de resposta, mas somente se já há vam claramente isso. Elas estariam prontas a agir
uma idéia comum do que se deve responder para coletivamente – pontualmente, todavia – assim
ser “correto”. É isso que é surpreendente: de que vissem um caminho a seguir, mostrado por
onde vêm essa homogeneidade e essa simpatia um líder carismático. Em sua concepção origi-
pela idéia da ação coletiva? De outra parte, de nal, não era possível construir o caminho à me-
onde vem essa confiança na ação das autorida- dida que se desenrolassem as ações.
des? É evidente que as pessoas crêem que é efi- Uma última pergunta foi feita para tentar
caz ir buscar as autoridades (“correr atrás”) para compreender o real interesse das pessoas pela
resolver os problemas do bairro. ação coletiva, com relação aos seus interesses
Talvez seja possível compreender essas ati- pessoais: “Se por acaso nós soubéssemos que
empresas de construção. Era também o que es- indo com este parceiro externo que, por sua vez,
tava escrito nas faturas de eletricidade das casas. os estava ajudando para que tivessem êxito no
O nome “Vila Verde” era o mais conhecido das seu próprio trabalho no bairro. A eleição foi um
pessoas, por causa do bairro de invasão, vizinho, sucesso. Durou toda uma semana: de segunda a
onde uma placa muito rústica sinalizava a en- sexta-feira à tarde, na sede da representação da
trada. Até os motoristas de ônibus da região co- Prefeitura, sob a responsabilidade dos seus fun-
nheciam o bairro por Vila Verde. Um outro fa- cionários; no sábado, sob minha responsabili-
Verde e 47 para Cohab. Houve protestos de pes-
© Débora Nunes.
Depois da organização da associação e da espaço da sua sede para o desenrolar das aulas, à
eleição do nome do bairro, havia um grupo de noite. Eles queriam se envolver, pedindo mate-
pessoas dispostas a trabalhar em conjunto, mo- rial à Secretaria Municipal de Educação. Mas,
tivadas para agir e que queriam começar a orga- como sempre, as ações da Prefeitura foram
nizar a creche. Entretanto, a iniciativa para re- muito lentas, e o grupo teve de ir buscar ajuda
gistrar a associação para receber a casa da creche em outro lugar. Aristeu, por sua vez, opôs-se à
continuava parada pela falta de interesse de organização da escola, provavelmente porque se
sentia incomodado diante da importância que apoio de Ada à idéia, cujas vantagens ela conhe-
alguns líderes passaram a ter durante a organi- cia, fez a diferença, pois era a única pessoa re-
zação desta. Um dos problemas criados por ele almente experiente. Para contornar a dificulda-
era o constante desaparecimento da chave da de com o método Paulo Freire, escrevi um tex-
sede da Prefeitura no bairro (que ficava sob sua to que foi largamente discutido nas duas reu-
responsabilidade, como chefe da segurança lo- niões semanais dos professores. A idéia das au-
cal), o que, às vezes, impedia a realização das las começava pouco a pouco a ganhar forma.
aulas. Entretanto, entre disputas e negociações, Nas reuniões, a questão material foi cons-
terminou-se por vencer as dificuldades. tantemente discutida. Era impossível para as
pessoas do bairro solucionar esse problema, por
causa de sua penúria. Aqui, foi necessário que o
Nossa experiência conjunta animador externo iniciasse seu papel de inter-
em Vila Verde mediário entre o mundo daqueles que precisa-
vam de ajuda financeira e o mundo dos que
A proposta de fazer uma escola comunitá- podiam e queriam ajudar a iniciativa popular. A
ria foi discutida com várias pessoas e a idéia foi pessoa – à época chefe do estoque de material 93
muito bem aceita. Duas das pessoas ativas du- de uma empresa – indicada por amigos comuns,
rante as ultimas ações coletivas, Ada e seu ir- era engajada em trabalhos filantrópicos e se in-
mão, Judson, foram parceiros entusiastas dessa teressou imediatamente pela escola, ajudando
idéia, pois Ada é professora e Judson tinha von- individualmente e através do seu cargo.
tade de agir nesse campo. A escola deveria fun- Uma comissão de “professoras” foi então
cionar com voluntários do bairro, de acordo com ver o provável parceiro. Em um contato anteri-
minha sugestão. A idéia era ter um ou dois pro- or eu lhes explicara que essa reunião tinha um
fessores cada noite – assim, não seria muito di- importante caráter pedagógico, paralelamente ao
fícil encontrar voluntários. Ada, Judson e eu nos seu caráter material – era necessário mostrar às
encarregamos de encontrá-los, bem como de interessadas que era possível convencer outras
fazer o levantamento do número de adultos in- pessoas a ajudá-las, que elas eram capazes disso
teressados em serem alfabetizados. e que sua iniciativa era digna de admiração. O
94
quecível”. A comissão obteve tudo o que era ne- problemas pessoais entre as pessoas. A equipe de
cessário (mesas, cadeiras, lápis, papel, etc.) e tam- animadores externos garantiu a aula de quarta-
bém se assegurou da disposição do parceiro para feira à noite. De acordo com o método Paulo
continuar ajudando a escola. Freire, os alunos deveriam discutir com os pro-
As aulas começaram no início de setembro. fessores sobre a palavra do dia, antes da aula; essa
No primeiro dia os alunos fizeram uma lista de discussão se mostrava mais interessante nos dias
aproximadamente trinta palavras sobre o tema em que o par de professores era mais experiente.
“a vida no bairro”. Com base nessa lista, os pro- Os alunos logo mostraram sua preferência por
fessores escolheram as palavras que eram apro- alguns dos pares, sendo mais numerosa a presen-
Pedagogia da participação
priadas para começar: deveriam ser simples, do ça nos dias em que seus favoritos davam aulas.
ponto de vista fonético, mas ter um conteúdo Essa situação originou inveja, rancores e a desis-
simbólico importante para as pessoas. As pri- tência de alguns voluntários.
meiras palavras estudadas foram “comunidade”, Os alunos fizeram progressos rapidamen-
“moradores” e “módulo” (de módulo policial). te. Os habitantes do bairro, sobretudo os vizi-
A organização dos pares de professores de nhos da escola, eram parceiros também, pois
cada dia foi feita com dificuldade, por causa de emprestavam suas cadeiras para suprir as que
faltavam. Um carpinteiro, que havia anterior- as intrigas e a inexperiência da direção acarreta-
mente acompanhado as atividades pedagógicas, ram a desistência de Rute. Em seguida, tendo-
presenteou a escola com um grande banco rústi- se destacado Ada, que se mostrou a pessoa mais
co, que ele mesmo fizera. experiente nas aulas (era professora diplomada),
esta também foi alvo da inveja dos voluntários.
A organização da escola permitiu mostrar a
Avaliação da ação coletiva potencialidade do trabalho coletivo e a capacida-
de das pessoas para cumprir uma tal tarefa, mas
As disputas entre os professores constituí- também mostrou que o caminho era longo, por
ram a maior dificuldade encontrada para o fun- causa da inexperiência das pessoas. Os conflitos
cionamento da escola. No início, a inveja atin- entre os voluntários poderiam ser resolvidos com
gia particularmente Rute. Esta, sendo respon- um pouco de maturidade, mas essa não existia.
sável pela área cultural da associação de habi- Tive um papel de intermediária nos conflitos,
tantes, que ainda existia, tinha sido designada divergências e desentendimentos, e essa media-
como coordenadora da escola. Pouco a pouco, ção permitiu, finalmente, o início das aulas.
95
© Débora Nunes.
A organização da escola suscitou uma luta fez rejeitar as iniciativas relacionadas à escola:
de poder entre Ada e Aristeu. Apesar da sua sim- ele temia o prestígio do grupo em ação, que
plicidade material e de seus apenas dez alunos, poderia competir com sua autoridade, particu-
a escola era uma conquista no bairro. Os alunos larmente o prestígio de Ada.
falavam, os professores também, os habitantes É verdade que a organização da creche era
de Vila Verde podiam ver seu funcionamento considerada por alguns como uma maneira de
todas as noites e a escola tinha seus partidários retomar a organização dos habitantes de outro
modo, já que Aristeu bloqueava a ação da associ- discórdia entre eles. Depois de algumas “sabo-
ação. A idéia era que, com a fundação de um “Clu- tagens” da parte daqueles que eram contra a cre-
be de Mães”, por meio do grupo da creche, seria che, encontrou-se uma casa vazia que poderia
possível retomar legalmente as ações no bairro, servir para instalá-la.
esquecendo a associação “de Aristeu”. A descon-
fiança de Aristeu era assim fundada, mas o
engajamento das pessoas nesse projeto alternati-
Nossa experiência conjunta
vo não era suficiente para abalar o imobilismo da
associação. em Vila Verde
Apesar das dificuldades, a creche desperta-
va o interesse de todo mundo. Desde o começo Várias pessoas foram contatadas tendo em
das atividades pedagógicas, realizaram-se lon- vista encontrar parceiros e receber conselhos
gas discussões sobre a oportunidade de criá-la. e ajuda para organizar a creche. Entre as pes-
Essa idéia causava polêmica: alguns acreditavam soas procuradas algumas possuíam experiên-
na possibilidade de organização de maneira “co- cia com esse tipo de trabalho ou tinham tido
munitária”, ou seja, sem a ajuda dos poderes contato com instituições semelhantes. O in- 97
públicos, enquanto outros achavam isso impos- teresse desses parceiros de fora do bairro es-
sível. O desafio lançado com a sugestão de criá- timulava o grupo interessado desde o início e
la por meio da organização comunitária era um era um sinal de que a idéia começava a ga-
motor para aqueles que defendiam a primeira nhar forma. Cada um pensava em uma amiga
alternativa. A maior parte dos professores da ou vizinha que tinha filhos e necessitava de
escola e até os alunos interessavam-se pela or- trabalhar. A idéia era começar a organização
ganização da creche. O momento era particu- da creche antes mesmo da resolução do pro-
larmente propício a seu engajamento, pois eles blema dos documentos da associação e, por-
estavam contentes de ver a escola funcionar e tanto, do acesso à casa-sede, pois o processo
se sentiam importantes. de organização prometia ser longo.
A creche era um empreendimento maior A primeira discussão sobre a creche foi rea-
que a escola, e as questões concretas em torno lizada durante uma das reuniões dos professo-
único elemento “fixo” do grupo e, portanto, dos acreditavam ter mais direitos que as demais.
referencial. As pessoas que vinham a um mutirão falavam
O que precipitou os acontecimentos da or- mal das que não estavam presentes sem se dar
ganização da creche foi a percepção de que qua- conta do fato de que no mutirão anterior elas
se todas as casas do bairro já estavam ocupadas e mesmas não estavam presentes. Comecei a re-
que se poderia ficar sem nenhuma. O grupo se gistrar as presenças e isso recolocou um pouco
de ordem. Para atrair as pessoas e criar um espí- durante todo o primeiro ano, graças ao parceiro
rito de comunidade, a cada mutirão organizáva- da escola. Isso permitiu o efetivo início das ati-
mos um almoço coletivo. vidades.
A direção dos trabalhos coletivos constituía A elaboração das regras de funcionamento
uma dificuldade a mais, pois as pessoas queriam da creche foi assunto de várias reuniões, às ve-
creditá-la a mim, mas eu não podia assumir esse zes tensas. As questões discutidas, que iam da
encargo sozinha, pois isso entrava em contradi- maneira de tratar as crianças até a forma de ad-
ção com os princípios da metodologia testada. ministrar o dinheiro recebido eram novas para
Dessa forma, os trabalhos se atrasavam. Era pre- as pessoas. Uma das decisões tomadas, envol-
ciso também uma “direção técnica” para as vendo a definição de responsabilidade de três
obras, pois a maioria das pessoas não conhecia a mães diferentes, a cada dia, para tomar conta das
profissão de pedreiro, carpinteiro, etc., e mui- crianças, foi objeto de debates acalorados. Como
tos erros eram cometidos a cada mutirão. E era escolher o trio, apesar das brigas pessoais? Quem
ainda preciso tomar emprestadas as ferramen- iria dirigir essas pessoas sem ferir suas susceti-
tas necessárias aos vizinhos de bairro, o que bilidades? Quem faria o quê na creche? Como
implicava mais responsabilidade pessoal e diante administrar a creche no dia-a-dia? Como admi- 99
do grupo. nistrar o dinheiro da comida? Todas essas ques-
Além dos problemas de organização, havia tões foram objeto de longas e cansativas discus-
problemas materiais – a falta de água, que atin- sões, nas quais as decisões tomadas em um dia
gia freqüentemente o bairro, e principalmente, eram esquecidas ou contestadas no dia seguinte.
a falta de dinheiro, o que nos levou a buscar Sem dúvida, a coragem e a determinação dos
doações. A soma de dinheiro de que precisáva- líderes da creche, principalmente de Ada e Zélia,
mos era muito pequena, mas não para as pessoas assim como o apoio de um grupo próximo e dos
que não têm nada. No começo, nos dirigimos parceiros externos, é que vêm permitindo seu
aos comerciantes do bairro, que nos ajudaram; funcionamento até hoje. Nada foi idílico nesse
mas com o desenvolvimento dos trabalhos eram processo, mas ele atingiu seu objetivo.
necessárias doações cada vez maiores. O desti-
no da creche se misturou completamente ao da
sente: o interesse de algumas mães em serem As “necessitadas” eram mulheres que vivi-
contratadas em seguida, quando a creche esti- am em condições muito difíceis. Entre elas ha-
vesse “pronta”. Para as pessoas de espírito mais via mulheres muito jovens, com um comporta-
“comunitário”, esse desejo, que transparecia em mento às vezes irresponsável em face do coleti-
algumas, era um verdadeiro pecado. Assim, eu vo. Elas eram atraídas para a ação coletiva por-
sempre tinha de lembrar às pessoas que desejar que precisavam dos serviços propostos, mas não
um emprego era uma aspiração legítima. En- se davam conta do percurso a completar. Algu-
mas nem acreditavam nisso. As “necessitadas” das em conjunto. O objetivo era favorecer a
tornavam o processo ainda mais difícil, pois não integração das pessoas, descontrair o ambiente
compreendiam que a creche era uma coisa que do grupo e promover pequenas vitórias coleti-
deveria ser construída. Tinham, assim, uma certa vas. Algumas dessas iniciativas foram muito bem-
falta de compromisso com essa construção, ape- sucedidas e outras, menos, tendo em vista o ob-
sar de serem as que mais precisavam do funciona- jetivo utilitário; entretanto, o fato de “fazer algo”
mento desse equipamento comunitário, até para a e de fazê-lo em grupo, significava sempre um
alimentação de seus filhos, o que fazia com que aprendizado do trabalho coletivo. Para organizar
sempre brigassem, por vezes deixando tenso o essas iniciativas sempre tive o apoio das pessoas
ambiente das reuniões e dos mutirões. mais engajadas, que diziam ter vontade de me
As mais experientes entendiam que o que prestar um serviço para me agradecer pela minha
iria acontecer dependia delas e, desse modo, to- dedicação ao bairro. Como exemplo dessas ações,
mavam mais cuidado com as palavras, chegan- será citado o concurso de textos que foi realiza-
do às vezes a voltar atrás para pedir desculpas, do.
se isso fosse necessário para manter um bom Durante o período de organização da cre-
ambiente de trabalho. Entretanto, entre estas, a che, fizemos um concurso de redação sobre o 101
dificuldade vinha das brigas por espaço, pois tema “Meu bairro como ele é e como eu gosta-
cada uma queria se distinguir mais que as ria que ele fosse um dia”, também consideran-
outras, inclusive diante do animador externo. do a necessidade da pesquisa de contar com
Essa distinção entre “experientes” e “ neces- materiais de estudo, escritos, que contivessem
sitadas” é um pouco sumária, pois havia com- o próprio pensamento das pessoas sobre o bair-
portamentos de todos os tipos e nunca ninguém ro. O concurso não foi organizado no momen-
foi um modelo de mulher “experiente”, dedica- to das atividades pedagógicas, o que talvez fosse
da à causa da creche. Aqui, também foram vis- mais lógico, mas menos eficaz, pois, na época,
tos altos e baixos em cada uma. Trata-se antes as pessoas não tinham vivido o suficiente no
de tendências, como as que sinalizamos ante- bairro para falar disso. O fato de ser realizado
riormente, sobre os pólos “potencialmente durante as ações coletivas conferiu-lhe um pa-
engajado” e “potencialmente anômico”. pel destacado nos eventos do bairro naquele
104
Pedagogia da participação
CAPÍTULO IV
Os resultados
práticos da experiência
pativo, do ponto de vista das relações internas
I – A mudança no entre os moradores e da relação desses com os
agentes externos, certamente seriam outras.
comportamento dos Nos casos semelhantes ao de Vila Verde, que 105
habitantes não suscitam o interesse do mercado imobiliá-
rio e em que os habitantes não possuem experi-
ência de organização e de luta coletiva, o que se
passou ali pode ter caráter mais exemplar. Evi-
Após a descrição e discussão da experiên- dentemente, todos os bairros e todas as popula-
cia-piloto de Pedagogia da Participação do Vila ções apresentam suas particularidades e é o bom
Verde passa-se agora à sua avaliação e à inter- senso do pesquisador ativo que deverá prevale-
pretação dos resultados, para aferir as possibili- cer ao ler cada aspecto dos temas aqui tratados,
dades de generalizações. Estas poderão tornar- considerando a sua possível aplicação em outro
se suporte para outras intervenções da mesma contexto.
natureza em outros bairros populares, levando- Duas grandes lições podem ser tiradas des-
Esses resultados práticos, que serão discuti- bus, etc., e até se manifestavam para chamar a
dos a seguir, não podem ser creditados unicamen- atenção das autoridades. Mas tratava-se, naquele
te à experiência-piloto. É preciso levar em conta momento, de ações isoladas, como espasmos,
algumas condições favoráveis encontradas no sem preocupação de continuidade.
bairro, particularmente a existência de líderes De maneira geral, é visível que os proble-
mobilizadores potenciais de qualidade. Não é mas de cada um ou de cada família se resolvem
difícil afirmar, entretanto, que, no caso desse bair- em seu seio e não são coletivizados, identifica-
dos como problemas sociais mais amplos. Ob- ao Estado (mesmo em se tratando de um Estado
serva-se que a solidariedade de proximidade, que assistencialista), não há um engajamento profun-
existe originalmente na vida cotidiana dos po- do e espontâneo para fazer valer esses direitos.
bres em um bairro como Vila Verde, é de um Foi nesse contexto que agimos de maneira
tipo quase tribal. Trata-se de uma organização progressiva em nossas primeiras atividades pe-
social que se constitui para enfrentar os proble- dagógicas, para dar um conteúdo concreto à idéia
mas imediatos do grupo. A solidariedade é um de espaço coletivo e aos problemas comuns do
tipo de crédito que cada um adquire relativa- grupo. A maquete, o grande mapa urbanístico,
mente àquele a que ajudou e ao grupo ao qual a discussão das prioridades do bairro e a busca
pertence e que aprova seu comportamento so- dos meios para ultrapassar os problemas eram o
lidário. Essa solidariedade será “recompensada” objeto desses encontros. Entretanto, o movi-
um dia e é, assim, sobre uma relação direta, que mento mais importante naquela etapa não foi a
se estabelecem os laços cotidianos. transformação dos habitantes em reivindicantes
A solidariedade coletiva, a que fundou, por e credores de serviços de uma maneira coletiva.
exemplo, o Welfare State, é baseada em uma O essencial foi que tomassem consciência de sua
racionalidade mais ampla, que não é “natural”, capacidade de fazer valer os seus direitos. 107
requer ser aprendida. A passagem da solidarie- Por exemplo, é provável que as discussões
dade de proximidade àquela que concerne à co- durante as atividades em torno do tema “o bair-
letividade é tributária, em sua origem, de uma ro” tenham estado na origem da decisão das
construção ideológica. Primeiro, é preciso ter um pessoas de se organizar em associação. Os diri-
sentimento de pertencer a um grupo mais am- gentes dessa iniciativa estavam entre os mais
plo que aquele com o qual se tem relações dire- assíduos e os mais ativos participantes dessas
tas. É somente a partir daí que, ultrapassando os atividades. A organização dessa associação, mes-
interesses pessoais e imediatos, impõem-se as mo se, finalmente, ela não seguiu adiante como
idéias de igualdade e o projeto de coesão social. associação de habitantes e sim como Clube de
Finalmente, chega-se a uma etapa de construção Mães, revelou uma vontade de intervir de ma-
de uma instância garantidora da solidariedade, neira coletiva, organizada, mas sobretudo de
como, no caso europeu, o Estado-providência. inscrever a ação coletiva no longo termo.
organizar, em seguida, uma creche comunitá- busca de emprego. O desemprego é uma reali-
ria, foi, para as pessoas, um passo a mais na aqui- dade do bairro, como vimos, mas as iniciativas
108 sição da cidadania. para resolvê-lo são pessoais. O grupo da creche
Uma outra maneira de entender o interes- e da escola transformou o desemprego em pro-
se das pessoas pelo coletivo é a comparação dos blema coletivo quando utilizou essas estruturas
questionários. O primeiro, aplicado no início da – e sua respeitabilidade – o serviço das pessoas,
experiência-piloto, mostrava um interesse ma- como mostra um panfleto que foi produzido
joritário pelas questões imediatas e de sobrevi- pelo grupo. Esse panfleto, assinado pelo “Clu-
vência. No questionário final, aplicado um ano be de mães do Vila Verde”, oferecia serviços di-
depois do primeiro, pôde-se observar uma di- versos e dava o telefone comunitário normal-
ferença entre as pessoas engajadas e as demais. mente utilizado pela creche; ele foi distribuído
As respostas ao questionário final mostravam também fora do bairro através dos parceiros das
que as pessoas engajadas nas atividades pedagó- iniciativas comunitárias.
gicas e ações coletivas estavam mais interessa-
das pelos assuntos coletivos do que as que não
participaram dos acontecimentos. A diferença é Aprendizado das iniciativas
particularmente evidente no caso da ultrapas- de trabalho coletivo
Pedagogia da participação
Tratar-se-á agora de um outro tipo de líder, um ambiente como o descrito em Vila Verde, é
que dificilmente nasce sozinho nesse terreno preciso que ele tenha características pessoais,
pouco fértil para as idéias mais libertárias: o lí- ideológicas e políticas diferentes daquelas que
der do tipo “mobilizador”. Esses líderes (é im- são mais comuns nas circunstâncias. Com base
portante pensar neles sempre no plural, mes- nas entrevistas realizadas com os líderes mais
mo se um dentre eles é preponderante) são os próximos do modelo mobilizador e que se dis-
únicos que podem impulsionar as iniciativas tinguiram durante o processo, evidencia-se que
existe sempre um conjunto de características e Mudança na relação entre
de experiências que estão na origem dos seus os habitantes e a Prefeitura
“talentos”: a imagem de alguém que também
foi líder e serviu de modelo, uma experiência A relação entre os habitantes de Vila Verde
anterior de distinção no esporte ou no movi- e a Prefeitura era muito particular. De um lado,
mento estudantil ou, ainda, a participação em como originários de bairros populares, eles ti-
grupos religiosos com preocupações sociais. O nham a experiência da indiferença dos poderes
exemplo familiar foi muito marcante no caso públicos. Por outro lado, eram beneficiários de
de Vila Verde, no qual, dentre os responsáveis uma ação urbanística de grande porte, a criação
pela escola e pela creche, havia um irmão e uma do seu bairro, e do fato de que existia tempora-
irmã influenciados por uma família “militante”. riamente uma representação da Prefeitura
Entretanto, a liderança é sempre uma rela- sediada no bairro, enquanto durasse a constru-
ção, um fenômeno de ida e volta, pois o líder ção. Eles estavam, dessa forma, sem referências
reflete os “liderados”, suas perspectivas e suas claras em suas expectativas com relação ao Po-
potencialidades. Se, em um grupo, pode apare- der Público.
cer um líder mobilizador e não apenas um líder Entretanto, na relação direta entre os habi- 111
forte, “salvador da pátria”, isso revela que existe tantes e os funcionários da Prefeitura nada ha-
um grupo de “liderados” dispostos, maduros para via mudado e tudo se passava como em qual-
enveredar por outros caminhos além daqueles da quer outro bairro popular. Tratava-se da relação
dependência. A emergência de um líder mobiliza- tradicional entre “pedintes” e autoridades, de-
dor é assim um sinal de um processo maior de rivada daquela, majoritária, de dependência dos
transformação de mentalidades. Formar um lí- pobres relativamente à elite dirigente. Nessa
der mobilizador não é uma tarefa realizável em relação hierárquica, os habitantes tanto compor-
uma experiência de apenas um ano, mas é possí- tavam-se como “vítimas”, de forma tímida,
vel criar uma atmosfera favorável a seu surgi- quanto se mostravam, às vezes, ameaçadores e
mento. No início da experiência foi possível ob- revoltados, em situações específicas. O que não
servar que os líderes mais experientes não que- se via era uma relação civilizada e de parceria.
riam se engajar. É o sentimento de ser apoiado,
das ajudas externas, mesmo se elas não são mais socorrer as pessoas, mas preferi o papel de in-
dependentes para tomar iniciativas. Nesse con- termediária, avisando as autoridades, a impren-
texto, ser autônomo é saber ir buscar um apoio sa, a TV. Aristeu apareceu por alguns minutos e
no momento em que fica evidente que não se é desapareceu em seguida, para logo reaparecer
capaz de alcançar, sozinho, o objetivo. fazendo as pessoas crerem – como sempre – que
Um acontecimento mostra que uma real ele tomava as rédeas da situação – nesse caso,
capacidade de iniciativa se instalou no bairro, dizendo que as telhas para recobrir as casas che-
gariam rapidamente no bairro, o que não acon- Refletindo sobre as conquistas
teceu. A defesa civil mostrou sua experiência da experiência
com essa ordem de problemas, tomando medi-
das urgentes, como dar às pessoas plástico sóli-
do para cobrir as casas provisoriamente e acal- Os resultados positivos, tanto materiais
mar as famílias. quanto “ideológicos”, que foram explicitados,
A atividade do grupo de socorro improvi- impõem ao pesquisador-ativo – o animador da
sado não parou por aí, o que mostra um nível experiência – a questão pragmática: quais os
significativo de capacidade de ação coletiva e de elementos decisivos para o sucesso de uma ex-
solidariedade. Eles arrumaram o local onde es- periência-piloto como esta? Dois aspectos de-
tavam instalados os sem-teto, com colchões, vem ser sinalizados acerca do sucesso da expe-
cadeiras e uma TV emprestada por vizinhos. riência-piloto: o aspecto “formador” da primei-
Ajudaram as famílias a organizar suas casas, iam ra etapa, chamada de “atividades pedagógicas”
e vinham no bairro e contatavam pessoas de fora e, em seguida, o sucesso objetivo das “ações
para conseguir ajuda. Esse episódio consolidou coletivas”, materializado na escola, na creche,
alguns líderes e desacreditou outros, que ape- etc. Essas duas etapas foram descritas e discu- 113
nas se ocuparam de seus próprios problemas. tidas, e significaram a realização de eventos
Se nos perguntarmos se tudo isso aconte- pouco comuns na vida do bairro, em suas ini-
ceria dessa forma se ninguém tivesse tido an- ciativas e significados. Todavia, uma experi-
tes as experiências de trabalho coletivo no bair- ência desse tipo é, antes de mais nada, a histó-
ro, podemos, com muita certeza, responder ne- ria de contatos pessoais entre o animador e os
gativamente. Foram a formação do grupo de habitantes assim como entre os habitantes
trabalho, a compreensão das etapas a cumprir engajados.
para entrar em acordo e poder agir, e a confi- Na discussão de uma metodologia de ex-
ança mútua das pessoas envolvidas que consti- periência não é fácil reconhecer que a dimen-
tuíram as bases da ação. Além disso, era preci- são “relações humanas” tem um lugar decisivo.
so ter a possibilidade concreta de ajudar as pes- É mais comum pensar nas fases sucessivas para
soas fornecendo o lugar onde se abrigar e co- atingir o objetivo, nos procedimentos e ferra-
tes de tudo um catalisador e, levando até o fim bém uma relação hierárquica é a doação. Às ve-
essa metáfora química, como tal ele possui uma zes o animador é solicitado a dar dinheiro, aju-
natureza diferente dos constituintes da reação da material ou a prestar serviços. É preciso lem-
que quer induzir, acelerar, ou modificar. O de- brar que aquele que dá não é um igual, a doação
safio não é ser artificialmente “igual”, mas saber marca a diferença, salvo quando existe a consci-
estabelecer relações nas quais o reconhecimen- ência mútua que uma troca está acontecendo,
to da diferença não introduz uma subordinação: quando o intelectual “utiliza” as pessoas como
objeto de sua pesquisa e estas “utilizam” o pes-
quisador como lhes convém. Essa relação com
III – Os papéis do
os habitantes foi descrita por Zaluar (op. cit.) a animador externo
respeito do seu trabalho na Cidade de Deus no
Rio de Janeiro, mas trata-se de um estudo funda-
mentalmente diferente do nosso, pois o aspecto O sucesso da experiência depende não so-
“ação” não existia em sua pesquisa. mente da boa relação entre o animador e os
habitantes, mas também das missões que ele
deve cumprir. Para consegui-lo, o animador
Passar da dependência deve buscar um equilíbrio entre diferentes pa-
para a autonomia péis, às vezes contraditórios, como saber diri-
gir e, também, se retirar; ser firme, mas tam-
bém flexível; agir de acordo com as necessida-
Poderíamos começar a discussão sobre a des do momento, mas também ter um objeti-
autonomia pelas declarações de princípio do vo a longo prazo. É necessário, enfim, demons-
tipo: “o projeto no bairro era trabalhar COM trar muita sensibilidade e, principalmente, fle-
119
os habitantes, e não PARA eles”. Esse princípio, xibilidade, quando as mudanças se produzem
entretanto, não é tão simples de seguir na práti- no projeto inicial, para que se evidencie o seu
ca. A idéia mesmo da pesquisa-ação é trabalhar respeito pela realidade concreta e pelas pesso-
para um grupo com o qual iremos interagir, com as. A vontade de intervir e ser voluntário deve
a convicção de que vamos contribuir com a ser combinada com a capacidade de adaptação
melhoria do seu quadro de vida, senão isso não ao funcionamento social do bairro, aos valores
teria sentido. Trabalhar “PARA” é inevitável em das pessoas, a seus interesses, a seu modo de
certo sentido; é preciso então, antes, estabele- viver e de se comportar.
cer regras, proteções, para que a experiência es-
timule o movimento, sem tomar o seu lugar.
Entretanto, está-se sempre no “fio da navalha”. O animador como estimulador
do trabalho coletivo
culdades da ação coletiva. Existe, certamente, o etapas a cumprir. Essa visão, global e prévia, que
risco da personificação do trabalho coletivo. será adaptada no andamento da ação, o distin-
Várias vezes ouvi declarações do tipo: “Eu só gue dos habitantes e lhe dá uma capacidade de
participo dessa tarefa (um mutirão, por exemplo) organização particular. Essa capacidade deve ser
por causa de você, os outros, eles não merecem”. Mas exercida na sugestão da criação de uma comis-
isso faz parte do processo e, apesar dessas de- são para acompanhar determinada iniciativa, no
clarações, no fundo as pessoas vinham ao papel de objetivar a discussão em uma reunião,
ao escrever textos em uma linguagem apropriada Para completar seu papel como organizador,
para serem discutidos com as pessoas, ao propor o animador deve compreender bem o dado
um modelo de estatuto de uma associação, etc. “tempo”. É preciso reconhecer que existem di-
Mas esse papel de organizador deve ser sempre ferenças entre o tempo de um pesquisador ati-
cumprido de forma pedagógica, principalmente vo e o tempo das pessoas, dadas as diferenças de
diante dos líderes, para que eles possam tomar o estilos de vida, de acordo com os meios em que
lugar do animador no processo. estão inseridos. É importante que o animador
O animador, no geral, busca ver de imedia- saiba respeitar o tempo dos habitantes, sem que-
to os resultados de uma reunião, de uma co- rer impor o seu. Como diz a sabedoria popular,
missão, etc. Como ele, de certa forma, também é preciso “dar tempo ao tempo”. Para poder
está fora dos acontecimentos e possui uma vi- compreender o dado tempo, é fundamental es-
são de longo prazo, conhece as tarefas que vão tar na mesma freqüência de onda que as pesso-
se seguir e tem vontade de tudo orientar. É ne- as. É preciso, a todo momento, estar atento para
cessário pensar na experiência no longo prazo que as respostas obtidas sejam o resultado da
também com relação ao aprendizado dos habi- reflexão dos que trabalham coletivamente e não
tantes, e não tomar iniciativas que possam ser apenas a repetição das observações do anima- 121
tomadas por eles. Ter uma visão de longo pra- dor ou a expressão da vontade de agradá-lo. É
zo, ter noção do tempo necessário ao aprendi- preciso evitar o real perigo que representa um
zado das pessoas, significa renunciar às vitórias movimento que só existiria pelo impulso dado
imediatas na medida em que elas não seriam o externamente, pois isso significaria seu fracasso
espelho do estado de andamento do processo completo.
de conquista da autonomia. Em seu papel de organizador o animador
Tudo isso conduz também a aceitar as dife- deve ser flexível: ele não deve esperar que as
renças do grau de engajamento entre os habitan- reuniões comecem na hora exata nem tam-
tes e o animador. O fato de que este esteja intei- pouco pedir ordem e silêncio a toda hora. As
ramente engajado na pesquisa e no bairro não pessoas, normalmente, não estão habituadas
lhe dá o direito de exigir um comportamento tão com discussões coletivas e repreendê-las cons-
engajado da parte dos habitantes. Ele deve ter tantemente por conversas paralelas ou discus-
portante estar sempre atento ao modo como as ela acarreta também maledicências que, a longo
pessoas falam das mesmas coisas, suas palavras, prazo, são perversas para o ambiente entre as
seus raciocínios, para retomá-los no discurso e pessoas que trabalham em conjunto e podem
valorizar assim o seu saber. O objetivo de comu- até ocasionar o afastamento dos líderes menos
nicação durante as reuniões é alcançar um tipo perseverantes.
de aculturação recíproca, em que cada uma das Por sua posição, e independentemente da
pessoas aprende com a outra. sua vontade, o animador externo também pode
provocar disputas, principalmente entre os líde- favorece a comunicação, na medida em que aju-
res que são seus interlocutores mais comuns. da a fazer evoluir as posições tomadas pelos
Sua relação com eles remete a um tipo de interlocutores, para ultrapassar a ambivalência
“legitimação” perante os demais participantes e, da comunicação estratégica. Trata-se do poder
assim, cada líder busca atrair a atenção do ani- da neutralidade, que pode se materializar atra-
mador. Por esse motivo, pequenas intimidades vés dos argumentos racionais, de experiências
com o animador – como o fato de ele permane- vividas, etc. É o caso do sociólogo em uma em-
cer mais tempo na casa de um ou outro líder – presa, nos debates entre patrão e sindicato: em
podem tomar uma amplitude desmesurada, cau- uma relação que poderia ficar no domínio do
sar mágoa e provocar o afastamento de potenci- estratégico, o fato de haver um tiers pode con-
ais líderes do trabalho coletivo. Entretanto, o que tribuir para que a comunicação se faça de uma
perdemos com uma ou outra das pessoas, ga- maneira mais intercompreensiva. É o caso do
nhamos com o conjunto dos participantes, que terapeuta de família, do diplomata, etc. Ser neu-
se sentem seguros pela sinceridade das relações tro não é fácil, mas se aprende; cada um pode se
com o animador. aproximar desse papel sabendo que será impos-
Nos momentos de decisão, verifica-se, sível atingi-lo. 123
muitas vezes, um clima de disputa entre líderes
para conseguir que o animador prefira a idéia
que eles defendem. Isso pode se resolver mais
ou menos facilmente, pois o animador pode
O animador como intermediário
evitar tomar partido nas disputas ou, no caso
inverso, dar argumentos para explicar sua op- entre dois mundos
ção. O verdadeiro problema é que essa disputa
se dá mesmo no caso da relação pessoal que o Já foi discutido o fato de que no Brasil o
animador tem com cada líder. Ele deve então mundo dos pobres é separado daquele dos não-
tentar ter uma relação igualitária com aqueles pobres. Em um país onde tudo pode se resolver
que estão encabeçando o trabalho coletivo. Não por relações de amizade com pessoas “bem-
se deve exigir muito, no entanto, dessa igualda-
Considerando o quarto capítulo deste livro aproveitar os bons momentos, o prazer do cor-
como uma reflexão que busca fazer um balanço da po, a sua afetividade, enfim, a vida. Poderíamos
experiência, eu gostaria de concluir com apenas qualificar tais atitudes como “alienação positi-
um comentário sobre um problema com o qual va”, para dar um conceito racionalizado ao fato
me confrontei individualmente ao longo desta observado. Mas uma coisa é certa, as pessoas
experiência-piloto, mas cuja amplitude parece sabem viver inteiramente os momentos de ale-
ultrapassar a experiência pessoal. Trata-se da idéia gria – não se queixam tanto de solidão, de an-
de cidadania que se quer transmitir às pessoas e gústias, de depressões, apesar das inumerá-
do modelo de sociedade de que faz parte esse con- veis dificuldades de sua vida cotidiana e da vio-
ceito. Todo este livro gira em torno da questão da lência crescente. 125
cidadania, de sua construção através da participa- Não se trata aqui, longe disso, de fazer uma
ção, cujos mecanismos devem ser aprendidos. apologia da pobreza feliz, como outros fizeram
Sonha-se e luta-se pela cidadania ampla e irrestrita da pobreza demente ou da pobreza revolucio-
para todos, pelo princípio de justiça social. Acre- nária. Há apenas uma interrogação pessoal, fru-
ditamos que essa cidadania, esse conceito cons- to de uma observação concreta e que poderia
truído durante dois milênios, originário da Grécia se tornar objeto de pesquisa. Essa interrogação
antiga e passando pelas experiências revolucioná- adquire pleno sentido se nós a aproximamos
rias inglesa, francesa e americana, ajudará as pes- da denúncia feita muitas vezes por Max Weber,
soas a viver melhor. do estado de desencantamento do mundo; da
A experiência de campo mostra, todavia, atitude insensível, sobre a qual nos fala George
uma incongruência. A civilização que criou e Simmel, ou da condição pós-moderna, tratada
desenvolveu o conceito de cidadania perdeu por François Lyotard. Essa mesma interroga-
muito da alegria de viver que encontramos em ção tem ainda o seu sentido enriquecido quan-
Vila Verde. Aqui, as pessoas manifestam sua sa- do invocamos o fato de que nas sociedades ri-
bedoria diante da vida pela sua gentileza natu- cas ou nos ambientes abastados o consumo
ral, sua simplicidade, sua abertura aos outros, o sempre crescente de antidepressivos revela o
que geralmente significa relações humanas mais mal-estar reinante.
ricas. Talvez tenha sido a necessidade de olhar É preciso perguntar o que as pessoas de Vila
de frente para as privações que os tenha levado Verde ou de outros bairros têm realmente a
Conclusão
a desenvolver o gosto pela festa, sabendo fazer aprender conosco, cidadãos plenamente integra-
um samba com uma caixa de fósforos; sabendo dos, mas freqüentemente incapazes de aprovei-
© Débora Nunes.
126
tar, como eles, dos prazeres simples que a vida nosso sentido de cidadania e de bem-estar.
oferece. A consciência ampliada que presumi- Uma das conseqüências do processo aqui
mos ter e a riqueza de escolhas possíveis na vida descrito vem sendo a formação, pouco a pouco,
têm um ônus, do qual as regras sociais muito de uma nova geração de animadores externos
mais estritas e a falta de tempo para viver são para agir nos bairros populares, num quadro de
alguns dos componentes. Se a penúria despreo- diálogo e parceria com os habitantes. Isso está
cupada é sempre penúria e a falta de perspecti- sendo feito seja na Universidade, em cursos nos
vas pode ser vista por nós como angustiante, é quais as idéias e práticas que fundamentaram
sempre possível ver as coisas de um outro pon- esta experiência são analisadas e discutidas, seja
to de vista. mediante a ação da ONG REDE - Rede de Pro-
Esse debate é uma armadilha no momen- fissionais Solidários pela Cidadania. Essa enti-
Pedagogia da participação
to e, assim, o mais proveitoso talvez seja que dade vem atuando em vários bairros de Salva-
um animador de processos participativos se dis- dor e apóia as iniciativas já consolidadas dos ha-
ponha a proceder a trocas e não a doações. bitantes do Vila Verde, como a creche e a escola
Dessa forma, será muito interessante sabermos comunitárias, além de empreender junto com
fazer essa troca, com o desejo de aprender o eles novos desafios, desta vez ligados à geração
que realmente representa a cidadania e a felici- de emprego e renda, com base nos princípios
dade para as pessoas às quais queremos levar o da Economia Solidária.
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