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Pedagogia

da participação
Trabalhando com comunidades

Débora Nunes

1a Reimpressão

UNESCO / Quarteto
Salvador
2006
Este livro foi publicado originalmente em francês com o título
La citoyenneté à travers la participation –– Projet pilote à Vila Verde, Brésil. © UNESCO, 2001.
““As idéias e opiniões expressas nesta publicação pertencem ao autor e não refletem, necessariamente, o ponto de vista da
UNESCO. Os termos empregados nesta publicação e os dados apresentados não implicam nenhuma tomada de posição da
UNESCO quanto ao estatuto jurídico dos países, territórios, cidades ou zonas, ou de suas atividades, nem quanto às suas
fronteiras e limites.””

© Copyright: Débora Nunes, 2002


1a Reimpressão 2006

Direitos reservados em língua portuguesa à


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Coordenação editorial:
Débora Nunes e José Carlos Sant’’Anna
Foto da capa:
Fotografia aérea vergtical integrante do acervo de imagens do Sistema de Informações Geográficas Urbanas do
Estado da Bahia –– INFORMS, foto 07, faixa 26A do vôo fotogramétrico de Salvador, ano 1998, escala 1:8.000,
Companhia de Desenvolvimento Urbano do Estado da Bahia –– CONDER.

Revisão: Regina Martins da Matta


Editoração Eletrônica e Capa: Joseh Caldas
Apoio:
UNIFACS

FICHA CATALOGRÁFICA
(Elaborada pelo Sistema de Bibliotecas da Universidade Salvador - UNIFACS)

NUNES, Débora.
Pedagogia da participação: trabalhando com comunidades / Débora
Nunes; tradução Ciro Sales; Salvador: UNESCO/Quarteto,
2002.
130p.
ISBN: 85-87243-16-0

1. Participação social –– Salvador, BA. 2. Antropologia urbana. 3. Ci-


dadania. 4. Pobreza. I. Título.
CDD:307.98142
SUMÁRIO

Introdução ................................................................................................................................ 7

Capítulo I –– O contexto da experiência participativa .................................... 11

I - Contexto intelectual da experiência ................................................................................ 11


A hipótese ................................................................................................................................. 11
Pressupostos teóricos ............................................................................................................... 12
Influências teóricas ................................................................................................................... 13 3
O urbanismo participativo ................................................................................................. 13
O intelectual orgânico gramsciano ................................................................................... 15
A comunicação de intercompreensão de Habermas ........................................................ 16
A Pedagogia do Oprimido de Paulo Freire ....................................................................... 18
Diferenças entre a pobreza no Brasil e a exclusão na Europa ......................................... 20

II - Contexto material da experiência ................................................................................... 23


O Brasil ..................................................................................................................................... 23
Salvador .................................................................................................................................... 25
O bairro de Vila Verde ............................................................................................................. 28

Capítulo II - Compreender uma comunidade interagindo com ela ...... 33

I - Perfil econômico e social dos habitantes do bairro ...................................................... 33


Emprego e renda ...................................................................................................................... 33
Escolaridade .............................................................................................................................. 35
Relações familiares ................................................................................................................... 36
Vida cotidiana das famílias ....................................................................................................... 36
As relações de vizinhança ........................................................................................................ 37
Os lazeres .................................................................................................................................. 49
Sumário

Vida pública e vida cidadã ........................................................................................................ 40


As relações dos habitantes com pessoas de fora do bairro .................................................... 43
II - As mentalidades e os comportamentos dos habitantes .............................................. 44
Horizontes de vida e de interesses dos habitantes ................................................................ 47
As preocupações com a sobrevivência ocupam o tempo e o espírito das pessoas e
condicionam seu olhar sobre a vida .................................................................................. 48
A baixa escolaridade conduz a um difícil acesso à cultura escrita e dificulta o
conhecimento aprofundado da realidade ......................................................................... 49
O isolamento físico e social e a falta de informações impõem uma exclusão
sociocultural ........................................................................................................................ 50
O sentimento de impotência perante as questões que ultrapassam o cotidiano se
reflete no horizonte de interesse pessoal .......................................................................... 52

III –– A estigmatização dos pobres ........................................................................................... 52


A interiorização do estigma ..................................................................................................... 54
Conseqüências da interiorização do estigma ......................................................................... 56
4
A auto-imagem negativa do grupo ................................................................................... 56
O apoio a líderes fortes ..................................................................................................... 58
A inveja despertada pelos líderes que se distinguem ...................................................... 61
A inexperiência em ações coletivas .................................................................................. 63

Capítulo III: O desenrolar da experiência-piloto ............................................. 65

I - As atividades pedagógicas ................................................................................................... 66


Atividade I: a confecção da maquete do bairro ............................................................. 67
As intenções que guiaram o desenrolar da atividade ....................................................... 70
Deixar as pessoas à vontade ............................................................................................... 70
Fazer dos habitantes os sujeitos da experiência desde a primeira atividade ................... 70
Chamar a atenção das pessoas para o bairro como um todo ........................................... 71
Trabalhar coletivamente ..................................................................................................... 71
Passar uma imagem agradável do trabalho realizado coletivamente .............................. 72
Pedagogia da participação

Atividade II: a localização do lote de cada um na grande planta do bairro .......... 72


As intenções que guiaram o desenrolar da atividade ....................................................... 74
Atividade III : a discussão das prioridades de intervenção da Prefeitura .............. 75
As intenções que guiaram o desenrolar da atividade ....................................................... 77
Atividade IV: a discussão das regras do mutirão dos passeios ................................... 79
As intenções que guiaram o desenrolar da atividade ....................................................... 82
II - As ações coletivas ................................................................................................................. 83
Primeira ação coletiva: a criação da associação de moradores ........................................ 84
Nossa experiência conjunta no bairro .............................................................................. 85
A Associação em ação ......................................................................................................... 87
Avaliação da ação coletiva ................................................................................................... 88
Segunda ação coletiva: a eleição para a escolha do nome do bairro ................................ 90
Nossa experiência conjunta em Vila Verde ...................................................................... 90
Avaliação da ação coletiva ................................................................................................... 91
Terceira ação coletiva: a organização da escola comunitária ........................................... 92
Nossa experiência conjunta em Vila Verde ...................................................................... 93
Avaliação da ação coletiva ................................................................................................... 95
Quarta ação coletiva: a organização da creche comunitária ............................................ 96
Nossa experiência conjunta em Vila Verde ...................................................................... 97
Avaliação da ação coletiva ................................................................................................... 99
Outras iniciativas pedagógicas e alguns erros exemplares ........................................ 101
Alguns erros exemplares .................................................................................................... 103 5

Capítulo IV: Os resultados práticos da experiência ......................................... 105


I - A Mudança no comportamento dos habitantes ............................................................ 105
Despertar do interesse das pessoas para o coletivo ................................................................ 106
Aprendizado das iniciativas de trabalho coletivo .................................................................... 108
Emergência de líderes ““mobilizadores”” .................................................................................. 110
Mudança na relação entre os habitantes e a Prefeitura .......................................................... 111
Capacidade de ação coletiva autônoma ................................................................................... 112
Refletindo sobre as conquistas da experiência ....................................................................... 113
II - A interação do animador externo com os habitantes ................................................. 115
Romper com as relações hierárquicas ................................................................................... 116
Construir a legitimidade do animador no bairro ................................................................. 117
Reconhecer a diferença sem estabelecer uma hierarquia..................................................... 118
Passar da dependência para a autonomia ............................................................................... 119
III - Os papéis do animador externo ...................................................................................... 119
O animador como estimulador do trabalho coletivo .......................................................... 119
O animador como organizador ............................................................................................ 120
O animador como mediador dos conflitos .......................................................................... 122
O animador como intermediário entre dois mundos ......................................................... 123
Conclusão ................................................................................................................................. 125
Sumário

Bibliografia citada ...................................................................................................................... 127


INTRODUÇÃO

Este livro é o produto de uma experiência- melhoria de suas condições de vida. Aprovando
piloto, realizada no bairro de Vila Verde, na pe- a metodologia participativa proposta, a Prefei-
riferia do município de Salvador, (BA). Trata- tura se comprometeu a pôr em prática os resul-
se de um bairro projetado pela Prefeitura, e as tados advindos do processo, que passo agora a
500 famílias que, inicialmente, deslocaram-se descrever.
para o local, o fizeram por se encontrarem A essência do método testado consistia no
desabrigadas, depois dos graves desabamentos princípio de que participar e se engajar em ações
de terra e de residências ocorridos durante as coletivas significam, em si, um processo de 7
chuvas de maio e junho em 1995. Originárias aprendizagem da cidadania. A preocupação de
de diferentes regiões populares de Salvador, es- testar um método provinha da consciência de
sas famílias começaram a reconstruir suas vidas que a grande legitimidade pouco a pouco
em Vila Verde e, em razão disso, tornou-se pos- alcançada pela reivindicação de participação era
sível observar desde o início a dinâmica do bairro acompanhada dos riscos de manipulação. A re-
e testar um método participativo em um terre- tórica dos políticos e profissionais de todos os
no praticamente virgem. tipos se apropria dessa idéia como slogan, o que
Durante o ano de 1996, quando se passa- não significa que eles se disponham a enfrentar
ram os acontecimentos aqui descritos, a Prefei- as dificuldades concretas de sua realização. Para
tura pretendia intervir fortemente no bairro. O uma participação verdadeira, o puro discurso
projeto urbanístico já estava realizado, mas vá- não é suficiente, mesmo se sincero. É preciso
rias decisões referentes aos equipamentos pú- vontade política, conhecimento profissional de
blicos (prioridade, tamanho, local, construção, métodos de trabalho participativos e conheci-
modo de funcionamento etc.) deveriam ainda mento antropológico da realidade.
ser tomadas, o que sugeria ainda haver espaço No caso dos bairros populares, é preciso
para a interferência da população. Com essa ex- ainda uma disposição pedagógica e a busca cons-
periência, para a qual se obteve o acordo da Pre- tante de uma relação igualitária com os habi-
feitura de Salvador, teve-se como objetivo levar tantes. O propósito seria então retomar a ques-
Introdução

os habitantes, reconhecidamente de extrema tão da participação em seu sentido prático, da


pobreza e de baixa escolaridade, a participar des- observação direta sobre o terreno, e contribuir
sas decisões e engajá-los em ações coletivas de para a criação de um know-how participativo,
ainda que modesta e pontualmente. Para aten- No primeiro capítulo deste livro, são dis-
der a esses objetivos, propus um método com cutidas as influências teóricas que nortearam o
atividades pedagógicas e ações coletivas, que método participativo, bem como o contexto no
foram se aperfeiçoando no andamento da expe- qual se desenrola a experiência. Os traços ge-
riência. Uma concepção precisa da maneira pela rais da sociedade brasileira são brevemente de-
qual os animadores do processo participativo lineados e o contexto específico de Salvador é
deveriam interagir com os habitantes consti- estudado na confirmação desses traços e na re-
tuía-se num dos pilares fundamentais desse mé- velação de suas especificidades. Em seguida, é
todo. apresentado o caso do bairro de Vila Verde.
Neste livro, o leitor vai encontrar chaves No segundo capítulo, o contexto é consi-
para a ação baseada na prática, ao se familiarizar derado nos seus aspectos antropológicos, bus-
com as dificuldades cotidianas de um processo cando-se responder às seguintes questões: qual
participativo e ao refletir conosco sobre as mes- é o perfil social e econômico dos homens e
mas. Serão vistos também os fatores que podem mulheres com os quais nós trabalhamos? Qual
bloquear a participação popular, a exemplo do é sua visão de mundo diante da idéia de partici-
8 desconhecimento dos habitantes relativamente pação? Quais são os comportamentos coletivos
às palavras, lógicas e ferramentas dos urbanistas mais comuns? Por quê? Nessa fase, buscou-se
e dos rituais práticos da democracia direta. Ou- a aproximação com uma das dificuldades cen-
tro desses fatores é a interiorização do estigma trais da participação popular: a interiorização do
da pobreza, o que faz com que muitos se consi- estigma da pobreza.
derem incapazes de tomar parte em discussões No terceiro capítulo, as etapas sucessivas da
desse tipo. Estes são temas aprofundados neste experiência são descritas de forma jornalística e
livro com o propósito de fundamentar ações de o leitor poderá, assim, seguir o animador do
incentivo à participação. processo participativo e os habitantes da comu-
A experiência durou dez meses, durante os nidade no desenrolar concreto do método no
quais foram feitas mais de 80 visitas ao bairro, bairro. Entende-se que esse método, com vari-
em torno de três por semana, com uma dura- ações de adaptação a cada contexto, pode ser
ção mínima de duas horas. Nessa fase do traba- usado em outras comunidades como forma de
lho, ou seja, nos primeiros meses, aí estive acom- incentivar a participação popular no processo de
panhada de estudantes de pós-graduação em melhoria de bairros populares, justificando-se,
Pedagogia da participação

Arquitetura e Urbanismo, e a partir da metade assim, sua apresentação minuciosa.


do processo, com o final do estágio destes, pas- No quarto capítulo, é realizado um balan-
sei a trabalhar sozinha com os moradores do ço dos resultados práticos da experiência em
bairro. Ao fim da experiência, estavam construí- termos de melhoria das condições de vida dos
das uma associação de moradores, uma escola moradores da comunidade e, sobretudo, do
comunitária e uma creche, ainda hoje em pleno aprendizado da cidadania. A experiência foi con-
funcionamento. siderada positiva, uma vez que atendeu a esses
dois objetivos, sobretudo possibilitando a toma- comunidade, de forma a que se possa tirar li-
da de consciência por parte de uma parcela sig- ções práticas para futuros processos partici-
nificativa da comunidade. O alcance dos obje- pativos.
tivos é também objeto de discussão neste capí- Por fim, na Conclusão, é feito um balanço
tulo, particularmente no que diz respeito à con- pessoal acerca da experiência vivida e das lições
duta do animador em face dos moradores da aprendidas com a população de Vila Verde.

Introdução
CAPÍTULO I

O contexto da
experiência participativa
I –– Contexto intelectual ço, prepará-la para adquiri-lo num processo que
denominamos de Pedagogia da participação.
da experiência Decisões de urbanismo são aquelas que,
11
tomadas em relação à cidade ou bairro, repercu-
tirão no cotidiano futuro dos seus habitantes, que
se traduzirão em ações concretas, seja de aplica-
A hipótese ção física, seja de funcionamento urbano.
Aprendizagem é o processo pelo qual um
Fui a campo com a hipótese de que A PAR- indivíduo assimila conhecimentos (e/ou), com-
TICIPAÇÃO DOS HABITANTES EM DECI- portamentos (e/ou), experiências que não tinha
SÕES DE URBANISMO em determinada área (ou tinha, mas incipientes), antes de sua vivência
pode CONSTITUIR-SE EM UM APRENDI- de ““aprendiz””. A aprendizagem se passa segun-
ZADO DE CIDADANIA. Para bem compre- do alguns princípios de cognição que foram aqui
ender essa premissa, quatro conceitos-chave levados em conta.

O contexto da experiência paarticipativa


devem ser explicitados: participação, decisões de Cidadania é um conceito de mão dupla:
urbanismo, aprendizagem e cidadania. de uma parte, é a condição concreta do indiví-
Participar significa tomar parte em discus- duo cujos direitos políticos, civis e sociais são
sões e em decisões, desde o momento em que o respeitados; de outra, é o engajamento do indi-
problema se apresenta até aquele de pôr em prá- víduo na luta pela preservação dos seus direitos
tica as soluções encontradas, resultantes das dis- e pela ampliação desses mesmos direitos numa
cussões. Participar é uma atitude voluntária, con- dimensão coletiva. Devem-se observar as di-
tínua e de longa duração. A participação pressu- mensões social (involuntária, dada) e pessoal
pondo um conhecimento dos rituais democráti- (voluntária, adquirida) no conceito de cidada-
cos, é necessário, se a população chamada a par- nia aqui utilizado. A aprendizagem da cidada-
ticipar é inexperiente, desprovida desse arcabou- nia se refere, portanto, ao processo de mudança
de mentalidade e de atitude que possibilita um negociação das decisões de urbanismo fa-
maior engajamento em torno das questões co- vorece a assimilação, pelos moradores do
letivas. bairro, dos dados, dos mapas, das lógicas
e dinâmicas urbanas etc. O caráter concreto
Pressupostos teóricos dessas questões e a longa duração do pro-
cesso podem tornar compreensíveis aos
n O urbanismo, ao se basear numa visão de
habitantes os desafios do urbanismo, so-
conjunto, pode incitar os moradores do
bretudo se existir interesse dos dirigentes
bairro –– que vão aprender a perceber a
da experiência nesse sentido.
realidade como um todo –– a se reconhe-
cerem como grupo de interesse que se n O afastamento lingüístico, simbólico,
constitui em torno dessa realidade. temporal e cultural existente entre os ha-
n A compreensão que os habitantes possuem bitantes e os técnicos e administradores
das questões de urbanismo é favorecida públicos pode ser reduzido com técnicas
pelo caráter concreto que elas têm no co- adequadas, permitindo o diálogo no mo-
tidiano de suas vidas. A longa duração do mento do processo participativo. A insta-
12 processo participativo de discussão e de lação de uma ““comunicação de intercom-
Pedagogia da participação

© Débora Nunes

Reunião para discutir a organização de um evento na comunidade.


preensão”” entre esses interlocutores n Além de todos esses pressupostos, há a
(como será proposto mais tarde) é um dos idéia geral de que as discussões sobre ur-
caminhos que permitirá esse diálogo. banismo podem constituir-se, para os mo-
n A democratização das decisões urbanísti- radores de uma comunidade, em um
cas, resultado da participação, permite a meio efetivo de tomar conhecimento dos
entrada de novos protagonistas, os mora- atores e dos processos da dinâmica social,
dores da comunidade, na discussão e for- pois as formas de organização socioeconô-
mação dos seus líderes. Para o habitante- micas desta última encontram-se inscri-
participante, trata-se da possibilidade de tas na forma e no funcionamento da ci-
sair do seu horizonte pessoal e do seu co- dade (a desigualdade social, por exemplo,
tidiano para uma visão mais ampla e mais se inscreve na forma da cidade através da
coletiva do mundo. Passa-se, desse modo, segregação urbana).
conforme o contexto, de um estado de es-
pectador ao de ator da sua comunidade
Influências teóricas
ou da sua cidade.
n A participação dos habitantes em um pro- 13
A idéia que está na origem da proposta do
cesso como o aqui proposto e descrito
presente método de intervenção é a de reivindi-
(com suas reuniões, discussões, polêmi-
cação de um urbanismo participativo, que pro-
cas, negociações, votações etc.) consiste
põe intervir na cidade de modo democrático. As
em um aprendizado dos mecanismos de-
demais influências teóricas presentes no desen-
mocráticos e das regras que lhes são im-
volvimento desse método são: o estudo do inte-
plícitas (pauta prevista, direito a voz com
lectual que intervém em meio aos excluídos, o
tempo limitado, decisões tomadas por
intelectual orgânico de Antônio Gramsci; o tra-
maioria etc.). Essas regras são pouco co-
balho desenvolvido com eles, inspirado na peda-
nhecidas das populações excluídas e seu
gogia de Paulo Freire, e o tipo de comunicação
aprendizado tem conseqüências diretas no
que deve existir nas relações entre esses parcei-
exercício da cidadania.

O contexto da experiência paarticipativa


ros, a chamada comunicação de intercompreen-
n Na literatura corrente sobre a cidadania,
são, formulada por Jürgen Habermas. Essas qua-
esse conceito é definido como oposto ao
tro referências são tratadas brevemente a seguir.
de exclusão; a cidadania é traduzida em
urbanidade e em engajamento. Desse
modo, falar ao mesmo tempo em cidada- O urbanismo participativo
nia e em urbanismo constitui uma abor-
dagem particular, pois entende-se que o A urbanização acelerada dos últimos 50 anos
ato de se engajar em discussões acerca do e a evolução política do mundo a partir dos anos
futuro da cidade implica exercício e/ou 1960 levaram os habitantes das comunidades
aprendizagem da cidadania. locais a uma mobilização constante na defesa dos
seus interesses. É por conta dessa transforma- de decisão relativamente ao uso do dinheiro
ção que aparecem na cena urbana novos tipos público. Apesar disso, em todos os horizontes,
de representação do cidadão: associações, comi- uma parte dessa procura de participação foi des-
tês e conselhos se constituíram para dar voz aos virtuada pelas práticas manipuladoras de auto-
habitantes nas intervenções em seus bairros e ridades municipais.
cidades. Resultantes desses movimentos e ba- No Brasil, a questão da participação nas
seadas nas iniciativas de militantes, pesquisado- decisões de urbanismo se colocou de forma des-
res e profissionais que as apoiavam, várias ex- tacada nos anos 1980, período de redemocra-
periências de urbanismo participativo foram tização do país, tomando então uma amplitude
postas em prática, construindo uma lógica mais particular e fazendo com que as palavras ““parti-
próxima do cidadão. cipação”” e ““cidadania”” aparecessem sempre jun-
Os Estados Unidos foram o primeiro país a tas. Num país onde o poder de decisão foi his-
colocar-se numa via de urbanismo democráti- toricamente monopolizado pelos representan-
co. Nos anos 1960, uma nova prática se impõe tes de uma elite econômica muito restrita, a par-
nos bairros deteriorados das grandes cidades, ticipação da população significa uma democra-
14 contrapondo-se às renovações feitas a ferro e tização desse poder. No Brasil, hoje, dificilmente
fogo. Trata-se do Advocacy Planning, uma nova se cogita uma intervenção urbana sem se per-
dimensão da prática dos urbanistas, que se co- guntar sobre sua viabilidade econômica e sua
locam como advogados dos pobres e dos negros, prioridade em relação às imensas demandas da
defendendo-os quando ameaçados de expulsão comunidade beneficiária. Logo, levar os mora-
do seu território (KATAN, 1979). São profissi- dores de uma comunidade a uma participação
onais que se põem ao lado desses habitantes e nas decisões de urbanismo significa, implicita-
trabalham a partir dos seus apelos e de suas rei- mente, dar-lhes poder de decidir onde e como
vindicações. Experiências inspiradas na prática gastar o dinheiro público. A participação é as-
do Advocacy Planning ou próximas dela difundi- sim portadora de uma esperança de mudança
ram-se amplamente, e outros exemplos de par- das prioridades dos investimentos e da ação do
ticipação popular se seguiram na Europa, como Estado para o atendimento das carências da po-
em Bruxelas (Bélgica), Pávia e Bolonha (Itália), pulação desfavorecida.
Delft (Holanda), Roubaix (França) e outras A necessidade de participação dos habitan-
(BERNFELD et al., 1980). tes do país foi reconhecida pela Constituição do
Pedagogia da participação

A palavra participação ganhou grande no- Brasil de 1988 –– ao especificar que as associa-
toriedade a partir desses movimentos. Nos paí- ções representativas de moradores devem par-
ses ricos, o primeiro entendimento dessa idéia ticipar da planificação municipal –– e reafirmada
era o de ““dar o lápis aos habitantes””, tendo o com veemência no Estatuto da Cidade, em 2001.
profissional de urbanismo como mediador. Nos Muito antes disso, entretanto, algumas Prefei-
países pobres, a participação sempre teve um turas, dirigidas por antigos militantes de oposi-
sentido mais amplo de repartição dos poderes ção à ditadura militar, deram um sentido con-
creto à idéia de participação, unindo-a, na prá- taurar um ““movimento

© Enciclopédia Larousse/ doc Rinascita


tica, à idéia de cidadania. Entre as iniciativas pio- filosófico transforma-
neiras no Brasil, encontramos as de Lages (SC) e dor”” em conjunto com
Piracicaba (SP), além da experiência mais recen- o povo:
te de debate público de investimentos urbanos Um movimento filo-
do Orçamento Participativo de Porto Alegre (RS). sófico merece esse nome
quando, no trabalho de ela-
boração de um pensamento
O intelectual orgânico gramsciano superior ao senso comum e
Antonio Gramsci
(1891-1937) cientificamente coerente,
Para compreender o papel do(s) ani- não esquece jamais de ficar
mador(es) de processos participativos, presente em contato com os ‘‘simples’’, ou melhor, encontra atra-
no método que se materializou no Vila Verde, vés desse contato a fonte dos problemas que devem ser
fez-se uso de conceitos de Antonio Gramsci - estudados e solucionados (GRAMSCI, 1966).
intelectual e militante comunista italiano do iní- Assim, Gramsci enriquece as proposições
cio do século XX - sobre a necessidade de uma revolucionárias da época: o intelectual orgâni- 15
intervenção exterior para a transformação de co era um catalisador de mudanças e não a van-
uma dada situação: guarda ““iluminada”” que chega com um projeto
(...) as idéias não ‘‘nascem’’ de forma espontânea pronto a ser aplicado sem contestação. A novi-
no cérebro de cada indivíduo. As idéias possuem um dade de Gramsci em relação ao pensamento
centro de formação, de irradiação, de difusão, de persua- militante de sua época é a intensidade com que
são: um grupo de homens, ou mesmo um indivíduo, pensava na necessidade do que ele chamava de
que as elaborou e apresentou sob a forma política de ““reforma intelectual e moral”” na sociedade, afir-
atualidade (GRAMSCI, 1966). mando que: ““toda relação de hegemonia é ne-
Isso quer dizer que existe sempre um cessariamente uma relação pedagógica””
catalisador das mudanças, pois, (GRAMSCI, 1966). Ele levava em considera-
ção o caráter heterogêneo do ‘‘bloco histórico’’

O contexto da experiência paarticipativa


uma massa humana não se ‘‘distingue’’ e não se
torna independente ‘‘por ela mesma’’, sem se organizar que iria realizar as transformações na sociedade
(no sentido amplo); e não existe organização sem os e o modo como seria possível estabelecer rela-
intelectuais, ou seja, sem organizadores e dirigentes ções em seu seio: a base destas estaria na nego-
(GRAMSCI, 1966). ciação e no compromisso. No espírito dessas
Uma das inovações de Gramsci em relação idéias, Gramsci criou ainda dois conceitos que
aos outros revolucionários de sua época foi a serão úteis no exercício da interferência em um
profunda preocupação com a necessidade da bairro: o ““consentimento ativo”” e a ““vontade
existência de uma ligação estreita entre os inte- coletiva””. O ““consentimento ativo”” seria a ati-
lectuais e os oprimidos. O papel desses intelec- tude de aprovação consciente e de participação
tuais, nomeados de ““orgânicos””, seria o de ins- em um projeto baseado em compromissos da
© Débora Nunes

16

parte de cada uma das pessoas envolvidas: objetivando acordos? O que fazer para que a
““Quem consente se engaja (...) a participar de relação ““intelectual/grupo”” não derivasse para a
um trabalho ativo e responsável”” (GRAMSCI, relação ““dirigente/dirigido””, bem próxima da de
1966). A ““vontade coletiva”” seria o objetivo atin- ““dominante/dominado?”” Para evitar essas arma-
gido após um processo de negociação de inte- dilhas, enfrentamos o problema utilizando al-
resses entre os sujeitos do projeto hegemônico: guns princípios de Jüngen Habermas.
““a hegemonia pressupõe sem dúvida que é pre- A abordagem habermaniana da comunica-
ciso levar em consideração os interesses e as ten- ção consiste em classificar essas relações em dois
dências dos grupos sobre os quais a hegemonia tipos: a comunicação que visa a um acordo parti-
será exercida”” (GRAMSCI, 1966). lhado entre os interlocutores (intercompreen-
são), e a orientada para a obtenção da aceitação
A comunicação de
da idéia pelo interlocutor (estratégica). Haber-
intercompreensão de Habermas
Pedagogia da participação

mas define a comunicação de intercompreensão


Tinha-se em mente que, para o sucesso do como um ““processo de entendimento entre su-
processo participativo, a questão da comunica- jeitos capazes de falar e de agir (...) compreen-
ção entre habitantes, animadores, técnicos e dendo do mesmo modo uma expressão lingüís-
autoridades públicas seria fundamental. Como tica””, acrescentando ainda que ““os processos de
possibilitar uma relação de igualdade, sem ma- intercompreensão visam a um acordo que satis-
nipulações, em clima de entendimento e faça as condições de assentimento, racionalmen-
te motivado, do conteúdo de uma expressão””. Na cipativo e como uma das bases de análise do de-
comunicação estratégica, que não é uma relação senvolvimento do processo de participação.
de real diálogo, o acordo pode ser obtido pela No trabalho de campo, os conceitos de
manipulação, pois seu objetivo é o sucesso de um Habermas foram utilizados para observar como
dos interlocutores (HABERMAS, 1987). se processava a comunicação entre os interven-
Para Habermas, o acordo que resulta de tores e a comunidade, assim como outras rela-
uma comunicação de intercompreensão é ções no bairro. Assim, a questão de haver parti-
construído, ao contrário do acordo ““obtido”” pela cipantes com um estatuto prévio, o que lhes
comunicação orientada para o sucesso. Essa di- confere mais poder que aos outros, pode ser um
ferenciação remete aos participantes da comu- obstáculo para a intercompreensão. Dessa for-
nicação: no primeiro caso, trata-se de uma rela- ma, impôs-se a idéia de caracterizar a comuni-
ção SUJEITO-SUJEITO e, no segundo, uma cação intercompreensiva.
relação SUJEITO-OBJETO. Entretanto, na As condições necessárias para que exista
experiência concreta, é difícil identificar os ti- uma relação de intercompreensão entre os par-
pos de comunicação: sempre há uma certa ceiros do processo participativo podem ser re-
ambivalência (comunicação estratégica e sumidas assim: 17
intercompreensiva ao mesmo tempo). A dife- 1. os parceiros se reconhecem mutuamen-
rença entre os dois tipos de comunicação é te como sujeitos e desejam a troca;
identificada pela preponderância de uma delas: 2. a busca do entendimento é o meio esco-
na intercompreensão ultrapassa-se a ambivalên- lhido para construir o acordo e, assim, não há
cia, que pode ser mantida na estratégica. Esta imposição dos pontos de vista: na comunicação
avaliação da ultrapassagem da ambivalência é entre os parceiros não se utilizam os argumen-
uma questão interpretativa e, uma vez que não tos de autoridade e de poder;
fornece certezas ““quantitativas””, encontramo- 3. uma compreensão mútua da linguagem é
nos no domínio da sociologia compreensiva. A essencial para a intercompreensão; dessa forma,
distinção feita por Habermas entre as duas ações a etapa prévia de escuta e aprendizado mútuos
remete ao contexto e à intenção do interlocutor. da linguagem de parte a parte é indispensável,

O contexto da experiência paarticipativa


Jeanneret, em um artigo sobre Habermas, bem como a construção de um saber comum
resume com muita clareza os princípios conti- através de conversas, de atividades coletivas etc.;
dos nos seus escritos, úteis, neste momento, à 4. as convicções adquiridas durante o pro-
construção da metodologia de intervenção ob- cesso são baseadas na exigência recíproca de va-
jeto deste livro: ““Considerar o outro como um lidade em três campos, conforme estabelecido
sujeito e não como um objeto é o que distingue a por Habermas na referida obra:
comunicação de intercompreensão de uma sim- n verdade: a possibilidade de verificação do
ples manipulação”” (JEANNERET, 1992). A con- que dizem os interlocutores é sempre pre-
tribuição teórica buscada em Habermas, para este sente no mundo objetivo, pois os argu-
trabalho, encontra-se assim em dois domínios: mentos partem da racionalidade e da pos-
como uma das inspirações do método parti- sibilidade de refutação;
© Arquivo de Moacir Gadotti.
que extinguissem as injustiças sociais e a opres-
são. Freire participou desse momento da histó-
ria e criticou a prática da educação existente, li-
gando o analfabetismo ao atraso do desenvolvi-
mento do país. Foi ele que criou expressão ““edu-
cação bancária””, afirmando que, então, proces-
sava-se um ““depósito”” de conhecimento do pro-
fessor para o aluno, visto como mendicante do
saber e submetido a uma hierarquia esmagado-
ra para com o ““mestre””. Contrapondo-se a tudo
isso, Freire propunha uma ““educação de
problematização””, na qual o aluno, situado no
seu contexto e reconhecido em sua riqueza par-
ticular e no saber fazer, seria incitado à
criatividade e a ter uma consciência crítica. Nes-
18 se processo, fundamentando-se no diálogo, a
aprendizagem deveria ser efetuada conjunta-
mente pelo educador e pelo educando.
Para lutar contra o analfabetismo reinante
Paulo Freire (1921-1997). no país, Paulo Freire criou um método que al-
n justiça: no mundo social, logo, na legiti- fabetizaria adultos em 40 horas, por meio de
midade moral de cada um, é que se busca discussões nos ““Círculos de Cultura””. Os de-
a validade do que é dito; bates deveriam ser conduzidos por um ““coor-
n sinceridade: a autenticidade do que é denador de debates””, apto ao diálogo, e não por
um ““mestre””. As bases práticas desse método de
dito em relação ao contexto pessoal.
alfabetização são:
1. a alfabetização deve partir da vida cotidi-
A Pedagogia do Oprimido ana do aluno, em um processo no qual ele é o
de Paulo Freire sujeito e não um objeto; assim, as ““palavras ge-
radoras”” de debates e de aprendizagem no Cír-
Pedagogia da participação

A terceira influência teórica, a mais impor- culo de Cultura sairiam do ““universo vocabular””
tante e decisiva na elaboração desta metodologia dos alfabetizandos;
de intervenção, é a da ““Pedagogia do Oprimi- 2. o meio para a alfabetização é o diálogo;
do””, de Paulo Freire, que, reflete um momento é preciso, portanto, criar situações existenciais
importante do pensamento engajado, típico dos típicas da vida dos alfabetizandos para promo-
anos 1960, quando o Brasil vivia um período de ver o debate e incitar a fala dos participantes
intensa mobilização por reformas estruturais do grupo;
crítica na qual a realidade se torna um obje-
© Verônica Lima.

to passível de conhecimento e na qual o ho-


mem assume uma posição epistemológica
(...) a conscientização é um compromisso
histórico (...) não pode existir fora da práxis,
ou seja, sem o ato ação-reflexão. Essa uni-
dade dialética constitui, de maneira perma-
nente, o modo de ser e de transformar o mun-
do que caracteriza os homens (FREIRE,
1979).
Em suas obras, Paulo Freire ultra-
passa a simples constatação da existên-
cia da opressão e revela os mecanismos
psicológicos que ela produz nos opri-
midos. Trata-se de um desprezo de si
mesmo, originado da introjeção das 19
Utilização do método Paulo Freire na escola comunitária.
idéias negativas que os opressores têm
3. o objetivo fundamental é a passagem da do povo. O oprimido interioriza a idéia de ser
consciência mágica à consciência crítica e que inferior, identificando-se aos ricos e querendo
se ultrapasse também a consciência ingênua1 . se parecer com eles. Esta seria a ““adesão”” ao do-
Os objetivos a serem alcançados são a alfabeti- minante, quando os oprimidos ““hospedam em
zação e a ““conscientização””. si o opressor2 ”” e são empurrados para uma de-
Assim, alfabetizar seria ““dar a voz”” ao alfa- pendência emocional. Assim, na prática peda-
betizando e chegar com ele à ““conscientização””. gógica, é necessário quebrar esse mecanismo de
Para Weffort, em prefácio de Educação como práti-
ca de liberdade, importante obra de Freire (1985),

O contexto da experiência paarticipativa


““a alfabetização e a conscientização não se sepa- 1 Consciência mágica ou intransitiva: o homem,

ram jamais. Este princípio, na verdade, não tem vendo a realidade, os fatos, como uma força
superior, se torna fatalista.
necessidade de se limitar à alfabetização, pois é
Consciência ingênua: o homem, crendo-se
aplicável a todos os tipos de aprendizagem””. É superior aos fatos e interpretando-os como
preciso ressaltar que a ““aprendizagem da cidada- quer, torna-se assim fanático.
nia”” de que se fala neste livro está muito próxima Consciência crítica: o homem, vendo a
realidade através das suas relações causais e
do conceito de ““conscientização”” de Paulo Freire, circunstanciais, pode, assim, agir de uma forma
termo-chave da sua pedagogia, pois encerra to- flexível, analítica, inscrevendo-se na realidade
sem se adaptar nem se submeter a ela.
dos os conceitos-base dessa concepção:
2 Esta afirmação é próxima daquela de Marx, no
A conscientização implica superar a esfera de apre- Manifesto comunista: a ideologia de uma
ensão espontânea do mundo, para alcançar uma esfera sociedade é aquela da sua classe dominante.
identificação do oprimido com o opressor, que impulso da transformação””. A educação crítica,
é, ao mesmo tempo, de dependência. Esse ato ressalta Freire, compreende assim a conscienti-
não pode ser puramente intelectual, mas práti- zação. No quadro abaixo, buscou-se fazer uma
co, quando o oprimido dá espaço à própria voz, síntese das idéias de Paulo Freire, apresentan-
reconhece o valor da sua ação no mundo e se dá do-se o movimento, sempre ressaltado pelo
conta que ele transforma este mundo, ainda que educador, da passagem possível de uma situa-
modestamente, dia após dia. À medida que se ção de opressão a uma outra de libertação. Essa
apercebe de sua condição de oprimido e do seu passagem efetua-se em escalas variadas (indiví-
valor como homem, passa a ter vontade de mu- duo, sociedade, consciência), aqui consideradas.
dar esse estado de coisas. Essa transformação é
chamada de conscientização.
Paulo Freire enfatiza que a conscientização Diferenças entre a pobreza no Brasil e a
não é jamais dada e que ela é fruto da repetição exclusão na Europa
de palavras de ordem; ela é sempre construída
em cada um através de sua relação com os ou- Antes de passar à descrição e análise do con-
20 tros. Freire lembra aos líderes revolucionários, texto material e antropológico do bairro, do qual
assim como aos educadores, que o engajamento se pode dizer que se trata de um bairro ““pobre””
de cada um deles numa luta maior foi precedi- e/ou ““excluído”” dos progressos materiais da ci-
do da convicção da necessidade de lutar: ““é sua dade, é importante estabelecer-se a distinção
inserção lúcida na realidade, na situação histó- entre os sentidos dados por europeus, brasilei-
rica, que os levou à critica dessa situação e ao ros e outros povos latino-americanos aos ter-

Quadro 1: Síntese das constatações e propostas de Paulo Freire


INDIVÍDUO SOCIEDADE CONSCIÊNCIA

Objeto/Massificação Sujeito/ Humanização Sociedade Sociedade Consciência Consciênia


fechada aberta intransitiva transitiva

Contatos no Contatos com Alienação Participação Instinto e emoção Intelecto e


mundo o mundo Simplificação problematização

Reações irrefletidas Reações refletidas Soluções Estudos e Ausência de Responsabilização


Pedagogia da participação

e fixas dinâmicas e plurais importadas projetos compromisso


próprios

Hoje constante Historicidade Pessimismo Autoconfiança Explicações Princípios


fabulosas causais

Abstenção Interferência Sectarismo Tolerância Polêmica Diálogo


Fonte: elaboração da autora.
mos pobreza e exclusão, verificando-se uma efe- meno mais ““hereditário””, no sentido de que são
tiva riqueza antropológica na interpretação des- as crianças pobres que têm maiores riscos de
ses dois conceitos. A noção de pobreza é vista continuar pobres quando adultas. O sentido de
aqui como característica do contexto brasileiro exclusão é mais amplo, consistindo num pro-
ou ainda latino-americano (preferindo-se não cesso que pode conduzir uma faixa significativa
falar de contextos próximos, mas pouco conhe- da população à miséria material e moral. Ainda
cidos, como o africano), e a noção de exclusão é conforme Paugan, a exclusão decorre de um
associada a sociedades de maior igualdade social, acúmulo de dificuldades concretas e de uma
particularmente ao contexto europeu. ruptura progressiva dos laços sociais, que ex-
A pobreza se distingue da exclusão sob vá- põem os que vivem em situação de instabilida-
rios pontos de vista. Para traçar um quadro com- de (desemprego, trabalho precário, ruptura con-
parativo, foi utilizada a obra coletiva organizada jugal, dificuldade de acesso à moradia) ao risco
por Paugan (1996), segundo a qual, no contex- da marginalização. Essa diferença de escala –– a
to europeu, há diferenças manifestas entre os pobreza numericamente extensa, mas social-
conceitos de exclusão e de pobreza. Paugan diz mente circunscrita, e a exclusão restrita nume-
que ““a pobreza caracteriza a entrada na socieda- ricamente, mas socialmente ampla –– é acompa- 21
de industrial, antes das conquistas sociais e das nhada de uma diferença de contexto que torna o
regulações estatais””, enquanto ““a exclusão tra- sofrimento moral da exclusão mais difícil, a meu
duz a crise estrutural de seus fundamentos, de- ver, que o sofrimento advindo da pobreza.
pois de várias décadas, durante as quais a misé- A diferença aqui estabelecida entre o estado
ria parecia haver desaparecido””. Em termos con- moral das pessoas que vivem a pobreza e a exclu-
cretos, as duas situações são caracterizadas pela são é baseada tanto nos discursos sobre a exclu-
precariedade do emprego, pela falta de qualifi- são na França e a pobreza no Brasil quanto no
cação, pelo desemprego e pela incerteza quanto que pude perceber no cotidiano do bairro de
ao futuro. O espaço do habitat é também uma Vila Verde. Os clássicos sintomas do sentimento
característica comum dos pobres e dos excluí- de exclusão, largamente difundidos na literatura
dos, apesar das diferenças materiais e tecnoló- francesa sobre o tema –– sentimento de solidão,

O contexto da experiência paarticipativa


gicas entre alguns subúrbios europeus ditos tédio, vazio existencial, amargura –– não foram
““problemáticos””, por exemplo, e a favela brasi- observados no bairro popular onde se passa a
leira. O que os aproxima é o fato de que este- experiência aqui descrita. Ali, encontram-se os
jam localizados geralmente longe do centro das sentimentos de abandono, fatalismo, revolta, ro-
cidades e que sejam freqüentemente percebi- tina, mas não a miséria moral, e, como será visto
dos de uma maneira negativa. adiante, percebe-se alegria de viver em Vila Ver-
A maior diferença é o contexto moral e so- de. Não se trata de um discurso para atrair turis-
cial dos pobres e dos excluídos. Como pano de tas, mas de um dado da realidade, na praia ou na
fundo, há o fato de que a pobreza é um fenô- favela.
Com o quadro abaixo, propõe-se um elo entre as idéias já discutidas, acrescentando-se outras:

Quadro 2: Comparações Pobreza x Exclusão

Ser pobre no Brasil de hoje Ser excluído


(semelhanças com o século XIX na Europa) na Europa de hoje

Sentimento de pertencer a uma maioria –– o povo. Sentimento de estar fora de tudo, fora da
sociedade de consumo.

““Consciência de integração periférica”” (CHAUI, 1986), Perda de identidade. Vergonha da derrota


inconsciência ou, menos freqüentemente, identidade social.
pelo sentimento de ser explorado pelos ricos.

Esperança religiosa de uma recompensa em outra vida, Falta de perspectivas coletivas, desinteresse
ou de vida no dia-a-dia. Em alguns casos: sonho de pela política e distância das questões
fundação de uma sociedade mais justa. religiosas.
22
Impressão de seguir um destino de pobre, herdado dos Sentimento de derrota diante do fato de que a
pais ou, às vezes, o sentimento de alguma melhora em geração precedente é mais bem-sucedida
relação à geração precedente. social e economicamente.

Convivência num ambiente gregário e vivência da Laços sociais fracos e ambiente de vizinhança
solidariedade de vizinhança. indiferente.

Suporte familiar nos momentos de derrota social. Perda de laços sociais nos momentos de
Vínculos fortes com uma família polinucleada e derrota social. Contatos reduzidos com a
sentimento de dever para com os parentes. família e desengajados.

Para a maioria, distância física dos ricos e da classe Proximidade física dos ricos e da classe média.
média. Sentimento de estar desprovido de meios de Enorme oferta de bens de consumo, sempre
inserção social e de consumo exibidos na mídia. monetarizados. Sentimento de estar
desprovido de meios de inserção.
Pedagogia da participação

Vida social paralela ao modo de vida dos ricos Ausência de vida social, perda de tradições.

Grande sofrimento material. Comparativamente, menos sofrimento


material.
Fonte: elaboração da autora.
II - Contexto material Como será visto mais adiante, o conjunto
desses dados sobre as desigualdades sociais foi
da experiência significativo durante o desenrolar da interven-
ção. Tratava-se de membros de uma ““elite bra-
sileira””, encontrando no bairro uma conjunção
de fatores ligados à pobreza –– baixos rendimen-
tos, fraca escolaridade e uma forte presença de
O Brasil população mestiça. Assim, a experiência-piloto
será vista muitas vezes como convivência de dois
No Brasil, a concentração de riquezas é uma mundos, o dos pobres e o dos ricos. A relação
das mais fortes do mundo. A herança da época entre animadores / habitantes, refletindo essa
colonial –– concentração de terras e escravidão –– dualidade do país, será, portanto, um elemento
é uma das origens da desigualdade em geral e essencial nas análises aqui feitas.
da pobreza dos descendentes de escravos em A sociedade dual aparece hoje em dia de
particular. A industrialização, vinda após a Re- maneira flagrante nas cidades, onde a opulência
pública, e particularmente pós segunda Guerra, e a alta tecnologia convivem lado a lado com a 23
não mudou radicalmente a sociedade de senho- pobreza e o atraso socioeconômico. Os arranha-
res e escravos, ainda que tenha contribuído para céus estão encostados em barracos; as comuni-
a urbanização galopante e a criação de uma classe cações via e-mail coexistem com as cartas que
média quase inexistente anteriormente. Tudo não chegam aos destinatários por causa da lama
mudou e nada mudou ao mesmo tempo no sé- que invade as ruas dos bairros pobres, impedin-
culo XX, pois jamais existiu um verdadeiro Es- do o carteiro de ter acesso às casas; as máquinas
tado de Bem-Estar Social para colocar em xe- sofisticadas de controle automático do tráfego,
que o modelo de riqueza concentrada e miséria presas aos postes dos sinais de trânsito, susci-
generalizada. Durante o período de ditadura tam o interesse das crianças, mas elas estão lá
militar, o processo de modernização se acele- para mendigar junto aos automóveis parados.
rou, o país tornou-se uma das maiores potênci- Este quadro é bem definido pela expressão

O contexto da experiência paarticipativa


as econômicas do mundo, mas a concentração Belíndia, neologismo muito usado nos anos
de riquezas também se acentuou. Hoje, o PIB 1970, pelo qual se reconhecia que o Brasil era
brasileiro é de aproximadamente 350 bilhões de ao mesmo tempo a pequena Bélgica desenvol-
dólares (sendo o PIB por habitante mais ou vida e a imensa Índia pobre. A expressão pode
menos 2 mil dólares), enquanto o salário míni- ser atualizada, no mundo neoliberal globalizado,
mo mensal está em torno de 60 dólares. Mais pelas decorações luminosas do Natal, vistas nas
ainda, a precariedade dos empregos e a ampli- fachadas dos imóveis ricos, assim como nos bar-
tude do mercado informal fazem com que este racos das favelas: decorações luminosas,
salário e as garantias sociais mínimas adquiridas fabricadas nos Estados Unidos, compradas nos
ao longo do tempo não sejam acessíveis a todos. imponentes shopping centers de Miami, e outras,
vindas da China, adquiridas nos camelôs do cen- agrária, que, por décadas, foi uma palavra de or-
tro da cidade. dem subversiva, vista como ““coisa de comunis-
Para manter esse quadro de desigualdade, tas””, e passa, nos anos 1990, a ser uma questão
potencialmente explosivo, a tradição política nacional, mobilizando favoravelmente a opinião
brasileira misturou autoritarismo e paternalis- pública. No mesmo período, a sociedade civil
mo, e as relações entre os pobres e os ricos, en- sustentou um grande movimento de solidarie-
tre os poderosos e os ““fracos”” são fundamenta- dade aos mais desfavorecidos, a ““Campanha con-
das nesse duplo suporte (LEAL, 1975; FREIRE, tra a fome e pela cidadania”” ou a ““Campanha do
1982). Desde a escravidão até as relações políti- Betinho””, marco de mobilização e tomada de
cas de hoje, encontramos esta fórmula: ““eu lhe consciência nacional sobre a necessidade de uma
presto serviço, você me resta fiel””. Nas relações ação contra a miséria. As questões ligadas ao ra-
de poder observadas em Vila Verde, essa carac- cismo e à violência policial principalmente, an-
terística sempre esteve presente. É evidente que tes relegadas às páginas policiais dos jornais, co-
essa vivência do autoritarismo e do paternalismo meçaram a ocupar lugar de destaque na impren-
é contrária à participação e à autonomia pressu- sa, demonstrando que a sociedade passa, pouco a
24 postas na idéia de cidadania; é assim que, para pouco, a perceber como seus, problemas que atin-
vários observadores, a cidadania é uma constru- gem preferencialmente os pobres. O tema do
ção não concluída no Brasil (SANTOS, 1987; meio ambiente, antes visto como questão de
DA MATTA, 1986; SANTOS, 1978) mico-leões dourados e tartarugas em extinção,
O Brasil retomou a via democrática depois passa a se vincular cada vez mais às questões ge-
das grandes campanhas civis dos anos 80 do sé- rais da sociedade, como as condições de vida da
culo XX, sem deixar de ser um dos países mais população pobre no meio urbano.
desiguais do mundo. Entretanto, a contestação A busca de uma ““cidadania para todos”” se
dos anos 1990 à sociedade dual tornou-se mais baseia em movimentos de caráter nacional, mas
ampla, no sentido de envolver a sociedade civil aparece preferencialmente na esfera local, mui-
menos politizada e voltar-se para ações mais prá- tas vezes se constituindo em experiências e prá-
ticas e cotidianas, sem deixar de questionar o ticas alternativas de exercício do poder nos mu-
modelo brasileiro de sociedade e mostrar um país nicípios. Esses movimentos e essas Prefeituras
em curso de mudança. Parece que depois da tor- são dirigidos, de modo geral, por personalida-
menta da inflação galopante, o país encontrou des políticas e militantes, oriundos dos movi-
Pedagogia da participação

tempo e capacidade para ver suas misérias. mentos sociais contra a ditadura e pela redemo-
Passa a existir uma sensibilização crescente cratização. Outros agentes sociais importantes
para os problemas sociais, talvez porque estes são as ONGs –– que proliferaram na última dé-
aconteçam também fora dos bairros pobres e cada –– e as Universidades, cujas experiências se
degenerem em violência urbana, a qual cresceu tornam cada vez mais presentes, contribuindo
enormemente. Alguns fatos são significativos assim, mesmo pontualmente, para mudar o qua-
para esta sensibilização. Um deles é a reforma dro do país. A experiência no bairro de Vila
Verde, em Salvador, como tantas outras
desse tipo que vêm se desenvolvendo lo-
calmente no Brasil, pertence a essa cor-
rente em que pequenas vitórias sobre o
modelo da desigualdade e da opressão
sobre os pobres se destacam para mos-
trar uma outra via de desenvolvimento,
a que é feita com a participação do povo.

Salvador

Salvador foi a primeira cidade e a pri-


meira capital do Brasil (de 1549 a 1753) e,
durante três séculos, a mais importante
aglomeração urbana do país. Hoje, a cida-
de de Salvador é a terceira municipalidade 25
brasileira em população (2.443.107 habi-
tantes), depois de São Paulo e do Rio de Janeiro, tica. As chuvas fortes (concentradas essencial-
constituindo-se numa metrópole regional moder- mente durante os meses de março, abril e
na, tipicamente latino-americana, onde as classes maio), a existência de um escarpamento decor-
desfavorecidas estão relegadas à periferia e às ilhas rente de uma falha geológica e a presença de
de pobreza ao lado dos bairros ricos. um solo que se desagrega facilmente são cau-
Com uma gritante precariedade dos servi- sas naturais. A urbanística, é a ocupação
ços públicos, a cidade de Salvador apresenta um desordenada dessas encostas. Durante a cons-
problema específico que vitimou também a po- trução das casas, o aproveitamento do terreno
pulação do bairro de Vila Verde, que apresen- não é feito da maneira correta, para permitir o
taremos a seguir. Trata-se do fato de que a po- escoamento das águas e não sobrecarregar o

O contexto da experiência paarticipativa


pulação pobre mora principalmente nos vales solo. Há a destruição da proteção vegetal na-
e nas encostas da cidade, que são as superfícies tural dos talvegues, corte das encostas de modo
menos disputadas pelo mercado imobiliário. abrupto e sem arrimos de proteção (para cons-
Essas zonas eram até recentemente considera- truir ou aumentar suas casas) e despejo dos
das de alto risco, pois os desabamentos de ter- dejetos domésticos sobre o trajeto natural de
ra nas encostas eram freqüentes e os vales, na escoamento das águas da chuva.
época das chuvas, recebiam os detritos prove- Os desmoronamentos de terra devidos à
nientes destes desabamentos e sofriam inun- ocupação inadequada das colinas escarpadas
dações. Os acidentes em Salvador possuem aumentaram nas ultimas décadas, em razão do
causas de ordem natural e uma outra, urbanís- urbanismo acelerado. Durante muito tempo, a
© Raimudno Silva – Prefeitura Municipal de Salvador.

26
Ondina – convivência da formalidade e informalidade.

Desabamentos deixaram muitas vítimas em 1995, entre elas a população de Vila Verde.

cidade assistiu a tragédias na época das chuvas: as nificadas e administradas minuciosamente, pois é
inundações em ruas e avenidas provocam o caos preciso deslocar as famílias em perigo para outros
na cidade e os bairros pobres sofrem os maiores bairros e realizar obras demoradas e onerosas. Nos
desgastes, dada a precariedade de suas constru- últimos anos, em face do clamor da sociedade,
ções. Nesses locais, os desmoronamentos de ter- essas obras começaram a ser realizadas.
ras soterram as casas e provocam também o de- Alguns números permitem conhecer as
sabamento de edifícios, que caem uns sobre os condições de vida da população de Salvador, que
outros, resultando, geralmente, em casos de mor- é uma mostra mais ou menos representativa do
tes, feridos, famílias sem abrigo, perdas de bens que ocorre no resto do Brasil. De início, é pre-
familiares, e deixando seqüelas irreparáveis. ciso registrar que, na Região Metropolitana de
Pedagogia da participação

A Prefeitura ignorou durante muito tempo Salvador (RMS), os 10% mais ricos concentram
os desabamentos, pois se tratava de uma questão aproximadamente 50% dos rendimentos, en-
urbana periférica, jamais levada seriamente em quanto os 10% mais pobres detêm apenas cerca
consideração. Dentre outras razões para essa de 1%. Entretanto, Salvador é um caso particu-
incúria, sabemos que enfrentar o problema dos lar, pois, ao lado de uma população com altos
desabamentos de terra nos talvegues implica in- índices de pobreza, possui a reputação de uma
tervenções de grande porte, que devem ser pla- cidade onde reina a alegria de viver. A dança e
os ritmos da cultura popular, assim

© Débora Nunes.
como sua beleza natural e o seu
patrimônio arquitetônico exercem
uma forte atração. Essa aparência ale-
gre advém da sua organização urbana,
cujo setor ““formal”” se localiza próxi-
mo das belas praias e esconde por trás
dele as favelas e invasões. Contudo,
aquele que vive durante algum tempo
entre a população de um desses bair-
ros miseráveis se dá conta de que não
se trata somente de uma aparência, mas
que existe realmente essa porção de
alegria ““quase gratuita”” em Salvador,
que revela uma ““pobreza mais auto-
confiante, mais alegre, menos triste”” 27
(FARIA, 1980) 3 . Existe certamente
uma tendência a usufruir os prazeres
simples, que estão na origem também
da criatividade e da vivacidade da sua
cultura popular. É difícil dizer se a ex-
plicação desse fato se encontra no cli-
ma, na mestiçagem, na espontaneida-
de das relações humanas ou em qual-
quer outro fator, mas é útil salientar
essa constatação antes de passar aos da-
dos que mostram a pobreza existente na cidade.

O contexto da experiência paarticipativa


A taxa de desemprego total na Região Me- 3 Muitos pesquisadores e escritores, entre eles
Jorge Amado, já fizeram esta observação, que
tropolitana de Salvador, em junho de 2002, era Vilmar Faria resumiu da seguinte forma: ““Para
de 28,0%, a maior do Brasil (www.sei.ba.gov.br/ o visitante eventual (...de Salvador ...) a
impressão que passa é que ele está diante de
conjuntura/rel_ped.asp). Se tomarmos a Pes-
uma pobreza fácil e alegre, não-ressentida,
quisa de Orçamento Familiar do IBGE (1996), brincalhona, até desdenhosa do bem-estar
veremos que as famílias extremamente pobres, moderno (...) Mesmo para um pesquisador
mais atento, se ele não é baiano, não é fácil
que ganham até dois salários mínimos, repre- compreender o sentido, a amplitude e a
sentam 21,6% do total. As famílias pobres, con- profundidade da pobreza (...). Um grave erro
seria se manter neste plano, seja para
sideradas aqui como aquelas cuja renda total de denunciar isto como uma mistificação, seja
seus membros está compreendida entre dois e para se maravilhar desta pobreza feliz”” (p. 23).
cinco salários mínimos, representam 27,7%. A tros bairros populares. Quase todas as frontei-
classe média, em amplo espectro, ou seja, as fa- ras do bairro são ainda traçadas pelos campos,
mílias que ganham entre cinco e vinte salários salvo um lado, que toca um outro conjunto ur-
mínimos, representa 59,7% do total e as famílias bano, a invasão chamada ““Vila Verde””, de onde
ricas, que têm renda superior a vinte salários mí- se originou o nome do bairro.
nimos, são 9,7%. O aglomerado urbano é formado por cerca
Para completar o panorama atual da pobre- de 500 lotes de 84 m2, numa superfície total de
za e da desigualdade, podemos acrescentar da- mais ou menos 15 ha (150.649,00 m2). O parti-
dos que testemunham a dificuldade em modi- do urbanístico adotado no bairro se baseia em
ficar esse quadro no futuro: a maioria dos em- duas vias de acesso situadas no topo da colina ––
pregos da cidade encontra-se no setor terciário as ruas ““A”” e ““B”” –– de seis metros de largura,
–– cerca de 80% a população –– (Salvador em da- revestidas por uma camada de asfalto simples,
dos –– 2000, PMS), que conserva vestígios das com calçadas não-pavimentadas. A via ““A””, situ-
relações escravistas, pois uma grande parte das ada na primeira colina, encontra a rua ““B””, que
empregadas domésticas, por exemplo, ainda continua rumo à colina seguinte, mas sem saí-
28 mora na casa dos patrões, o que lhes permite a da. O bairro se organiza com cerca de vinte ca-
solicitação dos seus serviços a qualquer momen- minhos que, partindo dessas vias, descem a en-
to. O interesse pelo emprego doméstico justifi- costa em direção aos vales alagados que cercam
ca-se sobretudo pelo fato de que se constitui, as duas colinas. Os caminhos são exclusivos para
praticamente, na única opção de emprego para pedestres, revestidos em concreto armado com
as mulheres do bairro de Vila Verde. dois metros de largura. Apenas nas ruas ““A”” e
““B”” é possível o trânsito de veículos.
As pequenas casas embriões, de 20m2, foram
O bairro de Vila Verde colocadas umas ao lado das outras ao longo dos
caminhos, em lotes de 6 metros de largura por
O loteamento situa-se na região de Mussu- 14 metros de comprimento. Hoje, a maior parte
runga, no chamado ““miolo”” de Salvador, onde delas encontra-se modificada, mas originalmen-
se concentra grande parte das favelas e das inva- te tinham telhado de fibrocimento em duas águas,
sões da cidade e onde ainda restam vários espa- o chão era feito em cimento rústico e as portas e
ços de aparência quase rural. O novo bairro está janelas eram de madeira pintada de amarelo. Cada
Pedagogia da participação

situado numa colina no meio de uma grande casa tem um reservatório de água de 250 litros e
fazenda. Essa localização propicia o clima agra- está ligada a uma fossa coletiva, que derrama as
dável, muito arejado, podendo-se ver o mar de águas servidas nos pântanos lindeiros ao bairro.
alguns pontos do bairro, enquanto o verde se Varandas, muros, ampliações laterais, jardins e
estende por todo os lados. Um rio corre a 1km construção do primeiro piso foram as modifica-
de distância do bairro e diversos caminhos, pas- ções mais comuns.
sando por campos não-cultivados, levam a ou- Os primeiros habitantes chegaram em de-
© Raimudno Silva – Prefeitura Municipal de Salvador.

29

Vista aérea do Conjunto Vila Verde.

zembro de 1995 e, pouco a pouco, até setembro/ trânsito constante de pessoas nas ruas, música

O contexto da experiência paarticipativa


1996, se formou o contingente atual, quando to- nos rádios a todo volume e as mudanças perso-
das as casas estavam prontas. Nos primeiros tem- nalizadas nas casas.
pos, o conjunto habitacional parecia um jogo de Para se ter uma noção das necessidades do
crianças, por causa do tamanho das casas e de sua bairro e de sua atmosfera nos primeiros tem-
homogeneidade –– todas brancas e amarelas e se- pos, é interessante mencionar as respostas da-
paradas pela mesma distância –– e pelo isolamen- das pelos habitantes sobre suas carências, na
to do conjunto. As mudanças no bairro, após a ocasião da aplicação dos questionários. Faltava
chegada dos moradores, foram marcantes, e era tudo, segundo seus testemunhos, na seguinte
possível perceber novidades quase todos os dias. hierarquia (em ordem decrescente):
O que era um aglomerado de pequenas casas se –– água;
torna rapidamente um local cheio de vida, com o –– posto médico;
des já tinham sido atendidas. As respostas da-
© Débora Nunes.
das à mesma questão, formulada no último
questionário, foram as seguintes:

n o maior problema, a falta de um posto de


polícia (30 citações sobre 38 respostas);
n em seguida, o transporte público (19/38);
n o posto de saúde (18/38);
n a escola (13/38);
n o comércio de proximidade (6/38);
n outros problemas (10/38).

Contrariamente ao que se pensava, as


pessoas achavam que as casas cedidas pela
Prefeitura eram piores do que as que tinham
30 antes (72,8% responderam ““pior””; 13,2%,
““igual””; 14,0%, ““melhor””). Conhecendo-se
alguns dos bairros de invasão de onde vi-
nham os habitantes, esperava-se que esses,
na maioria dos casos, fizessem uma boa ava-
liação das casas, do seu tamanho, dos mate-
riais de construção, do acabamento, da pre-
sença de água, de esgoto e de eletricidade,
dos equipamentos de cozinha (pia) e sanitá-
rios (chuveiro, pia e latrina). Isso não acon-
–– escola; teceu. As respostas à questão foram reveladoras
–– posto de polícia; da escala de valores dos moradores, relativamen-
–– transporte público; te à habitabilidade de uma casa. Uma boa parte
–– pavimentação; julgou a casa em relação às noções urbanas, e
–– creche; não ao conforto da casa em si. A facilidade para
Pedagogia da participação

–– telefone público; a compra dos alimentos, a proximidade do ponto


–– limpeza das ruas e coleta de lixo; de ônibus, a vizinhança, foram critérios impor-
–– iluminação pública; tantes, bem mais que os detalhes de constru-
–– feira; ção. Certamente, entre os entrevistados, havia
–– lazer. pessoas que realmente tinham possuído uma
casa melhor, considerando-se que ao longo do
Um ano depois, algumas dessas necessida- tempo puderam fazer pequenos aperfeiçoamen-
© Débora Nunes.
tos. Havia também aqueles para os quais a nova
pequena casa era um verdadeiro palácio. De
qualquer forma, o bairro, que para um estra-
nho era certamente mais ordenado e dispunha
de uma melhor infra-estrutura que a maioria
dos bairros populares de Salvador, não corres-
pondia inteiramente, de início, aos critérios de
conforto dos habitantes.

31
Os contrastes de Salvador.

O contexto da experiência paarticipativa


CAPÍTULO II

Compreender uma comunidade


interagindo com ela
O conjunto de dados, apresentado agora, foi população pouco inserida no mercado formal
obtido a partir dos resultados do primeiro ques- do trabalho, como é comum no meio popular
tionário da pesquisa4 . Pode-se dizer, de ante- em Salvador, mais de 50% da população do bair-
mão, que o que estabelece a identidade entre os ro não tendo emprego fixo e sendo obrigada a
habitantes do bairro de Vila Verde é a sua ori- traçar estratégias de sobrevivência cotidiana. 33
gem na cidade. A maioria deles é originária de
cinco bairros, que possuem duas características Tabela 1
comuns: estão situados próximos da falha geo- Ocupação e salário da população de Vila Verde
lógica de Salvador (o que explica os desabamen-
Com salário: Sem salário fixo:
tos de terra), e se situam em locais tradicionais
de ocupação ilegal, as invasões organizadas pela Emprego fixo: 26,5% Biscates: 20,5%
população pobre de Salvador (GORDILHO Aposentados: 6,0% Procurando
emprego: 35%
SOUZA, 1990).

Compreender uma comunidade interagindo com ela


Comerciantes/
autônomos: 8,8%

I -Perfil econômico e social Total: 41,3% Total: 55,5%

Fonte: pesquisa de campo.


dos habitantes do bairro

Emprego e renda 4 Em março de 1996, quando da chegada da


maior parte das famílias no bairro, foram
O quadro traçado a seguir é um ““instantâ- aplicados 114 questionários, tendo cada um
84 questões. Estas versavam sobre o perfil
neo”” dos habitantes, pois, como veremos, as socioeconômico das famílias, a visão de
mudanças de ocupação e salário são freqüentes, mundo do entrevistado, seus conhecimentos
acerca dos termos e lógicas do urbanismo,
ainda que não haja modificações substanciais na suas idéias sobre o bairro e seus vizinhos, sua
condição social dos mesmos. Trata-se de uma experiência de ação coletiva, etc.
as mais humildes e mal

© Débora Nunes.
pagas da sociedade. Para os
homens: porteiro, pedrei-
ro, vigilante, operários
pouco qualificados, pintor,
marceneiro, mecânico.
Quanto às mulheres, em-
pregada doméstica, fa-
xineira, lavadeira, costu-
reira, cabeleireira, mani-
cure etc.
Se observarmos aten-
tamente, por um lado, os
dados do emprego e, por
outro, os dos salários,
34 Para esse contingente de famílias que não tem constataremos um afastamento entre ambos, pois,
salário fixo as formas de sobrevivência são os bis- na verdade, poucas famílias têm rendimento
cates e a ajuda da família ou de amigos e vizi- menor que um salário mínimo (15,8%), en-
nhos. Para os homens, é comum que eles se de- quanto em 55,5% delas o chefe de família en-
diquem a mais de uma profissão pouco especia- contra-se desempregado. Isso reflete bem a eco-
lizada, como ajudante de pedreiro ou pintor, além nomia informal brasileira, em que uma grande
de porteiro, para ter uma ocupação –– às vezes, no variedade de atividades possível permite a so-
próprio bairro –– durante os períodos de falta de brevivência de muitas famílias. É necessário
trabalho. As mulheres fazem serviços domésti- destacar a capacidade de adaptação das pessoas,
cos para as famílias ricas: faxina, lavagem e pas- as atividades provisórias que conseguem para
sagem de roupas etc. Como os antigos mascates, sobreviver, mas que significam, certamente, uma
fazem também venda em domicílio de produtos inquietação constante sobre o futuro.
de beleza e outros. Existe ainda a produção do- Vila Verde é um bairro muito homogêneo do
méstica de alimentos vendida em casa, na vizi- ponto de vista dos salários, pois a diferença entre
nhança ou fora do bairro por outros membros os ganhos da maioria da população ativa e os gan-
Pedagogia da participação

da família, incluindo as crianças. hos mais altos não é muito grande, contrariamen-
A outra parte das famílias, a que pode con- te ao que podemos observar na cidade como um
tar ao final do mês com um rendimento certo, é todo. O ganho familiar mais alto encontrado é de
formada pelos empregados, os comerciantes e oito salários mínimos, o que ocorre nas famílias
os autônomos que prestam regularmente servi- em que há mais de um membro da família traba-
ços. As ocupações mais freqüentes estão entre lhando e que representam 20,2% do total.
Tabela 2 Tabela 4
Rendimentos das famílias do bairro Vila Verde Escolaridade da população de Vila Verde
Rendimentos Famílias Escolaridade População

Menos de um SM (> 1) 15,8% Analfabetos: 8,8%


Igual a um SM (= 1) 36,8% Até 4 anos de freqüência à escola: 50,9%
Entre um e dois SM (> 1 e <2) 6,1%
Até 8 anos: 30,7%
Igual a 2 SM (= 2) 27,2%
Entre dois e três SM (>2 e >3) 3,5% Até 11 anos: 9,6%
Maior ou igual a 3 SM (>= 3) 10,6% Mais de 11 anos (Universidade) 0%

Fonte: pesquisa de campo. Fonte: pesquisa de campo.

Tabela 3
Comparação entre os rendimentos da
população de Vila Verde e de Salvador

Rendimentos Vila Verde Salvador 35


De zero a 2 SM 86% 21,6%
De 2 a 10 SM 14% 47,9%
Mais de 10 SM —— 21,5%
Fonte: pesquisa de campo da autora e IBGE –– Pesquisa de
Orçamento Familiar –– 1996.
OBS: Sem declaração de rendimento para Salvador: 0%.

Compreender uma comunidade interagindo com ela


Escolaridade
A população do bairro Vila Verde é muito
pouco escolarizada, como pode ser visto no qua-

© Débora Nunes.
dro a seguir, e é necessário assinalar que, prova-
velmente, o número de analfabetos funcionais
é ainda maior que o aferido com base na decla-
ração dos habitantes6 , considerando-se que, em
alguns casos, o constrangimento em mostrar a
falta de instrução influenciou as respostas.
Pode-se observar ainda que é muito baixo o 6 Ao longo dos contatos mantidos com os
número de pessoas aptas a uma inserção num habitantes quando da implantação da escola
comunitária, várias pessoas que se diziam
mercado de trabalho que exige cada vez mais escolarizadas mostraram-se, na verdade,
um nível maior de escolaridade. analfabetas.
Relações familiares sentes das próprias casas, vários casamentos dos
pais, assim como outras características que serão
As famílias do Vila Verde são, na maior par- mostradas mais tarde, dão a marca da instabili-
te, formadas de casais (mais de 70%), com ou dade na vida dessas pessoas pobres.
sem filhos, na maioria jovens e não casados ofi-
cialmente. As pessoas separadas representam em
torno de 10% e os solteiros cerca de 20%. As Vida cotidiana das famílias
uniões não são muito estáveis e, às vezes, as pes-
soas estão num segundo ou terceiro concubina- O contato constante com as pessoas mais
to. Pôde-se observar, durante a pesquisa, diver- engajadas nas atividades pedagógicas e nas ações
sas mudanças de parceiros entre casais próxi- coletivas do trabalho de campo, assim como a
mos, estimando-se que uma grande parte das visita às suas casas, permite uma descrição apro-
famílias é constituída de um novo casamento. ximada de sua vida no dia-a-dia. Houve conta-
Ainda que as famílias sejam pouco estáveis, tos, certamente menos íntimos e menos cons-
as relações intrafamiliares e de vizinhança são os tantes, também com os outros habitantes do
pontos de referência das crianças para a vida em bairro, quando se ia de porta em porta fazendo
36 sociedade, pois a escola é freqüentada durante convites para as reuniões e atividades, realizan-
pouco tempo. Em muitos casos, o pai biológico do as entrevistas e aplicando os questionários,
se afasta por causa de um novo casamento, por ou promovidos pela necessidade de pedir em-
mudanças ligadas ao trabalho ou por mortes pre- prestada uma ferramenta qualquer ou, simples-
coces ocasionadas por doença ou violência. Para mente, pelo interesse em conversar.
as crianças, a presença mais constante é a da mãe Por ocasião desses contatos, verificamos que
e, às vezes, a da avó. Este dado confirma as dis- uma família com o salário fixo, mesmo se tra-
cussões recentes sobre a feminilização da pobre- tando de um salário mínimo (em torno de 80
za e sobre as responsabilidades que assumem cada
dólares, mais o transporte e, algumas vezes, a
vez mais as mulheres no seio da família,
alimentação do trabalhador), pode ser conside-
notadamente no meio urbano (DOCUMEN-
rada uma família com uma vida ““organizada””.
TOS DAS CONFERÊNCIAS DA ONU DE
Essas famílias têm dificuldades no cotidiano e,
PEQUIM, 1995, e ISTAMBUL, 1996).
certamente, se angustiam com a falta de dinheiro
Contrariamente às expectativas, as famílias
não são muito grandes, verificando-se que 68,4% para os seus deslocamentos do bairro, para pa-
dessas são compostas por dois a cinco membros, gar o consumo de água e de eletricidade, para
Pedagogia da participação

o que decorre, em muitos casos, do fato de os custear as despesas de um modo geral, mas,
filhos do casal ou de um antigo casamento mo- comparadas àquelas que não possuem salário
rarem em outros bairros com os avós. Tal cir- fixo, seu modo de vida é próximo ao das classes
cunstância evidencia que as relações ainda são sociais mais favorecidas. Do ponto de vista ma-
marcadas pelo espírito da família ampliada, in- terial, podemos observar em suas casas a pre-
cluindo avós e tios, mesmo que esses morem lon- sença de mobiliário e utensílios domésticos mais
ge da família nuclear em questão. Crianças au- comuns –– móveis, roupas, louça, aparelhos
eletrônicos e até alguns objetos de decoração. próximas dos seus pais nos bairros de origem.
Trata-se de uma arrumação semelhante à que Para além das relações parentais, muito estrei-
podemos encontrar na maioria das casas no Bra- tas, havia relações de proximidade com os vizi-
sil. Certamente o salário fixo permite crédito a nhos de longa data. A chegada ao novo bairro
essas famílias e, dessa forma, o acesso a produ- não significou um choque cultural tão grande,
tos mais sofisticados. pois a origem sociocultural comum favoreceu a
Do ponto de vista da vida cotidiana, em ra- comunicação e a solidariedade entre as pessoas,
zão da estabilidade do emprego do chefe da fa- que tinham, além disso, vivido a mesma tragé-
mília, o ritmo de vida dos membros é regular. dia. É preciso observar também que, em certos
Ou seja, há uma hora mais ou menos fixa para casos, houve acordos com os funcionários da
dormir e acordar, comer, trabalhar ou para ir à Prefeitura para colocar membros de uma mes-
escola etc. Os habitantes tomam mais cuidados ma família próximos uns dos outros.
consigo mesmo, estabelecem uma nítida separa- Com o passar do tempo, novas relações so-
ção entre as roupas de sair e as ““de ficar em casa””, ciais foram criadas, baseadas sobretudo em tro-
saem mais do bairro, fazem ““compras mensais”” cas com os vizinhos, propiciadas por necessida-
de comida etc. Esse modo de vida tende a perdu- des ocasionais, como empréstimo de utensílios
rar ainda que se perca o emprego, desde que tal domésticos e comida e solicitação de serviços.
37
condição não se prolongue muito ou que a famí- Para as mulheres, havia ainda a guarda recíproca
lia encontre biscates para substituí-lo. das crianças, por ocasião da saída para as com-
Por outro lado, nas famílias que não têm pras e das diversas ocupações das mães. Para os
salário fixo durante muito tempo a desordem homens, a freqüência aos bares, as ““peladas”” e
da vida é evidente, sobretudo se essa situação se outros jogos coletivos ocasionaram os encontros.
prolonga. Há casos em que a casa é mais um Um grupo significativo de pessoas entrou em
amontoado de objetos diversos que uma arru- contato e estabeleceu relações continuadas umas
mação organizada. Freqüentemente as crianças com as outras através das atividades desenvolvi-

Compreender uma comunidade interagindo com ela


não vão à escola e, como o trabalho é incerto, a das no bairro e do trabalho comunitário.
referência da disciplina de horários e de obriga- As respostas ao questionário inicial, aplicado
ções não se faz presente: as pessoas acordam tar- no momento em que as pessoas acabavam de
de ou dormem durante a tarde. A ociosidade é chegar no bairro, permite perceber que as rela-
muito comum, salvo para as mulheres que têm ções de vizinhança começavam a se estabelecer:
filhos pequenos. É provável que essa vida sem
um ritmo cotidiano possa reforçar uma tendên- Tabela 5
cia à anomia, a um desregramento da vida, nos ““O que os vizinhos significam para você?””
casos mais extremos e contínuos.
““são uma ajuda em caso de necessidade”” 50,9%
““são os amigos de todas as horas”” 21,1%
As relações de vizinhança ““sou cordial, mas não preciso deles”” 21,1%””
““nada”” 5,3%
Segundo os relatos obtidos no bairro, as ““eles incomodam”” 1,8%
pessoas de Vila Verde moravam quase sempre Fonte: pesquisa de campo.
O modo e a rapidez com que se estabelece- semanas””; 14,0%, ““quase nunca””; 10,5%,
ram as relações de vizinhança provavelmente freqüentá-la ““diariamente””, e 4,4%, ir ““todos os
têm relação com a tradição de solidariedade que meses””. É provável que essa freqüência diária
existe nos bairros populares no Brasil, já perce- se verifique sobretudo no caso dos evangélicos,
bida por outros observadores. Essa ““solidarie- uma vez que tal comportamento é característi-
dade íntima”” contrasta com uma solidariedade co desses.
social e política, que, segundo Paulo Freire As relações de vizinhança se intensificaram
(1985), seria mais rara no Brasil. Também com o tempo, dada a proximidade física entre
Almeida (1992), em seu estudo sobre creches as pessoas e o fato de permanecerem constante-
comunitárias em Belo Horizonte, identificou mente no bairro, principalmente as mulheres,
essa solidariedade que se manifesta através do que dificilmente saem. Certamente, o aspecto
encargo privado dos problemas sociais. Esse pro- informal da sociedade brasileira e o espírito
cesso, a que chamou de ““sociedade de provi- gregário das pessoas são motores da tessitura
dência””, se desenvolveria sempre que o Estado desses laços, mas, de um ponto de vista prático,
se isenta das suas responsabilidades. os vizinhos são também os amigos mais desejá-
38 A aproximação entre as pessoas tem motiva- veis. O custo do deslocamento faz com que as
ções variadas, mas é certo que as dificuldades do amizades formadas ao longo da vida se tornem
quadro de vida foram, no mínimo, um dos as- quase inacessíveis. O telefone não é comum no
suntos das conversas dos moradores de Vila Ver- meio dos mais pobres e, em Vila Verde, foi pos-
de. À pergunta ““com quem discutem os proble- sível observar a dificuldade que as pessoas ti-
mas do bairro?””, 43,9% responderam ““com os nham de entrar em contato com os seus amigos
vizinhos””; 27,2%, ““apenas em casa com a famí- por esse meio, mesmo em seus locais de traba-
lia””; 3,5%, ““na igreja, no trabalho ou na escola””, e lho, pois o único telefone público do bairro es-
25,4%, que ““não discutiam sobre o assunto””. tava sempre ocupado.
A religião deu oportunidade para o estabe- O local público que permite o encontro de
lecimento de muitas relações entre os habitan- vizinhos desconhecidos é o ponto de ônibus,
tes de Vila Verde, sobretudo as igrejas pente- sobretudo para os que trabalham fora do bair-
costais. Durante o ano da experiência, a influ- ro, tendo assim compromisso em horário fixo,
ência dessas igrejas aumentou muito no bairro e para as pessoas mais comunicativas. Os bares
e, recentemente, quatro das casas portavam suas também são muito freqüentados, principalmen-
Pedagogia da participação

insígnias. O fenômeno já era notado ao aplicar- te nos finais de semana. Todavia, os locais de
se o primeiro questionário, quando 57,9% das encontro mais utilizados eram, e ainda o são, a
pessoas se diziam ““católicas””; 24,6%, membros sombra oferecida pelas casas particulares, onde
de ““outras igrejas””, e 17,5%, ““não ter religião””. as conversações entre vizinhos são freqüentes.
Enquanto isso, 49,1% dos entrevistados diziam Devido às atividades do trabalho de campo des-
““jamais ir à igreja””, provavelmente uma grande ta pesquisa, com suas reuniões pedagógicas e
parte dos católicos; 21,9%, diziam ““ir todas as trabalho comunitário, a sede da Prefeitura no
bairro, que viria depois a se tornar a sede da es- populares de rádio e televisão, em que há uma
cola comunitária, se tornou também um ponto intimidade entre os animadores e os ouvintes e
de encontro de muitos moradores. telespectadores, são muito apreciados, principal-
Sobre as relações de vizinhança, é interes- mente pelas mulheres.
sante observar ainda que as pessoas participam As áreas externas também são largamente
dos acontecimentos da vida pessoal umas das utilizadas, particularmente pelas crianças, já que
outras de forma bem mais intensa do que ocor- as atividades culturais organizadas, que atrairiam
re nas classes sociais mais favorecidas. Assim, os adultos, são raras. Os bares, pontos de en-
acontecimentos privados por natureza, como contro e lazer no bairro durante os finais de se-
brigas de casal, reclamações dos pais aos filhos, mana, são sobretudo freqüentados por homens
visitas de parentes, gravidez, doenças, abortos, e mulheres mais jovens. As pessoas tomam cer-
viagens, tornam-se acontecimentos de domínio veja ou ““cachaça”” e conversam, ouvindo músi-
público e os vizinhos os comentam entre si. Se, ca; alguns grupos de samba se formam e se se-
por um lado, tem-se a impressão de que a vida param nesse ambiente. O campo de futebol, que
cotidiana no bairro é monótona, pois pouca coisa já existia num terreno baldio, é utilizado geral-
acontece em termos de vida coletiva (festas pú- mente no fim do dia, particularmente pelos 39
blicas, manifestações, feiras etc.), a socialização homens.
das relações particulares imprime movimento O fato de o bairro estar situado no meio de
ao bairro e é assunto para discussões. Em campos faz com que a população possa ter al-
contrapartida, a vida privada fica comprometi- guns hábitos típicos dos meios rurais, como a
da pela promiscuidade ocasionada pela casas, colheita de frutas e o corte de madeira bruta para
muito pequenas para o número de ocupantes e usos diversos, mas também distrações como o
para uma ocupação tão densa. banho do domingo numa antiga barragem nas
proximidades, construída para o abastecimento

Compreender uma comunidade interagindo com ela


d’’água de Salvador. Os habitantes também têm
Os lazeres a possibilidade de caçar, mas isso exige material
e conhecimento; é uma atividade corrente ape-
O maior lazer da população de Vila Verde nas para alguns.
acontece, de uma forma geral, no seio da famí- Segundo o questionário, são poucos os mo-
lia, quando as pessoas assistem juntas à televi- radores que saem do bairro nos finais de sema-
são, em casa, particularmente à noite. Havia um na, seja para visitar parentes ou para ir à praia.
televisor em 70% das casas e pôde-se observar Para alguns, essas saídas são também para traba-
que a televisão não é desligada nem quando há lhar, vendendo comida e outros produtos. A
visitas; às vezes as pessoas vão à casa do vizinho maioria fica no bairro, em casa, e outros vão à
justamente para assistir televisão. O rádio é tam- igreja, o que significa uma mudança na vida coti-
bém muito utilizado e, muitas vezes, no volu- diana. Mesmo a praia, lazer gratuito, não é mui-
me máximo, o que dá ao bairro um aspecto ba- to freqüentada, pois é preciso pagar o transporte
rulhento, mas também alegre. Os programas e isso não é fácil para os habitantes de Vila Verde.
Vida pública e vida cidadã ços. No questionário inicial, foi pedido às pes-
soas que fizessem a ligação entre o serviço pú-
O que significa a vida cidadã para os habi- blico (abastecimento de água, eletricidade, tele-
tantes de Vila Verde? Sair da vida familiar e da fone e coleta de lixo), a empresa que assegura a
vizinhança não é fácil, pois os deslocamentos prestação e também a autoridade pública que é
são difíceis e caros, como visto, e o contato com diretamente responsável (Prefeitura ou Gover-
pessoas de outros meios não é usual. A vida ci- no do Estado). As respostas, para todos os ser-
dadã é aqui compreendida de dois pontos de viços, estavam corretas em cerca de 80% dos
vista: a relação com o Poder Público e a ação questionários –– mesmo considerando-se a difi-
coletiva dos habitantes. culdade de fazer uma relação dupla para cada
Se pensarmos na vida pública como a soma serviço –– e as pessoas sabiam a quem se dirigir
das relações individuais e coletivas com os po- em caso de problema, tanto do ponto de vista
deres públicos, poderemos encontrar contras- da empresa como da autoridade pública.
tes. Os habitantes de Vila Verde têm conheci- Enquanto isso, durante a minha estada no
mento no que diz respeito às funções dos pode- bairro pude constatar que se as pessoas sabem,
40 res públicos, no sentido de prestação de servi- teoricamente, a quem se dirigir, não se relacio-

© Débora Nunes.
Pedagogia da participação

Os bares são locais de encontro, sobretudo nos fins de semana.


nam com as empresas prestadoras como usuári- periferias urbanas, seja por falta de vontade po-
os detentores de direitos. Esse fato faz parte de lítica, seja pela fragilidade institucional ou finan-
uma problemática brasileira mais global, que se ceira da municipalidade.
traduz na ausência do sentimento de cidadania A pergunta feita aos habitantes, quando da
na maioria da população (SANTOS, 1987). Para aplicação do primeiro questionário, sobre seu
compreender isso, é preciso levar também em apoio à ““invasão”” de terrenos no próprio bairro,
conta os impedimentos digamos, psicossociais, revela uma legitimação da Prefeitura, pois 71,1%
que tornam difícil um comportamento mais deles dizem estar ““de acordo, desde que antes
reivindicante, o que se deve à interiorização da se consulte a Prefeitura””; 6%, declaram ““total
estigmatização social, que será analisada em se- acordo””; 17,5%, ““não acham correto””, e 5,3%
guida. Por outro lado, uma demanda mais forte é dos entrevistados respondem que ““não se im-
dirigida às autoridades municipais, que são, por portam””. Mesmo em questões cujo objetivo era
sua vez, mais próximas dos habitantes e mais compreender o potencial de participação, é vi-
freqüentemente responsabilizadas pelos acon- sível que, para as pessoas, a autoridade do Po-
tecimentos na cidade. der Público e sua responsabilidade estavam evi-
Durante algum tempo, a autoridade muni- dentes. Um exemplo –– à questão ““Como será 41
cipal esteve muito presente em Vila Verde, por possível resolver os conflitos de interesse dos
ocasião das obras de construção do bairro. En- habitantes, a exemplo da ordem de prioridades
tretanto, desde que essas foram concluídas, o das intervenções no bairro?””, 77,2% dos entre-
local assumiu o aspecto dos outros bairros po- vistados estimam que habitantes e autoridades
bres de Salvador, onde o Estado é quase ausente devem resolver juntos tais questões; 6,1%, pen-
do ponto de vista material. Não existem servi- sam que os habitantes devem buscar a resolu-
ços nem equipamentos e somente a polícia apa- ção sozinhos, e 16,7 %, que as autoridades de-
rece, de vez em quando. Apesar disso, não se vem resolver sem ouvir a população.

Compreender uma comunidade interagindo com ela


pode dizer que, em Vila Verde e nos demais bair- A ausência da polícia, representante da força
ros pobres, o Estado seja ignorado. legítima do Estado, assim como de quaisquer ins-
O Poder Público é legitimado como auto- tituições públicas no bairro, faz com que as pes-
ridade maior da sociedade (o que Weber chama soas vivam em um mundo onde as leis são pou-
de ““dominação legal””), e isso é verdade para os co presentes. As regras de vida em comum fo-
habitantes de Vila Verde, apesar da fragilidade ram adquiridas com a tradição, mas o fato de as
da Prefeitura. Esses habitantes crêem haver um pessoas terem origens em bairros diversos tor-
interlocutor possante e legítimo, embora, dadas nava maiores as possibilidades de conflitos, pois
suas condições de vida, duvidem –– e existem nada estava ainda consolidado. A classe média tem
razões para isso –– que suas demandas estejam suas instituições intermediárias de organização
sendo levadas em consideração. Tal raciocínio da vida coletiva, que independem da ação do Es-
advém de uma realidade histórica que mostra tado. Um exemplo disso são as regras de condo-
uma falta continuada de interesse em relação às mínio dos edifícios pluridomiciliares, estabeleci-
das em conjunto, a legitimidade do síndico eleito, larmente, vai até o engajamento político. As asso-
que tem autoridade para resolver os conflitos. No ciações de moradores são uma mistura de partici-
caso dos bairros populares, como o Vila Verde, pação dos âmbitos pessoal e coletivo, e cada caso
isso não acontece, e a maioria das pessoas pensa deve, assim, ser estudado mais de perto.
que é necessária a intervenção da polícia para re-
solver qualquer conflito. Tabela 7
A organização coletiva dos habitantes não se Tipos de associação de que participam os
impõe naturalmente e, no caso presente, essa or- habitantes de Vila Verde
ganização teve que ser estimulada externamente.
À pergunta, ““Você, ou qualquer um de sua famí- Esportiva ou religiosa: 14%
lia, já participou de uma associação, grupo, clube Associação de moradores: 8,8%
etc.?””, quase 70% das pessoas responderam ja- Política ou sindical: 6,1%
mais ter participado, assim como sua família, de Outra: 3,5%
organizações coletivas de atividade contínua. Fonte: pesquisa de campo.

42 Tabela 6 Apesar de os habitantes de Vila Verde não


Participação da população de Vila Verde terem experiência com a ação coletiva contínua,
em associações diversas pudemos perceber que uma grande parte deles
já participou de lutas pontuais em torno de ques-
Participação Alguém da Nenhuma tões de melhoria do quadro de vida. Diante da
Pessoal família participa participação
pergunta ““Você já teve uma experiência de luta
14% 16,7% 69,3% coletiva para obter um benefício para todos?””, a
população se repartiu em dois grupos: 50,9%
Fonte: pesquisa de campo. dizem que sim, e 49,1% dizem não. De que tipo
de participação se tratava? Normalmente, se-
No caso dos 30% que declararam já ter tido gundo as respostas dos habitantes, tratava-se de
uma experiência direta ou indireta de participa- uma ação breve, como uma manifestação de rua
ção, pessoal ou familiar, pôde-se verificar que essa para reivindicar uma ação urgente da Prefeitu-
participação se situa mais no âmbito pessoal que ra; uma ação conduzida pela escola do bairro
no coletivo. Por âmbito pessoal entendem-se aqui para ajudar vítimas de uma catástrofe pontual,
Pedagogia da participação

as associações ligadas à religião e ao esporte, que, etc. Esse tipo de ação, normalmente, não tira o
de ordinário, propõem sobretudo atividades de participante pontual de seus hábitos, de seu qua-
realização pessoal, física ou cultural, ou, mesmo, dro mental cotidiano. Trata-se de um espasmo
de caridade. O âmbito coletivo é o dos sindica- de ação coletiva, em que o participante atende
tos, por exemplo, que normalmente propõem ao apelo repentino de um vizinho, manifestan-
atividades envolvendo todo o grupo, como as do-se ou agindo a seguir, mas volta depois ao
reivindicações salariais, e que, no Brasil particu- seu cotidiano.
As relações dos habitantes com pessoas locais em que foram provisoriamente abrigados
de fora do bairro até a sua mudança para o bairro, também esteve
presente mais tarde, por ocasião dos vários acon-
Nos bairros pobres, as pessoas ficam a mai- tecimentos que chamaram a atenção da socie-
or parte do tempo no seu próprio ambiente e dade para os ““desabrigados””. Mais de 70 repor-
suas relações mais freqüentes são com os vizi- tagens de imprensa, falando do bairro e de seus
nhos. No caso de Vila Verde, pela particularida- habitantes, foram publicadas, sem citar os nu-
de da sua criação, seus habitantes estabelece- merosos artigos do período dos desabamentos
ram uma série de relações com pessoas de fora nem os do jornal oficial da Prefeitura.
do bairro. Desenvolveram-se, sobretudo, rela- Afora esses contatos, acima mencionados,
ções funcionais, que foram mais importantes no com os não-residentes que vinham ao bairro,
processo de instalação do bairro. O maior con- verificaram-se contatos pessoais de cada um dos
tato foi estabelecido com os vigias da obra; em habitantes com o exterior, não só intraclasses, fa-
seguida, vinham os funcionários da Prefeitura, miliares ou de amizade, mas também interclasses.
mas também pessoas ligadas à Igreja Católica; Os contatos interclasses são raros quando não têm
por fim os operários e os funcionários das em- um caráter funcional, como os citados anterior- 43
presas de construção, que ficaram no bairro mente, salvo no que se refere à religião. Como
durante certo tempo, e sobretudo, a equipe de visto, o abismo social prevalecente no Brasil faz
pesquisadores ativos. com que existam dois mundos separados: de um
Os habitantes do bairro limítrofe, o Vila lado, a cidade formal, que pertence aos ricos e à
Verde original, surgido de uma invasão de ter- classe média, com seu comércio, serviços e lazeres
reno e chamado pelos seus criadores de reservados, e onde se anda de carro; do outro, a
““Loteamento Vila Verde””, introduziram-se pou- grande cidade intermediária e informal, onde se
co a pouco no novo bairro planejado, denomi- encontram os lugares freqüentados pelos pobres

Compreender uma comunidade interagindo com ela


nado de Conjunto Vila Verde (cf. esclarecimen- –– áreas de comércio popular, agrupamentos de
tos sobre a nomenclatura no Capítulo III). Para camelôs, mercados populares, algumas praças. Aí,
alguns habitantes desse Conjunto, o contato era as pessoas circulam em transportes coletivos. Nas
indesejável porque, segundo eles, não queriam cidades onde não existe transporte público de
se misturar com ““invasores””. As relações entre qualidade ricos e pobres raramente se encontram
as pessoas dos dois bairros se estabeleciam so- lado a lado. Os contatos entre eles são limitados
bretudo nos grupos de samba, que já existiam aos estabelecidos nas relações hierarquizadas de
na antiga invasão e seduziam novos adeptos nos trabalho, na mendicância ou em festividades po-
bares nos fins de semana. O comércio do bairro pulares.
planificado, o Conjunto, mais desenvolvido, Entre as relações de trabalho mais encon-
também atraiu os habitantes do Loteamento. tradas na realidade da experiência, pode-se citar
A imprensa, que acompanhou os habitan- a das empregadas domésticas, numerosas no
tes desde o começo da tragédia, seguindo-os nos bairro. O caso delas é muito particular, pois têm
uma relação em falso com seus patrões: no coti- habitantes, entendendo-se que, em grande me-
diano, as trocas interpessoais são, ao mesmo tem- dida, as mentalidades são tributárias das condi-
po, intensas, pela proximidade, e frágeis, pelo ções de vida. O que aqui se buscou foi compre-
afastamento social e enraizamento da desigual- ender esse conjunto de dados, particularmente
dade nos costumes. Não veremos patrões e em- a potencialidade das pessoas para a participação
pregadas discutindo assuntos culturais, po- nas atividades do método de intervenção, segun-
líticos ou outros, numa troca que possa enri- do suas condições materiais de vida. Para facili-
quecer estas últimas, que têm dificuldade de ter tar a compreensão do tema, os habitantes fo-
acesso às informações, ou que possa aproximar ram classificados em dois pólos, de acordo com
os empregadores de toda uma realidade cultu- o seu engajamento nas atividades: de um lado,
ral que pertence à maioria da população do país localizam-se as pessoas difíceis de mobilizar –– o
(KNAEBEL, 1992). chamado aqui de ““pólo anômico”” 7 –– e do ou-
tro, as pessoas mais propensas à participação,
grupo a que se chamou de ““pólo potencialmen-
te engajado””.
44 II - As mentalidades e os Esses dois pólos indicam tendências, e não
grupos fechados nem determinismos pré-fixa-
comportamentos dos dos. Na verdade, identifica-se a existência de

habitantes variáveis que se reforçam mutuamente e possi-


bilitam a probabilidade de comportamentos ex-
tremos, que não são verificáveis na maioria dos
habitantes. Para levantar as características des-
São apresentados a seguir dados sobre a vi- ses dois pólos potenciais foram utilizadas res-
são de mundo e os comportamentos dos mora- postas de algumas perguntas-chave do questio-
dores do bairro de Vila Verde, sempre partindo nário feito no bairro, com base em hipóteses
do questionário, mas também de observações provenientes do conhecimento empírico. Evi-
pessoais. É preciso destacar que certamente não dentemente os pólos identificados na teoria não
existe homogeneidade de pensamento e de ação podem ser quantificados, pois se trata de pro-
entre os habitantes do bairro; o que se pode di- babilidades aproximativas da realidade dos fa-
zer é que foram identificadas características tos. Dessa forma, são tênues as fronteiras que
Pedagogia da participação

compartilhadas em maior ou menor grau pelos definem os grupos.

7 Fala-se aqui em anomia no sentido usado por Merton, citado no Dictionnaire de la Sociologie
Larousse, ou seja, comportamento do indivíduo quando não vê possibilidades de chegar a um
objetivo definido pessoalmente ou prescrito pela cultura para si mesmo, e então, por uma
impossibilidade concreta, tende a se retirar da vida social e a se ligar menos aos
acontecimentos coletivos.
As questões-chave são: 1) renda; 2) tipo de família e dos próximos; 7) interesse em discutir
emprego ou ocupação; 3) escolaridade; 4) exis- os problemas do bairro; 8) vivência pessoal ou
tência ou não de lembrança sobre fatos impor- familiar de experiências de participação em or-
tantes da vida; 5) grau de interesse pelas ques- ganizações coletivas; 9) existência ou não de um
tões nacionais em maior evidência; 6) existên- sentimento fatalista perante a realidade; 10)
cia de referências –– pessoas admiradas –– fora da pertinência dos raciocínios práticos ante as ques-
tões relativas ao bairro.
Quadro 3
Características dos pólos indicando as tendências à participação ou à recusa
do habitantes às ações coletivas propostas 8
Pólo ““potencialmente anômico””, Pólo ““potencialmente engajado””
Os mais pobres (salário menor que um SM –– são 15,8% Os menos pobres (salário maior que três SM - são 10,2% do
do total dos habitantes do bairro) total dos habitantes do bairro)
Os desempregados de longa data (35%) Os que possuem emprego fixo (26,5% do total)
Os analfabetos funcionais (21,9%) Os que freqüentaram a escola em torno de oito anos (30,7%);
Os que não se lembram de nada do que marcou suas Os que se lembram de alguma coisa pessoal que marcou suas 45
vidas (27,2%) vidas (particularmente a tragédia dos desabamentos de que
foram vítimas), (44,7%) ;
Os que não podem citar de memória uma notícia da Os que podem citar de memória uma notícia da atualidade
atualidade nacional que teve uma repercussão em suas nacional que teve uma repercussão em suas vidas (31,6%)
vidas (45,6%)
Os que não admiram ninguém em particular (31,6%) Os que admiram alguém pelos seus atos perante o coletivo
(artistas, esportistas, políticos, religiosos, etc.) (29,8%)
Os que não discutem jamais os problemas do bairro Os que discutem os problemas do bairro fora do contexto
(25,4%) familiar (47,4%)

Compreender uma comunidade interagindo com ela


Os que nunca tiveram experiências participativas Os que já tiveram (ou alguém de sua família) experiências
(69,3%) participativas (30,7%)
Os que pensam que o destino já está escrito e que não Os que pensam que o destino será traçado pelos próprios
vale mais a pena fazer o que quer que seja para mudar a homens (14,9%)
realidade (21,9%)
Os que não têm nenhuma idéia da ordem de grandeza Os que têm alguma idéia da ordem de grandeza do preço de sua
do preço de sua nova casa (11,4%) nova casa (40,4%)
Os que possuem uma vaga idéia do número de Os que possuem uma idéia próxima do número de habitantes do
habitantes do bairro (35,1%) bairro (32,5%)
Fonte: elaboração da autora.

8 Para que o leitor possa compreender a amplitude de cada grupo de habitantes


referente a cada questão-chave é dada a porcentagem destes em relação ao total.
Esses números são dados a título indicativo já que se consideram esses grupos
como uma potencialidade e não como um fato concreto, mensurável.
Para sermos coerentes com a complexidade
© Débora Nunes.
da realidade, devemos dizer que se a experiência
de campo autoriza a falar da probabilidade de
encontrar em um pólo pessoas engajadas e, no
outro, pessoas ““anômicas””, os casos particulares
podem mostrar o oposto. As histórias pessoais
de vida têm uma influência no comportamento
das pessoas diante do coletivo que às vezes ultra-
passa as dificuldades da vida material. Por exem-
plo, podem-se observar líderes analfabetos, as-
sim como líderes desempregados. Por outro lado,
foi possível notar várias pessoas cujas caracterís-
ticas as identificariam como ““potencialmente
engajadas”” e que não se interessam em nenhuma
medida pelas questões coletivas.
46
***

Aplicação do questionário de campo. Depois desse quadro global dos habitantes


do bairro no que diz respeito à sua potencialidade
Essas questões foram formuladas com base de participação, voltemos aos aspectos concretos
nas observações de campo e na literatura sobre a de suas mentalidades e comportamentos. As
pobreza e os movimentos sociais em Salvador, questões centrais tratadas são: os horizontes de
sendo esta última, na verdade, muito escassa. Para vida e de interesse das pessoas, restritos às ques-
que se compreenda a pertinência dessa escolha, tões pessoais, familiares e imediatas; a estigma-
são apresentadas as observações, feitas posterior- tização social dos pobres; a interiorização dessa
mente, relativas às pessoas efetivamente engajadas estigmatização, que está na origem de uma
e àquelas que se mantiveram completamente autopercepção negativa como grupo e um alto
afastadas das ações realizadas no bairro. limiar de resignação diante das dificuldades; a falta
Se o primeiro pólo pode ser encontrado ale- de experiência coletiva e a busca de líderes fortes
Pedagogia da participação

atoriamente no bairro, o segundo pólo agrega e ““salvadores”” (o que existe, de forma variada, na
as pessoas com quem convivi freqüentemente tradição das sociedades que possuem um Poder
durante a experiência-piloto. De uma maneira Público frágil). Deve-se dizer, todavia, que vários
geral, são pessoas que participaram das ativida- traços que serão propostos, a seguir, como carac-
des pedagógicas e das ações coletivas e sobre as terísticos da pobreza (a partir do exemplo de Vila
quais se vai falar mais detalhadamente no quar- Verde), são sobretudo questões humanas, acen-
to capítulo deste livro. tuadas pela pobreza.
Horizontes de vida e de interesses conversas tidas com os habitantes durante a ex-
dos habitantes periência-piloto.
Essas respostas são próximas do que foi obser-
As respostas dos habitantes para algumas vado nas conversas no bairro. Os assuntos de con-
questões do questionário inicial já mostram versa das mulheres, por exemplo, são mais ligados
que seu interesse majoritário é ligado às ques- à vida privada, aos problemas de família e da casa, às
tões próximas, imediatas. Gramsci falava de crianças, a seus amores; elas falam também de notí-
uma ““visão de mundo interior””, que jamais ul- cias da vizinhança e do que aconteceu nas novelas.
trapassa os muros da casa (GRAMSCI, 1966). Os homens discutem nos bares e seus assuntos são
Esse conceito certamente pode ser utilizado mais vastos, pois eles falam também de política,
para falar dos pobres, mas também de outras embora o assunto preferido seja o trabalho (ou an-
categorias sociais. Essas respostas serão agora tes, sua falta) e o futebol. A religião também é um
apresentadas para, em seguida, serem discuti- tema muito debatido pelos homens e mulheres,
das, com base também em situações vividas e quando eles são ligados às religiões pentecostais.

47
Tabela 8
““Quais são seus três primeiros assuntos de preocupações?””
Citada em Citada em Citada em
Preocupação
primeiro lugar segundo lugar terceiro lugar
A família 50,0% —— ——
A sobrevivência 35,1% 35,1% ——
Os problemas mundiais 8,8% 7,0% 6,1%

Compreender uma comunidade interagindo com ela


Os problemas do Brasil 0,9% 14,0% 1,8%
O futuro dos filhos 2,6% 31,6% 35,1%
O bairro 0,9% 2,6% 42,1%
Nada 1,8% 9,6% 14,9%
Fonte: pesquisa de campo.

Tabela 9
““Qual é o grau do seu interesse pelas informações televisivas?””
Assunto Muito Pouco Mais ou menos
Vizinhança e Bairro 64,9% 12,3% 22,8%
Salvador e Bahia 53,5% 13,2% 33,3%
Brasil e o mundo 54,4% 14,9% 30,7%
Fonte: pesquisa de campo.
É preciso dizer também que a idéia de um estreito são árduas, e isso é um dado a mais da
horizonte de interesse restrito e imediato não opressão. Pude observar em campo que a vida
implica um julgamento negativo sobre a capaci- material leva à limitação de interesses, que as
dade de raciocínio ou sobre uma ““banalidade”” preocupações cotidianas ocupam a maior parte
deste. A maneira como as pessoas pensam mos- do tempo das pessoas. Todavia, essa não é uma
tra-se perfeitamente lógica e em acordo com suas situação determinada somente pelas condições
necessidades, observando-se que suas estratégi- econômicas, vários outros fatores aí interferem.
as de vida são perfeitamente inteligentes e adap- Dentre as condições objetivas que consti-
tadas. Trata-se de uma espécie de resignação no tuem esse estado de coisas, podemos citar: 1)
sentido etimológico do termo, em latim, re- preocupações com a sobrevivência, que absor-
signare, que quer dizer ““dar um outro sentido”” ou vem o indivíduo; 2) fraca escolaridade; 3) isola-
““re-interpretar”” os dados da vida de uma maneira mento físico e social e falta de informações; 4)
adaptada às possibilidades de intervenção de cada sentimento de impotência perante as questões
um. Fala-se de horizontes de interesse restrito que ultrapassam o seu cotidiano.
do ponto de vista que nos interessa aqui: a cida- Vejamos agora cada um desses dados cons-
48 dania, o compromisso histórico perante a socie- tituintes do modo de vida e que condicionam
dade, que nem todos se sentem capazes de esta- esse horizonte de interesse restrito.
belecer.
A vontade de alargar os horizontes de vida
é aliás evidente em várias situações. Por exem- As preocupações com a sobrevivência
plo, uma das respostas à pergunta ““sobre o que ocupam o tempo e o espírito das pessoas
você gostaria de discutir””, foi ““sobre tudo que e condicionam seu olhar sobre a vida
me faça aprender mais””. As respostas à questão
referente à Tabela 9 mostram que a maioria das Como vimos, o cotidiano dos pobres é mar-
pessoas se interessa muito por todos os assun- cado pela precariedade, em diferentes graus,
tos apresentados. Quanto ao ““apetite educativo””, certamente, mas também por uma luta pela so-
do qual fala Paulo Freire, pude também brevivência ou, no melhor dos casos, pela bus-
constatá-lo fora das atividades da experiência- ca de uma vida digna. Com relação ao dado
piloto e durante os cursos da escola comunitá- ““tempo”” no horizonte de interesse das pessoas,
ria. O fato de as pessoas adorarem as novelas é percebe-se que a fixação em um horizonte ime-
Pedagogia da participação

também revelador de uma maneira de fugir des- diato está vinculada às situações de proviso-
se universo restrito. riedade que são constantes, causadas pela inter-
Do que foi observado em campo, deduz-se mitência do trabalho, pela fragilidade dos casa-
que, mais do que uma ““cultura da pobreza””, mentos, etc. Segundo o questionário aplicado,
defendida por Lewis (1972) existe uma ““cultu- 57% das pessoas do Vila Verde têm um hori-
ra do oprimido””, como diria Paulo Freire. As zonte estreito (36,8% no dia de hoje; 20,2% no
condições de vida que levam a esse horizonte ano em questão) e 43% pensam no futuro a
médio ou longo prazo. Isso quer dizer que é contínuo para adquirir o saber, mesmo o mais sim-
mais natural pensar no dia seguinte do que fa- ples, tem como efeito o desconhecimento dos
zer planos de longo prazo, pois, diferentemen- mecanismos de ““aprender a aprender””. Além dis-
te do que acontece nas classes sociais mais abas- so, a disciplina, o tempo dedicado ao conheci-
tadas, o futuro para os pobres implica freqüente- mento e toda a dinâmica do que se passa em uma
mente um maior número de fatores impon- sala de aula configuram também a visão do mun-
deráveis. Assim, o horizonte de interesse restri- do e o comportamento. A leitura, por exemplo, é
to no tempo seria uma estratégia de adaptação um hábito que adquirimos ou não; a curiosidade
perfeitamente racional. também pode ser mais ou menos favorecida pela
Assim, não poderíamos mais dizer como vida em sociedade.
Beaumarchais, em seu Barbeiro de Sevilha, que No caso dos analfabetos, não se trata somente
só os indivíduos sem nenhum problema pessoal da ignorância de uma técnica, adquirida para uma
poderiam se ocupar dos problemas dos outros. função utilitária –– ler e escrever. O desconheci-
Isso pode ser verdadeiro em vários casos, mas mento dessas técnicas tem repercussões cogniti-
exemplos contrários foram observados no bair- vas importantes, no sentido da ““leitura da lingua-
ro. Às vezes, ocupar-se dos outros é uma ma- gem como leitura do mundo”” (MACEDO e 49
neira de dar sentido à própria vida. Certamen- FREIRE, 1990). Para esses autores, não é possí-
te, tudo depende do indivíduo, de sua história, vel passar à leitura da palavra sem antes ter pas-
de seus valores. Para simplificar, digamos que sado por uma decifração da realidade. Assim,
condições materiais precárias constituem uma dominar os mecanismos de ler e escrever é um
condição restritiva à construção de um horizonte ““aspecto essencial do que significa ser um agente
de interesse vasto e de longo prazo. individual e socialmente constituído”” (GI-
ROUX, 1990).
Além do horizonte restrito de interesse, ve-

Compreender uma comunidade interagindo com ela


A baixa escolaridade tem como efeito um rificou-se uma dificuldade para compreender as
difícil acesso à cultura escrita e dificulta o coisas em suas relações de causa e efeito. É o que
conhecimento aprofundado da realidade Paulo Freire chamou de ““consciência intransitiva””
ou ingênua, em que o indivíduo apenas percebe
Não se falará aqui das conseqüências nefas- o tempo passar, sem conceber o significado dra-
tas da fraca escolaridade no que diz respeito à mático dessa passagem, mesmo quando sofre suas
cultura, pois são muito evidentes. De todo modo, conseqüências. Assim, é freqüente que as pessoas
é preciso lembrar que para o indivíduo pouco não percebam os mecanismos estruturais que
escolarizado a percepção do mundo é restrita à condicionam suas condições de vida ou que dêem
cultura oral do meio e da televisão ou do rádio. explicações superficiais e mesmo fantasiosas para
Entretanto, é preciso destacar um aspecto me- os fatos da vida corrente.
nos discutido, que é a vivência do ambiente da No questionário inicial, apresentamos três
escola. Não ter feito um esforço consciente e pares de bairros, sendo que apenas um desses
era composto de bairros com diferenças sociais ros pobres –– principalmente os que não traba-
bem marcantes, e perguntamos qual era o par lham na cidade –– vivem como se morassem em
menos homogêneo. Se a maior parte das pessoas vilarejos, imersos na limitação e previsibilidade
deu a resposta correta, houve também 35% de que isso significa.
respostas erradas, demonstrando a dificuldade A condição de isolamento faz com que haja
de alguns em identificar as desigualdades urba- no bairro características próximas daquelas das
nas aparentemente evidentes. No questionário instituições ““totais”” –– asilos, conventos, etc. ––
final, recolocamos a pergunta, mas pedindo às onde a continuidade de um só papel social e a
pessoas para explicar a diferença. Um entrevis- impossibilidade de variar os contatos levam a
tado fez a seguinte observação: ““Barra e uma certa saturação (GOFFMAN, 1968). Os
Malvinas? Nada a ver. Na Barra as pessoas são contatos familiares e de vizinhança imediata
muitas civilizadas, o aperfeiçoamento do bairro também são muito próximos, devido às condi-
se dá em ordem. Malvinas é um bairro desorga- ções materiais do habitat, pequenas residências
nizado, as pessoas não sabem viver juntas””. A com alta densidade. Essa possibilidade de variar
desigualdade das condições de infra-estrutura e de papel social –– que é freqüente na elite, qual-
50 do conforto das casas é vista como desencadeada quer um podendo ser, ao mesmo tempo, pro-
pelas qualidades morais dos habitantes e não fissional, mãe/pai de família, membro de uma
pelas condições estruturais da sociedade. É im- associação, jogador de vôlei em uma equipe, etc.
portante guardar na memória esse exemplo, pois –– falta na vida dos pobres e pode acarretar certa
a lógica da reposta poderá ser compreendida agressividade. Para compreender esse dado não
melhor mais tarde quando trataremos da é preciso comparar mecanicamente as necessi-
estigmatização dos pobres. dades das pessoas que sempre tiveram papéis al-
ternativos a desempenhar com aquelas das pes-
soas que tiveram poucos papéis em toda sua vida.
O isolamento físico e social e a falta de Estes últimos talvez tenham construído alter-
informações impõem uma exclusão nativas particulares, como ter uma cultura de
sociocultural convívio diferente daquela das classes ricas.
Um outro aspecto da questão aqui tratada é
O Vila Verde, como outros bairros pobres, o isolamento social vis à vis das pessoas que po-
é isolado da cidade e as condições econômicas deriam aumentar o horizonte de interesse dos
Pedagogia da participação

condicionam as pessoas a permanecer nele por habitantes graças a conversas e opiniões dife-
muito tempo, sobretudo os homens e mulhe- rentes, enriquecedoras. Desse ponto de vista, há
res desempregados. Esse isolamento configura- uma certa homogeneidade no bairro e, assim,
se numa barreira a qualquer novidade e ao aca- são menores as possibilidades de surgirem no-
so, que são típicos da vida nos grandes centros vas questões. Uma conversa sobre as novidades
urbanos e, assim, usuais para os que aí transi- da informática ou sobre o cenário cultural, por
tam. Dessa forma, muitos habitantes dos bair- exemplo, é inacessível aos pobres, pois eles não
têm, geralmente, relações com pessoas que tra- lhes permita fugir dos próprios problemas. Isso
balham nessas áreas. é confirmado pelo grande interesse dado às no-
A falta de conhecimentos variados e velas, que são dramáticas, mas onde o toque de
aprofundados é uma constante na vida dos po- humor e romance é sempre presente, podendo
bres, o que se deve não somente à baixa escola- dar ainda a ilusão, àqueles que as acompanham,
ridade que acabamos de mencionar, mas tam- de fazer parte do mundo das elites que elas des-
bém às condições econômicas das pessoas. As- crevem.
sim, é difícil o acesso aos produ-
tos culturais de qualidade, pois é Tabela 10
preciso pagar por eles; mesmo Em suas fontes de informação (TV sobretudo), quais são os
quando se trata de programações assuntos que mais lhe interessam (em porcentagem)?
gratuitas, o custo do transporte é
um impedimento. Existem ainda Em 1o Em 2o Em 3o Em 4o Sem
Programa
lugar lugar lugar lugar resposta
as restrições materiais, mesmo
Esporte 18,4 17,5 17,5 30,7 15,8
para se ter acesso à informação,
Polícia 12,3 20,2 29,8 18,4 19,3
às vezes superficial, da TV e dos 51
Noticiários 44,7 21,1 7,9 13,2 13,2
rádios. Esses veículos de comu- Novelas/Filmes 25,4 22,8 23,7 15,8 12,3
nicação estão presentes (81,6 %
Fonte: pesquisa de campo.
das casas possuem um aparelho
de rádio e 69,3 % uma televisão),
mas 30% das casas não possuem um aparelho Com mais de 66% de respostas indicando o
televisor. Diferentemente de noutros contextos, primeiro e o segundo lugares, os habitantes de
pode-se dizer com certeza que, no caso brasi- Vila Verde mostram seu apego, como o resto do
leiro, não possuir uma televisão não é uma es- Brasil, ao jornal das 20:00h. A participação nessa

Compreender uma comunidade interagindo com ela


colha das famílias, pois, assim que há uma ““grande missa”” é, além da principal forma de in-
melhoria nas condições de salário (ou de crédi- formação, um laço importante que liga cotidia-
to) populares, a TV é um dos primeiros bens namente os habitantes do Vila Verde a todos os
adquiridos. outros brasileiros, ricos ou pobres. É natural que
A escolha da programação da TV influi so- a população pobre, particularmente na Bahia, te-
bre o nível de qualidade das informações rece- nha fontes próprias de informação oral, especial-
bidas. Para compreender não só essa escolha mente aquela ligada à cultura afro-brasileira –– ao
como outras condutas é preciso levar em consi- candomblé e às canções, por exemplo, que são
deração o fator psicológico, pois é necessária muito ricas. Entretanto, tratamos aqui de uma
uma energia particular para se sobreviver sem amplitude cívica, e se essa cultura de fundo tem
se deixar abater pelas condições de pobreza. As sua função importante em termo de identidades,
preocupações com a sobrevivência levam as pes- ela não consegue constituir por si mesma uma
soas a procurar uma informação mais leve, que possibilidade de exercício de cidadania.
O sentimento de impotência perante as III –– A estigmatização dos
questões que ultrapassam o cotidiano se
reflete no horizonte de interesse pessoal pobres
Esta última condicionante do horizonte res-
trito de interesse já se aproxima do tema da vida
Serão tratados agora alguns aspectos antro-
subjetiva das pessoas, que será discutido a se-
pológicos da pobreza, que estão na base das di-
guir. A falta de interesse pelas questões mais
ficuldades do trabalho coletivo. Para compre-
vastas vem também de um sentimento de im-
ender o que significa ser pobre recorremos aos
potência, o de não poder intervir em outras ins-
estudos de Erving Goffman sobre os deficien-
tâncias além do domínio privado. Por exemplo,
tes físicos, considerando as similitudes na
quando perguntados a respeito dos projetos para
vivência das duas situações concretas. Segundo
o futuro, 95,6% deles tinham planos para suas
GOFFMAN (1975), a palavra estigma tem uma
casas (aumento, melhoria); apenas 25,1% refe-
origem grega e se referia, na antiguidade, a um
riram projetos relacionados ao bairro, e 24,6%,
52 para sua rua.
sinal corporal particular, através do qual se que-
ria deixar evidente algo de mal ou de extraordi-
O sentimento de não ter controle sobre seu
nário sobre o estatuto moral de alguém. O ter-
destino, exceto no que concerne a questões
mo será utilizado no sentido atual mais corren-
muito pessoais, faz com que o amor e o sexo
te, para se referir à identificação condenatória a
ocupem o centro de numerosas discussões no
priori de uma pessoa ou de um grupo (Dicioná-
meio popular. Mas isso também é uma caracte-
rio Aurélio).
rística de outros meios sociais, em que a dimen-
Dizer que os pobres são estigmatizados na
são coletiva da vida é menos exercida ou quan-
sociedade capitalista não é uma novidade, vári-
do não há outras possibilidades de realização
os autores já o fizeram antes. Mas se os pobres
pessoal. Como foi dito, trata-se, novamente, de
são estigmatizados, do que são eles acusados?
uma arrumação lógica para se sair da impotên-
De serem pobres e potencialmente perigosos.
cia: o indivíduo restringe seus interesses aos
A ideologia difundida por muito tempo em nos-
âmbitos sobre os quais ele tem algum controle,
sas sociedades –– apesar das resistências a tal no-
como, por exemplo, sua vida pessoal.
ção ao longo da história e de mudanças recente
Pedagogia da participação

na abordagem do problema –– é de que os po-


bres são pobres por sua própria culpa, por sua
ignorância, por sua incapacidade, por sua falta
de esforço para progredir ou mesmo pela cor
de sua pele. O problema social da pobreza é
pouco reconhecido e é considerado como de
responsabilidade individual. A identificação
condenatória dos pobres como ““violentos”” tem vador. O segundo sinal pode ser então o das rou-
uma história própria, da qual essa identificação pas, seja porque são muito utilizadas e perde-
com as ““classes perigosas”” na Paris do século XIX ram a cor e a forma, seja porque não estão na
é apenas uma parte (CHEVALIER, 1978). moda ou porque o corte, o acabamento ou o
Para compreender a estigmatização dos po- material ““denunciam”” que são de baixo preço,
bres na sociedade brasileira, é necessário lem- adquiridas em lojas populares ou camelôs. O
brar alguns dados históricos, que são também terceiro sinal é a saúde: a pobreza se lê nos cor-
verificados em outros países. pos, na pele e no rosto. Os pobres têm mais den-
n A escravidão, que durou 400 anos e cuja tes cariados ou ausentes e lesões visíveis na pele,
extinção, há cerca de 115 anos, não foi suficien- e apresentam, em vários casos, magreza ou obe-
te para extinguir sua influência, suas formas sidade devido a uma má alimentação.
persistindo ainda em algumas profissões. Esse Outros sinais podem ser perceptíveis –– an-
passado escravagista e a concepção religiosa do tes de tudo, o lugar onde as pessoas se encon-
trabalho como um castigo originaram o despre- tram, pois a cidade é segregada e os pobres não
zo da elite pelo trabalho manual repetitivo –– e, estão presentes em todos os seus espaços. Em
consequentemente, pelas pessoas que o exercem seguida, o modo de falar, as falhas nas concor- 53
–– o qual ainda subsiste (DA MATTA, 1986). dâncias verbais e nominais e o desconhecimen-
n A inexistência de uma consciência repu- to de coisas simples, como o funcionamento de
blicana e a ausência de um serviço público fun- um telefone celular ou outro objeto caro. É bem
cional que fariam com que a pobreza fosse vista evidente que todas essas características não são
como um problema de sociedade a ser tratado encontradas nem em todas as pessoas nem em
estruturalmente pelas instituições responsáveis, todos os grupos. Trata-se aqui de um esforço
sob a responsabilidade de toda a sociedade para tentar deixar claros na imaginação do lei-
(LEEDS e LEEDS, 1978). A herança de um es- tor sinais que ele, com certeza, já tinha percebi-

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tado patrimonialista que cria e mantém na de- do, mas talvez sem inventariá-los.
pendência da boa vontade dos ricos e podero- A estigmatização é também uma relação so-
sos, políticos, administradores, ““coronéis””, etc., cial. Goffman comenta que ““um atributo que
os desprovidos (FAORO, 1987). estigmatiza alguém pode confirmar normalida-
n As idéias religiosas, que fazem aceitar a de em outro”” e, desta forma, observa-se que,
pobreza como um sofrimento que será recom- freqüentemente, aquele que estigmatiza quer
pensado no além. manter o afastamento entre si mesmo e o outro
Como na Grécia, a estigmatização começa para se tranqüilizar a respeito de sua ““normali-
pelo visual. O primeiro sinal visível da condi- dade””. No caso da estigmatização da sociedade
ção de pobreza é a cor da pele e os cabelos brasileira relativamente aos pobres existe o dese-
cacheados. Se no Brasil as estatísticas mostram jo da elite de não se confundir com esses e de
que os negros e mestiços são mais pobres que consolidar a diferença de classe. O exemplo da
os outros, isso é ainda mais verdadeiro em Sal- moda ilustra bem os mecanismos de estigmati-
zação, principalmente porque se trata de um exem- nos dois tipos de reação. De um lado, há uma
plo visual por excelência. Zaluar (1985) refere-se interiorização do estigma que parece ser larga-
à rapidez com a qual as coisas ““da moda”” ficam mente difundida e que se poderia classificar
demodées, para não serem imitadas a tempo, e ex- como uma reação conformista ao modelo social.
plica que se trata de um recurso encontrado pela De outro lado, existe uma consciência de que
elite para ““evitar esta insuportável confusão social se é posto à margem da sociedade, ou seja, há
e manter os meios simbólicos de continuar a mar- uma reação mais crítica, que pode desencadear
car as diferenças de classe””. reações de resistência, como a luta política
O comportamento da elite perante os po- (CHAUI, 1986), ou de revolta, como a margina-
bres, ou dos ““normais”” perante os ““estigmatiza- lidade (ZALUAR, 1985). Essas reações não são
dos”” decorre de um mecanismo descrito por
excludentes.
Goffman:
Para falar das atitudes menos conformistas
““Por definição, está claro que acreditamos que al-
à condição de pobre, as análises dos pesquisa-
guém que tem um estigma não é completamente hu-
dores que estudaram a pobreza e a cultura po-
mano (...). Nós construímos uma teoria do estigma,
pular parecem mais pertinentes que as de
uma ideologia para explicar sua inferioridade e dar conta
54 do perigo que ele representa, racionalizando assim al-
Goffman, pela origem da estigmatização. O es-
gumas vezes uma animosidade baseada em outras di- tigmatizado por deficiência física deve enfren-
ferenças, como as de classe”” (op. cit.). tar um tipo de má sorte ““da natureza””, pela qual
Essa animosidade ou incômodo social é ninguém pode reprová-lo, enquanto os pobres
perceptível em várias situações; uma estratégia seriam vítimas de uma falta de sorte social, pela
para evitar o incômodo pode ser ignorar os po- qual a sociedade poderia ser reprovada. Entre-
bres ou se afastar deles. O exemplo no espaço tanto, como visto, não é freqüente que os po-
público é a estratégia de evitar o contato, quan- bres estabeleçam uma relação de causa e efeito
do a pessoa fecha os vidros do carro para não tão clara entre sua pobreza e a estrutura econô-
ser abordada ou evita alguns locais da cidade mica e social do contexto em que vivem. As-
onde os encontros interclasse seriam mais pro- sim, se se pode dizer que as estratégias dos po-
váveis. É possível que, em alguns casos, esse bres giram em torno de dois pólos, resistência e
comportamento dos ““normais”” seja decorrente conformismo, a análise de Goffman mostra-se
do medo (dada a associação estabelecida entre pertinente apenas no segundo caso.
pobre e malfeitor) ou mesmo de um certo sen- A interiorização do estigma foi abordada por
timento de culpa.
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Paulo Freire, quando ele diz que os oprimidos,


““de tanto escutar que eles são incapazes, que não
A interiorização do estigma servem pra nada, que não sabem de nada, que
são doentes, preguiçosos, que não produzem
Como reagem os pobres à sua estigmati- bem, acabam por se convencer de sua ‘‘incapa-
zação? Segundo a literatura e a experiência de cidade’’”” (FREIRE, 1982). Goffman vai no mes-
campo, é possível dizer que existem pelo me- mo sentido quando afirma que as prescrições
vindas da sociedade inteira, que o estigmatizado A correção de maneira indireta pode ser
incorporou, encontrada no esforço para se sair da dificulda-
o deixam intimamente suscetível ao que os outros de material e do estigma. Exemplos: a opção pelo
vêem como seu defeito e isso o leva, inevitavelmente, crime, com as compensações materiais possíveis,
ainda que somente por alguns momentos, a concordar assim como a opção pelo engajamento em al-
com o fato de que, afinal de contas, ele ficou abaixo do guma forma de busca de melhoria da vida cole-
que deveria estar (GOFFMAN, 1975). tiva, atitude que é reforçada pelo prestígio mo-
As estratéias que provêm da interiorização ral que pode acarretar. A crença numa bênção
do estigma podem ser variadas. No pólo do con- secreta como pobres é encorajada pelas con-
formismo, o pobre tenta retirar alguns benefí- vicções religiosas, tais como as do cristianismo,
cios da sua condição. Goffman nomeia essa ati- segundo o qual ““é mais fácil para um camelo
tude de ““aceitação”” –– o estigmatizado tenta des- passar pelo buraco de uma agulha do que para
cobrir como pode obter ““o respeito e a conside- um rico entrar no reino dos céus””. É o caso tam-
ração”” que não obtém naturalmente. A bém das igrejas pentecostais que insistem na
““vitimização”” e a ““compensação por gan- existência de um povo eleito –– seus crentes, os
hos secundários”” são algumas das tendências ““irmãos de fé”” –– merecedor da confiança e do 55
decorrentes da aceitação. auxílio mútuo para progredir em todos os cam-
A vitimização é uma atitude mais freqüen-
pos, inclusive na política.
te e encontrada na estratégia da mendicância.
Um outro aspecto do problema da interiori-
Pôde-se observar, em vários exemplos, no bair-
zação da estigmatização pelos pobres é a exis-
ro, quando os habitantes, diante de alguém visi-
tência de um ““limiar de resignação”” ao sofri-
velmente não-pobre (de mim, por exemplo, mas
mento –– definição de um limite de miséria que
também de outros), desenvolviam o discurso da
as pessoas podem suportar –– muito alto, se com-
vítima, como um mendigo. Do ponto de vista
parado ao de outras categorias sociais mais

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da cidadania, a ““vitimização”” é uma estratégia
favorecidas. Assim, os equipamentos públicos,
perversa, pois leva a sociedade à comiseração e
como as escolas, as creches e, principalmente,
à caridade para com os pobres, o que reforça os
mecanismos estruturais de ausência de direitos. os lazeres públicos, são ainda considerados como
Segundo Goffman, a compensação por um verdadeiro luxo nos bairros mais pobres e
ganhos secundários é uma outra forma dos as pessoas dificilmente se mobilizam para
estigmatizados se adaptarem à sua condição e reivindicá-los. Todavia, os problemas situados
ocorre, seja através de uma correção de ma- antes desse ““limiar de resignação””, como o aces-
neira indireta, seja através da crença em uma so a um alojamento ou à água, provocam nor-
benção secreta. Em campo, observamos que malmente a revolta. As invasões de terreno são
a busca dessas compensações é menos freqüen- um exemplo. Salvador e várias outras cidades
te do que a vitimização, provavelmente porque brasileiras têm uma boa parte de sua superfície
elas estão menos de acordo com a expectativa ocupada pelos bairros de invasão (MALHEI-
da sociedade relativamente aos pobres. ROS, 1990; GORDILHO SOUZA, 1990) e isso
ocorre apesar da dureza das leis que protegem a consciência de classe de que fala Thompson
propriedade privada e das perseguições que se (1988). Entretanto, para que esse processo de
seguem a essas ações. No próprio bairro de Vila ““conscientização””, como diria Paulo Freire, pos-
Verde, cuja população era recém-chegada e pou- sa acontecer, seria necessário ultrapassar todas as
co organizada, pôde-se encontrar exemplos que conseqüências sociais da interiorização do estig-
permitem constatar os limites desse limiar de ma, que discutiremos a seguir.
resignação. Assim, quando houve uma interrup-
ção no fornecimento de água, por exemplo, um
Conseqüências da interiorização
motim se produziu no bairro. O primeiro ques-
tionário nos mostra que apenas 17,5% dos habi- do estigma
tantes se colocam contra a ocupação de terrenos
A auto-imagem negativa do grupo
vazios em seu loteamento, o que significa uma
aceitação das invasões. Como observou um en- A interiorização do estigma atinge tanto os
trevistado, ““cada família tem direito a um abrigo””. indivíduos pessoalmente como o grupo do qual
O sentimento que pode desencadear rea- o estigmatizado faz parte. O comportamento do
56 ções dos pobres perante a dureza de suas condi- estigmatizado perante os outros ““estigmatizá-
ções de vida é a percepção do lugar deles no sis- veis”” é muito ambíguo, pois estes últimos são,
tema a que pertencem. Numerosas canções po- ao mesmo tempo, companheiros de infortúnio
pulares simbolizam, por exemplo, os valores e aqueles que confirmam a existência dos seus
correntes e às vezes não-explícitos na socieda- ““defeitos””. Na interpretação de Goffman: ““Seu
de. Uma canção antiga e muito famosa, grupo real é, na verdade, a categoria que pode
regravada com sucesso pelo cantor Gilberto Gil, servir ao seu descrédito””. Paulo Freire faz a
exprime um sentimento popular diante da po- mesma observação: ““O comportamento do opri-
breza: mido é um comportamento prescrito””, pois os
oprimidos ““hospedam neles o opressor”” e ten-
““Madalena chorava dem a agir da mesma forma quando estão em
sua mãe consolava posição de fazê-lo. ““Os camponeses que, pro-
dizendo assim: movidos a feitores, não se tornam opressores
–– Pobre não tem valor tão duros quanto seus patrões são raros””
pobre é sofredor (FREIRE, 1982).
Pedagogia da participação

e quem ajuda é o Senhor do Bonfim”” As respostas dos entrevistados do bairro Vila


Verde sobre as pessoas admiradas por eles são
É a partir dessa percepção dos pobres do seu reveladoras do estigma de raça e classe social que
estatuto na sociedade que pode nascer uma cons- existe entre os próprios pobres e da ambivalência
ciência dos fatores estruturais que produzem sua que eles carregam. Quando perguntamos ““Qual
condição de oprimidos (ou de explorados). Ela é a pessoa que você mais admira?””, as respostas,
pode ser o ponto de partida da formação de uma conforme visto, freqüentemente dizem respei-
to aos artistas, mas são de dois tipos. Quando de depreciativa de um mestiço perante um outro
falam de uma pessoa de cor branca, dizem ““Eu mestiço de pele mais escura que a sua.
admiro Xuxa porque ela é fofa””, ““Admiro Tarcísio Meira A outra face do mecanismo de identifica-
porque ele faz bem seu papel na TV”” ou ““Admiro o ção com os poderosos é a vontade de se distin-
Celulari porque ele é maravilhoso””. Entretanto, se guir do que eles acreditam ser a verdade sobre
falam de um negro ou de um mestiço, como seus pares. Nos primeiros contatos com os ha-
Mike Tyson, Martinho da Vila ou Djavan, eles bitantes do bairro, por exemplo, quando eles
não fazem observações diretas sobre seu traba- ainda falavam muito do período em que fica-
lho –– ou as fazem depois –– mas dizem que essas ram nos abrigos provisórios –– onde houve vári-
pessoas são ““esforçadas”” ou que não têm ““bes- os episódios de vandalismo, roubos, etc. –– as
teiras””. Por exemplo, ““Eu admiro Lazzo (cantor pessoas diziam: ““Nós somos pobres, mas cada um
e compositor baiano, negro) porque ele é humilde, tem sua moral””, ou ““Estávamos todos lá, mas cada
ele veio ‘‘de baixo’’, ele ficou famoso e apesar disso ele um ao seu modo de agir””, ou, ainda, ““nós somos po-
não tem ‘‘besteiras’’””. bres, mas não somos todos marginais””.
A interiorização do estigma pode criar um Esse fenômeno foi observado também atra-
desprezo por si e pelo grupo (GOFFMAN, vés das modificações externas que foram feitas 57
1975; FREIRE, 1982). Uma das reações possí- nas casas, desde a chegada das pessoas no bairro.
veis é a de querer se identificar com os ““ganha- Parece que, em muitos casos, o fato de embelezar
dores”” da sociedade. Paulo Freire diz que o ide- as casas servia para se diferenciar da pobreza pre-
al dos oprimidos ““(...) é realmente serem ho- dominante. O valor simbólico desse ato é ainda
mens, mas ser homem para eles –– na contradi- mais evidente, pois, para várias famílias, fazer
ção na qual eles estão mergulhados e cuja supe- modificações nas casas implicava abrir mão do
ração não está à vista –– significa serem opres- atendimento a necessidades essenciais. Outras
sores””(op. cit.). Goffman descreve o mecanismo intervenções, relativas à segurança das casas, re-

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de aliança com os normais, em que o estigmati- velam que as famílias com um pouco mais de
zado quer se distinguir do seu grupo: ““É prová- dinheiro se sentiam, de alguma forma, ameaçadas
vel que quanto mais o indivíduo se alie aos nor- por esses vizinhos imediatos ainda mais pobres.
mais, mais ele se considere em termos não- Esse fato foi muitas vezes confirmado pela fala
estigmáticos, apesar de existirem contextos em dos moradores. Por outro lado, muitas vezes co-
que o oposto parece ser verdadeiro””. Segundo mentou-se, orgulhosamente, que, por ser legali-
Goffman, o indivíduo estigmatizado tem uma zado, mesmo pobre e periférico aquele bairro
tendência a estratificar seus ““pares”” de acordo seria muitas vezes melhor que o bairro originá-
com o grau de visibilidade de seu estigma. Ele rio de invasão, situado na colina fronteiriça.
pode então tomar atitudes típicas dos ““normais”” A ambivalência para com os seus semelhan-
perante os seus semelhantes, ainda mais tes tende a desaparecer quando a intimidade
““estigmatizáveis”” do que ele. Um exemplo pre- pessoal se estabelece. Antes de haver ligações
senciado repetidas vezes em campo foi a atitu- sólidas entre as pessoas, uma visão impessoal e
depreciativa dos vizinhos era possível. A princí- Ou ainda, em um dos mutirões para arrumar
pio, as pessoas falavam umas das outras como a creche: ““Não se deve deixar nada na casa da creche,
de um grupo mais ou menos homogêneo de pois as pessoas vão roubar tudo. As pessoas daqui são o
““pobres””, e não como de pessoas conhecidas. que há de pior na sociedade””.
Para com ““os outros”” havia uma intolerância Por outro lado, várias vezes ouvi compara-
pelos erros mais simples. Assim, um atraso ou ções entre meu mundo –– segundo eles o dos
falta nos mutirões era visto como prova de ““brancos e dos ricos”” –– e o mundo deles ““dos
irresponsabilidade ““dessa gente””, mesmo por parte fracos, dos pobres””. Quando eu citava, como
dos que haviam tido o mesmo comportamento exemplo para a organização da creche, um pro-
antes. O mesmo ato poderia ser perdoado mais cedimento existente nas creches do ““meu meio””,
facilmente caso se tratasse de alguém próximo. eles não aceitavam o argumento, dizendo que
Os exemplos de conversas que revelam a para pessoas ricas era diferente, pois são ““bem-
existência de uma imagem negativa do grupo são educadas””.
numerosos. Durante a organização da associação,
que iremos descrever a seguir, eram freqüentes O apoio a líderes fortes
os comentários maldosos de que as pessoas que
58
se interessavam pela atividade teriam interesse
A interiorização do estigma faz com que as
em ““aparecer”” e conseguir benefícios secundários
pessoas esperem dos líderes que eles sejam dife-
da organização. As atividades pedagógicas e ações
rentes delas próprias, mais próximos do modelo
coletivas, que serão comentadas mais adiante,
““bem-sucedido”” da sociedade. É verdade que, em
foram palco de exemplos interessantes.
sua ascendência sobre os outros, todos os líderes
Uma mulher, na primeira reunião dos
se distinguem por características concretas, mas
moradores: ““As pessoas daqui não são sérias. As mães
este fato pode ser realçado ou não pelo líder. Se
vão aproveitar da existência da creche para passear, e
não para trabalhar””. há rejeição a um líder originário do meio popu-
Nas discussões do mutirão para a constru- lar e que quer se manter próximo do modo de
ção dos passeios de todas as casas do bairro, al- vida e comportamento das pessoas comuns, as
guém disse: ““O mutirão não vai funcionar, pois cada conseqüências da interiorização do estigma se
um vai sair assim que o passeio de sua casa estiver tornam problemáticas para a cidadania.
pronto e não ajudará os outros””. Em um bairro popular, de uma maneira
Ainda nas discussões do mutirão: ““É neces- geral, o líder é mais escolarizado e seu nível sa-
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sário que haja alguém da Prefeitura para vigiar os tra- larial é um pouco maior. Pela sua vivência pes-
balhos do mutirão senão haverá problemas. É melhor soal e suas características próprias, o líder é al-
que tenha alguém de fora para comandar””. guém que possui uma visão de mundo alargada
Nas discussões sobre a creche, a opinião com relação aos outros habitantes. Ele tem tam-
seguinte era muito difundida: ““As mães não vão bém capacidades pessoais particulares, como a
cuidar dos filhos dos outros, elas vão bater nas crianças de convencer, seja pela sinceridade e o exemplo
e tomar conta apenas dos seus””. –– a persuasão –– seja pela autoridade que inspira.
Ele se distingue dos outros por uma perseveran- autoritarismo e paternalismo, com as quais as
ça particular na busca dos seus objetivos, e deve pessoas estão habituadas. O líder forte seria as-
ter também uma certa capacidade de sacrifício sim legitimado pela tradição, mas isso não é su-
pessoal, porque a liderança significa a saída do ficiente para descrever suas características. Para
mundo privado para o engajamento nos proble- exercer sua liderança, o líder forte é legitimado
mas que dizem respeito aos outros. O líder fica à também pelo seu carisma. Segundo Weber
vontade em público e se distingue sem dificul- (1991), a legitimação de um líder carismático
dades da multidão, sendo capaz, dessa forma, de vem de uma certa idealização que os adeptos
obter que as pessoas o escutem, o respeitem e o fazem a seu respeito: trata-se de características
sigam. não-cotidianas, não-medidas, vindas de um
Dois tipos de líderes foram identificados em heroísmo, de uma graça qualquer. A interpreta-
campo: um, cuja ascensão sobre os habitantes é ção que parece próxima em nosso caso é a do
baseada na autoridade ou capacidade de coman- carisma como sedução, do que serão mostrados
dar, e outro, que baseia sua ascensão na influ- exemplos mais adiante.
ência, ou capacidade de persuadir. Freqüente- O líder mobilizador, o que legitima sua li-
mente, existe uma mistura dessas duas capaci- derança pelo seu poder de persuadir as pessoas, 59
dades e os líderes foram caracterizados com base de mobilizá-las em uma luta baseada em suas
na preponderância do tipo de ascendência que próprias forças, é fruto de uma construção ex-
eles têm sobre os habitantes: aquele que funda- terior à tradição do cotidiano. Ao contrário dos
menta sua liderança na autoridade é um líder líderes fortes, os líderes mobilizadores têm ne-
““forte””, enquanto o que fundamenta sua lide- cessidade de serem impulsionados para se dis-
rança na influência é um líder ““mobilizador””. tinguir. Sua legitimação parte de uma racionali-
O líder forte é o que pode convencer as pessoas dade dos ““liderados”” com relação ao interesse
de que ele tem um poder particular de melho- que eles têm de ter um líder assim. Esse tema

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rar suas vidas. O líder mobilizador é o que pode será tratado sobretudo ao final deste livro, pois
persuadir as pessoas que elas podem, por si a construção desse tipo de líderes era um dos
mesmas, melhorar suas vidas. Fica claro, assim, objetivos da intervenção e será examinada como
que é este último que melhor pode contribuir resultado prático desta.
para o sucesso de uma intervenção que busca Concluindo essa distinção dos tipos de lí-
impulsionar o aprendizado da cidadania. deres, é interessante assinalar que, quando fala-
Foi possível observar que o líder natural tí- mos de um líder forte, usamos o singular, pois
pico de um bairro como Vila Verde é sem dúvi- é intrínseco àquele cuja ascendência baseia-se
da alguma o líder forte. Em um ambiente de na autoridade o exercício exclusivo da inteira
estigmatização, de interiorização da opressão e liderança em um grupo humano restrito. Se fa-
de identificação com os dominantes, é normal lamos de líderes mobilizadores, usamos o plu-
que o líder típico seja o que está em sintonia ral, já que eles não se excluem e podem se aju-
com as características tradicionais da sociedade, dar mutuamente na ação. Entretanto, a distin-
ção objetiva dos dois tipos de líderes pode levar tude pôde ser melhor compreendida pelas suas
a apreciações românticas de suas ações. Minha reações durante a realização das obras da creche
própria experiência mostra uma tendência, no e da escola, quando ele utilizava expedientes
início, a ““angelizar”” os líderes mobilizadores obscuros para tentar impedir o curso normal das
com argumentos puritanos. Assim, o líder forte iniciativas.
pretenderia se distinguir por vaidade pessoal, A imagem de autoridade que Aristeu tinha
enquanto o líder mobilizador atuaria por puro no bairro pode ser compreendida pelos argu-
compromisso ideológico. A experiência de cam- mentos dados pelos habitantes para justificar sua
po mostrou que é melhor entender os fatos sem ““respeitabilidade””, os quais recaíam em duas si-
maniqueísmo: existe certamente uma vaidade, tuações: aquela ligada diretamente à sua função
uma vontade de poder, que impulsionam tam- de policial, que constituía sua imagem de ““au-
bém o líder mobilizador. toridade””, e aquela tirada de suas características
As relações de liderança não podem ser pessoais, tais como seu charme, sua imagem de
compreendidas se observamos apenas um lado ““líder paternal”” e suas ações caridosas. Em um
do problema: se existe um líder forte, que se número significativo de respostas ao questioná-
60 sente lisonjeado pela tutela que exerce sobre os rio (20 em 47), os habitantes justificavam seu
outros, existem, de outro lado, os ““liderados””, respeito por Aristeu pela sua condição de poli-
que se eximem da responsabilidade de serem cial –– o rigor de sua autoridade é aí exaltado.
autônomos. O líder forte deve também demons- Alguns não justificaram suas respostas, e outros
trar uma capacidade concreta de suprir necessi- misturam as duas imagens: ““Ele é o chefe dos vigi-
dades dos seus ““liderados”” e mostrar que é ca- as e ele ajuda a comunidade na medida do possível””;
paz de agir para melhorar a vida das pessoas. Por ““Ele merece nosso respeito porque ele é devotado ao
exemplo, ao real poder que Aristeu - nome fic- bairro e nos respeita a todos””.
tício de personagem importantíssimo do bairro O fenômeno da liderança foi tratado por
–– possuía, ele adicionava fantasias de poder. As- Weber (1991) com base na idéia de dominação,
sim, fazia as pessoas acreditarem que todas as que seria ““a probabilidade de encontrar obedi-
melhorias no bairro aconteciam graças a seu tra- ência a ordens específicas””. Weber trata a domi-
balho e utilizava os contatos pessoais privilegia- nação em um sentido mais amplo que o sim-
dos que possuía para levar as pessoas a crerem, ples autoritarismo, fundamentalmente distinto
ávidas de referências, que ele era poderoso. de liderança, que significa mais a relação de um
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Aristeu fazia o papel de guardião dos ““valo- líder com os ““liderados”” que o aceitaram como
res do bem””, além daquele de guardião da or- tal. Ele fala assim da legitimação da dominação.
dem, o que lhe era conferido por sua função de Não existe, segundo Weber, dominação sem
policial. Utilizava-se freqüentemente de fórmu- ““um mínimo de vontade de obedecer, quer di-
las vagas, opiniões anônimas que não podiam zer, o interesse (interno ou externo) perante à
ser contestadas, para transmitir sua própria opi- obediência””. A legitimidade ou, pelo menos,
nião, tendo, assim, um lado autoritário. Essa ati- uma crença nessa legitimidade, é procurada em
todas as formas de dominação, mesmo se existe discussões comunitárias. Contrariamente aos lí-
também a autoridade imposta, aceita por fraque- deres mobilizadores, o líder forte não é do tipo
za individual e/ou coletiva. Ainda conforme que pode trabalhar em equipe. Ele não sabe es-
Weber, é a natureza das motivações ou dos inte- timular o trabalho de cada membro de um gru-
resses a obedecer que define a natureza da po, tudo devendo estar sob o seu controle abso-
legitimação e, por conseqüência, os diferentes ti- luto e seguir a sua visão das coisas.
pos de dominação. Existem motivações materi-
ais, afetivas e as que são do âmbito dos valores. A inveja despertada pelos líderes
Essas motivações podem, naturalmente, coexis- que se distinguem
tir em cada caso. Segundo o mesmo autor, exis-
Como visto, o típico líder de um bairro
tem três tipos puros de dominação legitimada: a
popular é o líder forte e sua ascendência sobre
dominação racional, a dominação tradicional e a
os demais não suscita inveja. Todavia, quando
dominação carismática. A dominação legitimada
existe um líder mobilizador em ação, a atitude
racionalmente é encontrada nas instituições de
invejosa é muito freqüente. Esse comportamen-
caráter legal; a dominação legitimada afetivamen-
to é muito difundido e, mesmo se é também
te é encontrada nas relações de respeito à pessoa,
ligadas à tradição; a dominação legitimada pelo freqüente em outras classes sociais, parece que 61
carisma é encontrada nos seguidores do líder que se torna mais agudo com a interiorização do es-
têm uma ““graça”” particular. tigma da pobreza. Várias hipóteses podem ex-
Em campo, foi possível observar o nascimen- plicar a inveja relativamente aos que se distin-
to dos dois tipos de líder, que não são exemplos guem: 1) a idéia de que o líder quer tirar pro-
puros como os de Weber, mas cuja ascensão so- veito de sua condição, seja para se fazer perce-
bre os outros pode ser compreendida à luz das ber, seja para enriquecer ou, ainda, para chegar
suas categorias. A emergência desses líderes e o a uma posição de prestígio; 2) o sentimento de
reconhecimento de sua liderança pelos habitan- que se é ameaçado por essa posição de distinção

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tes são reveladores de alguns valores fundamen- do outro, porque se coloca em questão o seu
tais das pessoas em suas relações com o poder. próprio papel: ““por que eu não sou destacado
A experiência geral evidencia que os verda- como ela?”” 9 ; 3) a inveja da posição do líder, pois
deiros líderes carismáticos devem mostrar, ou
simular, um amor profundo para com as mas-
9 No princípio era difícil para mim –– vinda de um
sas ““lideradas””. A compreensão tradicional do
outro mundo - entender os motivos de brigas entre
poder concebe que os pobres estejam sob a de- as pessoas. O poder ligado a cada função –– ser
pendência dos poderosos e que eles nada po- professora da escola, diretora da associação, ““mãe da
dem fazer sem sua cumplicidade. A atitude de creche”” (referente às fundadoras), etc., constituía, a
meu ver, acima de tudo obrigações, dedicação,
Aristeu era típica daquela dos líderes ““popu- trabalho duro e não prestígio, honraria. Este erro só
listas””: ele era, ao mesmo tempo, duro e simpá- foi compreendido mais tarde quando o
tico, vaidoso e afetivo, e dizia freqüentemente entendimento acerca da busca de reconhecimento
foi se instalando e a visão sobre a disputa dos micro-
que era apenas sua presença que evitava a vio- poderes disponíveis de serem exercidos no bairro
lência no bairro. Jamais mostrou interesse pelas foi se clareando.
esse se distingue também perante o animador e as pessoas aprovam sua dedicação, lhes rendem
externo, que é alguém amado e respeitado no homenagens e os apoiam. Nesse caso, normal-
meio. Essa terceira explicação é, na verdade, uma mente existe um reconhecimento mútuo, uma
variação da segunda, que será discutida agora. cumplicidade na ação, um ““consentimento ati-
É provável que a lógica que está por trás da vo””, em que líderes e ““liderados”” caminham jun-
inveja seja a da diferenciação. Antes da ação con- tos, cada um em seu papel, para um objetivo co-
junta dos habitantes era difícil reconhecer as mum (GRAMSCI,1966).
diferenças de condição de vida e de personali- O problema da atitude invejosa é que nor-
dade em um meio caracterizado pela exclusão. malmente provoca disputas no grupo, acarreta
Todos eram ““os pobres””, para o observador ex- desavenças e, em conseqüência, a formação de
terno e para eles próprios. Quando se dá início ““facções”” –– ela impede a constituição de uma
a um trabalho coletivo, certamente alguns se ““vontade coletiva”” no sentido gramsciano. Na
distinguem e é difícil para os demais suportar verdade, na maior parte do tempo não se trata
essa distinção, sobretudo se esses líderes são, nem de diferença de pontos de vista nem de
normalmente, pessoas que se diferenciam do método de ação, pois, num início de ação cole-
62 grupo também com relação à escolaridade, ao tiva, as pessoas são ainda muito inexperientes
salário, à história de vida, etc. para ter esse tipo de desentendimento. Trata-se
Mas de onde vem esse medo da diferencia- realmente de desacordos de cunho pessoal. Os
ção? Como será visto com mais detalhes poste- comentários malévolos daí decorrentes minam
riormente, aquele que se distingue coloca o ou- a confiança dos que são mais fracos no grupo
tro em situação de ““falta de reconhecimento””, de ação, e bloqueiam o processo. Os líderes
já que, segundo Todorov (1995), a base das re- emergentes se retiram frente à pressão dos opo-
lações humanas é a busca do reconhecimento nentes, o vazio de liderança se instala de forma
do outro. No caso do bairro popular, ser líder intermitente e, nesse caso, muitas vezes o ani-
significa ser reconhecido e os que também as- mador externo é quem deve tomar a direção dos
piram a ser líder sentem que o reconhecimento acontecimentos, até que a liderança se recom-
do outro impede o seu. Logicamente isso acon- ponha. De fato, esses líderes nascentes dizem :
tece somente num processo igualitário, do con- ““Não é justo se dedicar a uma causa coletiva, colocá-la
trário é a lógica da dependência que prevalece, na frente de nossa vida pessoal e ainda assim ser perse-
como no caso dos líderes fortes. guido pelos outros””.
Pedagogia da participação

É claro que essa atitude invejosa não é a Para as pessoas do bairro que não partici-
única. Existem pessoas que admiram os que as- pam do trabalho comunitário é natural que as
sumem mais responsabilidades do que os ou- ações coletivas também se tornem tema de con-
tros e reconhecem que elas são úteis, pois fa- versas: elas ouvem falar do assunto e, por sua
zem avançar as coisas, mobilizam os demais, os vez, fazem seus comentários, pois se trata de
menos capazes ou menos disponíveis. Esses lí- uma novidade interessante. Esses ““outros””, os
deres são, às vezes, reconhecidos rapidamente, que não são pessoalmente engajados, podem ter
reações positivas ou negativas, que também têm buem igualmente. Muitas vezes, quando as pos-
conseqüências sobre o trabalho comunitário. Se sibilidades de participação se apresentam, a
a reação é positiva, eles admiram uma tal audá- interiorização da estigmatização impede o indi-
cia e torcem pelo seu sucesso, se colocando à víduo de se disponibilizar, bem como são em-
disposição dos engajados para ajudar em peque- pecilhos o desconhecimento dos rituais demo-
nas coisas. Essa atitude favorece um bom ambi- cráticos, as manipulações de todo tipo e a falta
ente e faz crescer a disposição do grupo que está de conhecimento dos problemas internos de
em ação. Na atitude negativa, os habitantes fa- relações humanas em um processo coletivo.
lam malevolamente uns dos outros, mesmo dos A ação coletiva contínua está fora da vivência
que não conhecem, dizendo que essas pessoas dos habitantes do bairro e não tem nada a ver
são ““bestas””, que perdem seu tempo, que isso com os hábitos das pessoas, embora elas tenham
não irá funcionar, que existem intenções escu- experiências pontuais de ação conjunta. Essa
sas por trás, etc. São os boatos dos quais fala- inexperiência da continuidade das ações, que foi
mos anteriormente. A atitude negativa pode ser, percebida desde o começo, era um ponto de re-
mais uma vez, explicada pela inveja, com os ferência importante na experiência-piloto, que
mesmos fundamentos, mas é também tributá- tentava justamente preencher essa falta. As ati- 63
ria da estigmatização, ou seja, da desconfiança vidades pedagógicas que foram desenvolvidas
da capacidade do grupo de ultrapassar sozinho constituíram uma primeira etapa que devia ser
suas dificuldades. Para esses, crer que perderam seguida nas ações coletivas. Para as primeiras
logo toda a batalha é uma forma de evitar qual- dessas ações (a eleição do nome do bairro e a
quer decepção e desconfiam ou zombam dos organização da associação), mais simples e me-
que não têm a mesma atitude. nos duradouras, os problemas identificados não
se colocaram de maneira significativa. Entretan-
to, para a organização da escola e da creche, a

Compreender uma comunidade interagindo com ela


A inexperiência em ações coletivas inexperiência e as disputas entre os participan-
tes foram fatores que, às vezes, impediam o
A inexperiência da ação coletiva prolonga- processo de avançar.
da, consolidada em uma prática cotidiana, é as- À inexperiência das ações coletivas alia-se a
sim um dado de base do quadro antropológico passividade e, se não há uma intervenção exter-
da experiência, que discutiremos em seguida. na, o ciclo vicioso pode facilmente se instaurar.
Isso conduz, como veremos, a uma busca de lí- É aí que deve entrar, segundo Gramsci, o inte-
deres fortes, que ““salvem”” as pessoas das suas lectual orgânico ou o pesquisador engajado da
misérias cotidianas. As origens dessa falta de pesquisa-ação, ou, ainda, o coordenador dos cír-
organização coletiva e de participação são varia- culos de debate freirianos. Como visto também,
das. Se, de um lado, existe a tradição brasileira a passividade deve-se à dependência histórica das
das relações de dependência e de tutela entre populações pobres relativamente aos poderes
““poderosos”” e ““fracos””, outros aspectos contri- públicos e às classes ricas. As pessoas são habi-
tuadas a esperar as ações sempre tardias dos po- habitantes não se engajam inteiramente no êxito
deres públicos ou o socorro pessoal da parte dos de uma ação comunitária, enquanto não tiverem
membros das classes ricas com quem mantêm aprendido o seu penoso senso de responsabili-
relações mais estreitas. Assim, na maior parte dade. É necessário um longo trabalho pedagógi-
dos casos, as pessoas sofrem em silêncio as suas co para fazê-los compreender sua responsabili-
necessidades e, quando esses serviços são final- dade implícita, como participantes de uma tal
mente implantados, adaptam-se em seguida ao iniciativa.
seu modelo. O sofrimento mudo e a resignação Na prática, as pessoas não se sentem respon-
ao modelo existente são os desafios da atitude sáveis pelo significado de suas falas e de seus atos
dependente. nas reuniões ou nos mutirões, por exemplo. Elas
A proposição de uma ação coletiva contí- tomam parte nas ações coletivas, sempre conti-
nua põe nas pessoas um desafio inteiramente nuando a agir como anteriormente –– repetem as
novo: é necessário pensar e agir globalmente, experiências cotidianas, tudo se passa como um
ser ativo, ter iniciativa, espírito de negociação, processo de vizinhança. Observa-se que alguns
perseverança, etc. Para organizar uma creche problemas pessoais podem se deslocar e ganhar
64 coletiva, por exemplo, será necessário encon- importância nas atividades coletivas. Por exem-
trar um lugar para o seu funcionamento, plo, as brigas entre as mães de família com rela-
mobiliá-lo, decidir o que fazer com as crianças ção aos seus filhos (quando os métodos de edu-
ao longo do dia, encontrar meios para cuidar cação de uma são criticados pela outra). Se essas
delas e as alimentar, e se colocar continuamen- desavenças não têm conseqüências para a conti-
te de acordo com as outras mães sobre a manei- nuidade de suas relações de vizinhas, isso muda
ra de gerir. Isso já é uma proeza, mesmo para as quando o processo é coletivo. As disputas pesso-
pessoas mais ativas e experimentadas em inicia- ais sobre a educação dos filhos têm peso signifi-
tivas coletivas –– para um grupo de mães pobres cativo quando está em jogo a organização de uma
e inexperientes significa uma mudança de men- creche comunitária. Isso pode semear desconfi-
talidade e de prática que se dá com dificuldade. anças entre as mães, acarretar o afastamento de
É normal, portanto, que no começo do tra- algumas e atrasar o trabalho iniciado em conjun-
balho comunitário as pessoas ajam de maneira to. Foi o que vi em Vila Verde. Quando as pesso-
dependente, como se a responsabilidade para o as começam a perceber que as suas ações podem
seu sucesso estivesse em outro lugar: isso está acarretar retrocessos no trabalho coletivo, elas
Pedagogia da participação

em seus hábitos. Eles encontram rapidamente aprendem a se controlar. Esse processo de apren-
substitutos da ““autoridade externa””, que vão dizagem é longo para a maioria e, às vezes, im-
tudo resolver para eles: seja o interventor –– esta possível para alguns. Face a estes últimos, o gru-
moça ““branca”” presente na reunião –– seja mes- po deve se impor e exigir seu afastamento; isso
mo uma habitante mais ativa –– ““aquela que se também não é simples, pois o conflito aberto é
mete em tudo””, como alguns falavam de Ada, muito penoso de administrar. Aqui, mais uma
um outro personagem importante do bairro. Os vez, trata-se de um aprendizado.
CAPÍTULO III

O desenrolar
da experiência-piloto
A experiência se desenrolou em duas grandes A partir desse ponto, passou-se às ações co-
etapas: ““Atividades pedagógicas”” e ““Ações coleti- letivas, que se basearam nas iniciativas dos habi-
vas””. As atividades pedagógicas foram reuniões tantes, impulsionadas por nós, visando trazer
feitas por iniciativa do animador externo e da equi- melhorias concretas em suas condições de vida.
65
pe de três estagiários que o acompanhava nesse Assim, era necessário não só continuar a motivar
momento e foram concebidas e organizadas sem a as pessoas para que trabalhassem juntas, mas con-
participação dos habitantes. Elas tinham como tinuar a encontrar objetivos mobilizadores e lí-
objetivo iniciar as pessoas nas palavras e lógicas deres para impulsionar e organizar as ações. Con-
do urbanismo, assim como nos rituais da demo- vém relembrar que o objetivo da experiência-pi-
cracia direta. As atividades pedagógicas deviam loto era a aprendizagem de cidadania, no sentido
também permitir aos participantes experimenta- de preparar as pessoas para a participação e, a se-
rem o fato de ser parte integrante de um coletivo guir, para um engajamento comunitário autôno-
maior, o bairro. Assim, ao processo natural de vi- mo e continuado. Assim, se as ações coletivas so-
zinhança dos bairros populares –– compartilhar brevivessem à nossa passagem no bairro elas po-
preocupações comuns ao longo do tempo –– ou- deriam ser chamadas de ““trabalho comunitário””.
tras situações de encontro foram acrescentadas. Alcançar esse engajamento e essa independência

O desenrolar da experiência piloto


As atividades pedagógicas deveriam ainda inspirar significaria que os habitantes teriam passado por
nos habitantes a vontade de agir coletivamente, um processo pessoal e coletivo de conscientização
sugerir sua organização e permitir que, juntos, e superação das condições adversas à participação,
dessem os primeiros passos nesse sentido. o que era nosso objetivo.
I - As atividades resse objetivo, pois não era interessante limitar
o alcance do trabalho a uma pequena parte da
pedagógicas população. As atividades estavam abertas a to-
dos.
Teve-se também um cuidado especial em
não reunir as pessoas para que elas se queixas-
As quatro atividades desenvolvidas foram sem de suas dificuldades, com o sentimento de
muito diversificadas e complementares ao ““exer- impotência que as acompanha por causa de sua
cício de autonomia”” que era entendido como falta de confiança como grupo. O objetivo de
necessário. Nessas atividades buscava-se, de iní- todas as atividades era fazer o grupo vivenciar
cio, estabelecer um contato entre os habitantes, experiências agradáveis e bem-sucedidas, que as
mas um contato diferente daqueles de vizinhan- incentivassem à ação conjunta e à confiança re-
ça, pois deveria permitir o relacionamento das cíproca. A cada participante particularmente, as
pessoas na escala do bairro. Seu objetivo era fa- atividades deveriam oferecer a possibilidade de
zer o habitante sair do seu quadro imediato –– um reforço da autoconfiança, pela resposta po-
66 sua vida pessoal e familiar, seus vizinhos, sua sitiva aos desafios propostos. Esses objetivos
rua –– para reencontrar o bairro e os outros, os eram imperativos para superar os efeitos da
vizinhos desconhecidos. Essas primeiras ativi- estigmatização que sofrem os pobres e que,
dades de intervenção foram importantes tam- como vimos, eles interiorizam pessoalmente e
bém para continuar a apresentação da equipe de como grupo.
animadores aos habitantes, o que havia come- As atividades seguiam uma hierarquia que
çado com a aplicação dos questionários. ia da mais simples à mais complexa e da mais
As primeiras atividades pedagógicas tinham lúdica à mais engajada. Esse procedimento res-
assim, como assunto, o bairro, num aspecto mais peita princípios simples da pedagogia, de fazer
lúdico e cognitivo que reivindicativo. As sessões progredir o desafio cognitivo mantendo o pra-
eram sempre uma experiência de ação; de início zer de aprender e de ser ativo (FREIRE, 1985).
uma ação mais física –– modelar e desenhar –– e, Em todas as reuniões, contudo, objetivou-se
em seguida, mais intelectual: discutir um objeti- compreender questões globais, sem partir dos
vo e votar. A intenção era passar da percepção problemas pessoais para chegar aos coletivos,
viva das situações ao pensamento abstrato. pois essa passagem é extremamente difícil.
Pedagogia da participação

O tema ““o bairro”” foi assunto majoritário Como as pessoas normalmente não possuem
de todas as atividades, mas decidiu-se não co- meios de fazer repercutir suas queixas fora de
meçar por discussões dos ““problemas do bair- sua família, amigos e vizinhos, o trabalho teria
ro””, pois esse tipo de discussão atrai prioritaria- sido muito mais longo, se as reuniões fossem
mente pessoas que já têm alguma experiência iniciadas pelo relato dos problemas de cada um.
coletiva. O objetivo era atrair todos os habitan- Essa questão deve ser discutida, porque a
tes, mais pela curiosidade do que por um inte- técnica da Pedagogia do Oprimido nos reco-
menda partir do vivencial –– como o que as pes- a curiosidade, o medo e a timidez perante o des-
soas mais dominam é o cotidiano, elas tendem a conhecido são naturais. Assim, em todas as ativi-
falar torrencialmente disso e terminaria por ser dades sempre começamos dando um exemplo
necessário interrompê-las. Era mais interessan- que servia de ponto de referência aos que não
te que as discussões se desenrolassem natural- queriam se aventurar muito. Esse problema tam-
mente, sem reprimendas, que são nocivas à bém estava presente do ponto de vista do segui-
aprendizagem e ao reforço da autoconfiança. Dessa mento progressivo das atividades pedagógicas ––
forma, partíamos sempre diretamente de ques- as atividades eram abertas a todos e as pessoas
tões gerais, do bairro e do coletivo dos habitantes, vinham quando queriam, não se verificando as-
mas tendo o cuidado de escutar com atenção o sim continuidade na presença de cada um. Dessa
relato pessoal de cada um, que vinha a exemplificar forma, a cada nova atividade era preciso começar
a questão geral em pauta, desenrolando-se a dis- pelos pontos de referência para que os ausentes
cussão com naturalidade e sem conflitos. na sessão anterior pudessem acompanhar o que
As ações propostas nas seções deveriam ter se fazia.
sempre um aspecto de novidade, de jogo, mas se Depois das atividades pedagógicas, que a se-
prestando, também, à aprendizagem e à experi- guir serão apresentadas com detalhes, tornou-se 67
ência de autonomia. Ao mesmo tempo, estáva- possível empreender ações coletivas comunitá-
mos atentos para que o aspecto ““novidade”” não rias, que estavam previstas desde o começo, para
fosse intimidador para as pessoas, pois, tal como lhes dar continuidade.

Atividade I:
a confecção da
© Débora Nunes.

maquete do bairro

Depois de ter convida-


do cerca de 80 famílias, en-

O desenrolar da experiência piloto


tregando convites de porta
em porta, a reunião foi rea-
lizada em um bar na entra-
da do bairro, em um local
de passagem constante da
população. No salão, de
aproximadamente 40m 2,
foram colocadas cadeiras
Confecção da maquete do Pão de Açúcar do Rio de Janeiro. em círculos e, nas paredes,
eram os instrumentos de

© Débora Nunes.
trabalho das profissões co-
muns no bairro, tais como
os do pedreiro, da cozi-
nheira, do agricultor. As
pessoas respondiam sor-
rindo, como se fosse en-
graçado falar dos seus ob-
jetos de trabalho –– facas,
colheres de pedreiro e pás,
por exemplo –– em uma
reunião pública. Eles co-
meçavam assim a ultrapas-
sar sua timidez.
Como introdução à
68 fotos das pessoas do bairro e artigos da imprensa atividade pedagógica em torno da maquete do
sobre a história recente da construção do bairro. bairro, a equipe de animação mostrou fotos do
As pessoas entravam um pouco intimidadas, olha- Pão de Açúcar (no Rio de Janeiro) e, em segui-
vam as fotos e os artigos, reconheciam aqueles da, o mapa topográfico desse local. Essa ima-
que apareciam nas fotografias e o cenário, e, a gem foi escolhida porque é bem conhecida de
seguir, se sentavam menos constrangidas. todos e por ser muito expressiva da topografia,
O objetivo da primeira reunião foi lhes fa- que é o que se queria deixar em evidência. Mais
zer descobrir alguns dos instrumentos de tra- tarde, um artista plástico, membro da equipe,
balho dos urbanistas –– a maquete e o mapa to- fez uma maquete em argila do monumento na-
pográfico do bairro –– para poder, através destes, tural do Rio.
discutir os problemas da população. A maquete Após a confecção da maquete, que as pesso-
é a representação urbanística mais simples: uma as acompanharam atentamente, foram coloca-
maquete é um modelo reduzido da realidade. dos cordões onde estariam as curvas de nível
Trata-se de uma abstração de fácil identificação, imaginárias da elevação, representando, em es-
pois representa o real com as mesmas três di- cala, o morro do Pão de Açúcar. Em seguida, foi
Pedagogia da participação

mensões existentes na realidade. Os habitantes mostrado o mapa topográfico daquele lugar e a


não tiveram dificuldade para compreender essa ligação desse com a maquete e as curvas, sem-
abstração, conhecendo bem o modelo reduzido pre de um modo ““freiriano””, ou seja, pedindo às
do qual as bonecas e os carros em miniatura são pessoas que exprimissem o que elas compreen-
exemplos muito comuns. diam daquilo que estavam vendo. Por exemplo,
Para levar as pessoas a tomar a palavra na reu- os presentes foram convidados a olhar de cima
nião desde o início, foi-lhes perguntado quais a maquete, com seus cordões/curvas de nível,
colocada no chão, para compará-la com o mapa tava-se de uma representação simplificada da to-
topográfico, que estava ao lado. Vendo esse mapa pografia, com as ruas e a marcação de alguns ele-
e essa maquete, os habitantes puderam compre- mentos-chave, conhecidos de todos.
ender a lógica do mapa topográfico. Foram produzidas quatro maquetes (duas do
Depois dessa primeira apresentação, as pes- Pão de Açúcar e duas do bairro), em quatro gru-
soas foram convidadas a fazer uma maquete em pos diferentes. A atividade durou cerca de 1h40.
argila do próprio bairro. Para lhes dar referências, Durante todo esse tempo as pessoas entravam e
foram mostradas fotos aéreas e o mapa do local, saíam da sala e muitas crianças estavam presen-
estimulando sua memória. Houve hesitações, mas, tes. Essas idas e vindas e uma certa confusão fo-
finalmente, uma parte dos habitantes se organizou ram aceitas naturalmente pela equipe de anima-
em quatro grupos, que receberam argila para tra- dores, que tentava se adaptar tranqüilamente a
balhar, diante do olhar interessado dos demais. O situação. Uma média de 20 pessoas estiveram
artista plástico citado iniciou também uma presentes e cerca de 40 estavam no salão no mo-
maquete para orientar as pessoas no começo; tra- mento de maior afluência.

69
© Débora Nunes.

O desenrolar da experiência piloto

Os participantes preparam uma maquete do bairro em argila.


As intenções que guiaram o mas a ambientação do jogo é determinante: se
desenrolar da atividade tivesse sido feito um ““concurso de maquete”” sé-
rio, o objetivo de vencer a timidez –– e assim
A idéia de começar as atividades com a con- obter uma grande participação e comunhão de
fecção de uma maquete do bairro em argila, a interesses entre os participantes –– não seria atin-
partir do exemplo do Pão de Açúcar, tinha como gido.
objetivo satisfazer várias condições necessárias
ao trabalho pedagógico em vista. Essas condi-
ções foram referências também para as outras Fazer dos habitantes os sujeitos da
atividades pedagógicas. experiência desde a primeira
atividade

Deixar as pessoas à vontade A meta da atividade pedagógica era levar as


pessoas a participar ativamente da experiência
As reuniões são sempre acontecimentos nos desde o princípio: com a confecção da maquete,
70 quais apenas os mais habituados a esse tipo de seria possível obter a contribuição dos que não
situação se sentem à vontade. Além do mais, tinham coragem de falar. As fotos das pessoas
nesse caso, a timidez é ainda maior para com sobre as paredes eram também uma forma de
esses estranhos que chegam de carro, que sa- significar que eram elas os protagonistas da ex-
bem ““falar bem””, que tomaram a iniciativa de periência. Não era interessante fazer uma reu-
reuni-los. Eles pertencem obrigatoriamente ao nião somente ““explicativa””. Ficar à escuta pode
mundo ““dos brancos, dos ricos””, como se diz provocar uma admiração excessiva pelo que fala
no bairro. Assim, era preciso estabelecer formas e algumas vezes reforça no ouvinte a interiori-
de contato desde o primeiro momento, dissi- zação do estigma: ele tem a impressão de ser
pando a timidez dos presentes. O objetivo era menos capaz do que os que têm voz.
deixar as pessoas à vontade. Para fazer dos habitantes os protagonistas
É possível dissipar a timidez quando se leva da atividade lhes foi explicado que eles conhe-
as pessoas a agir diante de outros sem o senti- ciam o bairro melhor do que os animadores da
mento de ser julgado, em um clima de afinida- reunião, pois aí viviam. Eles próprios é que
de. Foi por isso que foram colocadas fotos nas iriam fazer a modelagem da maquete e as refe-
Pedagogia da participação

paredes, que as pessoas foram chamadas a falar rências cotidianas de cada um sobre a topogra-
de coisas conhecidas –– seus instrumentos de tra- fia do bairro eram importantes para o sucesso
balho –– e que foi escolhido o ““jogo”” da maquete do trabalho coletivo. Realizar uma maquete em
do Pão de Açúcar e, em seguida, feita a do bairro. argila não é uma tarefa fácil, mas não é impossí-
O jogo cria uma relação sem disputa viva, um vel mesmo para pessoas não-habituadas, sobre-
ambiente de cumplicidade. A modelagem é uma tudo se não nos preocupamos muito com a per-
atividade que favorece também a descontração, feição dos resultados, pois se trata de um jogo.
O desafio era então encontrar o meio termo en- acordo com a competência de cada um; 4) o re-
tre certa busca de precisão na tarefa e o prazer do conhecimento de líderes. A seguir é explicado
jogo, para não haver obstáculo à aprendizagem. como cada uma delas foi posta em prática.
1) No que concerne à clareza dos objetivos,
é o animador da atividade que deve se fazer com-
Chamar a atenção das pessoas para o preender. Os participantes também devem, evi-
bairro como um todo dentemente, fazer esforços, e é a partir daqui que
as diferenças entre eles –– líderes ou simples par-
Era importante começar o trabalho por uma ceiros –– começam a se estabelecer.
visão global do bairro, pois a apreensão do con- 2) O respeito ao trabalho de cada um e a
junto não é um fato comum. Normalmente as harmonização dos gestos decorre do fato de que
pessoas vêem do seu bairro apenas os caminhos cada participante é portador de informação, mes-
que percorrem: algumas ruas, passeios. Essa mo modesta, sobre o bairro. Assim, se alguém se
percepção é obtida a partir de um ponto de vista lembra que uma rua cruza outra em seu caminho
de cerca de 1,65m de altura e, sob o ângulo da cotidiano, pode enriquecer sua maquete de de-
visão humana, de 111 graus, que é muito limi- talhes, sulcando o barro para indicar a rua em 71
tado. A maquete dá àqueles que a constroem questão. Como esse trabalho é importante para
um ponto de vista totalmente novo: é como se cumprir a tarefa coletiva, ele é respeitado pelos
eles fossem pássaros. Ver o bairro do alto per- outros, que podem iniciar assim um revezamento
mite ver os caminhos dos outros e, ainda, dis- harmonioso.
tanciar-se da realidade cotidiana e aproximar-se 3) Para a divisão de tarefas, é preciso conhe-
duma visão de coletivo. Como não é simples cer a habilidade de cada um dos participantes para
sobrevoar o bairro, a maquete permite uma boa lhes solicitar uma justa contribuição. Ou as pes-
vista de conjunto. soas se conheciam de antes e anunciavam os talen-
tos uns dos outros, ou cada um informava sua ha-
bilidade própria, ou o reconhecimento se dava
Trabalhar coletivamente gradativamente com o trabalho.
4) A liderança se estabelece a partir da audá-

O desenrolar da experiência piloto


As maquetes deviam ser feitas conjuntamen- cia dos que começam o trabalho ou que ousam
te, e isso significa que as regras que regem os dar as primeiras referências aos outros. As pes-
trabalhos coletivos deveriam ser seguidas. Essas soas dão a vantagem da iniciativa aos que sabem o
regras, que se impuseram aos poucos, à medida que fazer diante do desconhecido.
que se desenrolava a tarefa coletiva, foram: 1) a As regras para o sucesso de um trabalho
clareza do objetivo a alcançar em conjunto; 2) a feito em grupo se impõem às vezes de forma
harmonia dos gestos, que significa o respeito pelo conflituosa. As discussões para resolver os pro-
trabalho dos outros; 3) a divisão de tarefas, de blemas e os acordos para superar as controvér-
sias foram acontecimentos enriquecedores para e conhecidos, mas também abriu portas para ou-
os participantes. Desse modo, a dinâmica das tros contatos. Pode-se dizer que a maioria das
ações coletivas começava a ser dominada. pessoas que estiveram presentes à atividade pe-
dagógica viveu uma pequena experiência bem-
sucedida de participação e começou a lançar ““um
Passar uma imagem agradável do olhar de conjunto”” sobre o bairro.
trabalho realizado coletivamente

O sentido tátil é muito utilizado no cotidi-


Atividade II:
ano de todos, mas freqüentemente em uma fun-
ção utilitária. Contrariamente aos outros senti- A localização do lote de cada um na
dos, o tato é pouco explorado para obter sim- grande planta do bairro
plesmente o prazer do contato em situações co-
tidianas. Ouvimos música pelo prazer de ouvir; A atividade II seguiu os mesmos passos que
olhamos belas coisas e belas pessoas pelo prazer a primeira e aconteceu quinze dias depois. A sala
72 de olhar; provamos os alimentos pelo prazer do de reunião foi a mesma, com as mesmas fotos
gosto e não somente para nos alimentar; colo- utilizadas anteriormente nas paredes, às quais
camos perfume pelo prazer do cheiro; mas nor- foram juntadas outras, mais recentes. A ativida-
malmente não tocamos as coisas pelo prazer de de teve como inspiração uma maquete do bair-
tocar. O sentido tátil fica assim mais ou menos ro, feita de argila, papel, folhas e cordões repre-
inexplorado e é por isso que é difícil resistir ao sentando as curvas de nível do terreno. Essa
convite à modelagem. maquete, feita pela equipe de animadores, esta-
A atração que temos pela modelagem não é va acompanhada de um grande mapa do bairro
somente devida à novidade: se para um adulto (escala 1/500), sobre a qual os habitantes deve-
não é freqüente a modelagem, a ação de tocar é riam trabalhar. Pretendia-se que as pessoas que
uma das mais antigas de nossa experiência hu- haviam participado da Atividade I dessem mais
mana. É o sentido do tato que a criança utiliza um passo para a abstração, uma vez que o mapa
para conhecer o mundo, e esse fato certamente representa o bairro apenas em duas dimensões.
influi na nossa atração pela modelagem. O pra- Para passar as referências para os novatos, foi
zer aí encontrado deve-se também ao fato de repetido o conteúdo da sessão anterior, pois a
compreensão do mapa se dava a partir de uma
Pedagogia da participação

que nos permite criar, modelar segundo a nossa


vontade, o que também não é uma atividade explicação sobre a maquete.
corriqueira. Essa atividade não foi uma reunião, como a
O resultado dessa primeira atividade foi um anterior e outras que se seguiram, mas uma ses-
contato das pessoas entre si como parte de um são com atendimento individualizado: os mem-
coletivo. Sendo realizado em um quadro lúdico, bros da equipe trabalhavam com cada um dos
esse contato propiciou boa troca entre vizinhos habitantes que chegavam ao bar fazendo-os ver
© Débora Nunes.

a maquete e explicando caz. Durante toda a ses-


com palavras simples a são contou-se com a aju-
lógica das curvas de nível da de pessoas mais expe-
e das representações em rimentadas com o uso de 73
três dimensões. Em se- mapas e plantas, sobretu-
guida, quando as pessoas do trabalhadores da cons-
compreendiam a lógica trução civil, que ajuda-
da maquete, eram levadas vam a explicar a lógica
pelos animadores para ver dessa forma de represen-
Os habitantes marcam a localização dos seus
o mapa, que explicavam tação aos demais.
lotes na planta do bairro.
se tratar da mesma idéia, Ao fim das demons-
mas em uma representação em duas dimensões, trações –– sempre utilizando o método interativo
ou seja, achatada. Cada morador deveria, ao fim –– todos os presentes encontraram o seu lote, o
da atividade, mostrar seu lote no mapa. O mapa que significava que haviam compreendido a ló-
era suficientemente grande (pequena escala) para gica da cartografia. Uma vez os lotes encontra-
que se pudesse simular, com uma caneta ou com dos, os participantes os coloriam e assinavam o

O desenrolar da experiência piloto


o dedo, o circular de uma pessoa pelo que seri- seu nome para tornar a ““apropriação”” de sua des-
am as ruas do bairro, e explicar-se assim a lógica coberta ainda mais evidente. Alguns chegaram a
da vista aérea. perguntar se essa assinatura significava algum tipo
A partir do discurso dos habitantes sobre a de documento de propriedade dos terrenos! Ape-
geografia do bairro, os animadores identificavam sar da completa falta de conforto (como na ativi-
junto com eles os pontos de referência no mapa. dade I, as pessoas tiveram que trazer suas cadei-
Para ajudar os que tinham maior dificuldade, o ras) tudo se passou muito bem: foram coloridos
animador tentava localizar a casa de seus vizi- mais de 50 lotes no mapa, numa época em que
nhos, o que se mostrou ser a referência mais efi- havia aproximadamente 200 famílias no bairro.
As intenções que guiaram o A atividade se mostrou útil também –– e isso
desenrolar da atividade não estava previsto –– para revelar a habilidade
particular dos trabalhadores da construção ci-
Aqui foram buscados os mesmos objetivos vil, que tinham se destacado menos na primeira
da sessão anterior: deixar as pessoas à vontade, atividade. A distinção de alguns indivíduos den-
fazer delas os sujeitos da atividade, chamar a tre outros é o primeiro passo para a diferencia-
atenção para a idéia de conjunto do bairro e dar ção dos líderes que, no caso, foi se desenvol-
uma boa imagem do nosso trabalho. As mudan- vendo em seguida e de modo muito lento. Essa
ças introduzidas, relativamente à primeira ses- diferenciação não é definitiva, pois se viram po-
são educativa, foram a abordagem individuali- tenciais líderes se distinguirem e atuarem como
zada e um aumento no grau de abstração. A su- lideranças num primeiro momento, e se afasta-
peração dos efeitos da estigmatização –– um dos rem, no decorrer do processo, naturalmente.
objetivos de longo prazo das atividades pedagó-
gicas –– começou então a se fazer sentir: para cada ***
um dos participantes, o ato de se encontrar no
Outras atividades poderiam ser realizadas
74 mapa, através de seu lote, foi visto como uma
no sentido das duas primeiras, com variações
façanha. Isso renovava o sentimento de ser um
de material, de escala, mas sempre voltadas para
protagonista importante das atividades (ou pro-
a aprendizagem da representação do bairro. To-
vocava esse sentimento, se a pessoa não tivesse
davia, as atividades não eram um fim em si
comparecido à primeira atividade).
mesmas: representar a realidade significa ape-
Em um trabalho pedagógico, é indispensá- nas um exercício para sair de si mesmo, do
vel aumentar gradativamente a dificuldade das pequeno mundo cotidiano e concreto de cada
atividades, o que permite às pessoas que com- um. Julgou-se que essa etapa estava completa-
parecem a uma primeira sessão o sentimento da, mas que a experiência coletiva tinha sido
de que aprendem coisas novas. Nesse caso, era restrita, pois as atividades iniciadas haviam le-
também importante retomar noções já difun- vado os participantes a uma espécie de comu-
didas na atividade anterior (a maquete) para não nhão, sem conflito.
impedir o engajamento dos que não vieram da A partir desse ponto, foi decidido que de-
primeira vez. É ainda interessante poder ter dois veriam ser feitas mudanças, tendo-se em vista a
tipos de contato, um com o conjunto de pre- aprendizagem e o exercício das discussões cole-
Pedagogia da participação

sentes e outro, mais personalizado. Para os ani- tivas, do conflito de idéias e de interesses. As-
madores externos era importante conhecer as sim, as novas atividades foram orientadas para
pessoas, o que foi viabilizado pela abordagem um maior engajamento nos problemas reais,
individual, que oportunizou relações mais pró- evitando-se, entretanto, ficar na simples consta-
ximas. Para as pessoas é importante se sentirem tação desses e no sentimento de impotência para
acompanhadas atentamente, pessoalmente, até resolvê-los. Com essa mudança no caráter das
a realização da tarefa proposta. atividades pedagógicas, a intenção continuava a
ser a de reforçar a confiança das pessoas em si poderes públicos no bairro. Os resultados fo-
mesmas, fazendo-as viver a experiência de se- ram apresentados e a discussão incidiu na
rem importantes, responsáveis por um trabalho, pertinência dos resultados para cada um dos
capazes de estar à altura dos desafios encontra- habitantes presentes. Tratava-se de evidenciar a
dos. As atividades seguintes tiveram como tema diferença entre as opiniões pessoais e a opinião
a atualidade do bairro. da maioria. Havia cerca de 40 pessoas na sala, e
quase todas as que, anteriormente, tinham tido
experiências pessoais como líderes, estavam pre-
sentes. Para dar um aspecto mais concreto às
Atividade III:
discussões, um funcionário da representação da
A discussão das prioridades de Prefeitura no bairro foi convidado para ouvir
intervenção da Prefeitura os habitantes e falar das propostas do Poder
Público para aquela comunidade.
As discussões da Atividade III giraram em Para começar, perguntou-se às pessoas pre-
torno das prioridades estabelecidas pelos habi- sentes quem dentre elas tinha respondido o
tantes, no questionário, para a intervenção dos questionário; de fato, não havia muitas, o que 75
© Verônica Lima.

O desenrolar da experiência piloto

Apresentação dos resultados do questionário aos habitantes.


mostra que a intervenção tinha um público dife- 1986). Essa tendência a se preferir a assistência
rente a cada momento. A pergunta do questio- ao invés do engajamento de cada um na resolu-
nário que pedia uma hierarquia das prioridades ção dos problemas coletivos foi também encon-
do bairro foi relembrada e explicou-se o signifi- trada em Nova Iguaçu por Leïla Wolf (1993).
cado das palavras ““hierarquia”” e ““prioridade””, Em seu estudo sobre os movimentos de bairro,
dando-se exemplos tirados do cotidiano. Em se- ela fala de ““assistidos felizes”” para explicar a não-
guida, foram apresentados os resultados em um busca de autonomia e, mesmo, a submissão a
gráfico, que se revelou excessivamente compli- lideres carismáticos, se eles prestam serviços.
cado e, por isso, foi traduzido em palavras sim- Os participantes diziam que seria importan-
ples. Ao serem perguntados sobre os resultados te ter uma liderança ““que saiba falar às autori-
dos questionários, os habitantes se manifestaram dades””, ““que seja competente”” e ““instruída””.
sobre cada uma das prioridades estabelecidas, em Criou-se uma polêmica na sala, pois, para al-
geral aprovando-as. Foi sugerido então aos fun- guns, esse líder deveria ser ““do bairro””, e, para
cionários presentes que essa lista de prioridades outros, ele deveria ser ““de fora””, alegando estes
fosse levada em consideração nas decisões da Pre- últimos que as pessoas do bairro não tinham as
76 feitura acerca do bairro. características necessárias. Nesses posiciona-
Perto do fim da atividade, a discussão já abor- mentos podem ser verificados traços do perfil
dava questões práticas. Como dar continuidade daqueles que vivem uma situação de estigmati-
às discussões fazendo chegar ao prefeito as prio- zação e que introjetam o estigma, como visto
ridades dos habitantes? As pessoas falavam da ne- na abordagem antropológica do capítulo ante-
cessidade de ter um líder do bairro, para ““fazer as rior: a identificação com os dominantes, a auto-
coisas andarem””, para ser seu porta-voz, sendo imagem negativa do grupo, a falta de autocon-
““respeitado por todos””. Nesse momento pere- fiança. Enquanto muitos defendiam que a lide-
ceu evidente que elas tinham uma visão precisa rança não deveria ser exercida por pessoas do
da iniciativa a tomar: escolher representantes. bairro, havia aqueles que questionavam essa
Da mesma maneira, delineava-se a visão do tipo posição, o que confirma que não se pode falar
de líder que as pessoas tinham em mente: o pro- dos pobres como categoria homogênea. As ten-
tótipo do líder ““forte””. dências contraditórias encontradas nesse mo-
Essa atitude mostra a concepção popular do mento do trabalho sugerem que é procedente a
poder como transcendência, ou seja, afastado do idéia das polaridades (as pessoas potencialmen-
Pedagogia da participação

corpo social. O poder que se quer é um poder te engajadas ou potencialmente anômicas), an-
““que pode resolver as coisas”” e, portanto, de teriormente mencionada.
certa forma, não pode ser exercido pelos seme- No vivo debate que se seguiu, foi preciso
lhantes, seja por que se encontram na mesma que o animador da atividade pedagógica inter-
condição de impotência cotidiana ou seja por- viesse algumas vezes para pedir o respeito à fala
que, pelas alianças com os ““grandes””, poderiam de cada um e para tentar organizar as discus-
não cumprir seu papel ““salvador”” (CHAUÍ, sões. Se o debate estava interessante, ele corria
o risco de se perder, pois a discussão não tomava As intenções que guiaram o
um caminho concreto e desejável, que seria o de desenrolar da atividade
eleger um representante ou representantes da
comunidade. Coube ao animador sugerir a cria- Os problemas do bairro deviam penetrar
ção de uma comissão de habitantes para continu- gradativamente no conteúdo das atividades pe-
ar as discussões e/ou iniciar ações para resolver dagógicas. A idéia sendo trabalhar ““com”” as pes-
os problemas identificados. Diante da falta de soas e não ““para”” as pessoas, era preciso lhes dar
experiência das pessoas, o animador teve que a oportunidade de impor suas escolhas de dis-
explicar o processo de listar o nome dos interes- cussões e assim, pouco a pouco, foram feitas
sados em tornar-se representantes dos demais mudanças no ““protocolo”” de intervenção pre-
para, assim, compor-se uma comissão para tra- visto. Em seguida, durante a segunda atividade,
balhar em beneficio do bairro. ficou claro que as pessoas queriam discutir seus
Em seguida, a representante da Prefeitura problemas concretos, apesar de sua simpatia
foi convidada a tomar a palavra, comunicando pelas iniciativas mais lúdicas. Se as questões so-
sua intenção de se reunir com mais freqüência bre a atualidade do bairro não fossem coloca-
com a população para discutir seus problemas. das, provavelmente teria havido uma redução 77
Sugeriu ainda a organização dos habitantes a cada vez mais significativa do número de parti-
partir de cada rua do bairro, com o objetivo de cipantes nas atividades.
construir os passeios das casas, com o apoio Com a abordagem, na atividade III, das
material da Prefeitura e em regime de mutirão, prioridades dos habitantes para a intervenção da
após o que a reunião foi encerrada e as pessoas Prefeitura no bairro, respeitava-se o método
marcaram um novo encontro. Rute, uma habi- freiriano, que propõe partir sempre de assuntos
tante das mais engajadas, se encarregou dessa pertinentes à vida das pessoas. Depois de ter
organização com a ajuda da equipe de anima- atraído a atenção do maior número e, sobretu-
dores. No próximo encontro deveria ser inicia- do, das pessoas menos engajadas, por causa da
do o trabalho da comissão, em torno dos pro- ambientação lúdica das atividades I e II, era ne-
blemas identificados e da sugestão da represen- cessário passar para uma outra etapa. A mudan-
tante da Prefeitura de se fazer mutirões para ça de abordagem das atividades pedagógicas de-

O desenrolar da experiência piloto


consertar os passeios. Pela inexperiência das veria ser atraente também para os habitantes
pessoas e por sua falta de confiança no grupo, mais engajados, capazes de fazer andar a orga-
essa comissão jamais se reuniu. O mutirão tam- nização coletiva.
bém não foi realizado, o que revela as dificul- Essa atividade permitiu às pessoas aprender
dades concretas da Prefeitura de levar adiante uma das regras mais importantes da democra-
suas propostas. cia participativa: o respeito à voz da maioria. O
confronto entre a opinião de conjunto dos habi- meio, poderiam melhorar suas condições de vida
tantes –– revelada pelo questionário –– e a opinião e pressionar as autoridades, e dava o exemplo
individual de cada um dos presentes era de outros bairros que ela conhecia. Essa posi-
reveladora dessa regra. Se nas atividades I e II ção foi contestada por outros, que preferiam uma
buscava-se um distanciamento do cotidiano no ajuda externa.
bairro, dos locais onde se passa todos os dias, e O papel de animador em uma sessão como
ver o conjunto (a maquete, o mapa), agora era o essa é mais delicado que em outras, como as
momento de distanciar-se das reivindicações anteriores. Ele deve contribuir para que as dis-
puramente pessoais. A necessidade de uma cre- cussões cheguem a iniciativas concretas, mas não
che comunitária, por exemplo, que foi longa- pode conduzir sozinho o processo. Se é fato que
mente discutida nessa reunião, não deveria en- as pessoas têm pouca experiência de iniciativas
volver apenas os casais com filhos, mas a todos. coletivas e é preciso sugerir os passos a serem
Para agir como coletivo se impunha a necessi- dados, ficou evidente, nesse caso, que a idéia
dade de compreender a amplitude dos proble- mais comum era a da necessidade de um líder
mas da maioria dos habitantes. que os representasse diante das autoridades
78 As atividades do tipo discursivas, como essa, municipais. O animador, entretanto, propôs
ensinam aos participantes as regras básicas do uma iniciativa maior rumo a uma comissão, ex-
funcionamento de uma discussão coletiva: a vez plicando, com o apoio de Ada e de outros, que a
da fala de cada um, o respeito para com a fala do organização dos habitantes como coletivo po-
outro, a pertinência do discurso com relação ao dia ser mais eficaz. Mas se a comissão não atuou
assunto da discussão, o tempo definido para a como esperado, era porque a idéia de trabalhar
expressão de cada um, a não-repetição dos dis- coletivamente ainda não estava madura para as
cursos, etc. Conforme já assinalado, esses conhe- pessoas.
cimentos, mais ou menos difundidos nos meios Foi a partir de discussões mais concretas que
mais favorecidos pela via da escolarização, são os líderes começaram verdadeiramente a se des-
desconhecidos da maioria das pessoas pobres, o tacar do conjunto de habitantes, pois eram os
que reforça sua exclusão das iniciativas cidadãs. mais capazes de enxergar a longo prazo, de pro-
As discussões dos problemas comuns a to- por, de incentivar a organização popular, etc.
dos os presentes levam as pessoas, naturalmen- Sintomaticamente, foi nessa reunião que Ada ––
te, a pensar na necessidade de agir para obter que se tornaria uma das líderes mais fortes do
Pedagogia da participação

melhorias em seu quadro de vida. A sugestão bairro –– e Rute –– que também desempenhou
de que os próprios habitantes poderiam agir –– um papel importante no processo –– destacaram-
para a organização de uma creche comunitária, se dos demais.
por exemplo –– nasceu nessa discussão, a partir Também foi possível observar, nessa reu-
do relato de Ada, uma das participantes. Ada nião, o tipo de comunicação estabelecido entre
defendia a idéia de que os próprios habitantes, o representante da Prefeitura e os habitantes, à
com a ajuda de líderes saídos do seu próprio luz dos conceitos de Habermas, citados no pri-
meiro capítulo. Era evidente que se tratava de Atividade IV:
uma comunicação do tipo estratégica, que mais A discussão das regras do mutirão
visava obter o acordo dos habitantes que cons-
dos passeios
truir esse acordo passo a passo, de modo conjun-
to. A ausência de esforço para manter um diálogo
em que todos os interlocutores compreendes- Essa atividade tinha como objetivo discutir
sem bem as palavras utilizadas caracteriza tam- as regras do mutirão que deveria ser realizado
bém a comunicação estratégica que se verificou no bairro e que fora proposto pela Prefeitura,
na reunião. Isso mostra que, mesmo quando se na atividade III, ficando esta responsável por
fala da necessidade de participação, é possível fornecer os materiais para construir os passeios
manter o afastamento entre técnicos e habitan- das casas e, os habitantes, por contribuir com
tes, tradicional nas relações autoritárias. sua força de trabalho.
A gestualidade do técnico também foi ob- Tendo havido um atraso na reunião, os fun-
servada e, em seguida, revista no resultado da cionários da Prefeitura não quiseram esperar o
filmagem que foi feita de cada reunião, poden- seu início, apesar de exortados pelo seu chefe
do-se dizer que era clara a vontade de manter para que não se retirassem, demonstrando uma 79
uma distância física dos presentes. O exemplo incompreensão do significado político de uma
mais explícito do que aqui se diz foi o da atitu- reunião desse tipo. A equipe de animadores pre-
de do técnico, que mantinha constantemente sente nesse dia começou a recear o insucesso da
um classificador entre si e seu interlocutor du- reunião, pois já há alguns dias verificava-se o
rante as conversações face a face anteriores e agravamento do grande problema de falta de
posteriores à reunião. Com essas observações água no bairro: o fato é que o problema existia
não se pretende embasar um julgamento moral de longa data, mas, nesses dias, mesmo as fon-
sobre o fato, mas relatar o que se constatou re- tes alternativas de água estavam exauridas.
lativamente ao modo pelo qual se dá a interação Interrogávamo-nos, nesse momento, sobre a
entre dois mundos diferentes, dentro de tradi- pertinência de nosso trabalho no bairro, já que
ções já estabelecidas e aceitas. Além do mais, os as pessoas tinham coisas urgentes e essenciais a
habitantes não pareciam achar o comportamento resolver sozinhas, como conseguir ter água em

O desenrolar da experiência piloto


do técnico arrogante, pelo contrário, ele era visto casa. Todavia, apesar do contexto difícil, reali-
com simpatia pelas pessoas. zou-se a reunião e isso significou um alívio para
a equipe de animadores.
A discussão girou em torno dos problemas
concretos que poderiam surgir na realização do
mutirão com a Prefeitura. A pedido do anima-
dor da reunião –– e partindo dos problemas ima-
ginados pela equipe de animadores externos e
pelos próprios habitantes –– os presentes estabe-
leceram várias regras práticas para o funcio- dade””, mas, apesar disso, o passeio de sua casa
namento do mutirão: seria feito pelos outros, já que o trabalho era
I –– Seria levantado o número de pedreiros coletivo. A condenação não foi explicitada. Su-
do bairro e estes seriam distribuídos por con- geriu-se que esse passeio deveria ser o último a
junto de ruas, para orientar as obras. ser feito.
II –– A quantidade de material não deveria V –– Uma comissão de três habitantes esta-
ser a mesma para todos. Cada participante de- beleceria os horários de trabalho de cada um.
veria receber uma cota suficiente para o seu ter- Um pedreiro ou outro habitante faria a inspe-
reno, respeitando a diferença de tamanho dos ção (alguns queriam uma inspeção feita pela
passeios. Prefeitura, mas esta posição foi derrotada).
III –– No caso de um habitante não estar pre- VI –– Se um dos vizinhos adoecesse no dia
sente no dia do mutirão, ele só teria direito ao do mutirão, os outros deveriam trabalhar em seu
material de construção correspondente ao seu lugar, e ele, quando estivesse curado, trabalha-
passeio se tivesse uma justificativa para sua au- ria em outro mutirão, ajudando as pessoas.
sência. VII –– Os passeios das pessoas idosas e defi-
80 IV –– Se a falta do habitante não fosse cientes físicos seriam feitos pelos vizinhos, se
justificada, ele seria condenado pela ““comuni- eles não tivessem filhos aptos a trabalhar.
Pedagogia da participação

© Débora Nunes.

Voluntários trabalham para limpar o terreno da futura creche em mutirão.


VIII –– Cada final de semana seria consagra- feriam não votar. Os primeiros votos foram a
do a uma rua. favor do início do mutirão ““por baixo””. Para não
IX –– O mutirão deveria começar pelas par- se ter uma eleição artificial, pois parecia que as
tes ““de baixo”” do bairro, e continuar, progressi- pessoas estavam votando constrangidas pelo am-
vamente, para as partes ““do alto””, mais próxi- biente geral, foi proposto pelo animador uma
mas da entrada do bairro e, por isso, natural- alternativa de conciliação: fazer, durante uma se-
mente privilegiadas. mana, o passeio ““em cima”” e, na outra, o passeio
X –– As bebidas alcoólicas só seriam permi- ““em baixo””. Esta última proposta alcançou una-
tidas no almoço coletivo do fim dos trabalhos, nimidade entre os votantes.
para comemorar o sucesso destes. Para incentivar o exercício da liderança para
um ponto de vista concreto –– o papel do
Houve unanimidade relativamente à maior organizador –– o animador pediu ajuda a um dos
parte das decisões, mas, pela primeira vez nas líderes para conduzir a votação. Ao fim da reu-
atividades, houve uma verdadeira disputa para nião, aconteceu uma nova polêmica, dessa vez
decidir o local onde os trabalhos deveriam ser menos tensa: tratava-se de decidir acerca do uso
começados. Os defensores do início do mutirão de bebida alcoólica durante os trabalhos. Todos 81
pela parte ““alta”” do bairro e que nela habitavam, se animaram com os argumentos e os exemplos
diziam que todas as obras tinham esse percur- dados pelos dois lados em disputa. A decisão,
so. Isso era verdadeiro, pois essa parte do bairro como visto nas regras estabelecidas para a práti-
era a mais desenvolvida do ponto de vista da ca do mutirão, foi previdente.
infra-estrutura e do acabamento das casas. Os Como nas outras atividades, a participação
outros participantes e, dentre eles, o animador, dos habitantes foi grande, com uma média de
diziam que era preciso compensar a parte ““de 30 pessoas atentas. A posição de alguns líderes,
baixo”” pelo atraso. A discussão prosseguiu, exal- continuamente presentes e que falavam e da-
tada, até o momento em que uma velha senho- vam seu ponto de vista sobre cada assunto em
ra, D. Celina, que morava na parte alta, disse: discussão, consolidou suas posições na comu-
““–– Nós devemos cuidar dos que estão em más nidade. As condições materiais da reunião fo-
condições. Aqui, estamos bem, lá é uma escu- ram muito precárias: não havia luz e foi preciso

O desenrolar da experiência piloto


lhambação””. Isso sensibilizou muito os presen- terminar a reunião ao ar livre, quando o sol se
tes, que pararam de discutir. pôs; também não havia cadeiras para todos, mas
A seguir, veio o momento de votar. A maio- a maioria das pessoas ficou até o fim da discus-
ria das pessoas não sabia como proceder e o são, mesmo em pé.
animador sugeriu o gesto de levantar a mão em Uma nova comissão foi criada para escre-
caso de assentimento. A maioria dos presentes ver um documento a ser mandado para a Pre-
morava na parte alta, mas depois da posição le- feitura. Alguns dias mais tarde, o documento foi
vantada por D. Celina e da expressão de con- elaborado pelos habitantes com a ajuda do pes-
cordância do animador, vários dentre eles pre- quisador, mas como este teve que se ausentar
por um longo período, os habitantes não conti- tos, etc., mas não o é para as pessoas que não
nuaram a iniciativa e o documento jamais che- possuem esse tipo de experiência. Além do mais,
gou à Prefeitura. De qualquer modo, isso teria para aqueles que nutrem um certo desprezo pelo
sido provavelmente inútil, uma vez que a Pre- grupo a que pertencem, isso significa ultrapas-
feitura, em razão de problemas financeiros, não sar essa dificuldade e legitimar esse grupo como
manteve o compromisso com a comunidade e fonte de decisão. Para cada um dos participan-
o mutirão não foi feito. tes, o ato de respeitar uma decisão tomada con-
tra seu interesse particular é uma atitude de
grande maturidade e, por isso, normalmente
As intenções que guiaram questionam-se os resultados. Apenas a repeti-
o desenrolar da atividade ção desse procedimento por várias vezes pode-
rá torná-lo natural.
No debate a respeito da regulamentação do O gesto do animador, de pedir a ajuda de
trabalho coletivo, era preciso discutir e votar as um dos líderes presentes para conduzir a vota-
regras do mutirão. Para esse debate, os habitan- ção, concretizou uma passagem de papéis, que
82 tes utilizaram os conhecimentos acumulados até é necessária nesse momento do trabalho. No
aqui (visão de conjunto, atenção aos interesses espírito do método de pedagogia da participa-
da maioria, regras das discussões coletivas), o ção, a experiência do animador deve ser trans-
que os levou facilmente ao objetivo do exercí- mitida às pessoas do bairro que demonstrem
cio, que era a tomada de decisões. interesse e capacidade para absorvê-la. Para o
A discussão sobre as questões concretas per- líder que conduziu a votação, esse fato signifi-
mitiu também o conflito de idéias, já que até ali cou uma experiência prática de liderança, já que
as atividades tinham tido caráter mais consen- ele teve necessidade de se impor diante dos ou-
sual, com discussões sempre amigáveis. Entre- tros de maneira legítima, para chegar ao fim de
tanto, no trabalho comunitário existe também sua tarefa. Uma dificuldade a mais para seu
o desacordo, e é necessário experimentá-lo. Pela aprendizado foi o fato de que ele era analfabeto
primeira vez, nas reuniões, o debate foi anima- e, assim, só os encorajamentos e a ajuda prática
do, o exercício da negociação foi realizado e fo- do animador –– que lia para ele as regras que de-
ram organizadas votações para conhecer a von- viam ser votadas –– permitiram que tudo corres-
tade da maioria. Todos esses aspectos da demo- se bem. Uma outra pequena vitória foi obtida
Pedagogia da participação

cracia participativa, previstos no projeto de in- durante essa reunião: a comissão, criada para
tervenção, foram vividos intensamente pelas compor o documento sugestivo/reivindicativo
pessoas presentes. destinado à Prefeitura, funcionou. É certo que
A discussão e o voto de cada regra permiti- o animador e sua equipe deram um empurrãozi-
ram legitimar o grupo como fórum de decisões, nho, mas isso estava previsto desde o começo.
o que pode parecer simples para os que vivem a A iniciativa de discutir o mutirão dos pas-
vida coletiva na escola, em associações, sindica- seios com a população não agradou aos funcio-
nários da representação da Prefeitura no bairro, posto médico etc., que eram as prioridades dos
apesar do acordo obtido junto ao dirigente desse habitantes. Diante da inutilidade das decisões
posto. Provavelmente, dois fatores originaram de urbanismo, que deveriam ser tomadas de
essa atitude: 1) os funcionários achavam que os forma participativa com ajuda de nossa equipe
animadores tomavam o seu lugar no bairro e 2) de animadores, foi preciso modificar a experi-
eles tiveram medo da pressão da população já ência-piloto, antecipando seu ritmo. Respei-
que não tinham certeza se o mutirão seria de fato tando os dados da realidade decidimos ser os
realizado. Quando se soube que o mutirão não parceiros dos habitantes na condução de algu-
iria acontecer, começou a ficar mais clara a fragi- mas melhorias do seu quadro de vida, ao invés
lidade de ação da Prefeitura, sua incapacidade de de intermediários da Prefeitura. O objetivo
dar seguimento aos planos, e a melhor entender- mantinha-se o mesmo, a aprendizagem da ci-
se a incerteza dos funcionários sobre o seu papel dadania e o incentivo à ação autônoma dos ha-
e suas responsabilidades. bitantes, mas o lado prático desse processo ini-
ciava-se mais cedo e de forma diferente da pre-
vista.
Observando o conjunto das ações coletivas 83
apresentadas a seguir, é possível verificar que
II - As ações coletivas elas se desenvolveram no sentido de uma maior
autonomia dos habitantes envolvidos, que to-
maram a direção dos acontecimentos de forma
A etapa das ““atividades pedagógicas””, que gradativa, mesmo reconhecendo-se idas e vin-
durou mais ou menos dois meses, com reuni- das nesse processo. A eleição do nome do bair-
ões quinzenais, foi seguida da etapa das ““ações ro foi, em parte, ainda uma atividade pedagógi-
coletivas””. Classificaram-se aqui de ““ação cole- ca, baseada em nossa iniciativa e orientação, mas
tiva”” aquelas realizadas conjuntamente pelos realizada de maneira conjunta. A escola comu-
habitantes e o (s) animador (es) externo (s), vi- nitária fez parte de uma ação bastante dirigida
sando intervir na realidade do bairro e tendo por pelos animadores externos no que diz respeito
objetivo a melhoria das condições de vida da ao planejamento do seu funcionamento, mas sua

O desenrolar da experiência piloto


população. Diferencia-se do ““trabalho comuni- execução prática foi plenamente autônoma. A
tário””, que é uma etapa superior da pedagogia creche comunitária, um enorme desafio para os
da participação –– e que veio a seguir no bairro –– habitantes, conheceu momentos diversos: sua
pois este prescinde da animação externa e tem organização foi quase inteiramente impulsio-
caráter duradouro. nada pelo animador externo; entretanto, podem-
Durante o período de passagem das ativi- se ver, mesmo aí, momentos de autonomia dos
dades pedagógicas às ações coletivas se tornou habitantes na decisão de questões práticas im-
evidente que a Prefeitura não iria realmente rea- portantes quando este estava ausente. Como ve-
lizar as obras prometidas –– a escola, a creche, o remos, a implantação da creche não seguiu um
caminho linear, havendo interferência externa em para encontrar uma máquina de escrever ou um
momentos em que esta parecia não ser mais ne- computador, por exemplo, e para fazer as foto-
cessária. Entretanto, culminando o processo de cópias, o que também não é fácil em um bairro
aprendizagem, no final a creche funcionou de popular. Finalmente, era preciso realizar uma as-
uma maneira absolutamente autônoma. sembléia, eleger os diretores, fazer uma ata e ain-
da pagar o registro, que custa quase um salário
mínimo. Sem a ajuda material e sem os conse-
lhos de alguém mais experiente, é muito difícil
Primeira ação coletiva: a criação da para moradores de bairros populares fundar uma
associação de moradores associação, o que os torna uma presa fácil para os
oportunistas.
No mês em que se desenrolavam as ativi- Essas dificuldades têm levado ao surgimento
dades pedagógicas, amadureceu a idéia de agir de profissionais especialistas na fundação de as-
coletivamente, impulsionada pelas lições das sociações de habitantes. Normalmente esses
atividades, mas sobretudo pelas dificuldades profissionais são ligados aos gabinetes de parla-
84 concretas do cotidiano das pessoas. Os habitan- mentares ““populistas””. Eles associam os habitan-
tes mais ativos falavam da possibilidade de or- tes aos seus dirigentes políticos, à medida que as
ganização de uma creche e de uma horta comu- iniciativas burocráticas e as promessas são feitas.
nitária. Eles conseguiram arrancar uma promes- Verificou-se, exatamente nesse bairro, um caso
sa da Prefeitura de ceder uma das casas ainda típico –– uma pessoa que dizia querer ““ajudar os
vazias do bairro para se instalar a creche, desde habitantes””. Pude observar a ação desse homem
que tivessem uma associação de habitantes re- no bairro, que me pareceu desdenhosa e arro-
gularizada. As pessoas estavam entusiasmadas e gante, numa atitude que é freqüente nos profis-
mobilizadas, mas as dificuldades logo se apre- sionais desse tipo que trabalham nos meios po-
sentaram. pulares. Os habitantes conhecem isso, aceitam o
O primeiro problema foi obter as informa- jogo social e tais atitudes não os machuca como
ções sobre os procedimentos necessários para se poderia pensar. Entretanto, se têm essa possi-
registrar uma associação, pois não se sabia em bilidade, preferem iniciar a organização de uma
qual cartório deveria ser feito o seu registro. Era associação em um ambiente mais respeitoso, e
preciso ter um contato com as pessoas do meio, foi isso o que aconteceu no bairro quando me
Pedagogia da participação

o que não é simples para um habitante de um coloquei à disposição deles.


bairro popular. Em seguida, a dificuldade era Foi durante essa atividade coletiva que co-
redigir uma Proposta de Regulamento, pois a meçou uma discussão acerca de como a experi-
linguagem do direito, muito hermética, tem ência-piloto deveria continuar, já que a propos-
pouco sentido para as pessoas que não são do ta inicial de funcionamento foi impossibilitada
meio jurídico. Houve dificuldades materiais, pela retirada da Prefeitura. As pessoas mais
próximas do trabalho realizado até aí foram con- as para a assembléia. Eu me comprometi a bus-
vidadas para examinar os desdobramentos possí- car informações sobre os trâmites burocráticos
veis. A organização da associação impôs-se como em outras associações que conhecia. Elaborei
assunto da reunião e como continuidade lógica uma proposta de Regulamento –– obrigatória
da intervenção. Os habitantes mais próximos se para o registro oficial –– tentando ““traduzir”” os
engajaram muito e pressionavam, amigavelmen- artigos, para torná-los compreensíveis às pes-
te, para que eu os ajudasse. Decidi assumir o pa- soas.
pel de animador da idéia da associação e exortei A idéia, nesse momento, não era fazer uma
as pessoas a se engajarem ainda mais e a tomarem grande assembléia de habitantes, mas antes ele-
a si a organização desta, com minha ajuda. ger uma bancada provisória, esperando as verda-
Os habitantes que se interessavam pelo fu- deiras eleições em seis meses. As pessoas mal se
turo do bairro não conseguiam formar comis- conheciam, pois moravam juntas no bairro há
sões para colocar em prática suas idéias. Os lí- apenas seis meses, às vezes até menos. Com a su-
deres potenciais tinham medo de assumir um gestão da idéia da bancada provisória, visava-se
papel mais ativo, talvez por não se sentirem pre- dar tempo aos dirigentes para se fazer conhecer e
parados ou por terem medo dos pedidos e re- aprender o funcionamento de uma associação. 85
clamações dos outros habitantes.
Durante esse período, uma das habitantes,
Rute, distinguiu-se pelo seu papel na organiza- Nossa experiência conjunta no bairro
ção da discussão. Os presentes a levaram a as-
sumir a presidência da associação. Assim, uma A assembléia de fundação da associação de-
das dificuldades do trabalho comunitário –– a veria realizar-se na sede onde funcionava a re-
designação de líderes –– estava resolvida, ao me- presentação da Prefeitura no bairro, à noite. A
nos para esse grupo restrito. A designação de quantidade de participantes surpreendeu a to-
Rute foi feita considerando-se o aproveitamen- dos, sendo mais de 40 pessoas, ao invés das 20
to coletivo de sua liderança, em razão do seu esperadas. Fomos para a rua, pois o local era
tempo livre, de sua disposição para servir, de sua muito pequeno, e os participantes que não ti-
competência. Uma atitude madura, que contras- nham levado suas cadeiras ficaram de pé. Rute

O desenrolar da experiência piloto


tava com a ignorância sobre o funcionamento e eu conduzimos a discussão do Regulamento e
da organização comunitária (eles perguntavam cada artigo proposto foi discutido com muito
o que era uma associação, quais eram os postos interesse. Apesar de meu esforço para deixar as
a ocupar, como se faz uma assembléia, etc.). coisas mais simples, alguns artigos continuaram
Depois dessa etapa, as pessoas entraram em a não ser entendidos.
acordo para uma assembléia na semana seguin- Essa discussão foi seguida da eleição dos
te, para legitimar a escolha de Rute e discutir o membros da associação. O ambiente era de ti-
Regulamento da associação. Cada um dos pre- midez, pois os presentes não se conheciam bem,
sentes se encarregou de convidar outras pesso- salvo o grupo que havia organizado a assembléia.
© Débora Nunes.

86

Leitura e aprovação do estatuto da Associação de Moradores.

Cada candidato (único, por posto) se apresenta- eleição correspondia à realização de uma obri-
va, espontaneamente ou empurrado pelos com- gação legal para se ter acesso a uma casa para a
panheiros, e deveria ser eleito pelos aplausos. creche. O Regulamento aprovado pelos presen-
Como as pessoas não o conheciam, ou pouco, a tes previa eleições em seis meses, e a idéia era
eleição era um pouco forçada. Era evidente que a que as coisas se organizariam melhor a seguir.
iniciativa de uma assembléia era desconhecida Na semana seguinte, uma nova reunião foi
dos habitantes, e os dirigentes da reunião tenta- realizada para dar continuidade à regularização
vam organizar mais ou menos as coisas. Outro da associação. Durante toda a semana, a associ-
membro do grupo, Ada, mostrava um certo co- ação foi o assunto das conversas no bairro. Rute
nhecimento das iniciativas a serem completadas foi tratada com hostilidade por alguns habitan-
e ajudou as pessoas a preencher os documentos tes, que eram contra a sua eleição para presi-
Pedagogia da participação

de fundação. dente. Eles a reprovavam por ser mulher e por


Os membros da bancada provisória eram não ter nem a autoridade, nem os amigos im-
todos pessoas que haviam anteriormente parti- portantes que poderiam ajudar o bairro. Eles
cipado das atividades pedagógicas; Rute foi es- queriam um líder forte.
colhida como presidente. Os membros eram No dia previsto para o reencontro, a reu-
quase todos ignorantes dos atos de uma associa- nião começou com a presença dos membros da
ção, mas parecia estar claro para todos que sua bancada, mas pouco a pouco foram chegando
outros habitantes. As pessoas contestavam a elei- ciação seria uma perda também do ponto de vista
ção feita e propunham o nome de Aristeu para pedagógico, considerando-se todo o processo
a presidência. Aristeu, como visto anteriormen- desenvolvido até então. Depois de muita confu-
te, era um soldado da polícia, licenciado do seu são e de dificuldades provocadas por Aristeu ––
cargo, que dirigia a pequena força de segurança que queria escolher ““sua diretoria”” –– o compro-
que protegia o patrimônio da Prefeitura e das misso foi aceito.
empresas de construção desde o começo da
construção do bairro. Ele era muito conhecido
e amado pelos habitantes. A Associação em ação
A resistência ao nome de Aristeu, por parte
das pessoas interessadas na construção da asso- Coloquei-me à disposição da bancada elei-
ciação, devia-se ao fato de que ele não era um ta para ajudar nas iniciativas de legalização da
habitante do bairro. Essas pessoas se inquieta- associação e fui, eu mesma, com Aristeu, iniciar
vam pela incerteza de sua permanência, o que o processo de registro no cartório. Em seguida,
poderia comprometer a continuidade da orga- a associação não esteve muito ativa, talvez pela
nização coletiva. É também verdade que o cará- falta de experiência ou de interesse de seu pre- 87
ter de Aristeu estava em contradição com as ini- sidente. Os membros da diretoria provisória da
ciativas participativas realizadas, pois seu com- associação se reuniram poucas vezes e essas reu-
portamento era paternalista e centralizador, tí- niões não foram nada produtivas, no sentido de
pico dos políticos populistas. A atitude do ani- fazer uma programação do trabalho e definir as
mador externo na assembléia era de apoiar o responsabilidades de cada membro. As relações
grupo, já que o trabalho comunitário que se ti- entre o presidente e a bancada provisória eram
nha em vista requeria líderes de caráter mais ruins; Aristeu criticava freqüentemente os di-
mobilizador e democrático. retores, que ele não tinha escolhido e com os
O clima estava muito tenso, com Aristeu quais não estava contente. Entretanto, bem no
levantando suspeitas sobre a honestidade e a seu estilo, conseguiu favorecer um dos dirigen-
competência de alguns membros da bancada tes de que mais gostava, intercedendo junto aos
provisória. Para tentar resolver a situação, ten- funcionários da Prefeitura para trocar a casa des-

O desenrolar da experiência piloto


tou-se convencer as pessoas a assumir um com- te para uma rua mais valorizada do bairro. Por
promisso: o diretório ficaria o mesmo e Aristeu outro lado, alguns membros da associação dizi-
seria o presidente; Rute ocuparia um outro lu- am que Aristeu não era eficaz, que ele era
gar no diretório. centralizador, etc... Os rumores corriam nos dois
Era necessário garantir a legitimidade da sentidos pela comunidade.
Assembléia, que havia sido realizada uma sema- Na prática, a associação não funcionou e,
na antes, garantindo assim a manifestação dos pouco tempo depois, Aristeu deixou o bairro por
habitantes nesse momento. O descrédito des- motivos particulares. Os documentos para a le-
ses procedimentos para a organização da asso- galização da associação desapareceram por al-
gum tempo, e ninguém falava mais no assunto, a ção. Isso quer dizer que a etapa de persuasão
menos que para criticar a imobilidade da associ- das pessoas relativamente à necessidade de uma
ação. Entretanto, com as iniciativas para criar a ação organizada já estava realizada, antes mes-
creche, as pessoas e eu mesma pressionamos mo do começo de nossa intervenção. Almeida
Aristeu para que ele devolvesse os documentos, (1992) percebeu essa situação nos movimentos
o que acabou fazendo. Foi assim que, alguns populares em Belo Horizonte: o grupo, quan-
meses depois, foi criada a Associação de Mães do se auto-refere como uma ““comunidade””,
do Vila Verde, que preencheu o vazio deixado obtém a legitimidade para se tornar interlocutor
pela associação dos habitantes. à altura de argumentar com as autoridades.
As respostas ao questionário inicial da pes-
quisa, que continha perguntas sobre o engaja-
Avaliação da ação coletiva mento dos habitantes em ações coletivas, mos-
tram essa atitude. Por exemplo, à pergunta ““Você
É certo que, mesmo com os contratempos, está interessado em participar de reuniões para
uma etapa da intervenção estava concluída: as discutir os problemas do bairro?”” 92,1% dos
88 pessoas tinham tido uma experiência concreta entrevistados respondeu ““SIM”” e, 7,9%,
de organização coletiva. Toda essa iniciativa de ““NÃO””. As respostas às questões seguintes re-
criação da associação deixou evidente a dificul- forçam a primeira; assim, à questão ““Quais são
dade de criar e manter uma instituição que pode as atitudes que cada um poderia ter para me-
ser portadora de direitos. Também ficou claro lhorar a vida de todos no bairro?””, 78% respon-
que, sem líderes experientes e interessados em deram ““Todos juntos, poderíamos fazer muitas
iniciativas de mobilização, uma associação não coisas no bairro””; 14% disseram ““Ninguém pode
pode existir realmente. A mesma coisa pode ser fazer nada, pois é responsabilidade das autori-
dita sobre uma associação ““de fachada””. Se não dades””; e 8% assinalaram ““Cada um deve se ocu-
há por trás uma pessoa que saiba jogar o jogo da par de seus afazeres e deixar os outros se ocupa-
manipulação, a associação só poderá se dissol- rem dos deles””. A pergunta ““Para resolver os
ver. Aristeu não era tão experimentado para ver problemas do bairro você pensa que...”” obteve
claramente os benefícios que poderia obter na 94% de marcações em ““A união faz a força””, e
lógica de cooptação eleitoral, por exemplo, pra- 6% em ““Cada um por si e Deus por todos””.
ticada em outras associações. Mesmo que essas questões sejam excessi-
Pedagogia da participação

Um elemento a notar nesse processo: havia vamente ““fechadas”” e indutivas, vimos, em se-
no bairro uma homogeneidade de opiniões so- guida, com a apuração do questionário final, o
bre a necessidade e a eficácia da ação conjunta. qual continha perguntas abertas, respostas muito
Viu-se que a idéia da necessidade de mobilização próximas das citadas acima. À pergunta ““Quais
popular unificada, para conseguir obter o so- as atitudes que cada um poderia ter para me-
corro das autoridades, é muito difundida, assim lhorar a vida de todos?””, 23/37 propõem inicia-
como a crença na potencialidade dessa mobiliza- tivas coletivas (união, reunir, petição, associa-
ção, mutirão; a palavra ““união”” aparece em 8/23 em Salvador em cada bairro para aprofundar a
dessas respostas); 5/37 propõem atitudes práti- discussão desse dado. Entretanto, o que tam-
cas individuais (limpeza, ajudar os outros); tam- bém ficou claro é que durante a experiência-
bém 5/37 mostram uma certa impotência, di- piloto não podíamos ver as conseqüências des-
zendo que ““é difícil”” ou que ““não há nada a fa- sas idéias na prática. Mesmo tendo havido uma
zer””, ou, ainda, que ““isso depende das autorida- mobilização significativa das pessoas, por exem-
des””, ou que ““o problema é o desemprego””. Fi- plo, para fundar a associação, na hora do en-
nalmente, 4/37 propõem ““cada um por si””. À contro para estabelecê-la ali não havia o mesmo
questão ““Na sua opinião, como é possível re- número de pessoas que responderam estar in-
solver os problemas do bairro?””, 35/38 respos- teressadas. Pôde-se constatar que, mesmo se as
tas são positivas, dizendo que os habitantes de- pessoas estão preparadas ““ideologicamente”” para
vem se reunir, lutar, ““correr atrás”” das autorida- agir coletivamente, a falta de experiência e de
des, para resolver os problemas, e apenas 3/38 confiança em si as impede de engajar-se.
das respostas são duvidosas ou fatalistas. Um outro obstáculo para a ação coletiva de
Ficou evidente que algumas pessoas que- tipo pedagógico que estávamos propondo era que
riam chamar a atenção sobre si mesmas através as pessoas esperavam líderes ““salvadores””. Seus 89
das afirmações de engajamento. Em todos os discursos na assembléia e, anteriormente, durante
questionários, as perguntas feitas podem levar a as discussões nas atividades pedagógicas, mostra-
um certo tipo de resposta, mas somente se já há vam claramente isso. Elas estariam prontas a agir
uma idéia comum do que se deve responder para coletivamente –– pontualmente, todavia –– assim
ser ““correto””. É isso que é surpreendente: de que vissem um caminho a seguir, mostrado por
onde vêm essa homogeneidade e essa simpatia um líder carismático. Em sua concepção origi-
pela idéia da ação coletiva? De outra parte, de nal, não era possível construir o caminho à me-
onde vem essa confiança na ação das autorida- dida que se desenrolassem as ações.
des? É evidente que as pessoas crêem que é efi- Uma última pergunta foi feita para tentar
caz ir buscar as autoridades (““correr atrás””) para compreender o real interesse das pessoas pela
resolver os problemas do bairro. ação coletiva, com relação aos seus interesses
Talvez seja possível compreender essas ati- pessoais: ““Se por acaso nós soubéssemos que

O desenrolar da experiência piloto


tudes examinando-se as experiências anteriores haveria dinheiro para construir equipamentos
das pessoas, mesmo se relativas a experiências para o bairro e fosse necessário decidir, qual se-
pontuais. Assim, verificou-se que conhecem ria sua opinião? a) é preciso fazer primeiro um
pelo menos as ações reivindicativas e que até ti- posto policial; b) é preciso fazer primeiro o posto
veram boas experiências, pois 41% dos entre- de saúde; c) é preciso fazer primeiro um termi-
vistados disseram que sua experiência de luta nal de ônibus; d) é preciso fazer primeiro uma
foi bem-sucedida e apenas 3% falaram de der- votação para saber a opinião de todos””.
rotas (os demais não souberam responder). Era Metade (46%) das pessoas respondeu que
preciso conhecer muito bem as lutas urbanas era preciso fazer uma votação para conhecer a
opinião de todos, apesar da armadilha contida na tor da escolha do novo nome vinha dos convites
questão. Tratando-se de uma população que tem para as atividades pedagógicas, já rotineiras no
necessidade de todos esses tipos de intervenção bairro, onde ele também era sempre chamado de
pública, o número de pessoas que se preocupa- Vila Verde.
ram com a opinião coletiva parece alto. Entre- Diante dessa confusão, foi proposta a possi-
tanto, diante da quase unanimidade quanto à bilidade de eleger um nome, o que pareceu uma
necessidade da ação conjunta dos habitantes, ob- oportunidade pedagógica muito pertinente ao
servada nas outras perguntas, trata-se de um nú- espírito da intervenção, e levada a idéia aos fun-
mero menos espetacular. Com base na experi- cionários da Prefeitura, para um trabalho con-
ência concreta vivida no bairro, pode-se dizer que junto, que imediatamente a aceitaram. Os habi-
este último número reflete mais a realidade. tantes não se mostraram confiantes quanto à via-
bilidade de uma eleição desse tipo, pois não é
comum em Salvador que as pessoas escolham o
nome do seu bairro. Com o engajamento da Pre-
Segunda ação coletiva: a eleição para a
feitura e os encorajamentos do animador exter-
90 escolha do nome do bairro no, os habitantes também se engajaram e, mais
uma vez, puderam superar sua falta de confiança
O nome do bairro era um problema que como grupo.
existia desde o início de sua construção, várias
denominações já tendo sido dadas ao lugar, o
que ocasionou muita confusão. Para dar conti- Nossa experiência conjunta
nuidade à intervenção, foi proposta uma elei- em Vila Verde
ção com a qual se escolheria o nome do bairro.
Para viabilizá-la, contou-se com os habitantes Os funcionários da Prefeitura se ocuparam
mais engajados, principalmente com aqueles que da lista de votantes e eu, das cédulas de voto.
tinham tomado parte anteriormente na organi- Os nomes propostos aos habitantes –– os mais
zação da associação. comuns –– foram escolhidos conjuntamente com
O nome oficial do bairro era ““COHAB II e eles, em uma reunião. A impressão passada pe-
III””, e esse nome estava impresso nos mapas los habitantes que se interessavam pelo traba-
urbanísticos dos técnicos da Prefeitura e das lho coletivo era a de que eles estavam contribu-
Pedagogia da participação

empresas de construção. Era também o que es- indo com este parceiro externo que, por sua vez,
tava escrito nas faturas de eletricidade das casas. os estava ajudando para que tivessem êxito no
O nome ““Vila Verde”” era o mais conhecido das seu próprio trabalho no bairro. A eleição foi um
pessoas, por causa do bairro de invasão, vizinho, sucesso. Durou toda uma semana: de segunda a
onde uma placa muito rústica sinalizava a en- sexta-feira à tarde, na sede da representação da
trada. Até os motoristas de ônibus da região co- Prefeitura, sob a responsabilidade dos seus fun-
nheciam o bairro por Vila Verde. Um outro fa- cionários; no sábado, sob minha responsabili-
Verde e 47 para Cohab. Houve protestos de pes-
© Débora Nunes.

soas que diziam –– ““Ah, mas esse nome é o nome de um


bairro de invasão, nós seremos confundidos pela polícia
com marginais!””. Apesar disso, parece que era mais
cômodo para as pessoas nada mudar, pois o nome
Vila Verde era o mais conhecido, além de ser o
mais poético. Aparentemente, os funcionários
da Prefeitura preferiam o nome oficial; o resul-
tado, entretanto, foi aceito sem problemas pelo
grupo que organizou a eleição.

Avaliação da ação coletiva

A idéia de organizar uma eleição para esco-


lher o nome do bairro era muito pertinente no 91
Votação para escolha do nome do bairro.
desenrolar da experiência, pois a assembléia de
dade e dos habitantes, em dois postos de votação. fundação da associação acabava de programar
Houve uma participação importante, pois 225 uma para eleger seus dirigentes. A experiência
pessoas votaram num universo de aproximada- seria certamente importante e instrutiva para
mente 400 casas ocupadas. ajudar os membros da associação a fazer a sua
Para a maior parte das pessoas que se envol- eleição seis meses mais tarde. Esse processo tam-
viam com a organização da eleição, ela foi um bém alimentou o espírito de grupo e, através
curso prático de democracia, pois jamais haviam dele, as capacidades de cada uma das pessoas
feito isso anteriormente. Alguns habitantes mais envolvidas começaram a ser reconhecidas: aque-
experimentados, principalmente Ada, Rute e le que fazia bem os cartazes de divulgação, aque-
Judson, dirigiam o processo juntamente comigo les que se comunicavam bem com os habitan-
e os funcionários da prefeitura. Os habitantes tes, etc.

O desenrolar da experiência piloto


votaram muito seriamente, respeitando o segre- O problema que essa ação coletiva revelou
do do voto e o ritual da urna. A contagem de foi a inexperiência de muitos habitantes com a
votos foi feita na presença de vários membros da iniciativa democrática. Apesar de toda a
associação, que acabara de ser criada. Aristeu não mobilização das pessoas para votar, houve algu-
se envolveu com esse movimento e isso ilustra mas contestações ao resultado das eleições. Es-
sua falta de interesse por esse tipo de mobili- sas reclamações não diziam respeito à organiza-
zação. ção do processo; ninguém aventou, por exem-
O nome vencedor foi ““Conjunto Vila Ver- plo, a possibilidade de ilegitimidade dos votos
de””, e sua escolha foi clara: 133 votos para Vila por alguma razão ou de parcialidade da eleição.
Tratava-se, efetivamente, da falta de respeito de Aristeu . Foi preciso propor uma nova atividade
alguns para com a voz da maioria, que havia vota- para estimular o potencial de ação do grupo, pois
do contra a opinião dos que reclamavam. as pessoas ainda não estavam inteiramente pre-
A legitimidade da eleição não foi julgada em paradas para tomar iniciativas. Essa ação foi a or-
si, mas por não se originar de uma instituição ganização de uma escola comunitária de alfabeti-
tradicional, como as eleições municipais. O fato zação de adultos.
de que ela envolvia apenas o bairro e que era A idéia de alfabetizar adultos era apropria-
organizada principalmente por habitantes, a fa- da à nossa intervenção no bairro em vários as-
zia menos respeitável para alguns. Reconhecer pectos. Primeiro, porque no bairro havia uma
o esforço de um grupo para fazer uma eleição real necessidade disso, visto o número de anal-
bem organizada e com a participação de todos fabetos. Depois, porque o método de alfabeti-
revela maturidade política e respeito pela inicia- zação proposto era o de Paulo Freire –– a ““Peda-
tiva em si, diferente do simples reconhecimen- gogia do Oprimido””. Poderíamos, assim, ver ser
to de uma autoridade formal. posta em prática uma das idéias inspiradoras da
O erro do grupo foi o de não divulgar bem pedagogia da participação.
92 o resultado das eleições, como deveria. Para dei- De acordo com o método adotado, o tema
xar o resultado incontestável era importante das aulas deveria ser escolhido a partir da
mostrar sua legitimidade, oriunda do número vivência das pessoas, tendo sido sugerido o bair-
de pessoas que se manifestaram votando, e ex- ro e as condições de vida da população. A idéia
plicar melhor às pessoas o que isso significava. era juntar as discussões desenvolvidas pelos ha-
Apesar das contestações iniciais o nome Vila bitantes até esse momento às atividades peda-
Verde continuou, e mesmo a Prefeitura e a im- gógicas e ações coletivas. O tema do bairro de-
prensa passaram a chamar o bairro assim daí em via dar origem às palavras estudadas a cada dia,
diante, como até hoje. e os alunos deveriam escolher as palavras que
eles gostariam de aprender. A escolha das pala-
vras fazia parte da estratégia de valorizar o co-
nhecimento das pessoas, podendo-se chegar as-
Terceira ação coletiva:
sim a uma alfabetização que é também liberta-
A organização da escola comunitária dora, nas palavras de Paulo Freire.
Os funcionários da Prefeitura cederam o
Pedagogia da participação

Depois da organização da associação e da espaço da sua sede para o desenrolar das aulas, à
eleição do nome do bairro, havia um grupo de noite. Eles queriam se envolver, pedindo mate-
pessoas dispostas a trabalhar em conjunto, mo- rial à Secretaria Municipal de Educação. Mas,
tivadas para agir e que queriam começar a orga- como sempre, as ações da Prefeitura foram
nizar a creche. Entretanto, a iniciativa para re- muito lentas, e o grupo teve de ir buscar ajuda
gistrar a associação para receber a casa da creche em outro lugar. Aristeu, por sua vez, opôs-se à
continuava parada pela falta de interesse de organização da escola, provavelmente porque se
sentia incomodado diante da importância que apoio de Ada à idéia, cujas vantagens ela conhe-
alguns líderes passaram a ter durante a organi- cia, fez a diferença, pois era a única pessoa re-
zação desta. Um dos problemas criados por ele almente experiente. Para contornar a dificulda-
era o constante desaparecimento da chave da de com o método Paulo Freire, escrevi um tex-
sede da Prefeitura no bairro (que ficava sob sua to que foi largamente discutido nas duas reu-
responsabilidade, como chefe da segurança lo- niões semanais dos professores. A idéia das au-
cal), o que, às vezes, impedia a realização das las começava pouco a pouco a ganhar forma.
aulas. Entretanto, entre disputas e negociações, Nas reuniões, a questão material foi cons-
terminou-se por vencer as dificuldades. tantemente discutida. Era impossível para as
pessoas do bairro solucionar esse problema, por
causa de sua penúria. Aqui, foi necessário que o
Nossa experiência conjunta animador externo iniciasse seu papel de inter-
em Vila Verde mediário entre o mundo daqueles que precisa-
vam de ajuda financeira e o mundo dos que
A proposta de fazer uma escola comunitá- podiam e queriam ajudar a iniciativa popular. A
ria foi discutida com várias pessoas e a idéia foi pessoa –– à época chefe do estoque de material 93
muito bem aceita. Duas das pessoas ativas du- de uma empresa –– indicada por amigos comuns,
rante as ultimas ações coletivas, Ada e seu ir- era engajada em trabalhos filantrópicos e se in-
mão, Judson, foram parceiros entusiastas dessa teressou imediatamente pela escola, ajudando
idéia, pois Ada é professora e Judson tinha von- individualmente e através do seu cargo.
tade de agir nesse campo. A escola deveria fun- Uma comissão de ““professoras”” foi então
cionar com voluntários do bairro, de acordo com ver o provável parceiro. Em um contato anteri-
minha sugestão. A idéia era ter um ou dois pro- or eu lhes explicara que essa reunião tinha um
fessores cada noite –– assim, não seria muito di- importante caráter pedagógico, paralelamente ao
fícil encontrar voluntários. Ada, Judson e eu nos seu caráter material –– era necessário mostrar às
encarregamos de encontrá-los, bem como de interessadas que era possível convencer outras
fazer o levantamento do número de adultos in- pessoas a ajudá-las, que elas eram capazes disso
teressados em serem alfabetizados. e que sua iniciativa era digna de admiração. O

O desenrolar da experiência piloto


Várias reuniões foram realizadas com os animador manteve-se como observador da reu-
futuros professores, pessoas que tinham um nião, que foi dirigida por líderes em formação:
grau de escolaridade mais elevado que a média Ada e Rute. O parceiro foi muito simpático e
dos habitantes (aproximadamente oito anos de solidário e as mães presentes ficaram exultantes
escola). O método de alfabetização proposto foi com essa recepção respeitosa. Para elas, serem
objeto de alguns protestos, pois os voluntários recebidas de igual para igual, e mesmo de for-
não o conheciam e isso era uma dificuldade a ma admirativa, por alguém de outra categoria
mais diante do desafio de se tornar professor a social, significava uma experiência nova. Uma
que cada um tinha se lançado. Entretanto, o delas chegou a dizer que este dia seria ““ines-
© Débora Nunes.

94

A escola comunitária em funcionamento.

quecível””. A comissão obteve tudo o que era ne- problemas pessoais entre as pessoas. A equipe de
cessário (mesas, cadeiras, lápis, papel, etc.) e tam- animadores externos garantiu a aula de quarta-
bém se assegurou da disposição do parceiro para feira à noite. De acordo com o método Paulo
continuar ajudando a escola. Freire, os alunos deveriam discutir com os pro-
As aulas começaram no início de setembro. fessores sobre a palavra do dia, antes da aula; essa
No primeiro dia os alunos fizeram uma lista de discussão se mostrava mais interessante nos dias
aproximadamente trinta palavras sobre o tema em que o par de professores era mais experiente.
““a vida no bairro””. Com base nessa lista, os pro- Os alunos logo mostraram sua preferência por
fessores escolheram as palavras que eram apro- alguns dos pares, sendo mais numerosa a presen-
Pedagogia da participação

priadas para começar: deveriam ser simples, do ça nos dias em que seus favoritos davam aulas.
ponto de vista fonético, mas ter um conteúdo Essa situação originou inveja, rancores e a desis-
simbólico importante para as pessoas. As pri- tência de alguns voluntários.
meiras palavras estudadas foram ““comunidade””, Os alunos fizeram progressos rapidamen-
““moradores”” e ““módulo”” (de módulo policial). te. Os habitantes do bairro, sobretudo os vizi-
A organização dos pares de professores de nhos da escola, eram parceiros também, pois
cada dia foi feita com dificuldade, por causa de emprestavam suas cadeiras para suprir as que
faltavam. Um carpinteiro, que havia anterior- as intrigas e a inexperiência da direção acarreta-
mente acompanhado as atividades pedagógicas, ram a desistência de Rute. Em seguida, tendo-
presenteou a escola com um grande banco rústi- se destacado Ada, que se mostrou a pessoa mais
co, que ele mesmo fizera. experiente nas aulas (era professora diplomada),
esta também foi alvo da inveja dos voluntários.
A organização da escola permitiu mostrar a
Avaliação da ação coletiva potencialidade do trabalho coletivo e a capacida-
de das pessoas para cumprir uma tal tarefa, mas
As disputas entre os professores constituí- também mostrou que o caminho era longo, por
ram a maior dificuldade encontrada para o fun- causa da inexperiência das pessoas. Os conflitos
cionamento da escola. No início, a inveja atin- entre os voluntários poderiam ser resolvidos com
gia particularmente Rute. Esta, sendo respon- um pouco de maturidade, mas essa não existia.
sável pela área cultural da associação de habi- Tive um papel de intermediária nos conflitos,
tantes, que ainda existia, tinha sido designada divergências e desentendimentos, e essa media-
como coordenadora da escola. Pouco a pouco, ção permitiu, finalmente, o início das aulas.
95
© Débora Nunes.

O desenrolar da experiência piloto

Cena de um mutirão na creche.


O contato com o parceiro da escola foi o incondicionais. A liderança de Ada se consoli-
primeiro momento, na intervenção, em que os dava a cada dia e ela se tornava uma referência
alunos saíram de seu mundo, do território do no bairro. Por trás da disputa entre Ada e Aristeu,
bairro, o que foi muito instrutivo. Quando as havia uma luta entre dois pontos de vista sobre
pessoas tomam a iniciativa de falar durante a reu- o trabalho comunitário: um, tradicional,
nião, isso mostra um certo grau de independên- centralizador e paternalista, e outro, mobilizador
cia do animador e demonstra que os objetivos da e construtor de vitórias coletivas.
intervenção estão sendo alcançados.
As reuniões dos professores para programar
as aulas da semana seguinte eram um termô-
Quarta ação coletiva:
metro da autonomia do grupo engajado com
relação à ajuda externa, representada por mim. A organização da creche comunitária
No início, as reuniões aconteciam somente se
eu estivesse presente. Pouco a pouco as pessoas Após colocar a escola em funcionamento,
assumiram a direção da escola e, apesar das di- nós nos debruçamos sobre a organização da cre-
96 ficuldades das relações pessoais de alguns dos che, como continuidade lógica do trabalho
professores, essas reuniões se tornaram freqüen- efetuado no bairro. O desafio era difícil, mas
tes. Eu as freqüentava cada vez menos. seu sucesso seria muito útil para as famílias.
A vitória que significou o funcionamento Todas as iniciativas para a organização de uma
da escola revolucionou todo o trabalho poste- creche seriam pertinentes para o processo pe-
rior. Não se falava mais de uma vontade de tra- dagógico em questão.
balhar em conjunto, mas de uma experiência Até esse momento, dois meses após a fun-
concreta. Cada uma das pessoas envolvidas sa- dação da associação, ela não tinha sido registra-
bia o quanto tinha sido difícil alcançar essa vi- da; isso ameaçava o projeto da creche, por causa
tória, ultrapassar sobretudo a inexperiência de da falta de local para seu funcionamento. Quan-
todos e os conflitos interpessoais. Uma vanta- do perguntávamos ao presidente da associação
gem intrínseca da organização da escola é que sobre os documentos necessários, ele dava res-
o prazer de ensinar os outros a ler sensibiliza- postas evasivas e dizia às pessoas que a creche
va a todos, por se tratar de fato de uma expe- não era prioritária. É provável que a motivação
riência gratificante. da reticência de Aristeu fosse a mesma que o
Pedagogia da participação

A organização da escola suscitou uma luta fez rejeitar as iniciativas relacionadas à escola:
de poder entre Ada e Aristeu. Apesar da sua sim- ele temia o prestígio do grupo em ação, que
plicidade material e de seus apenas dez alunos, poderia competir com sua autoridade, particu-
a escola era uma conquista no bairro. Os alunos larmente o prestígio de Ada.
falavam, os professores também, os habitantes É verdade que a organização da creche era
de Vila Verde podiam ver seu funcionamento considerada por alguns como uma maneira de
todas as noites e a escola tinha seus partidários retomar a organização dos habitantes de outro
modo, já que Aristeu bloqueava a ação da associ- discórdia entre eles. Depois de algumas ““sabo-
ação. A idéia era que, com a fundação de um ““Clu- tagens”” da parte daqueles que eram contra a cre-
be de Mães””, por meio do grupo da creche, seria che, encontrou-se uma casa vazia que poderia
possível retomar legalmente as ações no bairro, servir para instalá-la.
esquecendo a associação ““de Aristeu””. A descon-
fiança de Aristeu era assim fundada, mas o
engajamento das pessoas nesse projeto alternati-
Nossa experiência conjunta
vo não era suficiente para abalar o imobilismo da
associação. em Vila Verde
Apesar das dificuldades, a creche desperta-
va o interesse de todo mundo. Desde o começo Várias pessoas foram contatadas tendo em
das atividades pedagógicas, realizaram-se lon- vista encontrar parceiros e receber conselhos
gas discussões sobre a oportunidade de criá-la. e ajuda para organizar a creche. Entre as pes-
Essa idéia causava polêmica: alguns acreditavam soas procuradas algumas possuíam experiên-
na possibilidade de organização de maneira ““co- cia com esse tipo de trabalho ou tinham tido
munitária””, ou seja, sem a ajuda dos poderes contato com instituições semelhantes. O in- 97
públicos, enquanto outros achavam isso impos- teresse desses parceiros de fora do bairro es-
sível. O desafio lançado com a sugestão de criá- timulava o grupo interessado desde o início e
la por meio da organização comunitária era um era um sinal de que a idéia começava a ga-
motor para aqueles que defendiam a primeira nhar forma. Cada um pensava em uma amiga
alternativa. A maior parte dos professores da ou vizinha que tinha filhos e necessitava de
escola e até os alunos interessavam-se pela or- trabalhar. A idéia era começar a organização
ganização da creche. O momento era particu- da creche antes mesmo da resolução do pro-
larmente propício a seu engajamento, pois eles blema dos documentos da associação e, por-
estavam contentes de ver a escola funcionar e tanto, do acesso à casa-sede, pois o processo
se sentiam importantes. de organização prometia ser longo.
A creche era um empreendimento maior A primeira discussão sobre a creche foi rea-
que a escola, e as questões concretas em torno lizada durante uma das reuniões dos professo-

O desenrolar da experiência piloto


de sua organização afetavam interesses diversos res da escola, que aconteciam todos os sábados,
no bairro, como o ilustra o caso da sua sede. A na casa de Ada. As necessidades materiais da cre-
grande força das autoridades do bairro (os fun- che foram o primeiro tema e uma pessoa que já
cionários da Prefeitura e Aristeu, como chefe havia trabalhado em uma entidade com essa,
de segurança) era dispor das casas vazias das Zélia, logo se distinguiu na reunião, por conhe-
quais eles tinham a guarda. Entretanto, eles não cer bem o assunto. Naturalmente isso gerou
entravam em acordo quanto a quem ou a que reações invejosas e, durante todo o processo,
tais casas seriam cedidas e a doação de uma de- ouviram-se comentários como o de que Zélia
las para a creche foi igualmente um ponto de queria ser a ““dona”” da creche.
As reuniões semanais das ““mães da creche””, entendeu com o funcionário da COHAB para
como as chamávamos, eram maratonas. Essas tomar posse de uma última casa vazia. Essa casa,
mulheres nunca haviam tido uma experiência muito mal-localizada, foi de início recusada por
como essa e era muito difícil organizá-las. No- alguns dos envolvidos. Entretanto, após muita
vamente o desconhecimento das regras de orga- discussão, as pessoas perceberam que era me-
nização do trabalho coletivo, baseado nos rituais lhor ter um lugar mal localizado que nenhum.
da democracia direta, era um empecilho ao bom Essa decisão razoável foi difícil de ser tomada.
andamento da experiência. Questões práticas, Durante muito tempo as pessoas do bairro
como o respeito ao horário de início das reuni- continuaram a reclamar da má localização da cre-
ões, a definição, mesmo que precária, da pauta da che e os que costumavam fazer comentários mal-
reunião, a garantia do direito à voz de todos os dosos encontraram aí mais um assunto. Depois
presentes, o respeito à fala de cada um, etc., eram de ter aceito uma casa, a realização dos trabalhos
explicadas a cada vez, pois sempre havia novas de acabamento do local se impunha ao grupo,
““mães”” nas reuniões. Essas mães, pela sua bem como um fechamento do terreno. Isso sig-
inexperiência, tornavam necessário recomeçar nificava um novo momento da ação coletiva, no
98 às vezes a discussão, pois não entendiam que se qual iríamos passar realmente à ação, e as deci-
tinham chegado no meio do processo era preci- sões nas reuniões se tornavam mais concretas.
so respeitar as decisões já tomadas pelos outros. Os trabalhos necessários só poderiam ser feitos
Os professores da escola formavam, junta- através de mutirões. Tratava-se de atividades
mente com outros, o grupo que dirigia a creche. muito cansativas e pesadas (desmatar e nivelar o
As disputas entre esses líderes potenciais faziam terreno, fazer melhorias na casa, etc.), de caráter
com que esse processo de organização aconte- masculino, na tradição local. Portanto, era preci-
cesse muito lentamente, pois tudo era continua- so mobilizar os ““pais”” da creche e sabia-se que
mente reposto em discussão. Os líderes não es- isso não era fácil, pois, desde o início do proces-
tavam muito firmes em seus papéis e em cada so, as mães contavam que seus maridos resistiam
reunião havia desistências; mesmo se estas não às atividades que elas vinham desenvolvendo.
fossem definitivas, causavam um problema de Organizar os mutirões não era fácil de vários
continuidade no trabalho, porque não havia um pontos de vista. Os homens presentes não eram
núcleo consolidado de direção. A gestão do pro- numerosos e isso era um motivo de briga entre
cesso vinha do animador externo, pois eu era o as mães: as que haviam convencido seus mari-
Pedagogia da participação

único elemento ““fixo”” do grupo e, portanto, dos acreditavam ter mais direitos que as demais.
referencial. As pessoas que vinham a um mutirão falavam
O que precipitou os acontecimentos da or- mal das que não estavam presentes sem se dar
ganização da creche foi a percepção de que qua- conta do fato de que no mutirão anterior elas
se todas as casas do bairro já estavam ocupadas e mesmas não estavam presentes. Comecei a re-
que se poderia ficar sem nenhuma. O grupo se gistrar as presenças e isso recolocou um pouco
de ordem. Para atrair as pessoas e criar um espí- durante todo o primeiro ano, graças ao parceiro
rito de comunidade, a cada mutirão organizáva- da escola. Isso permitiu o efetivo início das ati-
mos um almoço coletivo. vidades.
A direção dos trabalhos coletivos constituía A elaboração das regras de funcionamento
uma dificuldade a mais, pois as pessoas queriam da creche foi assunto de várias reuniões, às ve-
creditá-la a mim, mas eu não podia assumir esse zes tensas. As questões discutidas, que iam da
encargo sozinha, pois isso entrava em contradi- maneira de tratar as crianças até a forma de ad-
ção com os princípios da metodologia testada. ministrar o dinheiro recebido eram novas para
Dessa forma, os trabalhos se atrasavam. Era pre- as pessoas. Uma das decisões tomadas, envol-
ciso também uma ““direção técnica”” para as vendo a definição de responsabilidade de três
obras, pois a maioria das pessoas não conhecia a mães diferentes, a cada dia, para tomar conta das
profissão de pedreiro, carpinteiro, etc., e mui- crianças, foi objeto de debates acalorados. Como
tos erros eram cometidos a cada mutirão. E era escolher o trio, apesar das brigas pessoais? Quem
ainda preciso tomar emprestadas as ferramen- iria dirigir essas pessoas sem ferir suas susceti-
tas necessárias aos vizinhos de bairro, o que bilidades? Quem faria o quê na creche? Como
implicava mais responsabilidade pessoal e diante administrar a creche no dia-a-dia? Como admi- 99
do grupo. nistrar o dinheiro da comida? Todas essas ques-
Além dos problemas de organização, havia tões foram objeto de longas e cansativas discus-
problemas materiais –– a falta de água, que atin- sões, nas quais as decisões tomadas em um dia
gia freqüentemente o bairro, e principalmente, eram esquecidas ou contestadas no dia seguinte.
a falta de dinheiro, o que nos levou a buscar Sem dúvida, a coragem e a determinação dos
doações. A soma de dinheiro de que precisáva- líderes da creche, principalmente de Ada e Zélia,
mos era muito pequena, mas não para as pessoas assim como o apoio de um grupo próximo e dos
que não têm nada. No começo, nos dirigimos parceiros externos, é que vêm permitindo seu
aos comerciantes do bairro, que nos ajudaram; funcionamento até hoje. Nada foi idílico nesse
mas com o desenvolvimento dos trabalhos eram processo, mas ele atingiu seu objetivo.
necessárias doações cada vez maiores. O desti-
no da creche se misturou completamente ao da

O desenrolar da experiência piloto


escola, pois fomos buscar a ajuda do mesmo Avaliação da ação coletiva
parceiro, com os mesmos princípios que tive-
mos no contato anterior. Na organização da creche, soubemos en-
Outras iniciativas foram tomadas na busca contrar parceiros, manter essas parcerias e ul-
de doações. Os auxílios externos não eram difí- trapassar as dificuldades advindas dos ““adversá-
ceis de encontrar e, geralmente, as pessoas rios””. Os funcionários da Prefeitura foram par-
contatadas ficavam felizes de poder ajudar esse ceiros muito importantes para encontrar a casa-
tipo de iniciativa. Nossa primeira grande vitó- sede. De sua parte, Aristeu foi um adversário,
ria foi poder garantir a alimentação das crianças na medida em que, discretamente, impedia o
avanço das coisas, seja por reter os documentos tretanto, o problema se repetia desde há muito
necessários à regularização da associação, que, tempo, desde a discussão para a indicação das
assim, não avançava, seja pelos comentários que mães que atuariam a cada dia na creche. Houve
desencorajavam alguns participantes. Na verda- mães que propuseram pagar duas pessoas fixas,
de, ele quase conseguiu impedir a realização do para evitar as possíveis disputas. Elas não com-
primeiro mutirão, pois se recusou a dar a chave preendiam que não havia fundos disponíveis ou,
da casa e foi preciso que se quebrasse o cadeado talvez, aguardassem o apoio de um parceiro ex-
para conseguir trabalhar com os quase 20 vo- terno poderoso. Essa ilusão é reveladora do des-
luntários presentes. Todavia, os verdadeiros ad- conhecimento do que representa um trabalho
versários do grupo eram alguns dos seus pró- comunitário do ponto de vista das responsabili-
prios membros, com sua inexperiência de tra- dades de cada um e, ainda, que a expectativa de
balho coletivo, suas mostras de irresponsabili- uma relação de tutela –– como aquela dos ““assis-
dade para com o projeto e, muitas vezes, pelo tidos felizes”” (WOLF, 1993) –– está sempre pre-
despeito demonstrado diante do prestígio dos sente, apesar dos progressos na direção da auto-
líderes que despontavam. nomia.
100 Os mutirões eram, para mim, a ocasião de
ver o grau de autonomia atingido pelas pessoas ***
em seu trabalho. Várias vezes fiquei decepcio-
nada porque as coisas não andavam em minha Havia, em geral, dois tipos de mulheres que
ausência ou porque as pessoas não agiam antes participavam da organização da creche: as ““ex-
de me consultar. Tentei ser sempre firme, pois perientes”” e as ““necessitadas””. As experientes
sabia que uma excessiva intervenção de minha eram aquelas que tinham realizado um traba-
parte poderia inibir a iniciativa das pessoas. Mas lho coletivo anteriormente e que acreditavam
finalmente compreenderam que deveriam agir, na possibilidade de colocar a creche em funcio-
e aqueles que eram os mais interessados e ti- namento. Normalmente, essas mulheres tinham
nham mais eficácia se destacaram. Em certo um nível de renda e escolaridade levemente su-
momento, um pequeno grupo realmente assu- perior ao das outras. Considerando-se sua cren-
miu a realização dos mutirões, sem a presença ça na possibilidade de conseguir fazer a creche
do animador externo. funcionar, elas não eram mais prisioneiras dos
Um problema de base sempre esteve pre- efeitos da estigmatização.
Pedagogia da participação

sente: o interesse de algumas mães em serem As ““necessitadas”” eram mulheres que vivi-
contratadas em seguida, quando a creche esti- am em condições muito difíceis. Entre elas ha-
vesse ““pronta””. Para as pessoas de espírito mais via mulheres muito jovens, com um comporta-
““comunitário””, esse desejo, que transparecia em mento às vezes irresponsável em face do coleti-
algumas, era um verdadeiro pecado. Assim, eu vo. Elas eram atraídas para a ação coletiva por-
sempre tinha de lembrar às pessoas que desejar que precisavam dos serviços propostos, mas não
um emprego era uma aspiração legítima. En- se davam conta do percurso a completar. Algu-
mas nem acreditavam nisso. As ““necessitadas”” das em conjunto. O objetivo era favorecer a
tornavam o processo ainda mais difícil, pois não integração das pessoas, descontrair o ambiente
compreendiam que a creche era uma coisa que do grupo e promover pequenas vitórias coleti-
deveria ser construída. Tinham, assim, uma certa vas. Algumas dessas iniciativas foram muito bem-
falta de compromisso com essa construção, ape- sucedidas e outras, menos, tendo em vista o ob-
sar de serem as que mais precisavam do funciona- jetivo utilitário; entretanto, o fato de ““fazer algo””
mento desse equipamento comunitário, até para a e de fazê-lo em grupo, significava sempre um
alimentação de seus filhos, o que fazia com que aprendizado do trabalho coletivo. Para organizar
sempre brigassem, por vezes deixando tenso o essas iniciativas sempre tive o apoio das pessoas
ambiente das reuniões e dos mutirões. mais engajadas, que diziam ter vontade de me
As mais experientes entendiam que o que prestar um serviço para me agradecer pela minha
iria acontecer dependia delas e, desse modo, to- dedicação ao bairro. Como exemplo dessas ações,
mavam mais cuidado com as palavras, chegan- será citado o concurso de textos que foi realiza-
do às vezes a voltar atrás para pedir desculpas, do.
se isso fosse necessário para manter um bom Durante o período de organização da cre-
ambiente de trabalho. Entretanto, entre estas, a che, fizemos um concurso de redação sobre o 101
dificuldade vinha das brigas por espaço, pois tema ““Meu bairro como ele é e como eu gosta-
cada uma queria se distinguir mais que as ria que ele fosse um dia””, também consideran-
outras, inclusive diante do animador externo. do a necessidade da pesquisa de contar com
Essa distinção entre ““experientes”” e ““ neces- materiais de estudo, escritos, que contivessem
sitadas”” é um pouco sumária, pois havia com- o próprio pensamento das pessoas sobre o bair-
portamentos de todos os tipos e nunca ninguém ro. O concurso não foi organizado no momen-
foi um modelo de mulher ““experiente””, dedica- to das atividades pedagógicas, o que talvez fosse
da à causa da creche. Aqui, também foram vis- mais lógico, mas menos eficaz, pois, na época,
tos altos e baixos em cada uma. Trata-se antes as pessoas não tinham vivido o suficiente no
de tendências, como as que sinalizamos ante- bairro para falar disso. O fato de ser realizado
riormente, sobre os pólos ““potencialmente durante as ações coletivas conferiu-lhe um pa-
engajado”” e ““potencialmente anômico””. pel destacado nos eventos do bairro naquele

O desenrolar da experiência piloto


momento: foi um motor de integração entre as
pessoas que trabalhavam para a escola e aquelas
da creche.
Outras iniciativas pedagógicas
Doze pessoas participaram desse concurso,
e alguns erros exemplares observando-se que quase todas tinham, ante-
riormente, se vinculado às iniciativas de inter-
Durante toda a duração das ações coletivas, venção, seja no âmbito das atividades pedagógi-
o animador externo tentou organizar atividades cas, seja no das ações coletivas. O júri compre-
complementares àquelas que eram desenvolvi- endia um professor universitário, Ada (a pro-
© Débora Nunes.

Crianças em momento de repouso na creche comunitária de Vila Verde.


102
fessora da escola e líder, já citada), e eu mesma. O A análise dos textos permitiu verificar-se
apoio dos líderes do bairro contribuiu para o que os participantes desse concurso tinham de-
sucesso do concurso, pois eles ajudaram a ins- sejos muito precisos para o futuro do bairro e
crever as pessoas e a motivá-las, em seguida, a eram bem ambiciosos em seus reivindicações.
produzirem seus textos. De uma maneira geral, as pessoas achavam que,
A festa de entrega de prêmios foi cuidadosa- naquele momento, o bairro estava razoavelmen-
mente organizada pelas mulheres da creche e da te bem estruturado e concebiam o seu futuro
escola, cada uma delas tendo contribuído fazen- de forma bem otimista. Suas listas de melhorias
do um bolo. Essa foi a ocasião de reunir os alu- necessárias misturavam a falta de serviços urba-
nos da escola, os professores e as pessoas da cre- nos e as dificuldades de relações de vizinhança,
che, além dos participantes do concurso, em tor- como se se tratasse de problemas de mesma na-
no da mesma mesa. O momento da festa foi im- tureza. Quando os textos falavam dos proble-
portante para dar uma outra atmosfera às ati- mas do bairro, raramente se referiam às autori-
vidades, normalmente muito cansativas, seja fí- dades especificamente; alguns mencionaram um
Pedagogia da participação

sica (mutirões), seja intelectualmente (reuni- ““presidente do bairro”” ou uma associação. O


ões). Os prêmios, bem modestos (um jantar para clima de engajamento no qual vivia o grupo das
duas pessoas em uma pizzaria, duas entradas pessoas envolvidas nas ações coletivas transpa-
para o circo e duas entradas para o cinema), fo- recia nos textos, o que fez com que esses não
ram financiados pelo membro do júri estranho pudessem ser considerados representativos do
ao bairro, o professor universitário, que quis conjunto de habitantes do Vila Verde à época.
ajudar a pesquisa e as pessoas.
Alguns erros exemplares concentração dos poderes na sociedade brasi-
leira (com o presidencialismo, por exemplo)
Alguns erros de conduta por parte do ani- ou pelo modelo familiar patriarcal (ou matriar-
mador externo foram fonte de problemas ou cal, depende do caso), sempre centrado em
de atrasos no processo que se desenrolava no uma única autoridade. As pessoas diziam que
bairro. É importante assinalá-los, já que um dos a idéia de vários líderes iria semear a confusão,
objetivos deste livro é oferecer algumas cha- que era preciso ter um só presidente para a as-
ves para a ação concreta. Eles são exemplares sociação e não os três ““coordenadores”” propos-
do fato de que a presença do animador em cam- tos. Diante dessa resistência, renunciei à mi-
po, mesmo se constante, não é nunca comple- nha posição para observar o modo pelo qual os
ta e que, por essa razão, não é possível se saber próprios habitantes se organizavam. Insistir no
tudo o que acontece, o que gera o risco de fal- contrário poderia levar as pessoas a criarem
sos julgamentos. Além disso, esses exemplos estruturas artificiais simplesmente para agra-
exprimem alguns aspectos da realidade que são dar ao animador externo. As coisas se organi-
importantes para a compreensão do quadro zaram sozinhas e, para alguns, cujas diferenças
geral. com o outro grupo eram mais de caráter pes- 103
Durante a organização da associação dos soal, estas foram se apagando pouco a pouco,
habitantes, surgiu uma disputa entre dois gru- permitindo o trabalho conjunto.
pos de habitantes. A ação desses grupos, que Um outro aspecto a ser observado é a con-
pretendiam, ambos, a mobilização dos habitan- tradição que se desenvolveu durante algum tem-
tes, me parecia bem homogênea, comparati- po entre o animador e a maioria das mães da
vamente àquela, autoritária, de Aristeu. Esfor- creche, por causa de uma das dirigentes do tra-
cei-me bastante, em várias conversas com os balho comunitário. Tratava-se de uma das pes-
líderes, para derrubar as desconfianças que ain- soas mais capazes e das mais confiáveis na ação
da existiam de parte a parte e realizar a união que se realizava, ocupando-se da administração
dos dois grupos. Em uma reunião para viabili- do pouco dinheiro que a creche tinha inicial-
zar esse acordo, propus uma direção colegiada mente assim como de anotar a presença das mães
para contar-se com a presença de todos e, as- nos mutirões. Essa ““anotação”” servia de ““crédi-

O desenrolar da experiência piloto


sim, selar-se a união. Essa proposta desagra- to”” às mães para reservar a vaga de seus filhos
dou totalmente as pessoas envolvidas. Para eles, na creche. As contestações das outras mães com
nesse caso, não havia nenhum sentido dividir relação a essa mulher eram numerosas. No iní-
o poder em nome de uma unidade de ação e se cio, pensei que se tratava do fenômeno da inve-
mantiveram em disputa; observe-se ainda que ja, ligado à distinção dessa mulher relativamen-
um dos grupos, em seguida, apoiou parcial- te às demais; porém, no decorrer do processo,
mente Aristeu, como já visto. fui me dando conta de que algumas das suas
Essa concepção, avessa à divisão de pode- características pessoais não eram adaptadas ao
res, pode ser talvez explicada pela excessiva trabalho coletivo. De certo ponto de vista era
uma excelente gestora, mas sua excessiva exigên- que não deixava seu filho brincar com as outras
cia de ordem e seu perfeccionismo eram inade- crianças da creche. Apesar de saber da falta que
quados. Um tal comportamento inspirava nas essa mulher faria, com sua capacidade prática,
pessoas o pensamento de que ela se sentia su- nos caminhos de construção da creche, deixei de
perior aos outros, o que era reforçado pelo fato, defendê-la diante do grupo e ela terminou por se
que não presenciei, mas que me foi relatado, de afastar do trabalho comunitário.

104
Pedagogia da participação
CAPÍTULO IV

Os resultados
práticos da experiência
pativo, do ponto de vista das relações internas
I –– A mudança no entre os moradores e da relação desses com os
agentes externos, certamente seriam outras.
comportamento dos Nos casos semelhantes ao de Vila Verde, que 105
habitantes não suscitam o interesse do mercado imobiliá-
rio e em que os habitantes não possuem experi-
ência de organização e de luta coletiva, o que se
passou ali pode ter caráter mais exemplar. Evi-
Após a descrição e discussão da experiên- dentemente, todos os bairros e todas as popula-
cia-piloto de Pedagogia da Participação do Vila ções apresentam suas particularidades e é o bom
Verde passa-se agora à sua avaliação e à inter- senso do pesquisador ativo que deverá prevale-
pretação dos resultados, para aferir as possibili- cer ao ler cada aspecto dos temas aqui tratados,
dades de generalizações. Estas poderão tornar- considerando a sua possível aplicação em outro
se suporte para outras intervenções da mesma contexto.
natureza em outros bairros populares, levando- Duas grandes lições podem ser tiradas des-

Os resultados práticos da experiência


se em consideração, entretanto, as peculiarida- sa experiência. A primeira lição é que ela se fun-
des de cada experiência. Neste caso, por exem- damentou na busca de um entendimento de
plo, era preciso levar em conta os fatos de que base antropológica acerca das condições de vida
nunca tinha havido no bairro uma associação da pobreza; a segunda, é a atenção particular que
de moradores solidamente constituída e legiti- foi dada às características das relações entre os
mada em sua ação e de o Vila Verde não se situar pobres e a elite. Desses pontos de vista, estima-
em local particularmente atraente para a espe- se que os habitantes de Vila Verde são represen-
culação imobiliária. Nos bairros de melhor lo- tativos do que acontece e aconteceria em ou-
calização e/ou que tenham tradições de lutas tros bairros pobres e que a maioria dos princí-
coletivas, as dinâmicas de um processo partici- pios de ação empregados pode ser considerada
para uma utilização mais vasta. O que significa ro, tais resultados práticos não poderiam ser ob-
que esses princípios podem ser válidos para fun- tidos em tão curto espaço de tempo sem uma
damentar outras intervenções em bairros popu- intervenção externa. Se fosse necessário dar a
lares, além daquelas de caráter urbanístico, chave do nosso sucesso, falaríamos da confiança
como, por exemplo, iniciativas na área da saúde das pessoas em si e no grupo, que soubemos es-
pública ou da educação de adultos. Isso, logica- timular e se tornou, em seguida, o motor das
mente, desde que essas intervenções tenham ações no bairro. Essa maneira de abordar a inter-
como pano de fundo uma busca da pedagogia venção externa nos bairros pobres para enfrentar
da participação e a aprendizagem da cidadania. os problemas sociais foi resumida por Dumas e
Os resultados práticos da experiência serão Seguier (1997) em uma frase lapidar: ““Estimular
examinados, em primeiro lugar, com relação às o desafio, combater a desesperança””. Eles afir-
mudanças no comportamento dos habitantes. mam que, ““em grupo, as pessoas marginalizadas
Em seguida, serão feitas observações sobre o estão à altura de vencer as múltiplas dificuldades
papel e o comportamento do animador externo para afirmar sua identidade e tomar parte no jogo
em campo, no que esses dois fatores tiveram de social””. O mesmo comentário pode ser feito so-
106 decisivo para a obtenção desses resultados prá- bre o que aconteceu em Vila Verde.
ticos favoráveis.
Dois tipos de resultados práticos foram ob-
servados: os que mostram uma melhoria do Despertar do interesse das pessoas
quadro de vida dos habitantes e os que demons- para o coletivo
tram a existência de um processo de aprendiza-
gem da cidadania, resultado da pedagogia da Em uma escala concreta em direção à ação
participação. Os primeiros são vinculados à im- autônoma, o primeiro resultado que obtivemos
plantação da escola e da creche comunitária no foi o aumento do interesse das pessoas pelas
bairro, com as dezenas de beneficiados diretos. questões coletivas. Como vimos, o interesse es-
Os segundos são constituídos de um conjunto pontâneo ia para as questões pessoais e familia-
de sinais que revelam que os que se engajaram res e para aquelas ligadas à sobrevivência. É pre-
nas iniciativas passaram a um estado superior ciso dizer, entretanto, que antes de nossa che-
da cidadania: aquele em que cada um é capaz de gada no bairro as pessoas já cuidavam dos pro-
agir sobre seu destino. blemas cotidianos, como a falta de água, de ôni-
Pedagogia da participação

Esses resultados práticos, que serão discuti- bus, etc., e até se manifestavam para chamar a
dos a seguir, não podem ser creditados unicamen- atenção das autoridades. Mas tratava-se, naquele
te à experiência-piloto. É preciso levar em conta momento, de ações isoladas, como espasmos,
algumas condições favoráveis encontradas no sem preocupação de continuidade.
bairro, particularmente a existência de líderes De maneira geral, é visível que os proble-
mobilizadores potenciais de qualidade. Não é mas de cada um ou de cada família se resolvem
difícil afirmar, entretanto, que, no caso desse bair- em seu seio e não são coletivizados, identifica-
dos como problemas sociais mais amplos. Ob- ao Estado (mesmo em se tratando de um Estado
serva-se que a solidariedade de proximidade, que assistencialista), não há um engajamento profun-
existe originalmente na vida cotidiana dos po- do e espontâneo para fazer valer esses direitos.
bres em um bairro como Vila Verde, é de um Foi nesse contexto que agimos de maneira
tipo quase tribal. Trata-se de uma organização progressiva em nossas primeiras atividades pe-
social que se constitui para enfrentar os proble- dagógicas, para dar um conteúdo concreto à idéia
mas imediatos do grupo. A solidariedade é um de espaço coletivo e aos problemas comuns do
tipo de crédito que cada um adquire relativa- grupo. A maquete, o grande mapa urbanístico,
mente àquele a que ajudou e ao grupo ao qual a discussão das prioridades do bairro e a busca
pertence e que aprova seu comportamento so- dos meios para ultrapassar os problemas eram o
lidário. Essa solidariedade será ““recompensada”” objeto desses encontros. Entretanto, o movi-
um dia e é, assim, sobre uma relação direta, que mento mais importante naquela etapa não foi a
se estabelecem os laços cotidianos. transformação dos habitantes em reivindicantes
A solidariedade coletiva, a que fundou, por e credores de serviços de uma maneira coletiva.
exemplo, o Welfare State, é baseada em uma O essencial foi que tomassem consciência de sua
racionalidade mais ampla, que não é ““natural””, capacidade de fazer valer os seus direitos. 107
requer ser aprendida. A passagem da solidarie- Por exemplo, é provável que as discussões
dade de proximidade àquela que concerne à co- durante as atividades em torno do tema ““o bair-
letividade é tributária, em sua origem, de uma ro”” tenham estado na origem da decisão das
construção ideológica. Primeiro, é preciso ter um pessoas de se organizar em associação. Os diri-
sentimento de pertencer a um grupo mais am- gentes dessa iniciativa estavam entre os mais
plo que aquele com o qual se tem relações dire- assíduos e os mais ativos participantes dessas
tas. É somente a partir daí que, ultrapassando os atividades. A organização dessa associação, mes-
interesses pessoais e imediatos, impõem-se as mo se, finalmente, ela não seguiu adiante como
idéias de igualdade e o projeto de coesão social. associação de habitantes e sim como Clube de
Finalmente, chega-se a uma etapa de construção Mães, revelou uma vontade de intervir de ma-
de uma instância garantidora da solidariedade, neira coletiva, organizada, mas sobretudo de
como, no caso europeu, o Estado-providência. inscrever a ação coletiva no longo termo.

Os resultados práticos da experiência


Em um país como o Brasil, onde essa cons- Um outro exemplo da construção da idéia
trução ideológica ainda não está completa, este de solidariedade coletiva é a organização da cre-
tipo de solidariedade coletiva ampliada não está che. Se existia, por exemplo, uma tendência
inscrita profundamente nos usos e costumes. É a natural a cuidar do filho da vizinha quando ela
forte solidariedade de proximidade que tem o saía para fazer compras ou para ir ao médico,
papel de garantidora da sobrevivência. Entretan- esse raciocínio não ultrapassava o horizonte
to, mesmo existindo em algumas pessoas, como imediato dos vizinhos. O fato de levar em con-
foi visto, a consciência (mais ou menos adquiri- sideração que essa mesma necessidade existia em
da) de que são credoras de direitos relativamente todas as famílias, de refletir a longo termo e de
Tabela 11
““Sobre quais assuntos você gosta de conversar?””
Entre os habitantes não-
Entre os habitantes
envolvidos com a
Assuntos das conversas envolvidos (18
experiência-piloto (20
entrevistas)
entrevistas)
Vida privada (família, amores, trabalho, lazeres) 30% 11,1%
Vida privada e religião 20% 11,1%
Vida privada e bairro 10% 38,8%
Vida privada e outros temas 40% 38,8%

Obs: síntese das respostas dadas a uma questão aberta.


Fonte: pesquisa de campo.

organizar, em seguida, uma creche comunitá- busca de emprego. O desemprego é uma reali-
ria, foi, para as pessoas, um passo a mais na aqui- dade do bairro, como vimos, mas as iniciativas
108 sição da cidadania. para resolvê-lo são pessoais. O grupo da creche
Uma outra maneira de entender o interes- e da escola transformou o desemprego em pro-
se das pessoas pelo coletivo é a comparação dos blema coletivo quando utilizou essas estruturas
questionários. O primeiro, aplicado no início da –– e sua respeitabilidade –– o serviço das pessoas,
experiência-piloto, mostrava um interesse ma- como mostra um panfleto que foi produzido
joritário pelas questões imediatas e de sobrevi- pelo grupo. Esse panfleto, assinado pelo ““Clu-
vência. No questionário final, aplicado um ano be de mães do Vila Verde””, oferecia serviços di-
depois do primeiro, pôde-se observar uma di- versos e dava o telefone comunitário normal-
ferença entre as pessoas engajadas e as demais. mente utilizado pela creche; ele foi distribuído
As respostas ao questionário final mostravam também fora do bairro através dos parceiros das
que as pessoas engajadas nas atividades pedagó- iniciativas comunitárias.
gicas e ações coletivas estavam mais interessa-
das pelos assuntos coletivos do que as que não
participaram dos acontecimentos. A diferença é Aprendizado das iniciativas
particularmente evidente no caso da ultrapas- de trabalho coletivo
Pedagogia da participação

sagem das preocupações privadas como interesse


principal da vida das pessoas e do grau de A aprendizagem do trabalho coletivo come-
engajamento nos problemas do bairro. ça pelo domínio das regras do debate em grupo
Um último exemplo do despertar do inte- e se realiza na ultrapassagem dos conflitos em
resse para o coletivo vai confirmar também a torno da tarefa a ser realizada em conjunto para
capacidade de iniciativa nos habitantes. Trata- atingir os objetivos comuns. Desde o início da
se da organização de uma estrutura coletiva de experiência-piloto, foi feito o diagnóstico de que
os pobres, por causa de sua inserção social es- se devem, prioritariamente, como visto, à inve-
pecífica, têm menos experiência nas discussões ja despertada pelos que se distinguem.
coletivas. Nas primeiras reuniões, foi constata- Se as reuniões públicas certamente ensina-
da a falta de experiência das pessoas nos proce- ram aos participantes os elementos do debate
dimentos do debate, mesmo para os mais sim- público, a organização da escola comunitária foi
ples. O respeito dos horários de uma reunião, um exercício formador para a ação coletiva con-
do momento da fala de cada um, da concentra- creta, que permitiu outras vitórias posteriores.
ção do debate em temas definidos previamente Todavia, o fato de ter conseguido colocar a es-
e, finalmente, o respeito ao voto majoritário, não cola em funcionamento não quer dizer que o
eram práticas adquiridas. grupo de habitantes mais engajados tenha ad-
Assim que essa primeira etapa de aprendi- quirido inteiramente a competência do traba-
zagem do debate e da negociação foi ultrapassa- lho coletivo. A continuidade da ação coletiva e
da, foi necessário enfrentar as dificuldades con- o envolvimento em outras atividades semelhan-
cretas para a realização dos objetivos decididos tes, como a da creche que foi criada a seguir e
coletivamente. Para isso, o grupo engajado teve que representava um desafio superior, é que tes-
de buscar os meios materiais e o conhecimento temunham a aprendizagem. 109
específico. Vimos, por exemplo, que, mesmo Entretanto, num trabalho coletivo, tudo é
depois de reuniões particularmente férteis so- muito frágil, já que, como vimos, por motiva-
bre os problemas do bairro, as pessoas não ti- ções pessoais ou outras, as pessoas envolvidas
nham a idéia de formar uma comissão para pro- podem se afastar da ação e tudo deve ser então
por ações. Quando finalmente ultrapassou-se recomeçado. Isso ocorreu muitas vezes ao longo
essa etapa, com a ajuda do animador externo, as da experiência. Somente um grupo constituído
pessoas se perderam novamente diante das ta- por líderes e pessoas mais persistentes resistiu aos
refas burocráticas que deveriam enfrentar e das percalços, sendo capaz de recomeçar sempre e
iniciativas cotidianas da organização coletiva. garantir a continuidade. Esse núcleo de direção,
Todos esses passos tiveram de ser aprendi- do qual fez parte, nos primeiros tempos, o pró-
dos: a delegação de tarefas de acordo com a ca- prio animador externo, é vital para que experi-
pacidade de cada um; a administração dos con- ências comunitárias dêem certo. Todavia, de uma

Os resultados práticos da experiência


flitos pessoais; a negociação de interesses para certa maneira, a partir de determinado momen-
levar a um compromisso entre todas as partes to da pedagogia da participação, jamais se reco-
envolvidas. Atrás de tudo isso existe um fundo meça um projeto do zero, porque as pessoas que
ideológico: cada um deve ser intimamente con- foram formadas no trabalho coletivo podem sem-
vencido de que vale a pena perseverar, apesar pre ser remobilizadas em caso de necessidade.
das dificuldades. Observam-se aqui idas e vin- Se as estruturas da creche e da escola conti-
das, desistências, pois essa convicção interior é nuam a funcionar, hoje, sem apoios cotidianos
constantemente posta em causa, principalmen- (como os que eram dados anteriormente por
te nos conflitos pessoais no seio do grupo, que mim) e se esses empreendimentos atingem sem-
pre mais beneficiários e aumentam suas respon- coletivas no sentido de um aprendizado da ci-
sabilidades, isso significa que as pessoas apren- dadania. Em um movimento desse tipo, são eles
deram com o processo. Para o animador exter- que podem inscrever sua ““liderança”” de manei-
no e os líderes da experiência ficou a lição acer- ra duradoura no processo. Favorecer a emergên-
ca da fragilidade de cada vitória, dos muitos al- cia desse tipo de líder foi um dos resultados prá-
tos e baixos e da necessidade de ser criativo di- ticos da experiência.
ante das dificuldades, no sentido de perseverar O líder mobilizador é aquele que legitima
e encontrar as mais variadas formas de manter sua liderança pelo seu poder de convencer as
o grupo unido e a esperança na consolidação das pessoas, de mobilizá-las em torno de uma luta
iniciativas. A longo prazo, essa consolidação se baseada em suas próprias forças. Ele deve saber
deu com a profissionalização de alguns mem- persuadir, dar o exemplo e estar acima dos co-
bros do núcleo de direção nos empreendimen- mentários maldosos, dos conflitos interpessoais,
tos em questão e esse parece ser um caminho etc. O líder mobilizador constrói sua ascensão
viável a ser perseguido em outras iniciativas. sobre os outros a partir da influência do exem-
plo: sua dedicação à ação, sempre coletiva, sua
110 capacidade de promover o entendimento entre
Emergência de líderes as pessoas engajadas na ação. Certamente os lí-
““mobilizadores”” deres mobilizadores também têm, às vezes, ati-
tudes típicas dos líderes fortes, como o paterna-
A questão dos líderes já foi aqui discutida, lismo. Isso ocorre devido à penúria que pesa
particularmente a idéia da existência de um tipo sobre as pessoas, levando-as a pedir ajuda, como
de líder ““natural”” de um bairro pobre como o também ao modelo tradicional de liderança. Mas
Vila Verde. O líder que se destaca espontanea- a estratégia do líder mobilizador é antes de tudo
mente em um ambiente de estigmatização e de alertar os que ainda não tomaram consciência
identificação com os ““dominantes”” é o que não dos seus direitos para que eles mesmos possam
entra em contradição com as características ge- reivindicá-los. Para os que já estão conscientes
rais da sociedade. A admiração pelos ““podero- desses direitos, o papel do líder é o de estimulá-
sos”” legitimou Aristeu, no cotidiano, como lí- los a lutar de forma coletiva para ampliar suas
der natural, mas isso, como vimos, não durou conquistas cidadãs.
muito. Para que um líder mobilizador apareça em
Pedagogia da participação

Tratar-se-á agora de um outro tipo de líder, um ambiente como o descrito em Vila Verde, é
que dificilmente nasce sozinho nesse terreno preciso que ele tenha características pessoais,
pouco fértil para as idéias mais libertárias: o lí- ideológicas e políticas diferentes daquelas que
der do tipo ““mobilizador””. Esses líderes (é im- são mais comuns nas circunstâncias. Com base
portante pensar neles sempre no plural, mes- nas entrevistas realizadas com os líderes mais
mo se um dentre eles é preponderante) são os próximos do modelo mobilizador e que se dis-
únicos que podem impulsionar as iniciativas tinguiram durante o processo, evidencia-se que
existe sempre um conjunto de características e Mudança na relação entre
de experiências que estão na origem dos seus os habitantes e a Prefeitura
““talentos””: a imagem de alguém que também
foi líder e serviu de modelo, uma experiência A relação entre os habitantes de Vila Verde
anterior de distinção no esporte ou no movi- e a Prefeitura era muito particular. De um lado,
mento estudantil ou, ainda, a participação em como originários de bairros populares, eles ti-
grupos religiosos com preocupações sociais. O nham a experiência da indiferença dos poderes
exemplo familiar foi muito marcante no caso públicos. Por outro lado, eram beneficiários de
de Vila Verde, no qual, dentre os responsáveis uma ação urbanística de grande porte, a criação
pela escola e pela creche, havia um irmão e uma do seu bairro, e do fato de que existia tempora-
irmã influenciados por uma família ““militante””. riamente uma representação da Prefeitura
Entretanto, a liderança é sempre uma rela- sediada no bairro, enquanto durasse a constru-
ção, um fenômeno de ida e volta, pois o líder ção. Eles estavam, dessa forma, sem referências
reflete os ““liderados””, suas perspectivas e suas claras em suas expectativas com relação ao Po-
potencialidades. Se, em um grupo, pode apare- der Público.
cer um líder mobilizador e não apenas um líder Entretanto, na relação direta entre os habi- 111
forte, ““salvador da pátria””, isso revela que existe tantes e os funcionários da Prefeitura nada ha-
um grupo de ““liderados”” dispostos, maduros para via mudado e tudo se passava como em qual-
enveredar por outros caminhos além daqueles da quer outro bairro popular. Tratava-se da relação
dependência. A emergência de um líder mobiliza- tradicional entre ““pedintes”” e autoridades, de-
dor é assim um sinal de um processo maior de rivada daquela, majoritária, de dependência dos
transformação de mentalidades. Formar um lí- pobres relativamente à elite dirigente. Nessa
der mobilizador não é uma tarefa realizável em relação hierárquica, os habitantes tanto compor-
uma experiência de apenas um ano, mas é possí- tavam-se como ““vítimas””, de forma tímida,
vel criar uma atmosfera favorável a seu surgi- quanto se mostravam, às vezes, ameaçadores e
mento. No início da experiência foi possível ob- revoltados, em situações específicas. O que não
servar que os líderes mais experientes não que- se via era uma relação civilizada e de parceria.
riam se engajar. É o sentimento de ser apoiado,

Os resultados práticos da experiência


Muitas vezes a estratégia de alguns habitantes
de estar sustentado por alguém ou por um grupo era arranjar-se pessoalmente na situação, apro-
que leva os líderes potenciais a se revelarem. Es- ximando-se dos funcionários que trabalhavam
cutemos Rute: ““Eu tinha vontade de fazer alguma no bairro para ter a quem recorrer em caso de
coisa pelo bairro desde quando cheguei, mas foi o seu problema.
apoio que me fez confiar em mim mesma e aceitar res- Perto do fim da experiência, todavia, tudo
ponsabilidades””. Isso pode também ser atribuído a estava mudado, pelo menos para o grupo mais
um sentimento de dever diante do animador ex- mobilizado. Primeiro, com os passos dados em
terno, que, mesmo não sendo do bairro, luta pelo conjunto, as pessoas sabiam a quem se dirigir e
sucesso da ação coletiva. como. Durante alguns episódios, a capacidade
de discussão e de negociação com as autorida- particularmente por parte das pessoas que ha-
des municipais se evidenciou, bem como uma viam vivenciado conjuntamente as ações cole-
capacidade de iniciativa, de afrontamento (por tivas. Próximo do fim da experiência, uma tem-
exemplo, a busca de apoio do jornal de oposi- pestade de verão causou grandes transtornos em
ção à Prefeitura, para pressioná-la) e de resolu- Salvador e o bairro de Vila Verde foi um dos
ção concreta dos problemas (a troca forçada da mais atingidos. Entre cem e duzentas famílias,
casa dada para a creche por uma outra com o segundo a imprensa, viram os telhados de suas
terreno maior). A coragem demonstrada nesses casas voarem com os fortíssimos ventos e en-
episódios vinha também, em grande parte, do contraram-se assim, novamente na condição de
fato de que as pessoas tinham concluído algu- famílias desabrigadas. Faltou eletricidade, o te-
ma coisa, que tinham realizado a escola e a cre- lefone público do bairro quebrou. Não houve
che comunitárias. Eles tinham assim adquirido feridos graves, mas o pânico observado lembrou
uma segurança diante dos funcionários da Pre- aos observadores o que essas pessoas haviam
feitura, aos quais cabia o papel de provedores vivido anteriormente: uma tragédia ainda não
de serviços públicos e equipamentos coletivos. esquecida.
112 Na urgência, os líderes provaram suas ca-
pacidades. Imediatamente o pequeno grupo que
estava à frente da creche e da escola –– entre cin-
Capacidade de ação coletiva
co a dez pessoas –– se mobilizou para ajudar as
autônoma vítimas. Seu trabalho era convencer as pessoas
a deixarem suas casas para evitar tragédias mai-
A capacidade de ação autônoma é, primei- ores, pois as paredes poderiam desabar a qual-
ro, a tomada de iniciativa diante de uma difi- quer momento, acarretando grandes estragos e
culdade, sem influência externa. Entretanto, o perigos. O bar onde antes realizavam-se as ati-
isolamento dos pobres é um dado que não evo- vidades pedagógicas foi transformado em local
luirá antes de mudanças estruturais no país. A de abrigo das famílias. O grupo fez uma grande
penúria de recursos materiais, técnicos e pro- sopa para os sem-teto utilizando a comida das
fissionais nos bairros pobres não vai desapare- crianças da creche (cujo funcionamento foi
cer de uma hora para a outra. Isso significa que suspenso nesse dia). Nesse episódio, os papéis
as pessoas continuarão a viver com necessidade dos atores se cristalizaram. Fui chamada para ir
Pedagogia da participação

das ajudas externas, mesmo se elas não são mais socorrer as pessoas, mas preferi o papel de in-
dependentes para tomar iniciativas. Nesse con- termediária, avisando as autoridades, a impren-
texto, ser autônomo é saber ir buscar um apoio sa, a TV. Aristeu apareceu por alguns minutos e
no momento em que fica evidente que não se é desapareceu em seguida, para logo reaparecer
capaz de alcançar, sozinho, o objetivo. fazendo as pessoas crerem –– como sempre –– que
Um acontecimento mostra que uma real ele tomava as rédeas da situação –– nesse caso,
capacidade de iniciativa se instalou no bairro, dizendo que as telhas para recobrir as casas che-
gariam rapidamente no bairro, o que não acon- Refletindo sobre as conquistas
teceu. A defesa civil mostrou sua experiência da experiência
com essa ordem de problemas, tomando medi-
das urgentes, como dar às pessoas plástico sóli-
do para cobrir as casas provisoriamente e acal- Os resultados positivos, tanto materiais
mar as famílias. quanto ““ideológicos””, que foram explicitados,
A atividade do grupo de socorro improvi- impõem ao pesquisador-ativo –– o animador da
sado não parou por aí, o que mostra um nível experiência –– a questão pragmática: quais os
significativo de capacidade de ação coletiva e de elementos decisivos para o sucesso de uma ex-
solidariedade. Eles arrumaram o local onde es- periência-piloto como esta? Dois aspectos de-
tavam instalados os sem-teto, com colchões, vem ser sinalizados acerca do sucesso da expe-
cadeiras e uma TV emprestada por vizinhos. riência-piloto: o aspecto ““formador”” da primei-
Ajudaram as famílias a organizar suas casas, iam ra etapa, chamada de ““atividades pedagógicas””
e vinham no bairro e contatavam pessoas de fora e, em seguida, o sucesso objetivo das ““ações
para conseguir ajuda. Esse episódio consolidou coletivas””, materializado na escola, na creche,
alguns líderes e desacreditou outros, que ape- etc. Essas duas etapas foram descritas e discu- 113
nas se ocuparam de seus próprios problemas. tidas, e significaram a realização de eventos
Se nos perguntarmos se tudo isso aconte- pouco comuns na vida do bairro, em suas ini-
ceria dessa forma se ninguém tivesse tido an- ciativas e significados. Todavia, uma experi-
tes as experiências de trabalho coletivo no bair- ência desse tipo é, antes de mais nada, a histó-
ro, podemos, com muita certeza, responder ne- ria de contatos pessoais entre o animador e os
gativamente. Foram a formação do grupo de habitantes assim como entre os habitantes
trabalho, a compreensão das etapas a cumprir engajados.
para entrar em acordo e poder agir, e a confi- Na discussão de uma metodologia de ex-
ança mútua das pessoas envolvidas que consti- periência não é fácil reconhecer que a dimen-
tuíram as bases da ação. Além disso, era preci- são ““relações humanas”” tem um lugar decisivo.
so ter a possibilidade concreta de ajudar as pes- É mais comum pensar nas fases sucessivas para
soas fornecendo o lugar onde se abrigar e co- atingir o objetivo, nos procedimentos e ferra-

Os resultados práticos da experiência


mida. Foram os laços estabelecidos anterior- mentas que devem ser utilizados para alcançá-
mente e a existência da creche que permitiram lo. Nossa sociedade de especialistas dá muito
a ajuda concreta. mais importância ao savoir-faire, aos meios ma-
teriais, e mesmo à reflexão a posteriori sobre a
ação (feed back, évaluation post-usage) que à dis-
cussão sobre as relações humanas que influen-
ciam qualquer experiência. Além disso, existe,
segundo Todorov (op. cit.), uma ““tradição
associal”” no pensamento intelectual ocidental,
que não põe em relevo a primazia das relações cida em sua existência pela mãe. Na vida em
humanas na constituição mesma da humanida- sociedade, a busca do reconhecimento se mani-
de10 . Segundo esse autor, a herdeira moderna festa pela ambição de receber continuamente
dessa tradição é a psicanálise, que afirma, com dos outros uma opinião sobre si mesmo, que
Freud, que ““o homem é egoísta e fundamentalmente confirmaria cada um na sua própria existência.
solitário””. Os conceitos psicanalíticos, que atin- Todorov observa que essa confirmação não se
giram uma divulgação e uma vulgarização no- dá sempre a partir de um julgamento positivo,
táveis, criaram a imagem de um indivíduo ori- e que o reconhecimento pode se fazer até pela
ginalmente só, tentando viver em suas relações violência. Entretanto, esses são casos extremos.
sempre conflituosas com os outros. O que é mais comum é a busca da aprovação,
Todorov apresenta-nos uma outra leitura, do amor dos outros. Essa aprovação se faz mais
na qual o homem se constitui como homem em naturalmente se esse ““outro”” ou esses ““outros””
suas relações com os outros. O fundamento das concebem que nossa existência tem uma utili-
relações humanas estaria, assim, na busca –– nem dade, no sentido amplo.
sempre conflituosa –– do ““reconhecimento””. Ainda segundo Todorov, a busca do reco-
114 Além disso, afirma: ““Não existe plenitude sem os nhecimento é tão mais importante que é a par-
outros””. Essa interpretação parece muito perti- tir da opinião dos outros sobre si que cada um
nente quando se observa a experiência de cam- faz um julgamento sobre sua própria pessoa. É
po aqui analisada: o que vemos todo o tempo é desse movimento que nasceria, ou não, a confi-
a busca profunda do outro, do olhar do outro, ança em si. Aqui, é necessário retomar a ques-
do reconhecimento da utilidade de cada um para tão da estigmatização dos pobres, debatida an-
seu entorno –– parceiro, família, grupo ou socie- teriormente. Se partimos do princípio de que o
dade. objetivo de cada um nas relações humanas é a
Isso não quer dizer que estejamos no me- busca do reconhecimento, podemos admitir que
lhor dos mundos de comunhão entre os ho- no caso dos indivíduos estigmatizados essa pro-
mens, e é evidente que os efeitos anti-sociais cura ganha aspectos particulares.
desse princípio de ““busca de reconhecimento””
são também cotidianos. O que importa aqui é
reconhecer a efetiva importância das relações
entre as pessoas como dado essencial do suces- 10 ““Se levamos em consideração as
grandes correntes de pensamento
Pedagogia da participação

so da experiência coletiva e, também, compre-


filosófico europeu no que diz respeito
ender melhor esse reconhecimento que seria o à definição do que é humano, chega-se
motor das relações humanas. a uma conclusão curiosa: a dimensão
social, a vida em comum, não é
A primeira experiência de busca do reco- geralmente concebida como necessária
nhecimento, segundo Todorov, aproxima-se ao homem”” (página 15, tradução da
autora). TODOROV (1995).
bem mais da comunicação que do conflito: é a
necessidade que a criança tem de ser reconhe-
A vivência da estigmatização faz com que a problema é pertinente também em outros con-
necessidade de ser reconhecido seja ainda mais textos, nos quais a estigmatização se faz por ques-
imperiosa para os pobres, já que seu reconheci- tões étnicas, de sexo, idade, etc. De qualquer
mento pessoal em termos de sucesso econômi- horizonte em que esteja, o animador, sobretudo
co e social é negado de saída. Isso explica as se vem de um meio diferente daquele da popula-
suscetibilidades excessivas perante os outros, ção estigmatizada, não deve negligenciar o peso
particularmente diante dos não-estigmatizados, dos pequenos detalhes cotidianos em sua rela-
e explica também, em parte, o poder de sedução ção com as pessoas.
exercido pelos líderes fortes, os religiosos e os Serão discutidos agora detalhes dessa rela-
líderes mobilizadores dedicados, quando de- ção no sentido de deixar evidentes erros mais
monstram seu afeto. A vontade de ser ““levado em flagrantes de um animador. Entretanto, se qui-
consideração”” pelos outros, de ser reconhecido, sermos nos servir das reflexões aqui feitas para
faz com que mesmo a vitimização –– a busca do desenvolver ““procedimentos”” sobre essas rela-
reconhecimento como vítima –– constitua-se ções humanas, correremos o grande risco de
numa possível via de relação com os outros. torná-las artificiais, o que estragaria toda a ex-
periência. É preciso reconhecer, ao contrário, 115
que os erros, cometidos em grande número
durante a experiência-piloto, são próprios da
atividade humana (““errare humanum est””) e dão
II –– A interação do espontaneidade às relações entre os homens.
Para concluir esse parecer geral sobre a rela-
animador externo ção animador/habitantes, é preciso lembrar que
com os habitantes o animador tem particularidades pessoais que
jogarão a favor ou contra o sucesso de sua experi-
ência. Ora, essas características não são facilmente
modificáveis e a única possibilidade de levá-las
em conta no debate é tentar objetivá-las em ter-
A partir dessas reflexões, podemos deduzir mos de conduta mais desejável. Além disso, as

Os resultados práticos da experiência


a importância particular do aspecto ““relação indicações de conduta buscadas não se afastam
humana”” em uma experiência participativa, e daquelas da cortesia normal da vida em socieda-
isso é ainda mais importante no quadro de uma de. É imperativo, entretanto, em uma experiên-
população estigmatizada. No caso brasileiro, cia que tem por objetivo o aprendizado da cida-
essa estigmatização é provocada predominante- dania, que alguns outros aspectos sejam também
mente pela pobreza, mas a atenção dada a esse levados em consideração.
Romper com as relações mo-nos, à primeira vista, dos ““metidos”” ou ““chei-
hierárquicas os de histórias””, segundo expressões utilizadas
no bairro. Essa atitude não é artificial, já que o
Como já foi destacado, a relação animador/ nosso interesse em agir deve-se a um efetivo in-
habitante que propomos contrasta radicalmen- teresse no sucesso da experiência: é necessário
te com a tradição das relações elite/povo no Bra- conhecermos as pessoas e sermos aceitos entre
sil; entretanto, é no contexto dessa tradição que elas.
as relações vão se desenvolver. Levar em consi- Desse preâmbulo já se inicia um relaciona-
deração esse contexto significa saber que as pes- mento diferente daquele que os pobres têm com
soas são habituadas a uma relação hierárquica e os técnicos da Prefeitura e afins. Como vimos,
dependente e também que é preciso buscar en- na presença desses estranhos ““que podem””, as
tender o que sente uma pessoa pobre diante de pessoas pobres tendem a adotar uma atitude es-
alguém que não pertence a seu meio. tereotipada de vítima, de necessitados, de gente
Para começar a construir uma relação dife- que solicita: um serviço, um emprego, um fa-
rente da tradicional, o animador deve se dife- vor, dinheiro, etc. Evitando-se que façam o pa-
116 renciar do representante típico da elite até em pel de vítima, evita-se logo sua primeira auto
sua aparência. É preciso minimizar, na medida depreciação, o que é um elemento positivo para
do possível, a distância social e evitar que o pri- uma relação de maior igualdade.
meiro olhar dos habitantes para o animador seja Essa distinção positiva que o animador
um olhar para alguém considerado um supe- constrói diante de outros membros da elite, pelo
rior do ponto de vista material. Uma das ma- seu comportamento diferenciado, não exclui, no
neiras de fazer isso é tentar se apresentar sem futuro, outras confusões. Isso pôde ser consta-
sinais distintivos excessivos (evitar jóias, rou- tado em Vila Verde, após alguns meses de ““esta-
pas e acessórios ostensivos, aparência geral ex- da”” no bairro, quando o papel do animador ex-
cessivamente ““produzida””, postura corporal de terno já parecia estar claro para todos. Num
superioridade, olhando as pessoas ““de cima”” contato fugaz, ao oferecer uma carona a uma
etc.). As atitudes dessa primeira aproximação são moradora, esta, que já me vira várias vezes no
imediatamente percebidas. Evita-se, dessa for- bairro, me disse: ““ainda ontem, em minha casa, eu
ma, lembrar às pessoas suas condições econô- pensei em você e me perguntei o que você fazia aqui...””.
micas e sociais, o que as coloca em uma posição Ela achava que eu era uma freira ou candidata a
Pedagogia da participação

de inferioridade. cargo político, pois minha atitude se distancia-


O não-reforço da diferença social existente va daquela de um estranho ““comum””.
e a atitude acolhedora –– ou seja, informal, sor- Essa semelhança com políticos e missionári-
ridente –– no contato são recebidos como traços os é inteiramente plausível, pois são pessoas que
de simplicidade, abertura em relação aos habi- se misturam ao povo de tempos em tempos, por
tantes do bairro. Eles não ficam intimidados, o causa das eleições ou da religião. Eles também
que os descontrairá. Dessa forma, diferencia- tomam muito cuidado para não se distinguir muito
dos pobres, para ser mais amados que admirados. forma de legitimação. Entre outros aspectos, co-
No caso dos primeiros, fazem crer que estão pró- nhecer o que se passa no cotidiano permite ter
ximos das pessoas e de seus problemas para con- assuntos comuns de conversação. Estar lá conti-
seguir seu voto; quanto aos religiosos, são sempre nuamente, interessando-se pelas pessoas e seus
tolerantes com os ““irmãos”” que querem conver- problemas nos legitima como pessoas de algum
ter. É o desenvolvimento de atividades concretas modo ligadas às suas vidas e seus interesses.
no bairro e o contato contínuo com as pessoas A legitimidade se consolida nas relações con-
que vai finalmente estabelecer, aos olhos dos ha- tinuadas, principalmente com aqueles que parti-
bitantes, a autenticidade do animador. cipam do trabalho coletivo e que mantêm um
contato mais regular com o animador. Este últi-
mo não deve esconder seus sentimentos. No
cotidiano, por várias vezes, ele estará impacien-
Construir a legitimidade
te, chocado, decepcionado ou vivendo qualquer
do animador no bairro outro estado emocional relativamente aos habi-
tantes e é importante que tais sentimentos sejam
Se, no começo, foi pela simpatia que o ani- expressados. Trata-se, mais uma vez, da idéia mais 117
mador conseguiu ser aceito no bairro, foi im- geral da comunicação de intercompreensão: con-
portante que, em seguida, adicionasse motivos siderar os habitantes como sujeitos, adultos, que
racionais de legitimação. É sempre necessário podem suportar pequenas desavenças sem mai-
que este volte a explicar quem ele é e o que faz ores problemas e continuar engajados. O resul-
no bairro, pois, para construir uma relação de tado será mostrar sinceridade e respeito ao outro
confiança, as pessoas precisam saber o que espe- como igual.
rar. As intenções ““cidadãs”” da experiência são O comportamento caloroso do animador
menos evidentes para explicar, mas existem as pode também causar comportamentos excessi-
atividades práticas: fazer a maquete do bairro, vos, que não interessam à experiência. Certas
ensinar as pessoas a se localizarem no mapa ur- pessoas o tomarão, sem sua concordância, como
banístico, discutir com elas as prioridades cole- confidente de seus problemas e de suas lamen-
tações, já que ele é mais disponível que os outros

Os resultados práticos da experiência


tivas da experiência pública, etc., são atividades
que permitem um envolvimento e dão, assim, ““estranhos””, e insistirão em envolvê-lo em seus
sentido à nossa presença. problemas pessoais. É importante então ser fir-
A continuidade das idas e vindas do anima- me e não se deixar envolver nem explorar. Dei-
dor externo em campo testemunha o interesse xar claras as ““regras do jogo”” da sua presença ali e
pelas pessoas do bairro, o que é também uma argumentar acerca disso.
Reconhecer a diferença tem o mesmo sentido que a reivindicação que
sem estabelecer uma hierarquia alimentou por muito tempo o movimento femi-
nista ––““Somos diferentes, somos iguais””.
O perigo de ver a diferença entre o anima-
O animador, apesar de todas as suas inicia- dor e os habitantes cair ainda em uma relação
tivas para romper a hierarquia em suas relações de inferior/superior vem também da admiração
com os habitantes, é e será visto durante muito que o animador provoca. O contato contínuo, a
tempo como alguém ““superior””. Sua diferença natureza da experiência e a afeição que o ani-
é evidente e não vem somente de características mador inspira e troca com as pessoas faz com
físicas (que, aliás, podem nem existir) ou de si- que esse se torne quase uma ““instituição””, res-
nais externos de riqueza, que podem ser evita- peitada até pelos bandidos do bairro. É então
dos. O que não lhe é possível esconder é a sua importante para ele não ser unicamente a pes-
atitude corporal, herdada do fato de pertencer soa ““de bom coração”” que todos admiram, mas
ao grupo ““dos que podem””. Como a maior par- permanecer uma pessoa ““verdadeira”” e não cair
te das pessoas do seu meio, ele mantém a cabe- no jogo de se tornar um personagem.
118 ça erguida ao falar, seus passos são seguros, fala O olhar amável, mesmo admirativo, das
de modo bem articulado, seu olhar é direto, in- pessoas para com ele, vem da sua escolha de es-
teressado por tudo aquilo que vê... Todos esses tar ali, de seu comportamento acessível e afável
sinais portadores de diferença são percebidos e, principalmente, do seu engajamento nos pro-
pelas pessoas. Eles não devem ser negados, mas blemas coletivos dos habitantes através de seu
atenuados na medida do possível, para não criar trabalho. A ruptura dessa relação de admiração,
relações verticais. mantendo as características que a experiência
Em sua busca para estabelecer relações de exige, vem de um esforço em uma dupla dire-
igualdade, o animador se aproxima das pessoas. ção. De um lado, do empenho em ajudar as pes-
Para alguns ele se torna até o amigo ao qual se soas a superar sua baixa estima, o que constitui
contam as coisas íntimas. Isso acontece no caso um dos objetivos essenciais da experiência; do
dos líderes, com os quais a proximidade é cons- outro lado, da tentativa de não esconder seus
tante e com quem essa relação é mútua. Essa próprios sentimentos de fraqueza, de desencora-
proximidade, todavia, não deve se transformar jamento ou de raiva.
em uma confusão de papéis. O animador é an- Um último aspecto que pode acarretar tam-
Pedagogia da participação

tes de tudo um catalisador e, levando até o fim bém uma relação hierárquica é a doação. Às ve-
essa metáfora química, como tal ele possui uma zes o animador é solicitado a dar dinheiro, aju-
natureza diferente dos constituintes da reação da material ou a prestar serviços. É preciso lem-
que quer induzir, acelerar, ou modificar. O de- brar que aquele que dá não é um igual, a doação
safio não é ser artificialmente ““igual””, mas saber marca a diferença, salvo quando existe a consci-
estabelecer relações nas quais o reconhecimen- ência mútua que uma troca está acontecendo,
to da diferença não introduz uma subordinação: quando o intelectual ““utiliza”” as pessoas como
objeto de sua pesquisa e estas ““utilizam”” o pes-
quisador como lhes convém. Essa relação com
III –– Os papéis do
os habitantes foi descrita por Zaluar (op. cit.) a animador externo
respeito do seu trabalho na Cidade de Deus no
Rio de Janeiro, mas trata-se de um estudo funda-
mentalmente diferente do nosso, pois o aspecto O sucesso da experiência depende não so-
““ação”” não existia em sua pesquisa. mente da boa relação entre o animador e os
habitantes, mas também das missões que ele
deve cumprir. Para consegui-lo, o animador
Passar da dependência deve buscar um equilíbrio entre diferentes pa-
para a autonomia péis, às vezes contraditórios, como saber diri-
gir e, também, se retirar; ser firme, mas tam-
bém flexível; agir de acordo com as necessida-
Poderíamos começar a discussão sobre a des do momento, mas também ter um objeti-
autonomia pelas declarações de princípio do vo a longo prazo. É necessário, enfim, demons-
tipo: ““o projeto no bairro era trabalhar COM trar muita sensibilidade e, principalmente, fle-
119
os habitantes, e não PARA eles””. Esse princípio, xibilidade, quando as mudanças se produzem
entretanto, não é tão simples de seguir na práti- no projeto inicial, para que se evidencie o seu
ca. A idéia mesmo da pesquisa-ação é trabalhar respeito pela realidade concreta e pelas pesso-
para um grupo com o qual iremos interagir, com as. A vontade de intervir e ser voluntário deve
a convicção de que vamos contribuir com a ser combinada com a capacidade de adaptação
melhoria do seu quadro de vida, senão isso não ao funcionamento social do bairro, aos valores
teria sentido. Trabalhar ““PARA”” é inevitável em das pessoas, a seus interesses, a seu modo de
certo sentido; é preciso então, antes, estabele- viver e de se comportar.
cer regras, proteções, para que a experiência es-
timule o movimento, sem tomar o seu lugar.
Entretanto, está-se sempre no ““fio da navalha””. O animador como estimulador
do trabalho coletivo

Os resultados práticos da experiência


É normal que, no início, a relação anima-
dor/habitantes seja de dependência destes últi-
mos para com a iniciativa do primeiro. É preci- A idéia da ““Pedagogia da participação”” par-
so aceitá-la. Entretanto, o processo pedagógico te do princípio, como vimos, de que os habi-
deve levar-nos a uma relação de autonomia, o tantes dos bairros populares encontram grandes
que não é simples nem definitivo, mas perma- dificuldades para participar de maneira autôno-
nece sendo o objetivo que se visa alcançar. ma da busca da melhoria das suas condições de
vida. Sua maior dificuldade, também já vista, é a mutirão porque achavam essa atitude importan-
falta de confiança em si e no seu potencial de te para si mesmas e para o bairro.
ação. O primeiro objetivo do animador é então Em nenhuma situação o animador deve
agir para encorajar as ações; dessa maneira, ele se monopolizar a fala. É bem mais interessante, em
diferencia de muitos militantes políticos que uma conversação ou em uma reunião, que seja
agem como vanguarda e dirigem as ações. Em um habitante, e não o animador, que defenda
um primeiro momento, contudo, algumas vezes um ponto de vista pertinente aos interesses da
o animador deve ter um papel de dirigente, mas experiência. Para isso, é preciso estar próximo
sempre mantendo uma perspectiva pedagógica das pessoas, saber mais ou menos quem pensa
nessa atuação. o quê, e os convidar a falar num momento opor-
A melhor maneira de persuadir as pessoas tuno. Nos contatos cotidianos, existe uma pre-
de que elas têm capacidade de agir em conjunto ciosa pergunta a fazer em todas as situações: ““E
consiste em promover pequenas vitórias. Isso você, o que pensa disso?”” Essa pergunta tem
pode se dar de várias formas, até a mais modesta, duas vantagens: de um lado, as respostas vão nos
como destacar, diante dos habitantes, o sucesso dar informações sobre o pensamento de cada
120 de uma reunião produtiva do ponto de vista da um e do coletivo; de outro lado, ela leva as pes-
tomada de decisões. É preciso sobretudo apre- soas a se darem conta de que o pesquisador-ati-
sentar desafios simples, no início, e maiores, com vo realmente se interessa por eles.
o tempo. No caso de Vila Verde, por exemplo,
alcançamos pequenas vitórias com a organização
bem-sucedida de uma festa coletiva, com o fun-
O animador
cionamento da escola, com os trabalhos coleti-
vos em mutirão para organizar a creche, etc. como organizador
No papel daquele que incita a ação, o ani-
mador é sempre um portador de otimismo. Sa- No início da experiência, o animador tem
bendo que as pessoas se sentem incapazes e não um papel organizador muito forte, já que ele,
acreditam no grupo social ao qual pertencem, o normalmente, é o único que anteriormente já
animador deve ser aquele que acredita, que dá teve verdadeiras experiências de organização. É
o exemplo da perseverança, que não deixa as também o único que tem uma visão do conjun-
pessoas caírem na desesperança diante das difi- to da experiência que quer desenvolver e das
Pedagogia da participação

culdades da ação coletiva. Existe, certamente, o etapas a cumprir. Essa visão, global e prévia, que
risco da personificação do trabalho coletivo. será adaptada no andamento da ação, o distin-
Várias vezes ouvi declarações do tipo: ““Eu só gue dos habitantes e lhe dá uma capacidade de
participo dessa tarefa (um mutirão, por exemplo) organização particular. Essa capacidade deve ser
por causa de você, os outros, eles não merecem””. Mas exercida na sugestão da criação de uma comis-
isso faz parte do processo e, apesar dessas de- são para acompanhar determinada iniciativa, no
clarações, no fundo as pessoas vinham ao papel de objetivar a discussão em uma reunião,
ao escrever textos em uma linguagem apropriada Para completar seu papel como organizador,
para serem discutidos com as pessoas, ao propor o animador deve compreender bem o dado
um modelo de estatuto de uma associação, etc. ““tempo””. É preciso reconhecer que existem di-
Mas esse papel de organizador deve ser sempre ferenças entre o tempo de um pesquisador ati-
cumprido de forma pedagógica, principalmente vo e o tempo das pessoas, dadas as diferenças de
diante dos líderes, para que eles possam tomar o estilos de vida, de acordo com os meios em que
lugar do animador no processo. estão inseridos. É importante que o animador
O animador, no geral, busca ver de imedia- saiba respeitar o tempo dos habitantes, sem que-
to os resultados de uma reunião, de uma co- rer impor o seu. Como diz a sabedoria popular,
missão, etc. Como ele, de certa forma, também é preciso ““dar tempo ao tempo””. Para poder
está fora dos acontecimentos e possui uma vi- compreender o dado tempo, é fundamental es-
são de longo prazo, conhece as tarefas que vão tar na mesma freqüência de onda que as pesso-
se seguir e tem vontade de tudo orientar. É ne- as. É preciso, a todo momento, estar atento para
cessário pensar na experiência no longo prazo que as respostas obtidas sejam o resultado da
também com relação ao aprendizado dos habi- reflexão dos que trabalham coletivamente e não
tantes, e não tomar iniciativas que possam ser apenas a repetição das observações do anima- 121
tomadas por eles. Ter uma visão de longo pra- dor ou a expressão da vontade de agradá-lo. É
zo, ter noção do tempo necessário ao aprendi- preciso evitar o real perigo que representa um
zado das pessoas, significa renunciar às vitórias movimento que só existiria pelo impulso dado
imediatas na medida em que elas não seriam o externamente, pois isso significaria seu fracasso
espelho do estado de andamento do processo completo.
de conquista da autonomia. Em seu papel de organizador o animador
Tudo isso conduz também a aceitar as dife- deve ser flexível: ele não deve esperar que as
renças do grau de engajamento entre os habitan- reuniões comecem na hora exata nem tam-
tes e o animador. O fato de que este esteja intei- pouco pedir ordem e silêncio a toda hora. As
ramente engajado na pesquisa e no bairro não pessoas, normalmente, não estão habituadas
lhe dá o direito de exigir um comportamento tão com discussões coletivas e repreendê-las cons-
engajado da parte dos habitantes. Ele deve ter tantemente por conversas paralelas ou discus-

Os resultados práticos da experiência


consciência de que os acontecimentos provoca- sões não-pertinentes à pauta é contraproducen-
dos pela experiência são uma pequena parte da te pois se instalará aí uma relação vertical. É
vida das pessoas e que várias vezes elas não darão importante lembrar que as experiências de reu-
a uma reunião ou atividade a devida importân- niões públicas mais freqüentes na vida das pes-
cia, contrariamente aos anseios do animador. Este soas são as missas ou os cultos religiosos. Nes-
deve tentar manter-se modesto e preservar-se, ses casos, eles não são convidados a dar sua
contribuindo, dessa forma, para não criar tensões opinião sobre o assunto em questão, mas sim-
indesejáveis entre os habitantes e para preservar plesmente a repetir fórmulas feitas –– ou seja, o
a si próprio de decepções desnecessárias. pedido da participação é novidade. Já que tudo
o que acontecerá no trabalho é mais ou menos O animador como mediador
desconhecido dos participantes, é preciso dar- dos conflitos
lhes o tempo de se acostumar com as regras da
discussão coletiva.
É preciso pensar também nas crianças nes- Como já foi várias vezes sinalizado, as rela-
sas reuniões. Elas estão sempre presentes, pois ções interpessoais são um dos problemas mais
são numerosas nos bairros populares e os pais comuns do trabalho de grupo, particularmente
não podem deixá-las sozinhas. Elas interessam- no caso dos habitantes de um bairro popular.
se muito pelas iniciativas e são muito barulhen- Em todos os grupos sociais em que o nível de
tas. Assim, na medida do possível, é necessário frustração individual é objetivamente elevado,
encontrar atividades para elas no contexto da ati- o problema da suscetibilidade excessiva se agra-
vidade comunitária. De qualquer modo, é preci- va. Encontramos aqui a discussão sobre a busca
so tratá-las como crianças –– fixando limites –– de reconhecimento: como foi dito, cada indiví-
mas também incorporar sua agitação como parte duo tem necessidade de ser reconhecido pelos
da reunião, para que seus pais não sejam cons- outros e esse reconhecimento pode, ao mesmo
122 trangidos pelos problemas que elas causam. tempo, acarretar em outros um sentimento de
Os animadores devem estar atentos ao seu não-reconhecimento de si mesmo.
próprio discurso nas reuniões, pois eles devem No cotidiano de uma população de um bair-
ser bem compreendidos e, para isso, é preciso ro pobre, as leves diferenças entre as pessoas,
falar claramente e dar exemplos concretos. As principalmente de salários e de nível de escolari-
palavras ““eruditas”” e as lógicas pouco conhecidas dade, são fracamente percebidas e não trazem
das pessoas não devem ser evitadas, mas sim ex- grandes problemas. Mas o desenvolvimento de
pressas de forma a virem a ser compreendidas. É atividades coletivas revela talentos e valoriza cer-
preciso saber exatamente quais são essas palavras tas pessoas, o que não é suportável para outras. A
e esses raciocínios desconhecidos, pois é sem- experiência de participação coletiva é assim um
pre difícil manifestar a não-compreensão de uma motivo de diferenciação e, logo, de conflitos.
palavra ou raciocínio publicamente. Sabendo O animador deve ter em mente esse meca-
quais são as dificuldades de compreensão, é pos- nismo e tentar suavizar os efeitos perversos da
sível lidar com elas no próprio contexto do dis- competição, pois ela acarreta a frustração de
curso, dirimindo-as. Ao mesmo tempo, é im- participantes potenciais e seu afastamento. Pior,
Pedagogia da participação

portante estar sempre atento ao modo como as ela acarreta também maledicências que, a longo
pessoas falam das mesmas coisas, suas palavras, prazo, são perversas para o ambiente entre as
seus raciocínios, para retomá-los no discurso e pessoas que trabalham em conjunto e podem
valorizar assim o seu saber. O objetivo de comu- até ocasionar o afastamento dos líderes menos
nicação durante as reuniões é alcançar um tipo perseverantes.
de aculturação recíproca, em que cada uma das Por sua posição, e independentemente da
pessoas aprende com a outra. sua vontade, o animador externo também pode
provocar disputas, principalmente entre os líde- favorece a comunicação, na medida em que aju-
res que são seus interlocutores mais comuns. da a fazer evoluir as posições tomadas pelos
Sua relação com eles remete a um tipo de interlocutores, para ultrapassar a ambivalência
““legitimação”” perante os demais participantes e, da comunicação estratégica. Trata-se do poder
assim, cada líder busca atrair a atenção do ani- da neutralidade, que pode se materializar atra-
mador. Por esse motivo, pequenas intimidades vés dos argumentos racionais, de experiências
com o animador –– como o fato de ele permane- vividas, etc. É o caso do sociólogo em uma em-
cer mais tempo na casa de um ou outro líder –– presa, nos debates entre patrão e sindicato: em
podem tomar uma amplitude desmesurada, cau- uma relação que poderia ficar no domínio do
sar mágoa e provocar o afastamento de potenci- estratégico, o fato de haver um tiers pode con-
ais líderes do trabalho coletivo. Entretanto, o que tribuir para que a comunicação se faça de uma
perdemos com uma ou outra das pessoas, ga- maneira mais intercompreensiva. É o caso do
nhamos com o conjunto dos participantes, que terapeuta de família, do diplomata, etc. Ser neu-
se sentem seguros pela sinceridade das relações tro não é fácil, mas se aprende; cada um pode se
com o animador. aproximar desse papel sabendo que será impos-
Nos momentos de decisão, verifica-se, sível atingi-lo. 123
muitas vezes, um clima de disputa entre líderes
para conseguir que o animador prefira a idéia
que eles defendem. Isso pode se resolver mais
ou menos facilmente, pois o animador pode
O animador como intermediário
evitar tomar partido nas disputas ou, no caso
inverso, dar argumentos para explicar sua op- entre dois mundos
ção. O verdadeiro problema é que essa disputa
se dá mesmo no caso da relação pessoal que o Já foi discutido o fato de que no Brasil o
animador tem com cada líder. Ele deve então mundo dos pobres é separado daquele dos não-
tentar ter uma relação igualitária com aqueles pobres. Em um país onde tudo pode se resolver
que estão encabeçando o trabalho coletivo. Não por relações de amizade com pessoas ““bem-
se deve exigir muito, no entanto, dessa igualda-

Os resultados práticos da experiência


posicionadas”” (DA MATTA, 1986), isso repre-
de de relações, já que o animador será também, senta obviamente uma enorme perda social para
ele próprio, naturalmente inclinado a estar mais os pobres. Dessa forma, um dos grandes pro-
freqüentemente com aqueles de que ele mais blemas dos pobres é que eles normalmente se
gosta. A regra da sinceridade deve estar ligada relacionam apenas com outros pobres e, assim,
àquela da conveniência, e o animador deve ten- não podem contar com a solidariedade e as in-
tar equilibrar esses dois embaraços. formações que podem ser necessárias diante de
Esse papel de mediador de conflitos lem- um problema de saúde ou um problema legal,
bra a idéia mais geral do tiers, na comunicação, por exemplo, que são acessíveis, por amizade, a
na concepção habermiana. O tiers é aquele que pessoas de classe média e alta.
Esse tipo de vínculo construído sobre rela- deliberadamente fora da relação clientelista. Vista
ções pessoais com pessoas bem-posicionadas re- a limitação dos recursos materiais e técnicos das
vela uma fraqueza das instituições, verdadeiro pro- populações pobres, essa ajuda externa é impor-
blema estrutural cuja superação não está à vista. Na tante em vários casos e pode significar a supera-
perspectiva da ação imediata, que constitui o inte- ção das relações de dependência. Superar essas
resse da experiência discutida aqui, é claro que essa dificuldades sem estar obrigado a cair no
dificuldade é incontornável e que é melhor clientelismo, pode significar crescimento da au-
reconhecê-la claramente, em particular quando ela tonomia do indivíduo.
é da ordem clientelista. Assim, em uma gincana de A iniciativa de intermediação feita pelo ani-
jovens organizada por Ada para unir os habitantes e, mador é vital, sobretudo para as iniciativas que
ao mesmo tempo, recolher fundos para a creche, exigem financiamentos, pois ela é a garantia de
um personagem político aceitou patrocinar o even- que o dinheiro vai servir a ““boas causas””. Se a
to, desde que todos os participantes usassem uma autonomia não é a ação sem parceiros, ser autô-
camiseta com dizeres elogiosos a sua pessoa. nomo, quando estamos em uma situação difí-
Para superar essa relação clientelista é pre- cil, é saber buscar o bom parceiro; por isso, o
124 ciso que os habitantes tenham outras opções de animador pode ser muito útil. Depois dos pri-
apoio a suas iniciativas. É o caso quando anima- meiros passos para a aproximação o animador
dores externos disponibilizam suas relações pes- pode se afastar, pois as relações entre os habitan-
soais e profissionais no mundo ““das elites”” aos tes e os ““padrinhos””, uma vez iniciadas, têm gran-
líderes populares para favorecer esse apoio ex- des chances de se aprofundar na ação conjunta.
terno. Embora se trate de um fato relativamente Foi o que aconteceu em Vila Verde e permitiu a
novo no Brasil, existe um conjunto de parceiros continuidade dos empreendimentos coletivos e
possíveis na sociedade civil, que se posicionam o enfrentamento de novos desafios11 .
Pedagogia da participação

11 Ver NUNES, Débora. A construção de


uma experiência de Economia Solidária
num bairro periférico de Salvador. Bahia
Análise & Dados, Salvador, SEI, v. 12, n.
1, junho 2002.
CONCLUSÃO

Considerando o quarto capítulo deste livro aproveitar os bons momentos, o prazer do cor-
como uma reflexão que busca fazer um balanço da po, a sua afetividade, enfim, a vida. Poderíamos
experiência, eu gostaria de concluir com apenas qualificar tais atitudes como ““alienação positi-
um comentário sobre um problema com o qual va””, para dar um conceito racionalizado ao fato
me confrontei individualmente ao longo desta observado. Mas uma coisa é certa, as pessoas
experiência-piloto, mas cuja amplitude parece sabem viver inteiramente os momentos de ale-
ultrapassar a experiência pessoal. Trata-se da idéia gria –– não se queixam tanto de solidão, de an-
de cidadania que se quer transmitir às pessoas e gústias, de depressões, apesar das inumerá-
do modelo de sociedade de que faz parte esse con- veis dificuldades de sua vida cotidiana e da vio-
ceito. Todo este livro gira em torno da questão da lência crescente. 125
cidadania, de sua construção através da participa- Não se trata aqui, longe disso, de fazer uma
ção, cujos mecanismos devem ser aprendidos. apologia da pobreza feliz, como outros fizeram
Sonha-se e luta-se pela cidadania ampla e irrestrita da pobreza demente ou da pobreza revolucio-
para todos, pelo princípio de justiça social. Acre- nária. Há apenas uma interrogação pessoal, fru-
ditamos que essa cidadania, esse conceito cons- to de uma observação concreta e que poderia
truído durante dois milênios, originário da Grécia se tornar objeto de pesquisa. Essa interrogação
antiga e passando pelas experiências revolucioná- adquire pleno sentido se nós a aproximamos
rias inglesa, francesa e americana, ajudará as pes- da denúncia feita muitas vezes por Max Weber,
soas a viver melhor. do estado de desencantamento do mundo; da
A experiência de campo mostra, todavia, atitude insensível, sobre a qual nos fala George
uma incongruência. A civilização que criou e Simmel, ou da condição pós-moderna, tratada
desenvolveu o conceito de cidadania perdeu por François Lyotard. Essa mesma interroga-
muito da alegria de viver que encontramos em ção tem ainda o seu sentido enriquecido quan-
Vila Verde. Aqui, as pessoas manifestam sua sa- do invocamos o fato de que nas sociedades ri-
bedoria diante da vida pela sua gentileza natu- cas ou nos ambientes abastados o consumo
ral, sua simplicidade, sua abertura aos outros, o sempre crescente de antidepressivos revela o
que geralmente significa relações humanas mais mal-estar reinante.
ricas. Talvez tenha sido a necessidade de olhar É preciso perguntar o que as pessoas de Vila
de frente para as privações que os tenha levado Verde ou de outros bairros têm realmente a
Conclusão

a desenvolver o gosto pela festa, sabendo fazer aprender conosco, cidadãos plenamente integra-
um samba com uma caixa de fósforos; sabendo dos, mas freqüentemente incapazes de aprovei-
© Débora Nunes.

126

tar, como eles, dos prazeres simples que a vida nosso sentido de cidadania e de bem-estar.
oferece. A consciência ampliada que presumi- Uma das conseqüências do processo aqui
mos ter e a riqueza de escolhas possíveis na vida descrito vem sendo a formação, pouco a pouco,
têm um ônus, do qual as regras sociais muito de uma nova geração de animadores externos
mais estritas e a falta de tempo para viver são para agir nos bairros populares, num quadro de
alguns dos componentes. Se a penúria despreo- diálogo e parceria com os habitantes. Isso está
cupada é sempre penúria e a falta de perspecti- sendo feito seja na Universidade, em cursos nos
vas pode ser vista por nós como angustiante, é quais as idéias e práticas que fundamentaram
sempre possível ver as coisas de um outro pon- esta experiência são analisadas e discutidas, seja
to de vista. mediante a ação da ONG REDE - Rede de Pro-
Esse debate é uma armadilha no momen- fissionais Solidários pela Cidadania. Essa enti-
Pedagogia da participação

to e, assim, o mais proveitoso talvez seja que dade vem atuando em vários bairros de Salva-
um animador de processos participativos se dis- dor e apóia as iniciativas já consolidadas dos ha-
ponha a proceder a trocas e não a doações. bitantes do Vila Verde, como a creche e a escola
Dessa forma, será muito interessante sabermos comunitárias, além de empreender junto com
fazer essa troca, com o desejo de aprender o eles novos desafios, desta vez ligados à geração
que realmente representa a cidadania e a felici- de emprego e renda, com base nos princípios
dade para as pessoas às quais queremos levar o da Economia Solidária.
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Pedagogia da participação
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