Anda di halaman 1dari 609

POLÍCIA, ESTADO E SOCIEDADE:

PRÁTICAS E SABERES
LATINO-AMERICANOS
Haydée Caruso
Jacqueline Muniz
Antônio Carlos Carballo Blanco
Organização
Haydée Caruso
Jacqueline Muniz
Antonio Carlos Carballo Blanco
Pesquisa
Raphael Millet Camarda Corrêa
Rachel Maître
Tradução
Aitor J. A. Echeverria
Carola Mittrany
José Cláudio dos Santos Júnior
Lenin Pires
Lucía Eilbaum
Luisa Lamas
Maria Blanco Alvite
Maria Paz Pizarro Portilla
Miren Josune Marco Oqueranza
Paz Iturrieta Serra
Revisão
Aline Gatto Boueri
Shelley de Botton

Editora
Publit Soluções Editoriais

Projeto gráfico, diagramação e capa


Sisa Rezende

Realização

Apoio
Foundation Open Society Institute

Os textos e opiniões publicados neste livro são de responsabilidade exclusiva de


seus autores. Os conteúdos e o teor das análises publicadas não necessariamente refletem
a opinião de todos os colaboradores da Rede.
AGRADECIMENTOS

Agradecemos à Fundação Open Society Institute pelo apoio à construção da


Rede de Policiais e Sociedade Civil na América Latina e, consecutivamente, à
elaboração deste livro. Nossos agradecimentos especiais ao Dr. Geoge Vickers
e à Victoria Wigodzki, que desde o início apostaram na idéia de reunir em um
mesmo projeto policiais e membros da sociedade civil organizada de nosso
continente.

Ao Dr. Wilhelm Hofmeister e à Joana Fontoura, da Fundação Konrad Adenauer,


que de longa data apóiam projetos realizados pelo Viva Rio com o objetivo de
contribuir para o desenvolvimento institucional da Polícia Militar do Estado do
Rio de Janeiro e que também se interessaram em viabilizar esta publicação.

À Florencia Fontán Balestra, registramos um agradecimento todo especial


por sua determinação e criatividade em propor o projeto de constituição da
Rede. A partir de sua orientação e proposta bem estruturada foi possível
concretizar o desafio de aproximar policiais e sociedade civil dedicados ao
tema da reforma policial.

Agradecemos aos nossos parceiros institucionais nos 10 países latino-americanos


que tornaram este projeto possível: Santiago Veiga e Ignácio Romano (Fundar,
Argentina), Cláudio Beato e Elenice de Souza (CRISP, Brasil); Coronel PM RR
Luis Antônio Brenner Guimarães (Guayí, Brasil); Hugo Acero (Milênio,
Colômbia); Lucia Dammert e Javiera Diaz (FLACSO-Chile); Edgardo A. Amaya
Cóbar (F.E.S.P.A.D, El Salvador); Carmen Rosa de León Escribano e Leslie
Sequeira Villagrán (IEPADES, Guatemala); Ernesto López Portillo Vargas e
Ernesto Cardenas Villarello (INSYDE, México); Marco Valle Martinez
(Universidad Centroamericana, Nicarágua); Ernesto de la Jara e Gustavo Gorriti
(IDL, Peru) e Soraya El Achkar (Red de Apoyo por la Justicia y la Paz, Venezuela).

Aos policiais latino-americanos que acreditaram no projeto e que hoje fazem


parte desta Rede: Guillermo Nicolás Zalaya (Policía de la Província de Córdoba);
Ruben Adrian Rodríguez (Policía de la Provincia de Buenos Aires) e Rubens
Fabian Rebuffo (Policía de la Provincia de Neuquén) na Argentina; Marco Antônio
Bicalho (Polícia Militar do Estado de Minas Gerais); Wagner da Silva Sales (Polícia
Civil do Estado de Minas Gerais); Robson Rodrigues da Silva (Polícia Militar do
Estado do Rio de Janeiro); Carmen Isabel Andreola e Martim Cabeleira de
Moraes Júnior (Brigada Militar do Estado do Rio Grande do Sul); Jun Sukekava
(Polícia Civil do Estado do Rio Grande do Sul), no Brasil; Carlos Pino Torres
(Policía de Investigaciones de Chile); Hernando Hevia Hinojosa e Marcelo
Alberto Yañez Palma (Carabineros de Chile); Julio César Sanchez Molina e Yed
Milton López Riaño (Policía Nacional de Colombia); Hugo Armando Ramírez
Mejía, Nelson Edgardo Campos Escalante e Olga Alfaro de Pinto (Policía
Nacional Civil) de El Salvador; Edwin Chipix, Marlon Esteban e Rosa María
Juárez Aristondo (Policía Nacional Civil) de Guatemala; Luis Gabriel Salazar
Vázquez (Policía Estatal de la Dirección de Policía del Estado de Querétaro.);
Juan Sonoqui Martinez (Policia Preventiva Municipal de Cajeme, Sonora) e
Reyna Biruuete Ponce (Agencia Federal de Investigación) do México; Elizabeth
Rodriguez Obando, José Francisco Aguilera Ferrufino e Xavier Antonio Dávila
Rueda (Policía Nacional de Nicaragua); Eduardo Guillermo Arteta Izarnótegui,
Julio Diaz Zulueta e Lucas Nuñez Córdova (Policía Nacional de Peru); Aimara
Aguilar Ruiz e Luis Alberto Pacheco (Cuerpo de Seguridad y Orden Público
del Estado Aragua) e Jorge Luis Sará (Policía Municipal de San Francisco –
Maracaibo) da Venezuela.

Ao Fórum Brasileiro de Segurança Pública, na pessoa de Josephine Bourgois,


que viabilizou a veiculação de nosso boletim eletrônico em seu referido portal,
dando visibilidade em âmbito nacional a esta iniciativa.

Finalmente, queremos agradecer a toda equipe do Programa de Segurança


Humana do Viva Rio, especialmente, Ilona Szabó, nossa coordenadora geral;
Mayra Jucá, Carola Mittrany, Aline Gatto Boueri e Shelley de Botton,
respectivamente coordenadora e jornalistas do Portal Comunidade Segura,
que viabilizaram entrevistas, matérias e dossiês sobre os países que integram a
Rede, bem como nos auxiliaram na condução dos fóruns e chats promovidos.

Ao Luciano Francelli, dedicamos agradecimento especial por sua incansável


dedicação em organizar toda a logística dos workshops e cursos da Rede.

À Rachel Maître, pesquisadora da Rede, manifestamos nossos sinceros


agradecimentos por seu esforço, dedicação e, sobretudo, empenho em pesquisar
temas interessantes para o debate, traduzir documentos, orientar e mobilizar
parceiros institucionais e policiais, quase que diariamente.

À Sisa Rezende, fica o nosso agradecimento final por traduzir na forma de uma
imagem apresentada na capa deste livro a idéia central da Rede, que é promover
o intercâmbio entre policiais e sociedade civil na América Latina.
SUMÁRIO
Prefacio. ................................................................................ 11
Apresentação. ..................................................................... 14
Ficha técnica. ....................................................................... 17

PARTE I - POLICIA E ESTADO

a. Mandato Policial em Sociedades Democráticas


Artigos
· Da Accountability Seletiva à Plena Responsabilidade Policial
Jacqueline Muniz e Domicio Proença Júnior ............................. 21
· A participação comunitária. O Caso Bradford e a Experiência
Britânica frente aos desafios do racismo, da exclusão social e
do terrorismo
Gastón Schulmeister ................................................................ 74
Comunicações
· Reforma Policial e Uso Legítimo da Força em um Estado de
Direito: um olhar na experiência de Colômbia
Hugo Acero ............................................................................. 99
· Estratégias Policiais Perante Novas Ameaças e Relações
Segurança Pública – Defensa Nacional
Gustavo Gorriti ..................................................................... 109
Relatos Policiais
· Responsabilidade da Policia Nacional na Segurança Urbana e
Rural de cara ao conflito y pós-conflito colombiano
Julio César Sánchez Molina .................................................... 117
· Trafico de Seres Humanos
Juan Sonoqui Martinez ........................................................... 129
· Evitar um Linchamento. Um assunto de confiança
Jorge Sará .............................................................................. 139
b. Reforma Policial e Experiências em Cenários Pós-conflito
Artigo
· Dilemas da reforma policial na América Latina
Lucía Dammert ..................................................................... 143
Comunicações
· “A Polícia que queremos”: considerações sobre o processo de
reforma da Polícia Militar do Rio de Janeiro
Elizabeth Albernaz, Haydée Caruso e Luciane Patricio .......... 163
· Reforma Policial na Venezuela: uma experiência em curso
Soraya El Achkar ................................................................... 179
· A Policia em Sociedades Pós-conflito
Edgardo A. Amaya Cóbar ...................................................... 215
Relatos Policiais
· Plataforma do Modelo de Polícia Comunitária de El Salvador
Olga Alfaro de Pinto .............................................................. 225

PARTE II - POLICIA E POLICIA

c. Gestão, Planejamento e Avaliação do Trabalho Policial


Artigo
· Bases Conceituais de Métricas e Padrões de Medida de
Desempenho Policial
Jacqueline Muniz e Domício Proença Júnior ........................... 231
Comunicação
· Experiências de Intercâmbio Positivo. O processo de
construção de indicadores de avaliação de desempenho com a
Secretaria de Segurança Cidadã do Estado de Querétaro (SSC)
Ernesto Lopéz Portillo Vargas e Ernestro Cárdenas Villarello ...... 281
Relatos Policiais
· Sistema Informatizado de Acompanhamento Criminal SIAC
Marco Antônio Bicalho .......................................................... 290
· Analise Delitiva e Utilização de Ferramentas para a Prevenção
do Delito
Rubén Adrián Rodríguez ........................................................ 300
· Planejamento Operacional: a Experiência Neuquina
Rubens Fabian Rebuffo .......................................................... 309
· Aplicação de Estratégias Similares de Segurança em Duas Zonas
com resultados diferentes
Luis Alberto Pacheco .............................................................. 319
· A Comissária de Cruz Blanca: uma experiência de gestão policial
Julio Diaz Zulueta ................................................................. 326
· A Aplicação de um Plano de Prevenção do Delito em Três
Municípios Guatemaltecos
Edwin Chipix .......................................................................... 333
· Chefia e Liderança Policial: o caso da província de Callao Lima
Eduardo Guillermo Arteta Izarnótegui ................................... 338
· A violência contra os Policiais: perceber, problematizar e atuar
Martim Cabeleira de Moraes Júnior ...................................... 347
· A Formação Policial: Um Desafio Democrático
Aimara Aguilar ....................................................................... 352
· O Enfoque de Gênero na Formação da Polícia Nacional da
Nicarágua
Elizabeth Rodriguez Obando .................................................. 359

d. Instrumentos de Controle Interno


Artigos
· Controles Internos Policiais, ou como a Policia vigia a policia
Ernesto López Portillo Vargas e Verónica Martínez Solares .... 365
Comunicação
· Mecanismos e procedimentos de controle interno: um olhar
da Argentina
Santiago Veiga e Ignacio Romano .......................................... 382
Relatos Policiais
· “Ordens Gerais” para o controle interno no Estado de
Querétaro
Luiz Gabriel Salazar Vásquez ................................................. 391
· Assedio Sexual na Policia Nacional Civil de Guatemala
Rosa Maria Juárez Aristondo ................................................. 395

PARTE III - POLICIA E SOCIEDADE

e. Participação e Controle Social: enfoques comunitários e locais


Artigos
· A Participação Comunitária na prevenção do crime na América Latina
Lucía Dammert ..................................................................... 401
· A Busca por Direitos: Possibilidades e Limites da Participação
Social na Democratização do Estado
Ana Paula Mendes de Miranda .............................................. 417
Comunicação
· A Relação Policia-Comunidade: Analise da Experiência do Plano
Quadrante no Chile
Javiera Diaz ........................................................................... 444
· Grupo Especializado em Áreas de Risco (GEPAR): os dilemas
de uma experiência inovadora de prevenção e controle de tráfico
drogas e homicídios em favelas violentas em Belo Horizonte, Brasil
Elenice de Souza .................................................................... 457
· Uma Política Alternativa de Segurança com Participação Social:
a Experiência de Porto-Alegre
Helena Bonumá e Luis Antônio Brenner Guimarães .............. 463
Relatos Policiais
· Carabineiros de Chile como Garantia da Ordem Pública no
Contexto do Conflito Mapuche
Hernando Hevia Hinojosa ..................................................... 483
· O Município De Restinga Seca e as Relações de sua População
com a Polícia Civil em contraponto aos Registros Policiais
Realizados
Jun Suekava ........................................................................... 486
· Estratégias de Aproximação à Comunidade no distrito de Villa
El Salvador, Peru
Lucas Nuñez Córdova ............................................................ 492
· Estação de Policia Modelo
Marlon López Esteban ........................................................... 497
· Modelo de Vigilância Comunitária na Colômbia
Yed Milton López Riaño ......................................................... 500
· O Planejamento Participativo do Bairro de Higienópolis, Rio
de Janeiro: Organizando a sociedade e qualificando as demandas
por segurança pública
Robson Rodrigues da Silva ...................................................... 513
· A Organização dos comitês Locais de Prevenção da Violência
e Delinqüência em El Salvador
Hugo Armando Ramírez Mejia .............................................. 518
· O Controle Social e a Policia: aliança contra o trafico ilícito de
armas de fogo
Xavier Antonio Dávila Rueda ................................................. 523

f. Policia e Juventudes
Artigos
· Policia e Juventude na Era da Globalização
Alba Zaluar ........................................................................... 531
Comunicação
· Prevenção do Delito e Violência entre Adolescência e Juventude
Leslie Sequeira Villagrán ........................................................ 557
· Diálogos de uma juventude vigiada e vigilante
Aline Gatto Boueri ................................................................. 567
· Um relato sobre a Polícia Nacional e o Controle da Delinqüência
Juvenil na Nicarágua
Marco A. Valle Martínez ........................................................ 573
Relatos Policiais
· A Relação com a Comunidade na Policia de Investigação de
Chile
Carlos Pino Torres .................................................................. 589
· Dualidade entre Segurança Pública e Privada em Espetáculos
Públicos
Guillermo Nicolás Zalaya ...................................................... 597
· A Atuação da Policia no Bairro Popular Restinga, Breve Analise
Carmen Isabel Andreola ........................................................ 603
Anexo
Metodologia do Curso para reprodução. ..................... 607

10
POLÍCIA, ESTADO E SOCIEDADE: PRÁTICAS E
SABERES LATINO-AMERICANOS
PREFÁCIO

Os altos índices de violência e criminalidade não são um fenômeno


novo para América Latina. Efetivamente, a partir do final da década de 80,
a violência se tornou um componente comum na vida cotidiana dos latino-
americanos, tornando a região uma das mais violentas do mundo. De
acordo com o Banco Mundial, a violência é uma das cinco principais causas
de mortalidade na região e a principal causa em Brasil, Colômbia, Venezuela,
El Salvador e México.

Esta situação colocou as diversas instituições policiais latino-


americanas no centro da atenção pública. A sociedade se sente cada vez
mais insegura e demanda de forma urgente respostas rápidas e eficazes.
Por sua vez, os governos de turno prometem soluções milagrosas em
circunstâncias que exigem respostas de longo alcance, e exercem pressão
sobre as forças de segurança para produzir resultados no curto prazo,
sem querer assumir o custo político e econômico que implica a
implementação das reformas estruturais necessárias para modernizar as
organizações policiais da região.

Diante desse quadro político, a tendência das polícias da região


consistiu em reproduzir as estratégias tradicionais de combate à
criminalidade, que respondem a um modelo do tipo militar, reativo e
repressivo, herdeiro das ditaduras militares que governaram a América
Latina durante o século passado. Contudo, esse tipo de modelo se torna
em si mesmo um obstáculo para a transformação, já que carece da
flexibilidade necessária para se modernizar e adaptar aos desafios impostos
pela criminalidade moderna.

No entanto, existem muitos policiais na América Latina com muita


experiência profissional que têm idéias inovadoras e que querem melhorar
o desempenho de suas respectivas instituições policiais, mas carecem do
apoio político e institucional necessário para empreender tais reformas.
Esses policiais têm uma importância fundamental para suas instituições,
mas muitas vezes acabam desistindo de seus projetos por falta de

11
Prefácio

oportunidades ou de ajuda para implementar suas propostas. Inclusive,


em algumas ocasiões, os policiais são marginalizados ou discriminados na
hora das promoções na medida em que suas propostas são vistas como
uma ameaça pelas corporações às quais pertencem.

Paralelamente, durante a última década, uma quantidade significativa


de organizações acadêmicas e da sociedade civil têm se interessado pela
segurança pública na América Latina e têm produzido um grande acervo
de conhecimentos científicos sobre esse tema. Atualmente, a região conta
com um importante número de especialistas de primeiro nível dedicados
ao estudo da problemática da violência e da criminalidade no contexto
particular do nosso continente. Assim, em alguns países, esses especialistas
estão trabalhando diretamente com o poder público na elaboração e
implementação de políticas de segurança pública.

No entanto, atualmente, são poucos os esforços orientados a reunir


de forma sistemática esses dois grupos de atores - policiais e membros
da sociedade civil-, para que possam trocar experiências e conhecimentos
e pensar conjuntamente programas e ações destinados a desenvolver
institucionalmente as polícias latino-americanas.

A criação de um espaço permanente, interdisciplinar e interinstitucional,


que viabilize o diálogo e a colaboração entre os diferentes atores na área de
segurança pública, é de vital importância, não só porque cada grupo precisa do
outro para poder compreender melhor os desafios enfrentados pelas instituições
policiais da região, mas também porque essa união possibilitará o fortalecimento
coletivo de seus atores e permitirá ampliar a participação e contribuição de
cada um na elaboração das respectivas políticas públicas.

Certamente, as dificuldades e os desafios que enfrentam as polícias


latino-americanas são diferentes e respondem às particularidades de cada
país, de sua cultura, de suas tradições e do momento histórico respectivo.
No entanto, consideramos que as semelhanças são tamanhas que
possibilitam seu tratamento conjunto. Por outro lado, a análise comparativa
das diferentes problemáticas enfrentadas por cada organização policial
possibilitará enriquecer a visão de cada sistema em particular, possibilitando
uma visão holística da realidade.

Por tudo isso, surgiu a idéia de convocar diversas organizações da


América Latina para formar com elas uma Rede de Polícias e Sociedade

12
Prefácio

Civil, iniciativa que foi realizada pela ONG Viva Rio, com o apoio da
Fundação Open Society Institute. Durante seus dois primeiros anos de
funcionamento, a rede foi desenvolvida conjuntamente com as seguintes
instituições latino-americanas: FUNDAR (Argentina), CRISP (Brasil), Guayí
(Brasil), FLACSO (Chile), MILENIO (Colômbia), FESPAD – CEPES (El
Salvador), IEPADES (Guatemala) e INSYDE (México), Universidad
Centroamericana (Nicarágua) Instituto de Defensa Legal (Peru), Red de
Apoyo por la Justicia y la Paz (Venezuela).

A Rede busca atingir os seguintes objetivos: 1. Construir canais de


diálogo e cooperação entre os membros das forças policiais e os membros
da sociedade civil e pesquisadores da área; 2. Desenvolver os mecanismos
necessários para que esses atores possam exercer influência nas agendas
nacionais e regionais de segurança pública; 3. Capacitar e empoderar oficiais
de polícia que estarão em posições-chave de comando daqui a alguns
anos; 4. Aumentar e aperfeiçoar a participação dos integrantes das
instituições de segurança pública em discussões sobre reforma da polícia;
e 5. Legitimar a existência de movimentos de reforma dentro das
instituições de segurança pública.

Na prática, a Rede de Polícias e Sociedade Civil da América Latina


se reúne anualmente em várias oportunidades. Primeiro, através da
realização de Workshops com membros da sociedade civil orientados a
pensar formas de consolidar e fortalecer a rede. Segundo, por meio da
realização anual do Curso de Liderança para o Desenvolvimento Institucional
Policial, destinado a líderes policiais latino-americanos e administrado pelos
próprios policiais e por pesquisadores, especialistas e representantes das
instituições associadas.

O presente livro constitui um belo exemplo do esforço


interinstitucional empreendido pela Rede, na medida em que foi elaborado
conjuntamente por policiais e membros da sociedade civil, e é fruto do
material produzido durante a realização do citado Curso de Liderança.
Essencialmente, representa um acúmulo de conhecimento científico e
prático sobre algumas das principais questões que preocupam e mobilizam
os atores na área de segurança pública em América Latina.

Florencia Fontán Balestra


Advogada (Universidade de Buenos Aires, Argentina), Mestre em Legislação (Universidade de
Harvard, Estados Unidos). Pesquisadora e consultora, especialista em temas de segurança pública.

13
APRESENTAÇÃO
O livro Policia, Estado e Sociedade: práticas e saberes latino-americanos
foi elaborado a várias mãos. Resulta de um trabalho conjunto que reúne
mais de 50 autores que fazem parte de centros de estudos, ONGs e
agências policiais dos 10 países que atualmente compõem a Rede de Policiais
e Sociedade Civil na América Latina: Argentina, Brasil, Colômbia, Chile, El
Salvador, Guatemala, México, Nicarágua, Peru e Venezuela.

Mais do que a quantidade de pessoas envolvidas, esta coletânea


expressa um rico retrato, panorâmico e plural, de pontos de vista,
preocupações, prioridades, questionamentos e desafios que informam as
práticas policiais, de participação civil e de pesquisa científica no campo
da segurança pública em nosso continente. Constitui um mosaico de
reflexões e perspectivas no qual se combinam uma multiplicidade de vozes
e seus sotaques singulares. Trata-se de uma reunião de distintos olhares
apresentados em mais de 500 páginas de conteúdo que, desde dentro e a
partir de suas várias realidades, experimentam e problematizam os rumos
da democratização ou da reforma policial.

A diversidade histórica, cultural e política entre os países aqui


representados pôs em relevo não apenas o que há de singular entre nós,
mas sobretudo a identificação e o reconhecimento de questões comuns e
recorrentes, estruturais e conjunturais, muitas vezes despercebidas ou
negligenciadas. Possibilitou constatar que partilhamos um acervo de
saberes e práticas, que atravessam, articulam e iluminam nossas trajetórias.
E, com isso, permitem revelar novos sentidos, construir possibilidades
outras de compreensão dos nossos desafios, vislumbrar horizontes ao
nosso alcance, diante do estado de nossas realidades, e sob medida para
as nossas indagações.

Nas páginas seguintes, o leitor irá ter contato com este


repertório de abordagens que sintetiza o esforço de integrar a produção
científica e o conjunto de conhecimentos e vivências policiais, por meio
do diálogo crítico entre as reflexões construídas pelos pesquisadores
dedicados ao tema da segurança pública e da reforma policial e aquelas
desenvolvidas pelos policiais a partir de suas práticas profissionais em
seus respectivos países.

14
Apresentação

O livro traduz, portanto, a síntese de dois anos consecutivos de


trabalho no âmbito da Rede de Policiais e Sociedade Civil na América Latina,
através de sua principal atividade que é o Curso de Liderança para o
Desenvolvimento Institucional Policial que destaca, articula e
problematiza as atribuições, funções e papéis do Estado, Polícia e Sociedade
voltados para o provimento de segurança pública no estado democrático
de direito.

Os materiais pedagógicos que conformam esta publicação foram


concebidos exclusivamente para curso e possuem a seguinte composição
a) artigos científicos de estudiosos e especialistas do meio acadêmico e de
instituições da sociedade civil, b) comunicações desenvolvidas pelos
representantes da sociedade civil sobre experiências, questões ou
problemas atuais enfrentados pelos países aqui contemplados e, c) casos
ou relatos de policiais sobre suas experiências profissionais que retratem
iniciativas que lograram êxitos, potencialmente promissoras ou
interrompidas em virtude dos desafios, limitações e resistências
institucionais e sociais que enfrentaram.

A organização interna destes materiais reproduz os três eixos


estruturais “Polícia & Estado”, “Polícia & Polícia” e “Polícia & Sociedade”.
Estes, por sua vez, emprestam unidade conceitual e uma seqüência
pedagógica aos seis grandes temas definidos pelos integrantes da Rede e
trabalhados nas conferências, painéis e oficinas que constituiram o curso
nos anos de 2006 e 2007. São eles:
· Mandato policial nas sociedades democráticas;
· Reforma Policial e Experiências em Sociedades Pós-
conflito
· Gestão, Planejamento e Avaliação do Trabalho Policial
· Instrumentos de Controle Interno
· Participação e Controle Social: enfoques comunitários
e locais
· Polícia e Juventudes

15
Apresentação

Desejamos a todos que aproveitem ao máximo as reflexões aqui


reunidas, e que este livro possa cumprir o seu propósito, que é o de
partilhar os mais distintos saberes e suas mais diversas práticas entre os
interessados pelos rumos da segurança pública na América Latina.

Boa leitura!
Antonio Carlos Carballo Blanco
Haydée Caruso
Jacqueline Muniz
(Organizadores)

Rio de Janeiro, 2007

16
FICHA TÉCNICA
· Equipe Viva Rio
Rubem Cesar Fernandes - Diretor Executivo
Ilona Szabó de Carvalho - Coordenadora do Programa em Segurança Humana
Florencia Fontán Balestra – Idealizadora da Rede de Policiais e Sociedade Civil na
América Latina
Haydée Glória Cruz Caruso - Coordenadora da Rede
Raphael Millet Camarda Corrêa – Pesquisador
Rachel Maître – Pesquisadora
Mayra Jucá – Coordenadora do Portal Comunidade Segura

· Consultores
Tenente Coronel Antonio Carlos Carballo Blanco – PMERJ
Jacqueline de Oliveira Muniz – UCAM - GEE/UFRJ

· Parceiros Institucionais

País Instituição Representante


Argentina Fundación Fundar Justicia y Seguridad Santiago Veiga
Brasil, Minas CRISP Centro de Estudos de Claudio Beato
Gerais Criminalidade e Segurança Pública Elenice de Souza
Brasil, Rio Guayí Helena Bonumá; Luiz Antônio
Grande do Sul Brenner Guimarães
Colômbia Milênio Hugo Acero
Chile FLACSO - Facultad Latinoamericana Lucia Dammert
de Ciencias Sociales
El Salvador FESPAD - Fundación de El Salvador Edgardo A. Amaya Cóbar
Para la Aplicación del Derecho David Cruz
Guatemala IEPADES - Instituto de Enseñanza Carmen Rosa de León Escribano
para el Desarrollo Sostenible Leslie Sequeira Villagrán
México Insyde - Instituto para la Seguridad y la Ernesto López Portillo Vargas
Democracia Ernesto Cardenas Villarello
Nicarágua Universidad Centroamericana Marco Valle Martínez
Peru IDL - Instituto de Defensa Legal Ernesto de la Jara
Gustavo Gorriti
Venezuela Red de Apoyo por la Justicia y la Paz Soraya El Achkar

17
· Policiais membros da Rede

País Instituição Representante


Argentina Policia de la Província de Córdoba Guillermo Nicolás Zalaya
Policía de la Provincia de Buenos Aires Ruben Adrian Rodríguez
Policía de la Provincia de Neuquén Rubens Fabian Rebuffo
Brasil Polícia Militar do Estado de Minas Gerais Marco Antônio Bicalho
Polícia Civil do Estado de Minas Gerais Wagner da Silva Sales
Polícia Militar do Estado do Rio de Janeiro Robson Rodrigues da Silva
Brigada Militar do Estado do Rio Grande do Sul Carmen Isabel Andreola
Polícia Civil do Estado do Rio Grande do Sul Jun Sukekava
Brigada Militar do Estado do Rio Grande do Sul Martim Cabeleira de Moraes Jr
Chile Policía de Investigaciones de Chile Carlos Pino Torres
Carabineros de Chile Hernando Hevia Hinojosa
Carabineros de Chile Marcelo Alberto Yañez Palma
Colômbia Policía Nacional de Colombia Julio César Sanchez Molina
Policía Nacional de Colombia Yed Milton López Riaño
El Salvador Policía Nacional Civil Hugo Armando Ramírez Mejía
Policía Nacional Civil Nelson Edgardo Campos Escalante
Policía Nacional Civil Olga Alfaro de Pinto
Guatemala Policía Nacional Civil Edwin Chipix
Policía Nacional Civil Marlon Esteban
Policía Nacional Civil Rosa María Juárez Aristondo
México Policía Estatal de la Dirección de Policía del Luis Gabriel Salazar Vázquez
Estado de Querétaro.
Policía Preventiva Municipal de Cajeme, Sonora, Juan Sonoqui Martinez
Mexico.
Agencia Federal de Investigación Reyna Biruuete Ponce
Nicarágua Policía Nacional de Nicaragua Elizabeth Rodriguez Obando
Policía Nacional de Nicaragua José Francisco Aguilera Ferrufino
Policía Nacional de Nicaragua Xavier Antonio Dávila Rueda
Peru Policía Nacional de Perú Eduardo Guillermo Arteta Izarnótegui
Policía Nacional de Perú Julio Diaz Zulueta
Policía Nacional de Perú Lucas Nuñez Córdova
Venezuela Cuerpo de Seguridad y Orden Público del Aimara Aguilar Ruiz
Estado Aragua
Cuerpo de Seguridad y Orden Público del Luis Alberto Pacheco
Estado Aragua
Policía Municipal de San Francisco - Maracaibo Jorge Luis Sará
PARTE I - POLÍCIA E ESTADO

• Reporta-se ao contexto histórico e político do


relacionamento entre o Estado, Governança e a Segurança
Pública, no qual se inscreve a trajetória da invenção da polícia
como instrumento para o exercício do mandato do uso da
força no Estado de Direito e suas implicações nas sociedades
democráticas.
• Enfatiza a distribuição do poder de coerção no Estado,
as exigências políticas e normativas, as fontes de legitimação
e as salvaguardas sociais para a construção de alternativas
pacíficas de produção de obediência sob consentimento
social.

19
20
S IL
B RA
Artigo
DA ACCOUNTABILITY SELETIVA À PLENA
RESPONSABILIDADE POLICIAL1
Profa. Dra. Jacqueline de Oliveira Muniz*
Prof. Dr. Domício Proença Júnior**

Nota Inicial dos Autores: Foi uma decisão autoral utilizar


alguns termos em inglês sem traduzi-los, escolhendo explicar o
significado que se atribuiu a eles de forma sumária antes de
aperfeiçoar o seu conteúdo. Isso pareceu necessário porque o esforço
de sua tradução não produziu resultados satisfatórios, ou mesmo
amplamente difundidos, ao longo do tempo. Ter que ligar com os
(mal)entendidos prévios não serviria ao propósitos deste texto, daí
o seu uso como um tipo de jargão, ao início, e com a ambição de
categorias a partir de seu detalhamento2.

1. INTRODUÇÃO

O que é accountability3 policial? Essa é a pergunta que anima o


presente ensaio. Sua ambição é a de expor os limites da leitura que toma
a accountability policial como uma espécie de concessão expediente a
uma demanda externa oriunda de uma ou outra fatia do público. Enfim,
como algo adicional, dispersivo, ou até restritivo ao trabalho da polícia.
Ao contrário, este texto argumenta que a accountability consiste no espaço
por excelência de vivificação do mandato policial, tão importante para a
polícia quanto para o público a quem ela serve. Apresenta a accountability
como algo intrínseco, vital, multiplicador e essencialmente benéfico para
o trabalho policial.

É justo colocar alguns elementos que permitam a quem se aproxima


deste assunto pela primeira vez, ou que apenas volte a ele sem tê-lo
estudado, compreender algo do estado atual da discussão. Nos últimos
anos, talvez mesmo na última década, as discussões sobre como aprimorar

*Jacqueline Muniz - Professora do Mestrado em Direito da Universidade Candido Mendes.


Diretora Científica do Instituto Brasileiro de Combate ao Crime (IBCC). Consultora da Rede de
Policiais e Sociedade Civil na América Latina.
**Domício Proença Júnior – Professor da Coppe/UFRJ, Ordem do Mérito da Defesa, Membro
do Instituto Internacional de Estudos Estratégicos (IISS, Londres) e da Associação Internacional
de Chefes de Policia (IACP, Leesburg, Va), Diretor Científico do Instituto Brasileiro de Combate
ao Crime (IBCC).

21
Da Accountability Seletiva à Plena Responsabilidade Policial

ou mesmo ampliar a accountability têm sido marcantes. Elas têm sido


tomadas como um dos mais importantes rumos para a modernização, a
melhora do desempenho, o incremento da qualidade, do controle, e de
tudo o mais que se possa associar à atividade policial. Isso tem se traduzido
de diversas maneiras. Há quem veja accountability como o resultado da
adoção de determinadas rotinas, procedimentos e formas de relato das
atividades policiais. Há quem a entenda como uma ampla demanda por
transparência sobre o que a polícia faz, como faz, e por que faz o que faz.
Há ainda quem a entenda como uma forma de monitorar, e controlar, a
ação policial em tanto detalhe e tão próximo do tempo real quanto possível.
Essas amplitude, promessa e alternativas da accountability como vereda
do progresso policial precisam ser qualificadas.

O que é, por que, e como acompanhar, orientar, avaliar e


controlar, a ação da polícia não são questões novas, recém-
descobertas. Em verdade, estão na raiz da criação das polícias
modernas. São mesmo aquilo que fez de determinadas organizações
de força, polícias e modernas. O que se vê hoje é mais um capítulo da
história das formas de como se responder a estas questões, e de como
as respostas elaboradas no passado dialogam com a construção de
respostas no tempo presente. Estas perguntas servem, mesmo, como
uma chave para compreender o percurso das histórias das polícias.
Elas permanecem não porque não tenham tido respostas satisfatórias
ou suficientes, mas porque as respostas de cada período, para cada
polícia, em cada mandato policial, numa certa sociedade, foram e
seguem sendo a materialidade de seu aprimoramento. Estas mesmas
perguntas estruturais levaram a novas formulações em novas bases.
Há, portanto, algo de verdade na impressão de tantos policiais de que
na polícia “nada se cria de novo”, desde que se qualifique. A reedição
destas mesmas perguntas anuncia uma estabilidade essencial: o exercício
sempre atual, cambiante em meios, e constante em propósitos, do
mandato policial.

Essa carga presente e essa herança de história deixam diversas


questões sobre accountability policial. Existe um modelo ideal a ser
seguido? Ou, ao contrário, cada lugar deve ter sua accountability policial
particular, característica de seu tempo? A accountability policial é uma
questão política? Em que sentido? A accountability policial é uma
discussão sobre como ser popular, ou aprovado, pelo público? Ou ela

22
Jacqueline de Oliveira Muniz & Domício Proença Júnior

é uma discussão sobre como melhorar a polícia? Qual a diferença entre


uma e outra? A accountability policial é uma questão técnica? Em que
sentido? É uma discussão sobre qual é a melhor rotina, o melhor
mecanismo, a regularidade mais benéfica ou o formato de relato mais
preciso? Ou ela é uma discussão sobre como relacionar decisões
policiais com resultados policiais, seus efeitos e conseqüências? Ou ela
é um pouco de tudo isso? Ou é mais algumas coisas que outras?
Voltamos assim ao início, compreendendo um pouco a sua razão de
ser. Essa é a lacuna presente: afinal, o que é accountability policial?

Essa resposta tem duas partes, as duas partes deste texto. A


primeira é a que busca explicar o que é accountability, ela mesma. Trata-
se de um exercício exploratório, que ensaia corporificar para um idioma
latino termos do inglês que não têm mais, realmente, como serem
simplesmente traduzidos. Aí se estabelece o que é accountability em
geral, de forma universal.

A segunda parte da resposta busca aplicar os resultados da primeira


parte para o caso da accountability policial. Trata-se de um
desdobramento que aproveita uma diversidade de resultados dos
Estudos Policiais no tema da accountability policial. É devedor de uma
variedade de estudos e trabalhos, listados nas referências bibliográficas,
mas que não têm atribuição pontual ao longo do texto (que é o que seria
correto, não fosse este um ensaio). Isso não significa que não se
reconheça, aprecie e, de fato, se use o que estes trabalhos e autores
tinham a dizer. Ao contrário, a apresentação que se faz seria impossível
sem eles. É apenas que nesta ocasião fazer-lhes justiça na forma adequada
roubaria espaço do que se deseja dizer. Um breve conjunto de
considerações finais permite um relance à parte do débito que se deve
a estes autores e obras.

2. O QUE É ACCOUNTABILITY?

Essa é uma pergunta necessária, porque há diversas respostas e


interpretações. Algumas são contraditórias entre si, outras são vagas e
conciliatórias, e outras mais se apresentam como desdobramentos,
expansões ou acréscimos de diversas inspirações, com distintos focos e
conteúdos. “Ser obrigado a”, “prestar contas”, “dar satisfação”, “responder

23
Da Accountability Seletiva à Plena Responsabilidade Policial

por”, “explicar, esclarecer, justificar”, “obter a aprovação”, “identificar


responsáveis”, “controlar, monitorar, aditar”, “supervisionar, gerir,
administrar”, “avaliar e diagnosticar”, “premiar e punir”, “corrigir e
aperfeiçoar”, “tornar público”, ou “dar a conhecer ou divulgar”, fazem
parte da extensa lista de significados atribuídos, ou atribuíveis, à
accountability policial. O que seja ou deva ser a accountability policial na
prática tem uma forte componente contextual. Expressa processos
históricos particulares, realidades e arranjos locais. A accountability
policial recebe diversas terminologias mais específicas ou de ambição
mais universal conforme características culturais, composições políticas,
compromissos institucionais, vivências corporativas, prescrições ou
modelos de mudança.

Essa diversidade não é gratuita: traz consigo questões e aspectos


relevantes do fazer e gestão policiais que não podem ser ignorados ou
esquecidos. Situa o que seja ou deva ser a accountability policial em um
determinado estágio de discussão, entendimento ou instrumentalização.
Corresponde, na vida prática, a uma bricolagem de visões, crenças,
expectativas e rotinizações convergentes ou não. Reflete a necessidade
de respostas pragmáticas, que atendam a demandas ou pressões públicas,
diante de resistências ou adesões corporativas. A dinâmica que aperfeiçoa
a accountability depende em boa medida do questionamento cotidiano
sobre o que é, por que, para quem, para que, sobre o que, como,
quando, e quem faz o account, o “relato para produzir accountability”,
policial. Mas quando este questionamento fica restrito ao
experimentalismo, isto é, a uma compreensão da prática pela prática na
prática, arrisca-se a confundir fins com meios, mecanismos com
instrumentos, rotinas com procedimentos. Confunde-se o que é ser
accountable, “estar sujeito a ter que produzir accountability”, com a
feitura do account e com a accountability policial em seus diversos usos.

A accountability policial carece de uma formulação propriamente


conceitual, de raiz teórica, que estabeleça o que é essencial e invariante
no processo de account e, sobretudo, no account da polícia. Só assim
se pode compreender, e valorar, o que é específico e particular na
accountability policial. Só a partir daí se pode apreciar de maneira
sistemática a variedade do estado-das-(suas)-práticas, compreendendo
sua riqueza, aferindo seus avanços e retrocessos. Tal formulação, por
isso mesmo, deve ser capaz de revelar a unidade sistêmica e abrangente

24
Jacqueline de Oliveira Muniz & Domício Proença Júnior

que circunscreve e explica todas as lógicas, sentidos e usos de


accountability policial.

A necessária limpeza do terreno rumo à construção do conceito


de accountability policial começa por deixar claro que não há nada de
particularmente distintivo, especial ou inédito no fato de que a polícia
tenha de ser accountable. Qualquer indivíduo, grupo ou instituição que
recebe um mandato é accountable àqueles indivíduos, grupos ou
instituições que lhe delegaram tal mandato.

2.1 O que é um Mandato?

Todo mandato compreende a outorga de determinado poder por


uma constituency, “pessoa ou grupo que delega autoridade, ou se faz
representar”, para quem venha a exercê-lo em seu nome para um
determinado fim. Um mandato é uma procuração, uma delegação, uma
incumbência para praticar certos atos, num certo assunto, para uma
determinada finalidade, de uma determinada maneira, em nome desta
constituency. Todo mandato traz consigo a concessão de poderes
da parte de quem o concede e a assunção de responsabilidades
da parte de quem o recebe.

Existem os mais diferentes tipos de mandatos. Mandatos podem


ser provisórios, contingentes, de duração longa ou indefinida; podem
autorizar a poucos ou a muitos; podem expressar atribuições restritas
ou de grande extensão; podem estabelecer termos mais estreitos ou
mais amplos para sua execução. Com tudo isso, pode-se extrair de
qualquer mandato um núcleo comum de responsabilidades que
corresponde à própria condição de possibilidade da idéia de mandato.
Quem recebe um mandato, qualquer mandato, recebe poderes
delegados que são definidos, estão condicionados e se explicam pela
busca de determinadas finalidades. Quem recebe um mandato, qualquer
mandato, compromete-se a:
i) Usar os poderes delegados apenas para buscar o
fim que justifica o mandato;
ii) Exercer os poderes delegados escolhendo meios
e formas de ação (ou inação) que não contradigam
este fim;

25
Da Accountability Seletiva à Plena Responsabilidade Policial

iii) Responder por estas escolhas, seus resultados e


conseqüências, à luz deste fim.

2.2 O que é ser Accountable?

Ser accountable é ser responsável pela obrigação de atender


a estas exigências intrínsecas a qualquer mandato. Ser accountable é
um atributo inseparável de quem aceita um mandato. Ser accountable é ser
responsabilizável por tudo que se venha a fazer no exercício de um mandato.
Isto significa dizer que quem recebe um mandato é, ipso facto, accountable:
a despeito de reconhecer-se (ou não) como tal; mesmo quando não se tem
demandas explícitas de quem concede o mandato; independentemente da
existência de mecanismos, instrumentos, rotinas e procedimentos pelos
quais fazer account. Por exemplo, quem recebe uma procuração particular
da venda de uma casa torna-se accountable, responsabilizável, por esta venda.
Pode ser chamado a se explicar, a qualquer momento, por quem deu a
procuração, pelo preço, pelas condições da venda ou quaisquer outras
questões relacionadas com o mandato da venda da casa. E isso é assim,
mesmo que não se tenha explicitamente mencionado tal possibilidade quando
se deu a procuração, ou mesmo que não se tenha determinado como tal
“prestação de contas” deveria ser feita.

2.3 O que é o Account?

Fazer account é o processo pelo qual se materializa a obrigação


de ser accountable, identificando responsabilidades no exercício de
um mandato. Fazer account é o processo pelo qual se identificam as
relações de causa e efeito entre escolhas, seus resultados e conseqüências
no exercício dos poderes delegados. Fazer account é relatar
responsabilidades decorrentes da liberdade de escolha contida num
mandato. É esclarecer contexto e conteúdo das escolhas de meios e formas
de ação (ou inação), considerando o exercício de poderes delegados à luz
das finalidades de uma delegação recebida. Isto significa dizer que as próprias
escolhas realizadas no cumprimento de um mandato instruem os termos
de seu account, a despeito da existência prévia de normatização, regularidade
ou padronização de mecanismos, instrumentos, rotinas ou procedimentos.

Fazer account se beneficia, mas independe, de alguma


institucionalidade pré-estabelecida, porque decorre diretamente do relato
de contexto e conteúdo das escolhas realizadas. Pode-se inaugurar a feitura

26
Jacqueline de Oliveira Muniz & Domício Proença Júnior

de account sobre o que quer que se deseje conhecer, a qualquer momento,


diante de qualquer questionamento, ao redor de qualquer questão que
remeta ao, ou referencie o exercício do mandato. Dito de outra forma, é
sempre possível inaugurar a feitura de account tendo como referência tão
somente a consideração direta do contexto e conteúdo de escolhas,
apreciando resultados e conseqüências, diante, contra, ou na ausência de
uma institucionalidade que o enquadre. Dar conta do desmoronamento
da parede de uma escola pode, por exemplo, inaugurar a rotina de account
sobre as condições e decisões da manutenção dos prédios escolares.

A autonomia diante de uma institucionalidade prévia é a maior virtude


do account, cujos fazeres podem inaugurar, (re)criar, (re)definir, emendar,
excluir, reduzir ou ampliar mecanismos, instrumentos, rotinas ou
procedimentos diante de questionamentos os mais diversos. Essa
maleabilidade compreende e esclarece a diversidade dos processos de
account, cada um deles específico porque orientado pela busca de resposta
a um questionamento singular quanto a um exercício, também singular, de
um mandato. Os processos de account se adequam, e por isso, retratam
as especificidades das realidades locais em termos de objetos, formas e
arranjos distintos.

É possível fazer diversos accounts sobre as mesmas escolhas,


resultados e conseqüências em função de questionamentos, prioridades
ou demandas sociais, políticas, econômicas, organizacionais, etc.. Por
exemplo, pode se fazer diferentes accounts de um mesmo evento: o
exercício orçamentário de uma organização. Pode-se fazer um account
que prioriza despesas de capital, outro que prioriza as despesas de custeio,
outro ainda que se ocupa das despesas de pessoal; um account que enfoca
principalmente o fluxo de caixa, outro que se debruça sobre a
temporalidade do controle de gastos. Cada um destes accounts pode, ou
não, conter elementos suficientes para responder a outros
questionamentos. Mas, em princípio, cada account só seria suficiente ou
completo para atender ao questionamento que lhe deu origem, produzindo
respostas: accountability.

2.4 O que é Accountability?

Accountability é o produto do account, um resultado


específico que atribui responsabilidades a quem se tornou
accountable pela aceitação dos poderes delegados de um mandato.

27
Da Accountability Seletiva à Plena Responsabilidade Policial

Accountability é a resposta concreta a um dado questionamento que


orientou a feitura de um determinado account. É a resposta que dá
instrumentalidade às responsabilidades identificadas por determinadas
escolhas, resultados e conseqüências no uso de poderes delegados, à luz
de determinado fim. Accountability corresponde à identificação de um
curso de responsabilização de indivíduos, grupos ou instituições que foi
extraído de um determinado account. Isto significa dizer que
accountability é o produto que permite converter e materializar
responsabilidades em responsabilização.

É possível extrair diversas accountabilities de um mesmo account.


Por exemplo, questionam-se as despesas de capital na execução de um
orçamento. Para responder esse questionamento, para produzir
accountability sobre essas despesas, se faz um determinado account. Mais
tarde, questionam-se as despesas de pessoal na execução deste mesmo
orçamento. Verifica-se que o account que foi feito, originalmente, para
dar conta do questionamento sobre as despesas de capital, já contém os
elementos de informação necessários para produzir uma outra
accountability, que responde satisfatoriamente a esta nova questão. Neste
caso, um mesmo account produziu não só a accountability sobre despesas
de capital como a accountability sobre despesas de pessoal.

O fato que um mesmo account pode vir a produzir várias


accountabilities revela o potencial de economias de escala e âmbito na
produção de accountability. Quando se soma isso à virtude do account
iniciar, consolidar ou rever a institucionalização de seus fazeres, percebe-
se como uma abordagem sistêmica para a produção de accountability
pode ser útil. Esta abordagem apresenta-se como um desdobramento
lógico e conseqüente do atributo de ser accountable, e da necessidade de
fazer accounts diante da exigência de se produzir accountabilities sobre o
exercício de um mandato.

Pode-se institucionalizar a feitura de accounts abrangentes, que


possibilitem um conjunto de accountabilities afins ou relacionadas, sempre
que houver demanda por qualquer uma delas. Isso pode refletir o
aprendizado de uma organização, sua memória cumulativa de accounts e
accountabilities; pode dar conta de prioridades explícitas ou de
questionamentos recorrentes. Por exemplo, diante da demanda regular
por accountabilities quanto às despesas de capital, pessoal ou custeio de

28
Jacqueline de Oliveira Muniz & Domício Proença Júnior

um orçamento, é razoável institucionalizar o procedimento pelo qual a


feitura de um account do orçamento atenda a qualquer uma delas.
Economizam-se recursos, evitando a duplicação de esforços que ocorreria
se cada demanda tivesse que ser atendida por um account em separado.

Viu-se que um único uso de poderes delegados pode ser objeto de


diversos accounts. Constatou-se, também, que um mesmo account pode
servir à produção de distintas accountabilities. Cabe, ainda, evidenciar
que uma mesma accountability pode vir a ter diversos usos.

Figura 1. Fluxos de Accounts, Accountabilities e seus Usos.

Em si mesma a accountability responde às duas questões conexas


que atendem ao exercício de qualquer mandato: permite a quem recebe
mostrar-se digno da delegação recebida e a quem outorga aferir
se esta delegação, ou seu exercício, segue atendendo a seus
propósitos. Por esta razão, a accountability pode servir de base a diversos
tipos de juízo e, por sua vez, a uma variedade de aplicações para quem
recebe ou outorga um mandato. A accountability pode ser parte de
esforços que buscam rumos para o aprimoramento de práticas, ou para
o controle do desempenho de indivíduos e grupos, ou para a aferição de
custos diante de benefícios. Pode alimentar a formulação de policies,
“políticas, diretrizes institucionalmente situadas” ou planejamentos, a
avaliação da adesão a prioridades, procedimentos e rotinas. Por exemplo,
a accountability orçamentária pode contextualizar e mesmo justificar
mudanças de práticas contábeis, alterações na legislação, criação de novas
instâncias de controle, supressão ou expansão de rubricas, alocação de
mais recursos e, até mesmo, a redefinição dos termos pelos quais se faz
e executa um orçamento.

As inúmeras aplicações que podem usar da accountability explicam,


em larga medida, que se confunda o seu conteúdo com a sua
instrumentalidade, ou melhor, com as possibilidades e impactos do seu
uso. Assim se chega a listas como as apresentadas ao início do texto, cujo

29
Da Accountability Seletiva à Plena Responsabilidade Policial

equívoco é o de tomar um dentre muitos usos possíveis como definidor


do que seja a accountability. Tem-se com isso um lapso lingüístico
corriqueiro, que induz ao erro que oculta, perverte ou restringe o
entendimento integral de todos os usos, que é o de converter
responsabilidades em responsabilização. Por isso, accountability permite
“prestar contas”, mas “prestar contas” não é e não esgota tudo o que se
pode extrair da accountability. A isto se acrescenta um outro problema
derivado da tolerância para com essa imprecisão: o de se impor um
entendimento restritivo, que embaraça a compreensão ou mesmo
desqualifica arranjos válidos de accountability que dão conta de realidades
locais. Se “prestar contas” e apenas “prestar contas” é accountability, então
quem identifique cursos de responsabilização para outros fins, o auto-
aperfeiçoamento ou a aderência às normas legais, por exemplo, não estaria
produzindo accountability? Estaria sim, porque o que distingue e estabelece
a accountability é a responsabilização pelo que se faz ou deixa de fazer,
seus resultados e conseqüências.

Com tudo isso, a accountability pode ter muitos usos, mas não
serve a qualquer propósito. Alcança somente o que foi realizado, as
escolhas que foram feitas e as conseqüências destas escolhas no
cumprimento de um determinado mandato. É por isso que não se pode
tratar o (processo de) account como sinônimo dos diversos usos que
podem ser dados aos seus resultados (accountability). Da mesma forma,
não se pode confundir accountability com alguma forma de gestão.
Accountability pode orientar as tomadas de decisão. Pode subsidiar a
elaboração de novas normas ou sugerir o emprego de certos instrumentos
de gestão ao invés de outros, por exemplo. Mas isto não quer dizer que
se administre por accountability. Ao contrário, se faz account sobre como
se administrou. A accountability reporta-se, exclusivamente, ao repertório
de respostas a questões e implicações oriundas das escolhas feitas em
prol dos fins estabelecidos na delegação ou incumbência recebida. Toda
accountability tem, portanto, dois limites insuperáveis que circunscrevem
sua realização: o que decorre da natureza de qualquer account e o que
corresponde aos conteúdos pelos quais se é accountable.

2.5 Quais são os Limites do Account e da Accountability?

Um account só é account porque diz respeito ao que já


aconteceu. Refere-se a escolhas feitas no passado. Todo account é

30
Jacqueline de Oliveira Muniz & Domício Proença Júnior

inescapavelmente a posteriori. Daí decorre a impossibilidade de se fazer


account em tempo real ou em antecipação a uma escolha. Não há como
fazer o account de algo que ainda não se fez; de algo que ainda não se
terminou de fazer; de um contra factual; de uma conjectura; de uma
possibilidade não realizada; enfim, de um desejo. Assim, é inexeqüível
fazer o account de um tratamento médico que nunca existiu. Da mesma
forma, é impossível fazer o account de uma aula de literatura que o
professor ainda não encerrou. É também absurdo fazer o account da
suposição de que a porta seria arrombada pelo bombeiro mesmo se não
tivesse ocorrido um incêndio. Por fim, é nonsense fazer o account da
inferência de que o policial teria sido racista caso a vítima fosse negra. Um
account só é account porque relata algo que já teve início, meio e fim; algo
em que se fizeram escolhas diante de uma situação, e já se conhecem
seus resultados e conseqüências.

Só se é e só se pode ser accountable pelo que se fez ou deixou


de fazer em prol do fim que justifica a delegação recebida de uma
dada constituency. Isto significa dizer que se é accountable sobre um
determinado conjunto de coisas, que correspondem aos termos
específicos que singularizam um determinado mandato, ou seja, o que se
poderia descrever como sendo seu âmbito, alcance e contornos.

O âmbito de um mandato estabelece o objeto sobre o qual incidem


os poderes delegados. Isto pode se expressar em requisitos ou restrições
para e da ação; pode incluir um evento ou classes de eventos; abranger
distintos indivíduos e grupos em diversas circunstâncias; compreender
determinados locais, lugares ou territórios. Por exemplo, socorrer como
requisito, o afogamento como evento, os banhistas de uma praia durante
o dia como abrangência, e as praias públicas como território poderiam
expressar o âmbito do mandato de uma determinada organização de salva-
vidas.

O alcance de um mandato distingue quem exerce os poderes


delegados. Esclarece sobre a exclusividade, concorrência, sobreposição
ou compartilhamento de uma mesma delegação ou entre delegações
distintas que incidem sobre um mesmo objeto. Por um lado, distribui a
execução de um único mandato entre diversos agentes delegados. Por
outro, baliza as linhas divisórias entre múltiplos mandatos (e seus
procuradores), que possuem ou podem possuir âmbitos coincidentes.

31
Da Accountability Seletiva à Plena Responsabilidade Policial

Por exemplo, o socorro aos banhistas nas praias públicas é, ou pode ser,
compartilhado por salva-vidas, paramédicos, policiais ou até pelos próprios
cidadãos; mas é o salva-vidas que tem precedência no salvamento no mar,
como entre os salva-vidas há precedência sobre quem irá agir num
determinado caso.

Os contornos de um mandato determinam como se pode exercer


os poderes delegados. Indicam exigências e predileções de quem outorga
o mandato sobre alternativas desejáveis ou toleráveis de ação. Estabelecem,
portanto, as fronteiras contextuais do que se está autorizado a fazer.
Identifica o que estaria aquém ou além da intenção da procuração concedida.
Em outras palavras, os contornos de um mandato arrolam determinados
“modos e meios” de agir ou fazer; tipos particulares de capacidade de
ação; os requisitos expressos em determinadas legislações, normas ou
procedimentos, associados a uma dada qualificação profissional ou contidos
nos elementos de determinada práxis. Por exemplo, impedir banhistas de
entrarem num mar bravio está aquém da autorização dada aos salva-vidas
que podem apenas usar de procedimentos de alerta; da mesma forma,
impedir um banhista resgatado de voltar ao mar está além desta
autorização. Num salvamento no mar, a autorização pode desaconselhar
ou excluir alternativas de resgate que vitimem o banhista em função de
códigos ou normas estabelecidas; pode ainda, diante de resistências do
banhista, recomendar ou preferir alternativas mais ou menos impositivas
que permitam o resgate.

As liberdades de escolha de quem outorga um mandato e de quem


o recebe impõem níveis de flexibilidade intrínsecos, essenciais ao exercício
concreto de poderes delegados. Isto empresta especificidade e
singularidade ao âmbito, alcance e contornos do exercício de um mandato.
É dizer: uma medida de arbítrio perpassa qualquer delegação recebida
desde a sua definição até as alternativas reais de seu cumprimento. Tem-
se, assim, múltiplas instâncias de discricionariedade que se combinam e
interagem, respondendo às demandas de uma constituency. Resultam a
seu turno de visões e interesses em conflito e em barganha daqueles que
concedem e recebem um mandato.

Na prática, isto se traduz em um processo continuado de afirmação


ou alteração dos termos de um mandato. Reafirma-se ou modifica-se o
âmbito o alcance e os contornos de uma procuração, repartindo-a entre

32
Jacqueline de Oliveira Muniz & Domício Proença Júnior

distintos delegados ou mandatos. Dá-se conta de interseções,


justaposições ou lacunas. Modifica-se âmbito, alcance, contornos, afinando-
os tanto às expectativas da constituency quanto pela consideração de meios
e capacitações disponíveis ou possíveis aos agentes delegados (estado-
das-práticas ou até estado-da-arte). Vê-se aqui o destino supremo do
account, que seria, por si só, razão suficiente para ser accountable. Revela-
se o propósito primeiro, ou a materialidade fundante, dos diversos usos
da accountability: o aperfeiçoamento do mandato.

2.6 Por que Full Responsibility é Selective Accountability?

Ser accountable, fazer account e produzir ou oferecer


accountability constituem, em seu conjunto e integralidade, a
contraparte dos poderes delegados de um mandato. Correspondem
ao atributo de ser responsabilizável, ao processo de identificar
responsabilidades, e à responsabilização por escolhas, resultados e
conseqüências no exercício de um mandato à luz de seu fim.

É-se, a priori, responsabilizável, accountable, por tudo o que se faz,


ou se deixa de fazer, no exercício de um determinado mandato. Neste
sentido, a responsabilidade pela delegação recebida é, em si mesma,
sempre plena. Tem-se sempre full responsibility, é-se sempre integralmente
responsabilizável pelo (que se faz no) uso dos poderes delegados.

Embora se seja accountable por tudo, não se pode fazer account,


ou produzir accountability, de tudo. Há limites insuperáveis para a ambição
de uma full accountability, de uma plena responsabilização, que exaurissem
todas as escolhas realizadas por cada um dos atores envolvidos, dando
conta de todos os resultados e conseqüências em cada evento relacionado
ao exercício de um mandato4.

É impossível esgotar ou reconstituir todos os cursos de ação, suas


condições e efeitos. É impossível esgotar ou reconstituir plenamente a
realidade em toda a sua riqueza e complexidade. É impossível saber tudo,
dar conta de tudo. As escolhas, resultados e conseqüências no uso dos
poderes delegados, que se tornam objetos de account para produzir
accountability, constituem um recorte da realidade. Reportam-se a um
evento ou conjunto de eventos concretos, que foram selecionados em
função de questionamentos, prioridades ou demandas. Revelam uma forma

33
Da Accountability Seletiva à Plena Responsabilidade Policial

particular de olhar, recortar, apreender, reconstruir uma dada realidade


que se quer conhecer. Expressam instâncias de discricionariedade que
vão, desde um questionamento individual, passando pelas rotinas de quem
exerce o mandato, até o atendimento de demandas explícitas da
constituency.

Por conta disto, a concreção do account para produzir accountability,


e da própria accountability, é por natureza, seletiva, pois fica sempre aquém
da pretensão de se saber tudo sobre tudo. Está sempre, de alguma forma,
limitada pelas circunstâncias, pela realidade. Mesmo uma accountability
que se anuncia como plena está fadada a ser seletiva. Se a quimera de uma
full accountability é potencial, latente em qualquer mandato, como espelho
do atributo de ser-se accountable, é a selective accountability que vige
como realidade do exercício de qualquer mandato.

Há questões em que a responsabilização desejada almeja aproximar-


se o máximo possível de uma full accountability. Isto conduz a uma
accountability exaustiva das escolhas realizadas num certo evento, seus
resultados e conseqüências. Por exemplo, é comum que se ambicione
fazer um account exaustivo do dispêndio de fundos públicos. Neste caso,
os mais diversos cursos de responsabilização, expressáveis em
accountability, tornam-se relevantes para se produzir uma resposta que
vai desde os porquês e como(s) de um gasto individual até o limite daqueles
gastos que são explicáveis num orçamento. Note-se que esta busca por
uma resposta exaustiva, baseada num account exaustivo, para uma
accountability plena, segue sendo seletiva, no caso, limitada ao que se
pode saber, ao que se pode reconstruir, ao que se pode explicar.

Há situações em que a responsabilização desejada é satisfeita pela


produção de uma accountability que está deliberadamente muito aquém
do que seria o limite do possível. Neste caso, a accountability atinge apenas
algumas, mas não todas as escolhas, resultados ou conseqüências contidas
em determinados eventos ou classes de eventos. Qual seja o critério de
seleção, orienta-se pela demanda de responsabilização: pode privilegiar
determinadas escolhas (operar ou não, na medicina); ou determinados
resultados (insucesso de transplante); ou determinadas conseqüências
(morte do paciente). Qualquer um destes critérios pode estar posto, a
priori, quando da aceitação do mandato; pode ser posto em vigor num
determinado momento, por um determinado prazo; ou pode nascer de

34
Jacqueline de Oliveira Muniz & Domício Proença Júnior

uma demanda por accountability a partir de um caso individual. Todas


estas possibilidades refletem instâncias de discricionariedade, seletividade
na produção de cursos de responsabilização desejados. Por exemplo, é
comum que a accountability no ensino seja explicitamente seletiva, confinada
ao acompanhamento de determinados resultados: o plano de aulas, o
número de horas-aula dadas e à apresentação de fichas de presença e
notas de alunos. Mas a administração escolar pode demandar account das
escolhas de quem ensina diante de uma dúvida ou uma denúncia de certos
resultados ou conseqüências. Quem ensina é accountable por tudo, mas
só se produz accountability para além destes itens usuais sob demanda.
Essa demanda pode estar condicionada a uma rotina, uma amostra entre
diversos casos ou a prazos regulares; pode responder à ocorrência de
algum fator diferenciador que chamou a atenção; mas podem também
corresponder exclusivamente a demandas ad hoc, expedientes, volitivas,
nascidas do exercício de discricionariedade de quem concede ou de quem
recebe o mandato.

A realidade dos mandatos é a perspectiva de full responsibility


por meio de selective accountability5. A responsabilidade plena se realiza
na identificação (account) e pela atribuição (accountability) seletiva de
responsabilização. Esta seletividade, nascida de decisões discricionárias
motivadas por questionamentos, prioridades ou demandas, encadeia uma
sucessão de traduções do que é potencial no que se pode obter do real,
cujo rumo é o da qualificação progressiva da responsabilidade concreta
de quem exerceu poderes delegados. Por meio de accounts, converte-se
a priori o responsabilizável em cursos de responsabilidades identificadas.
Por meio do account, vai-se do potencial daquilo pelo que se é
responsabilizável (accountable) para a identificação de responsabilidades
no desenrolar de um determinado evento. Através da accountability, vai-
se destas responsabilidades para a responsabilização de indivíduos, grupos
ou instituições por determinadas escolhas, seus resultados e conseqüências
neste evento. Tem-se, portanto, um encadeamento de discricionariedades,
de seletividade, que articula sobre o que se é accountable, qual
accountability se deseja, e qual account pode produzi-la.

Há ainda um outro aspecto fundamental a ser considerado para que


se possa compreender como se tem full responsibility por meio de selective
accountability. Trata-se da questão das externalidades. No mundo real há
mais que intenções e escolhas. Há acaso, há imponderáveis, há

35
Da Accountability Seletiva à Plena Responsabilidade Policial

acontecimentos que independem da vontade humana, e que alteram ou


podem desviar o rumo das ações, seus resultados e conseqüências. Por
esta razão, não se é accountable por tudo o que acontece, ou por todos
os resultados e conseqüências de uma forma particular de decidir ou agir.

Não é cabível ser accountable por externalidades, pelo que quer


que aconteça no exercício de um mandato que não seja decorrente de
escolhas. Contudo, é-se accountable pelo que se fez ou deixou de fazer
diante de externalidades. É-se, ainda, accountable pelo que se fez ou deixou
de fazer diante da possibilidade da ocorrência de externalidades
“previsíveis”. Note-se que não há nenhuma contradição entre natureza a
posteriori do account e a sua realização sobre decisões ou ações diante de
uma possibilidade. O que está em jogo é o account sobre o que se fez no
passado, diante da oportunidade de um determinado evento futuro. Trata-
se, então, de ser accountable pelo que foi ou não foi antecipado.

Um critério comum a países de tradição do Direito Comum é o


de limitar o alcance do “ser accountable pela antecipação” aos “eventos
previsíveis por uma pessoa razoável”. Algum critério deste tipo é
necessário para refrear uma obrigação de ser presciente sobre tudo, o
que é nonsense. Serve para estabelecer sobre o que se pode ser
accountable no preparo diante de antecipações “razoáveis”. Como em
qualquer account, o account sobre a antecipação remete a explicação
sobre como se lidou (o que se fez ou deixou de fazer) diante da
possibilidade da ocorrência de um evento, considerando as expectativas
da constituency e o que era possível fazer com os meios e capacitações
disponíveis. Por exemplo, não se pode ser accountable, responsabilizável,
pela chuva forte ou por um equipamento que falha quando dele se
necessita; mas se é accountable pela preparação para lidar com a chuva
forte e pela manutenção do equipamento, porque é “razoável” antecipar
que em algum momento irá chover forte, e que equipamentos falham
quando não são mantidos.

2.7 Uma Síntese.

Viu-se que um mandato corresponde à busca de um determinado


fim pela delegação de poderes, identificando quem o outorga e quem o
recebe. A finalidade de um mandato determina os objetivos a serem
atingidos, delimitando efeitos e resultados desejados. A delegação de

36
Jacqueline de Oliveira Muniz & Domício Proença Júnior

poderes corresponde à concessão de autorizações que circunscrevem


decisões, meios e ações compatíveis com a busca destes objetivos. Quem
outorga um mandato responde pelo conteúdo, contexto e controle dos
poderes que delega. Quem recebe um mandato responde pelo conteúdo,
contexto e controle do exercício dos poderes recebidos.

Viu-se que quando se recebe um mandato é-se accountable por


ele, responsabilizável por todas as escolhas, resultados e conseqüências
do exercício dos poderes delegados diante de quem os outorgou. Viu-se
que a materialidade do ser accountable corresponde à accountability, à
responsabilização, construída a partir da identificação de responsabilidades,
isto é, pela feitura de um determinado account. Viu-se que a accountability
serve primeiramente ao aperfeiçoamento do mandato concedido,
permitindo (re)afirmar ou rever seus objetivos e poderes. Viu-se, também,
que ser accountable, fazer accounts e produzir accountability
correspondem, em sua totalidade, à contrapartida necessária do
recebimento de poderes. Viu-se, ainda, que a realidade da full responsibility
corresponde a uma selective accountability, ou melhor, a uma accountability
do que é relevante no e para o exercício do mandato. Viu-se, por fim, que
é apenas diante da caracterização de um mandato concreto, isto é, da sua
qualificação em termos de âmbito, alcance e contornos, que se podem
materializar cursos de responsabilização, accountability, institucionalizando
seus usos no mundo real.

3. ACCOUNTABILITY POLICIAL

Em um sentido geral, a accountability policial corresponde a uma


aplicação da definição de accountability aos casos particulares dos
mandatos policiais. Refere-se, tão somente, ao repertório específico de
respostas a questões e implicações oriundas das ações, seus resultados e
conseqüências feitos em prol das finalidades estabelecidas por estes
mandatos. Constitui, em sentido estrito, o produto do processo de account
sobre o que se fez ou se deixou de fazer por aqueles que receberam da
polity a autorização para o exercício de um mandato específico, o mandato
policial. A accountability policial reflete as instâncias de discricionariedade
ou dinâmicas de seletividade sobre o que certa comunidade política quer
saber sobre o exercício de certo mandato policial, em termos de seu
âmbito, alcances e contornos.

37
Da Accountability Seletiva à Plena Responsabilidade Policial

3.1 O Mandato Policial

Há dois elementos distintivos no mandato policial. O primeiro deles


é que a constituency que outorga o mandato policial é a polity. É dizer: o
mandato policial é concedido por uma comunidade política, constituída
pela sociedade e seu governo, que exerce uma dada governança num
determinado território. Isto significa dizer que o mandato policial é, por
natureza, uma procuração pública, e, por razões históricas, uma tarefa
estatal. Pública, uma vez que se reporta a uma concessão da coletividade.
Estatal, já que sua administração cabe ao governo.

O segundo é que o mandato policial incide sobre a própria polity


que o outorga. É dizer: o mandato policial corresponde ao exercício de
poderes delegados sobre a própria comunidade política que os delegou.
Em outras palavras, o mandato policial é a autorização dada por uma polity
para ser, ela mesma, objeto da ação de alguns de seus integrantes.

A natureza política, pública, doméstica e comunal do mandato policial


permite caracterizar a sua finalidade por excelência: sustentar a ordem
social, pactuada na e pela polity, de tal forma a impedir que o exercício
dos poderes que a polity concede dela se emancipe, voltando-se contra
ela sob a forma da tirania do governo, opressão por seus procuradores
ou aparelhamento para propósitos particulares.

A especificidade do mandato policial é a produção autorizada de


enforcement em prol da paz social ou da sustentação das regras do jogo
social estabelecidas pela polity, sem cometer violações ou violências. Trata-
se, portanto, de produzir alternativas de obediência que garantam um
determinado status quo desejado numa polity, com o seu consentimento
e sob o império de suas leis. De forma sucinta, é isso que define o mandato
policial: o exercício do poder coercitivo autorizado pelo respaldo
da força de forma legítima e legal.

As diversas autorizações concedidas por uma polity para o exercício


do mandato policial têm como fonte o poder coercitivo. Estas autorizações
ou poderes delegados podem variar em conteúdo, qualidade e extensão
em cada polity. Contudo, são derivações contextuais e funcionais que
gravitam em torno da instrumentalidade do poder coercitivo. O conteúdo
instrumental que materializa o poder coercitivo é o uso da força para a

38
Jacqueline de Oliveira Muniz & Domício Proença Júnior

polity, na polity, da forma que a polity estabelece. Isto impõe uma


inescapável digressão que busca esclarecer este elemento central: o uso
da força.

Não há como compreender o uso de força como um fenômeno


autônomo, que existe em si mesmo, algo exterior às relações sociais e, por
isso, capaz de interrompê-las ou substituí-las. O uso de força é um
instrumento a serviço das formas de exercício de poder, com tudo que
este tem de paixões, vontades e interesses. A alternativa do uso de força
expressa um modo particular de interação social, tão previsível como
qualquer outro6. Neste sentido, o uso de força reflete as expectativas sociais
presentes numa comunidade política quanto à sua possibilidade, manifestação
e conseqüência. Isto circunscreve a experimentação antecipada do uso de
força como um fato possível ou sua vivência como um ato manifesto. Revela,
ainda, a integralidade das expressões empíricas do uso (potencial e concreto)
de força. Permite compreender seus efeitos, sobretudo onde a sua
manifestação em ato não teve lugar, isto é, onde a apreciação de sua
potencialidade foi suficiente para dobrar vontades. Este efeito não é menos
uso de força porque prescindiu da realização em ato. Ao contrário, revela-
se plenamente uso de força ao instrumentalizar coerção.

Com o exposto, esclarece-se o universo de resultados plausíveis


da instrumentalidade do mandato policial em termos do uso autorizado
da coerção com respaldo da força. O potencial de força compreende os
efeitos dissuasórios e, em alguma medida, preventivos diante da perspectiva
ou mesmo apenas da possibilidade do exercício do mandato policial. O
concreto de força compreende os efeitos repressivos e, em alguma
medida, dissuasórios do exercício do mandato policial.

A forma que uma dada polity estabelece para o exercício autorizado


do uso da força configura o rol de alternativas táticas admissíveis na execução
do mandato policial. É, precisamente, a autorização de uma comunidade
política ou o consentimento social, traduzido em aderência coletiva,
pactuação política e dispositivos legais, que dão o conteúdo do uso da
força no exercício do mandato policial. Isso é tão mais evidente e distintivo
quanto mais próximo se está da ação manifesta, onde a oportunidade do
concreto de força se põe. Uma polity pode exigir, modificar, moderar ou
proibir alternativas de uso de força, dando conta das representações,
expectativas e contextos sociais específicos em relação ao mandato policial.

39
Da Accountability Seletiva à Plena Responsabilidade Policial

Vê-se, assim, como o uso de força que uma polity admite, ou pode admitir,
no exercício do mandato policial depende do que ela espera de, e consente
a, seus procuradores.

As organizações estatais de força capazes de atender aos requisitos


das polities para o exercício do mandato policial diferenciaram-se das
forças armadas nos últimos dois séculos7. O resultado deste processo
levou à criação de diversas organizações conhecidas hoje como polícias.
A rigor, só é polícia quem recebe da polity o mandato policial como
apresentado acima, quem está autorizado a, e responde por, todos os
elementos deste mandato.

A polícia é um instrumento de poder para fins restritos e


transparentes, autorizada a intervir para produzir obediência na polity
pelo uso de força sempre que necessário, nas ocasiões e formas
estabelecidas pela polity8. Por esta razão, a polícia se interpõe, e se espera
que ela se interponha, entre vontades em oposição ou interesses em
conflito, enfim, em qualquer situação que ameace a continuidade dos termos
presentes que expressam as pactuações sociais. É porque a polícia existe
para preservar, sustentar, garantir que se pode caracterizá-la como
defensiva, independentemente da escolha de formas de ação antecipatórias,
preemptivas ou restauradoras.

Uma realidade fundamental emerge deste entendimento da polícia


como sendo quem recebe o mandato policial de uma polity: a qualidade
da definição e do exercício deste mandato, isto é, o modo como ele é
estabelecido e executado. Trata-se de apreciar o quanto as atividades de
uma polícia se aproximam ou se afastam da integralidade do mandato
policial de uma polity, e como este mandato é estabelecido e expresso.
Em outras palavras, o quanto o exercício do mandato manifesta a adesão
e aderência de uma polícia diante das formas estabelecidas pela polity
para a ocasião e uso dos poderes delegados. São estas considerações
estruturais que mais imediatamente evidenciam o ciclo de responsabilização
que conecta quem delega a quem recebe o mandato policial na busca de
sua finalidade, orientando os termos em que cada um deles responde
pelo controle, conteúdo e contexto da concessão ou do exercício do
poder coercitivo. Revela-se assim como a responsabilização, como a
accountability, percorre todo o mandato policial.

40
Jacqueline de Oliveira Muniz & Domício Proença Júnior

3.2 Discricionariedades

Há diversas instâncias de discricionariedade que se manifestam no


mandato policial. A primeira delas, e a mais importante, é a
discricionariedade expressa nas decisões da polity 9 que remetem a
múltiplos atores, contextos, e temporalidades que conformam o mandato
policial e seus termos concretos. Sociedade e governo que configuram a
governança de uma polity diferenciam-se internamente. A sociedade é
constituída dos mais diversos grupos sociais que partilham e divergem
sobre crenças, valores, normas. O governo, por sua vez, contém e
expressa disputas entre grupos de interesse. Um e outro podem ou não
convergir quanto ao que seja, ou deva ser, ou o que se espera que seja o
mandato policial. O que esteja estabelecido como sendo o mandato policial
está aberto a esta dinâmica de construção de legitimações, composições
e rupturas que caracterizam a governabilidade. Revela-se, aqui, a
multiplicidade de instâncias discricionais na confluência de autorizações,
questionamentos e direções harmoniosos ou não, emanados da polity
sobre a definição e o exercício do mandato policial.

A segunda delas corresponde às decisões e escolhas que


selecionam qual accountability a polity, em sua diversidade, deseja,
prioriza, descarta e como a utiliza. Em termos concretos, esta instância
de discricionariedade compreende as tomadas de decisão do governo,
da sociedade e da própria polícia sobre o porquê de, sobre o que,
quando, como e para que produzir accountability; e mais ainda, sobre
como utilizar-se de qualquer accountability produzida ou a produzir.
Isso tem lugar tanto em termos do que esteja estabelecido antes da
ação policial quanto ainda na forma pela qual se percebe e aprecia,
neste sentido, tudo o que se possa questionar por accountability, depois
da ação policial. É nesta dinâmica que a selective accountability se faz,
e serve a full responsibility.

São estas discricionariedades que contextualizam e conformam a


discricionariedade no e do exercício do mandato policial. O poder de
decidir sobre a ação policial mais adequada a um certo tipo de evento, ou
mesmo de decidir agir ou não agir numa determinada situação diante de
um evento ou de sua antecipação, revela que a tomada de decisão
discricionária é a práxis essencial da polícia, do exercício do mandato policial.

41
Da Accountability Seletiva à Plena Responsabilidade Policial

Por sua própria natureza e contexto, a ação policial só pode ser


produzida através de uma abordagem autônoma. A produção da solução
policial, conformada pelas discricionariedades da polity, premida pelas
circunstâncias do momento e exposta às contingências da vida social, possui
uma temporalidade particular. A ação policial responde a demandas
inadiáveis, a atos ou fatos que estão em curso e que têm que ser
enfrentados, encaminhados, no “agora”. Por isso, a ação policial se dá
num tempo presente que é estendido pela duração, pelas necessidades
de resolução, da ação. Ela tem lugar numa sucessão de eventos, conexos
ou desconexos, contínuos ou descontínuos, envolvendo dinâmicas multi-
interativas entre diversos atores. As intensidade, densidade e conseqüência
destas dinâmicas impõem a tempestividade do agir policial e explicam o
caráter limitado, provisório, de suas soluções. Isso torna impossível pré-
determinar a ação policial em cada situação, exigindo o uso discricionário
dos poderes do mandato. Afinal, os elementos singulares presentes em
uma situação particular podem constituir o relevo mais importante na
solução policial. E é impossível conhecê-los até que se revelem de maneira
concreta, imediata, presente numa situação.

A discricionariedade da polícia revela-se, então, bem mais ampla.


Vai além das alternativas coercitivas, modos de uso de força, e atravessa
integralmente a ação policial. Reporta-se não apenas às oportunidade e
propriedade do uso de força, mas alcança toda e qualquer atividade policial.
Com o benefício destas considerações, percebe-se como o exercício do
mandato policial é uma materialidade da governança, correspondendo à
tomada de decisão política na esquina (streetcorner politics)10. Sem
embargo, o poder discricionário ganha em complexidade e latitude quanto
mais o agente policial esteja envolvido com as tarefas de policiamento, as
quais estão, por sua visibilidade, mais expostas à apreciação e ao controle
sociais, isto é, mais expostas à demandas por accountability.

Pode-se dizer que a discricionariedade policial ecoa as


discricionariedades saídas da polity, e isso de tal maneira que o conteúdo
do que seja a ação policial não é redutível a um roteiro pré-determinado,
nem mesmo à rigidez de princípios normativos. Ao contrário, o conteúdo
da ação policial é determinado diante do contexto de cada situação
particular, considerando as direções emanadas da polity quanto à
oportunidade e à propriedade de um determinado curso de ação. A
decisão sobre uma e outra pertence inescapavelmente ao policial

42
Jacqueline de Oliveira Muniz & Domício Proença Júnior

individual, que depende de seu poder discricionário para poder realizar


o seu trabalho.

Por conta disso, a ação policial está sujeita à apreciação política,


social, legal ou administrativa apenas a posteriori, através de accountability.
É diante deste entendimento que se pode compreender como a iniciativa
da ação policial resulta de uma avaliação ad hoc pelo agente policial. Esta
avaliação está também sujeita a diretrizes amplas quanto a sua oportunidade
e iniciativa, quanto a sua prioridade e conteúdo, emanadas da organização
policial ou apreendidas num determinado contexto. Vê-se aqui como a
legalidade da ação policial não resulta de uma abordagem mecânica e auto-
referida da lei, e como a sua legitimidade não se constitui pela reprodução
cega das exigências da polity, mesmo que expressas em requerimentos
ou manuais11. Resultam de interpretações, de um processo de ajustes e
adequações aos termos concretos do mandato policial, conduzido em
ato pelo agente policial durante sua ação.

3.3 Os Termos do Mandato Policial

As instâncias e dinâmicas de discricionariedade permitem


compreender como o mandato policial, potencialmente amplo e tão
pervasivo, reduz-se a termos concretos mais limitados e restritos. É por
isso que só é útil avançar rumo à instrumentalidade da accountability à luz
da qualificação do âmbito, alcance e contornos do mandato policial. Estes
últimos traduzem os distintos limites e cautelas que tornam real um
determinado mandato policial, numa determinada comunidade política.

3.3.1. Âmbito

O âmbito reporta-se ao objeto sobre o qual incidem os poderes


delegados do mandato policial. O âmbito do mandato policial é a própria
polity, decantada pelos mais diversos recortes empíricos. Um recorte
freqüente é o que desdobra o âmbito do mandato policial em termos
geográficos. Assim o âmbito pode abranger todo o território de uma
comunidade política, ou reparti-lo. Estes recortes podem aproveitar
divisões geográficas pré-existentes, como bairros, zonas, cidades, áreas
metropolitanas, províncias, estados ou grandes regiões de um país. Pode
ainda restringir-se a lugares específicos mais, ou menos, restritos, contínuos

43
Da Accountability Seletiva à Plena Responsabilidade Policial

ou descontínuos, como as vias ou parques públicos; um porto ou um


shopping center; os quartéis militares, os presídios, as agências postais ou
bancárias; a vizinhança das escolas, ou o fluxo e as margens de um rio.

Um outro recorte comum é o que desdobra o âmbito do mandato


policial em termos de eventos. O âmbito do mandato policial pode abarcar
conjuntos de eventos sob rubricas amplas como “Segurança Pública”,
“Ordem Pública”, “Law Enforcement”, “Securité Interieur”. Pode restringir-
se a certos eventos ou classes de eventos, refletindo autorizações
específicas para atuar diante de um ou outro tipo de crime, um ou outro
tipo de violência, um ou outro tipo de situação ou perturbação. Assim,
pode-se ter âmbitos que circunscrevem um determinado mandato policial
ao homicídio ou ao tráfico de drogas; ao terrorismo ou às violências
doméstica, de gênero ou intra-familiar; às partidas de futebol ou passeatas
políticas; à escolta de autoridades ou à ocasião de eleições; ao cybercrime
ou à falsificação de documentos.

Outro recorte é o que desdobra o âmbito do mandato policial pela


atenção especial a determinados grupos de pessoas. O âmbito do mandato
policial pode estar delimitado a segmentos da população, como os
contribuintes ou uma comunidade indígena; os parlamentares, os militares
ou os policiais.

Os diversos âmbitos dos mandatos policiais estabelecidos por, e


numa, polity se sobrepõem, combinam, interpenetram, produzindo uma
variedade de arranjos policiais que co-existem de forma mais ou menos
atritiva ou cooperativa. Assim, numa mesma polity, a investigação de
homicídios pode pertencer, simultaneamente, ao âmbito de distintos
mandatos policiais com recortes territoriais local e provincial. Qualificam,
ainda, as diferenças de âmbito dos vários mandatos policiais numa mesma
polity ou entre distintas polities. Assim, numa dada polity, a circulação de
determinadas mercadorias, como armas, álcool e tabaco, corresponde
ao âmbito de um determinado mandato policial específico, e noutras o
fluxo destas mercadorias não são objeto de um âmbito distintivo.

3.3.2. Alcance

O alcance distingue competência e precedência de quem exerce os


poderes delegados numa dada polity. O alcance do mandato policial

44
Jacqueline de Oliveira Muniz & Domício Proença Júnior

esclarece sobre a exclusividade, concorrência, sobreposição ou


compartilhamento de um mesmo mandato ou de mandatos distintos que
têm âmbitos sobrepostos ou coincidentes dentro de uma mesma polícia
ou entre distintas polícias.

O alcance permite distribuir a execução do mandato policial entre


os diversos policiais de uma mesma polícia. Para lidar com homicídios, há
polícias em que a investigação pertence exclusivamente a um departamento
especializado em homicídios; há outras em que a investigação do homicídio
de certos tipos de vítima pertence a um departamento voltado para
pessoas mais expostas a riscos; há ainda polícias em que esta investigação
fica a cargo da equipe de policiais que chegou primeiro na cena do crime.

Há polícias em que a investigação de um homicídio por um


departamento especializado obedece à precedência do mais sênior, que
escolhe seus casos; há outras em que o primeiro policial a lidar com o
caso conduz a investigação até o seu final; há outras em que se realiza uma
avaliação sobre qual seria o melhor policial para lidar com um caso
específico; há outras ainda em que vários policiais entram e saem de um
mesmo caso que permanece sendo coordenado por quem tenha
começado a investigação.

Para lidar com situações de alto risco, há polícias que reúnem os


policiais convencionais em unidades táticas provisórias, que se dissolvem
após sua ação; há outras que dispõem de unidades de operações especiais
permanentes; há outras ainda que mantêm capacidades táticas, médicas,
de negociação e apoio psicológico em unidades especializadas para o
atendimento geral de emergências.

O alcance do mandato policial possibilita, também, balizar as linhas


divisórias entre diferentes polícias, que possuem, ou podem possuir
âmbitos coincidentes. Orienta, por sua vez, arranjos entre organizações
policiais que permitem determinar qual polícia deve agir quando há conflitos
de competência entre elas.

A administração do trânsito urbano sobrepõe as competências de


uma Polícia Municipal com as de uma Polícia Estadual. Diante de um acidente
trânsito com morte, pode haver conflito sobre quem é competente para
cuidar dessa situação. Se está previamente estabelecido que o âmbito da

45
Da Accountability Seletiva à Plena Responsabilidade Policial

Polícia Municipal não cobre acidentes fatais, então não há necessidade de


discussão de alcance. Cada Polícia cuida de sua parte: a Municipal faz isso
e aquilo, a Estadual aquilo outro. Mas se tanto uma quanto a outra podem
lidar com o problema, tem-se alguma acomodação, e esta é uma questão
de alcances. Há arranjos entre as polícias em que a primeira a se fazer
presente no local é quem assume; há arranjos em que as polícias se
alternam, ora uma, ora outra na condução do problema; há arranjos em
que se convenciona que a precedência entre as polícias decorre de
determinados fatores presentes nas circunstâncias do acidente que o fazem
atribuição de uma ou da outra.

A circulação de mercadorias através de fronteiras sobrepõe as


competências de uma Polícia Municipal com as de uma Polícia Estadual e,
ainda, com as de uma Polícia Federal. Diante da apreensão de uma
mercadoria contrabandeada na feira pela polícia municipal, pode haver
divergências sobre qual polícia dar continuidade ao caso. A discussão de
alcance pode permitir uma acomodação que oriente as competências
policiais em conflito, em função da origem doméstica ou estrangeira da
mercadoria, do tipo ou valor da mercadoria apreendida, ou ainda da
suspeita ou não do envolvimento de organizações criminosas.

A administração penitenciária pode levar à sobreposição de


competências de uma polícia penitenciária e uma polícia estadual diante
de uma rebelião de presos com reféns. A discussão de alcance pode
permitir uma acomodação das competências em conflito em função da
extensão, duração, gravidade ou repercussão da rebelião, deslocando a
precedência de uma polícia para a outra.

3.3.3. Contornos

Os contornos determinam como se pode, ou deve exercer os


poderes delegados numa dada polity. Os contornos de cada mandato
policial indicam exigências e predileções da polity, estabelecendo
alternativas desejáveis ou toleráveis para a ação policial. Estabelecem,
portanto, os limites contextuais do que uma polícia está autorizada diante
da delimitação de seus alcance e âmbito de atuação. São precisamente os
contornos do mandato policial que buscam atender às exigências e

46
Jacqueline de Oliveira Muniz & Domício Proença Júnior

predileções da polity, identificando o que estaria aquém ou além da intenção


da procuração concedida. Por esta razão, os contornos do mandato policial
qualificam o conteúdo, os “modos e meios” do agir e fazer policial de
cada polícia e de suas subdivisões.

Expressam o universo de valores culturais e expectativas sociais de


uma polity sobre o mandato policial, estabelecendo diversas instâncias de
instrumentalidade que buscam aproximar o exercício do mandato destes
valores e expectativas. Os contornos do mandato policial retratam de
maneira sensível as interações entre a sociedade e seu governo, buscando
dar conta da pluralidade de convicções, interesses e opiniões. Refletem,
portanto, um processo continuado de aproximações, um ir e vir, que se
apresenta na forma de prioridades políticas, expedientes legais e
normativos, diretrizes organizacionais ou administrativas, doutrinas ou
métodos de ação, demandas locais, comunais ou minoritárias, clamores,
vivências e proposições nascidos das experiências e experimentos diante
das circunstâncias da vida real.

É na apreciação dos contornos que se revela a centralidade, a


onipresença e a constante interferência das instâncias de discricionariedade
na e como práxis do mandato policial. As escolhas e tomadas de decisão
que traduzem as representações e percepções da sociedade, seu governo
e sua polícia são o que configura o conteúdo vigente dos contornos de
uma determinada organização policial num determinado contexto, num
determinado momento do tempo. São nos contornos que se expressam
as mudanças mais freqüentes e substantivas no exercício do mandato
policial. Os contornos constituem a expressão mais dinâmica, mais
vigorosa, do processo de transformação histórica das polícias, uma vez
que buscam fazer dialogar o geral com o particular, o formal com o informal,
o estrutural com o conjuntural, o que tem a ambição de ser permanente
com o contingente.
Este caráter processual e dinâmico dos contornos é uma
característica distintiva do mandato policial. Em cada momento, o que
sejam os contornos corresponde a uma síntese que busca traduzir as
múltiplas instâncias discricionais expressas na concessão do mandato
policial pela polity, na execução dos termos deste mandato por uma polícia,
e na produção e usos da accountability policial para o aperfeiçoamento do
mandato e de seus termos. O que se espera que a polícia seja ou deva ser,

47
Da Accountability Seletiva à Plena Responsabilidade Policial

faça ou deva fazer à luz da finalidade de seu mandato compreende


expectativas e conteúdos de contornos, os quais invadem e (re)configuram
os demais termos do mandato, âmbito e alcances, orientando, embasando
ou contestando alternativas de ação policial.
A apreciação dos contornos dos mandatos policiais permite
comparar os arranjos policiais de uma polity ou de polities distintas. O
uso de algemas revela como pode haver diferenças substanciais no
propósito e na prioridade de uso de um único instrumento em função de
diferentes contornos. Há polícias que estão orientadas a usar algemas
diante de qualquer resistência, mesmo a verbal, com o propósito de
preservar a incolumidade física dos envolvidos e evitar qualquer uso
adicional de força pelo policial; há polícias em que as algemas são usadas
principalmente para isolar os envolvidos numa dinâmica conflituosa; há
polícias em que as algemas só são usadas para consubstanciar o ato da
prisão e para conduzir presos. Há, ainda, polícias cujas polities toleram
que as algemas sejam utilizadas para expor presos à humilhação pública
de serem vistos algemados.
Os contornos atualizam os âmbitos e alcances dos diversos
mandatos policiais concretos de uma dada polity. Isso faz com que se
possa apreciar os possíveis conflitos entre polícias com âmbitos
coincidentes ou dentro de uma mesma polícia com alcances sobrepostos.
Pode ser pertinente para uma polity manter polícias autorizadas a agir no
mesmo território para impedir monopólios policiais que vulnerabilizem a
governabilidade. Pode ser pertinente para uma polícia que a apuração de
desvios de conduta de seus integrantes possa ser feita de forma redundante
por mais de um departamento para impedir corporativismos. Pode ser
pertinente para uma polícia fazer concorrer alcances de coleta de
evidências entre os departamentos de ciência forense, investigação e
patrulha, de maneira a poder alocar os mais especializados para os casos
mais difíceis ou sensíveis ou mesmo para aprimorar a sua capacidade de
pronta resposta.
Os contornos admitem diferenciação nos “modos e meios” de
agir ou fazer policiais, que aproximam o que se deseja de uma
determinada polícia numa dada polity, beneficiando-se de diferentes
instâncias de instrumentalidade.
A preservação, sustentação e garantia dos direitos humanos adquire

48
Jacqueline de Oliveira Muniz & Domício Proença Júnior

materialidades distintivas no exercício de diferentes mandatos policiais.


Há polícias em que os procedimentos de abordagem policial correspondem
ao esforço deliberado de evitar questionamentos quanto a possíveis
conteúdos discriminatórios ou excludentes em suas práticas. Para tanto,
aprimoram suas técnicas de maneira a serem capazes de afirmar, em sua
ação, o respeito às diferenças de raça, credo, gênero, idade, orientação
sexual, condição sócio-econômica, nacionalidade ou naturalidade.
O acesso a bebidas alcoólicas é objeto de diferentes enquadramentos
sociais e legais. Onde vige a lei seca, a polícia deve impedir qualquer
consumo de tais bebidas em qualquer lugar por qualquer pessoa; onde a
lei seca é um dispositivo limitado no tempo, no espaço, ou ao requisito de
uma determinada idade legal, são estes os contornos da ação policial.
A discussão sobre a letalidade dos armamentos policiais tem levado
a diversos experimentos sobre os contornos adequados para o uso de
armas “não letais”. O caso do Tazer é ilustrativo da maneira pela qual os
contornos podem variar diante de experiências e experimentos. O Tazer
atende à demanda por uma arma que produzisse incapacitação não letal, e
se pensava em adotá-lo como o principal o armamento policial. Mas
constatou-se que o Tazer, apesar de não ser letal para a maioria das pessoas,
podia ser letal, e mais letal que a arma de fogo, quando utilizado contra
pessoas de pequena massa corporal, cardíacas ou com propensão fatal a
choques elétricos. Isso possibilitou uma reavaliação quanto à pertinência
e efetividade do Tazer como arma policial de uso geral.
Há grande variedade nos contornos do contrato de trabalho que
vincula ou investe o profissional de polícia. Há polities que proíbem que o
agente policial possa ter outro emprego; ou que possa ter outra atividade
profissional na vigilância ou segurança privadas. Há polities em que esta
proibição não existe, ou em que, ao contrário, a própria organização policial
está autorizada a administrar, e se espera que ela administre, a contratação
de policiais para vigilância e segurança privadas, usando, ou não, seus
uniformes e insígnias.
Finalmente, existe uma ampla variedade de práticas sobre o que
sejam os requisitos, o tempo, o conteúdo e as formas de aferição de
aprendizado que fazem de um cidadão um policial. Há polícias em que o
processo formativo é exclusivamente on-the-job; há outras em que
corresponde a um treinamento de maior ou menor duração; há outras

49
Da Accountability Seletiva à Plena Responsabilidade Policial

em que é um curso de formação ou especialização pós-secundário; e há


outros em que para ser policial é preciso ter passado por uma formação
universitária, geral ou até específica.

A contrapartida à delegação aos policiais de poderes superiores


aos de uma pessoa comum, em especial o recurso à coerção pelo uso de
força, é a apreciação cotidiana dos atores sociais que compõem a polity e
sua governança diante de cada fazer policial. Estes atores reiteram, ou
não, sua confiança na polícia. Como resultado desta apreciação, confere-
se, ou não, legitimidade, empresta-se, ou não, credibilidade às polícias,
afirmando ou modificando os contornos vigentes de um mandato policial.
Neste sentido, “cada sociedade tem a polícia que merece” ou a polícia
que faz por merecer, como se diz em círculos policiais. Apesar de ser
tomada como um lugar comum, esta frase corresponde a um
entendimento profundo do que é, do que deva ser, a polícia. A “melhor”
polícia é a que vivifica cotidianamente os contornos de seu mandato, para
corresponder, para aproximar, o que é que a polity deseja que seja feito
em cada situação, em cada ação. Não pode ser diferente. O objeto da
polícia é a própria polity, que exercita a sua discricionariedade de
outorgante do mandato para demandar as formas, modos e meios que
deseja na ação de sua polícia.

3.4 Uma Dimensão Instrumental de Accountability Policial

A accountability policial expressa as instâncias de discricionariedade


de uma determinada polity, sobre o que se deseja saber do exercício de
um mandato policial, por uma determinada polícia, apreciando as escolhas,
resultados e conseqüências de sua ação num determinado momento. Assim,
não é possível imaginar que um modelo universal de accountability policial
possa atender todas as polities e todos os mandatos de forma uniforme,
homogênea e satisfatória. É um erro que se pense a accountability policial
como uma aplicação mecânica e cega de uma fórmula que teria dado certo
em algum lugar, em algum momento. A accountability policial não existe
em si mesma, emancipada do contexto que decide sobre sua produção e
seus usos. Uma certa accountability policial está associada a uma certa
polícia, ao exercício de um certo mandato policial, numa certa polity que
define os termos do seu âmbito, alcance e contornos.

O que se pode ter em comum na accountability policial de diversas

50
Jacqueline de Oliveira Muniz & Domício Proença Júnior

polícias, ou de diversas polities, é o seu processo, o modo mesmo de sua


produção. Toda accountability é seletiva, e resulta da busca pela resposta
a um questionamento a partir de um determinado account, circunscrita
pelos termos concretos do mandato policial. Pode-se aprender com a
experiência, o sucesso ou o fracasso de outros que tiveram que produzir
accountability policial. Há o que extrair da forma pela qual se deram conta
de problemas, ou requisitos, ou limitações, semelhantes às que se deseja
tratar. Em termos mais amplos, nada é mais útil para educar o espírito e a
mente de quem considere as questões policiais, no caso a accountability
policial, do que o estudo dos diversos casos e trajetos com o benefício da
reflexão e da teoria. Um destes aprendizados é o valor de rotinas e
mecanismos que emprestam institucionalidade, sistematicidade, à feitura
de account e à produção de accountability. Isso responde à natureza dos
questionamentos e respostas articulados pela accountability policial, mas
não responde diretamente a seus conteúdos particulares, que seguem
sendo singulares de uma realidade específica.

Muito da accountability policial trata daquilo que as organizações


policiais têm em comum com outras agências públicas, como os Correios,
ou com outras organizações de serviços, como as escolas, ou com rotina
diuturna de trabalho, como hospitais, ou mesmo simplesmente com
organizações que empregam um efetivo de tamanho comparável: desde
a pequena loja comparada a um departamento policial municipal de uma
dezena de pessoas até as grandes empresas comparadas a departamentos
ou forças policias metropolitanas de dezenas de milhares de pessoas.
Demanda-se, basicamente, accountability sobre a administração: o uso
dos recursos do orçamento, as políticas de recursos humanos, a
regularidade e qualidade do atendimento a “clientes”, os processos de
definição de normas, controle de qualidade, aquisição de bens de capital e
custeio, gerências dos processos de todo tipo. Há elementos
especificamente policiais em cada um destes elementos, porque cada um
deles se reveste de conteúdos distintivos em função dos termos concretos
do mandato de uma polícia.

A isso se soma, ainda, as demandas que produzem accountability


pelas ações policiais no exercício do seu mandato no sentido estrito. O
questionamento quanto ao uso autorizado da coerção com o respaldo da
força, freqüentemente expresso nas suspeitas de violências, violações ou
corrupção nas atividades policiais, inaugura a produção de accountabilities

51
Da Accountability Seletiva à Plena Responsabilidade Policial

que servem como insumos, exemplos ou pontos de partida para a criação


de diversas rotinas dentro e fora das organizações policiais. Pode instituir
a elaboração e publicação de relatórios sobre atendimentos policiais, sobre
o uso de armas de fogo por policiais, sobre desvios de conduta, sua
apuração e o desempenho da corregedoria. Pode instituir organizações
ou recursos que passam, por exemplo, a produzir anuários estatísticos
sobre as incidências criminais; dossiês quantitativos ou qualitativos sobre
a vitimização de cidadãos e policiais por policiais; indicadores do
desempenho policial. Ou mesmo levar a organismos fora da polícia, como
ouvidorias (ombudsman), esforços como o Crime Stoppers e suas diversas
adaptações, agências civis de certificação policial, observatórios em
organizações não-governamentais ou ainda linhas de pesquisa nas
universidades. Tudo isso acrescenta demandas à polícia.

Como qualquer outra organização, a polícia se ressente de qualquer


demanda direta ou indireta que não seja a reprodução de seus hábitos ou
atividades regulares. Tende a perceber cada uma delas como desvios de
função que irão subtrair pessoal, recursos e tempo (e, em termos estritos,
até corretamente) de suas atividades. Tende, ainda, a vê-las como
desperdício ou dispersão sem outro mérito senão o de acomodar pressões
externas. Claro que é sempre mais forte, retoricamente, afirmar que essa
subtração comprometerá as atividades-fim mais valoradas ou sensíveis
do ponto de vista de quem fez a demanda: a “prevenção e redução da
criminalidade violenta”, por exemplo.

Contudo, essa é uma percepção míope. É a partir dos acervos e


experiências destas atividades que se pode avançar na construção de
accountabilities mais e mais capazes de orientar o aprimoramento do
exercício do mandato policial. Neste sentido, o argumento de que a
produção de accountability e sua institucionalização desperdiçam recursos
policiais é falsa. Podem ser mesmo investimentos, que orientam as formas
capazes de multiplicar, aperfeiçoar, ampliar, os efeitos da ação policial.

Dentre os diversos recortes possíveis, a ação policial destaca-se.


Trata-se de um recorte essencial para a produção de accountability por
remeter à atividade-fim das organizações policiais. Considerar a ação
policial como uma categoria de análise significa buscar as alternativas
possíveis de suas escolhas, resultados e conseqüências a partir de um
determinado ponto de vista. A instrumentalidade da accountability policial,

52
Jacqueline de Oliveira Muniz & Domício Proença Júnior

ela mesma corresponde à perspectiva que retorna a esta relação para


apreciar causas a partir de efeitos, isto é, a partir de resultados e
conseqüências, identificar as escolhas que os explicariam, rumo à
identificação de cursos de responsabilização.

Isso permite um exemplo instrumental de accountability policial


descrito em quatro passagens. A primeira estabelece como, sob que
critérios, “era oportuno agir”, dando conta da decisão de agir, ou não;
sob que critérios “agiu-se apropriadamente”, dando conta da forma como
se agiu. A segunda passagem exercita estes critérios em termos da
combinação lógica de ações “oportunas” e “inoportunas” com ações
“apropriadas” e “inapropriadas”. A terceira passagem identifica árvores
de responsabilidade associadas à possibilidade de identificar causas para
efeitos, problematizando o uso de algum account para produzir
accountabilities. A quarta passagem considera o que não se pode extrair
do exercício dos critérios de “oportunidade” e “propriedade” da ação
policial.

Ainda que qualquer ação policial seja, a um só tempo, “oportuna”


ou não; “apropriada” ou não; é útil distinguir estas duas dimensões para
propósitos analíticos. Por oportunidade se entende a escolha policial
de agir, ou não, diante de uma determinada situação. Não agir, não
intervir na situação, é uma alternativa possível e, assim quando se considera
a oportunidade da ação, isto inclui a decisão de não fazer nada. Por
propriedade se entende a escolha policial da forma de agir entre
diversas alternativas possíveis. Neste sentido, uma ação só é
“apropriada”, ou não, diante da decisão de agir, mas mesmo a decisão de
não fazer nada admite a consideração da forma apropriada de não se fazer
nada. Com isso, tem-se claro que “oportunidade” e “propriedade” de
uma ação policial são dimensões distintas que se complementam.

Nenhuma ação policial é “oportuna” ou “apropriada” em si mesma,


mas apenas diante dos termos concretos de seu mandato. Sem dúvida
que os mandatos policiais das mais diversas polities podem compartilhar
diversos elementos de âmbito, alcance e contornos similares. Assim, é
possível, mesmo esperado, que haja ações policiais que seriam vistas como
“oportunas” ou “inoportunas”, ou “apropriadas” ou “inapropriadas”, por
um grande número de pessoas ou policiais das mais diferentes polities.
Ainda assim, em termos rigorosos, o que seja uma ação policial oportuna,

53
Da Accountability Seletiva à Plena Responsabilidade Policial

ou uma ação policial apropriada de uma dada polícia para fins de


accountability não necessitam ficar reféns da esperança destas semelhanças.
Estas considerações emergem e são estabelecidas num determinado
contexto, numa determinada comunidade política, por uma polícia
específica à luz dos termos concretos de seu mandato vigente. Os termos
concretos do mandato policial, neste sentido preciso e específico,
dependem da maneira pela qual âmbito, alcances e contornos são
configurados. Como os termos de um mandato policial são previamente
estabelecidos por qualquer polity para qualquer uma de suas polícias, pode-
se falar de “oportunidade” e “propriedade” da ação policial como categorias
gerais e aplicáveis a qualquer polícia específica.

Para os propósitos deste exercício, os termos do mandato policial


se encontram expressos, subentendidos, nas categorias “oportunidade”
e “propriedade”. Essas categorias embutem a autorização do mandato
policial pela polity. O consentimento social para produzir alternativas de
obediência com respaldo da força sob o império da lei pode ser
referenciado em três ordens de consideração que se interpenetram, se
confirmam, se modificam, se contradizem: as exigências de natureza
política, do governo, expressas em termos de diretrizes e prioridades; as
exigências de natureza social, da coletividade, expressas em termos de
demandas das comunidades policiadas ou de grupos sociais; e as exigências
de natureza legal, expressas na legislação e normas que refletem uma dada
pactuação social num determinado momento do tempo. As duas primeiras
exigências reportam-se à caracterização da legitimidade da ação policial e
os processos de legitimação; a terceira remete de maneira mais aparente
à caracterização da legalidade da ação policial. Assim, pode-se tomar a
“oportunidade” de uma ação policial e a “propriedade” de uma ação policial
como juízos que se orientam a partir das exigências de legitimidade e
legalidade de uma dada polity.

Ao se considerar as alternativas lógicas que combinam as categorias


“oportunidade” e “propriedade”, realiza-se um experimento mental, em
que se imagina considerar uma determinada ação policial (agir ou não agir,
como agiu) ocorrida no passado, e que corresponde ao descritivo de uma
destas alternativas lógicas de combinação. Isso significa que o que se realiza
aqui é um exercício qualitativo, que busca apresentar apenas as quatro
possibilidades presentes na figura a seguir como símbolos de quatro
caracterizações possíveis de uma ação policial a ser objeto de accountability.

54
Jacqueline de Oliveira Muniz & Domício Proença Júnior

Figura 2. Oportunidade e Propriedade da Ação Policial.

1. Ação policial oportuna e apropriada. Corresponde a uma


ação em que i) a escolha do policial (de intervir, ou não) é compatível com
os termos do seu mandato e ii) a forma de ação do policial é compatível
com os contornos do seu mandato. Esta caracterização dá conta de todas
as situações em que o policial agiu quando devia agir e da forma como devia
agir. Neste caso, tem-se iniciativa e tática policiais adequadas.
2. Ação policial inoportuna e inapropriada. Corresponde a uma
ação em que i) a escolha do policial (de intervir, ou não) é incompatível
com os termos do seu mandato e ii) a forma de ação do policial é
incompatível com os contornos do seu mandato. Esta caracterização dá
conta de todas as situações em que o policial agiu quando não devia agir e
de uma forma inaceitável. Neste caso, tem-se iniciativa e tática policiais
inadequadas.
3. Ação policial oportuna e inapropriada. Corresponde a uma
ação em que i) a escolha do policial (de intervir, ou não) é compatível com
os termos do seu mandato mas ii) a forma de ação do policial é incompatível
com os contornos do seu mandato. Esta caracterização dá conta de todas
as situações em que o policial agiu quando devia agir, mas de uma forma
inaceitável. Neste caso, tem-se uma iniciativa policial adequada e uma tática
policial inadequada.
4. Ação policial inoportuna e apropriada. Corresponde a uma
ação em que i) a escolha do policial (de intervir, ou não) é incompatível
com os termos do seu mandato mas; ii) a forma de ação do policial é
compatível com os contornos do seu mandato. Esta caracterização dá

55
Da Accountability Seletiva à Plena Responsabilidade Policial

conta de todas as situações em que o policial agiu quando não devia agir,
mas da forma como devia agir. Neste caso, tem-se uma iniciativa policial
inadequada e uma tática policial adequada.

O enquadramento de uma determinada ação policial numa destas


caracterizações é o primeiro passo do processo de accountability. É o
que permite fazer dialogar os termos do mandato concreto com
determinadas escolhas que foram feitas numa determinada ação policial,
numa determinada situação real. Isso compreende uma análise que se
inaugura pelo contraste entre a decisão tomada nesta ação policial e outras
decisões tomadas em outras ações de acordo com o que esta polícia
orienta a tomada de decisão. No caso deste exercício, em termos de
oportunidade e propriedade. Assim, em termos de oportunidade da
iniciativa policial, da decisão de agir ou não, aprecia-se a situação e se
afere se a decisão tomada foi, ou não, compatível com o que é o estado
das práticas ou com as diretrizes da organização policial. Em termos de
propriedade da ação policial, da forma como se agiu, aprecia-se se esta
forma de agir foi ou não compatível com o estado das práticas, os
procedimentos, com as diretrizes da organização policial.

Isso significa que pode existir latitude tanto numa quanto noutra
decisão. Para uma polícia, pode haver situações diante das quais tanto a
iniciativa de agir quanto a de não agir são igualmente oportunas. Para uma
polícia, pode haver uma diversidade de alternativas de condução, de táticas
policiais. Estas podem ter diversos enquadramentos, sendo mais ou menos
hierarquizadas como formas de agir aceitáveis, recomendáveis,
obrigatórias. Em termos de formas de agir, o que é apropriado expressa
um determinado estado da arte da tática policial, conformada pelos
contornos do mandato policial concreto de uma polícia, numa determinada
polity, num determinado momento do tempo.

Cada uma destas caracterizações supõe que uma ação policial já teve
lugar, já produziu resultados e se conhece suas conseqüências, e que esta
ação foi objeto de questionamento, fazendo-se necessário produzir
accountability sobre ela, do ponto de vista de oportunidade e propriedade.
Isso significa, ainda, que previamente a seu enquadramento nestas
categorizações, existe um determinado juízo, mais ou menos impressionista,
mais ou menos tácito, mais ou menos fundamentado, sobre se essa ação
“deu certo” ou “deu errado”, se ela foi mais um “sucesso” ou um “fracasso”.

56
Jacqueline de Oliveira Muniz & Domício Proença Júnior

Este juízo de sucesso ou fracasso decorre da leitura que os


integrantes da polity fazem da ação, à luz de suas representações,
expectativas, sobre o mandato de uma polícia, alimentando percepções e
opiniões construídas a partir das informações a que cada um teve acesso.
Por essa razão, ter agido com oportunidade e propriedade não
necessariamente conduz ao juízo de que a ação policial foi um sucesso;
ter agido inoportunamente e inapropriadamente não necessariamente
conduz ao juízo de que a ação policial foi um fracasso.

Diante da caracterização de uma determinada ação policial em


termos de oportunidade e propriedade, dá-se seguimento ao processo
de accountability pelo delineamento de árvores de responsabilidades, isto
é, das causas possíveis dos efeitos encontrados. Trata-se de escolher ramos
de causas através de ponderações regressivas, que recuam do momento
em que a ação produziu seus resultados e conseqüências, para explicar e
responsabilizar porque ela foi (in)oportuna e (in)apropriada. Neste
processo, não há limites lógicos o quão para trás se pode chegar. O limite
dessa regressão é a identificação de causas demonstráveis, partindo
daqueles efeitos tomados como relevantes pelo desejo de uma determinada
accountability.

Esse percurso admite aberturas e fechamentos de linhas de


responsabilidade em virtude dos resultados da própria accountability, que
afere a relevância de uma certa linha de responsabilidade para explicar os
efeitos evidenciados numa ação policial. Exercita-se discricionariedades,
pratica-se seletividade na escolha das árvores de responsabilidade, sobre
as quais se busca identificar cursos consistentes de responsabilização.
Novamente, não há limites lógicos a este processo de abertura ou
fechamento, nem qualquer critério próprio, imanente, pelo qual se possa
dar rumo a accountability. Ela é inteiramente dependente da combinação
das instâncias de discricionariedade que articulam questionamentos, a busca
de respostas, a relevância das respostas e a satisfação ou não com tais
respostas.

Ainda que se possam acrescentar outras instâncias e espaços no


processo de accountability, o ponto de partida necessário para a sua
realização é a consideração da materialidade da polícia. Ordinariamente,
isto remete à apreciação dos recursos policiais que estavam disponíveis
para e na ação sob análise. Isso por si mesmo já exige o desdobramento

57
Da Accountability Seletiva à Plena Responsabilidade Policial

de quais recursos poderiam estar disponíveis, se eles poderiam ser mais


adequados e tudo o mais. Essa não é uma violação da lógica da accountability
ao inquirir sobre alternativas, ao contrário: é o rumo de poder produzir
de maneira precisa as respostas às perguntas: quais eram os recursos
disponíveis para essa ação? Por que estes e não outros recursos foram os
disponíveis? Quão adequados foram estes recursos para a ação policial?
Como eles influenciaram ou não as escolhas da iniciativa e da tática policial?

Assim, o espaço natural para o desenho de árvores de


responsabilidade é a materialidade da combinação dos recursos policiais.
Faz-se polícia com a polícia que se tem, seja em função dos recursos
disponíveis para uma polícia, seja em função daquela fração singular de
recursos disponíveis para a ação da qual se deseja accountability. Faz-se
accountability do que a polícia fez diante do que ela devia ter feito,
considerando o que ela, de fato, podia fazer. Novamente, faz-se
accountability do que a polícia fez, das escolhas de oportunidade e
propriedade da ação policial; diante do que ela devia ter feito, diante dos
termos concretos do mandato; considerando o que ela, de fato, podia
fazer, isto é, a disponibilidade de recursos na e para a ação. Isso tem lugar
através do mapeamento dos fluxos decisórios que produziram uma dada
disponibilidade de recursos e não outra.

Pode haver, de fato, tantas maneiras de descrever os recursos


policiais quanto as polícias. Isso não é empecilho para que se possa
compartilhar uma determinada visão sobre como descrevê-los. Como
os recursos policiais são multidimensionais e variados, é útil agrupá-los
em conjuntos de recursos agregados pela sua afinidade desde o ponto de
vista do delineamento de causas a partir de efeitos na accountability da
ação policial. Neste sentido, seria possível descrever os conjuntos de
recursos como sendo agrupamentos “orientados a problemas”.

Os conjuntos de recursos não são nem equivalentes nem


homogêneos em uma determinada organização policial. Eles são
descontínuos no que se refere à sua distribuição e uso no tempo e no
espaço. Isto significa dizer que em uma mesma polícia podem co-existir
diferentes disponibilidades e distintas qualidades de uso de cada conjunto
de recursos. É possível que todos os agentes policiais tenham uma arma
de fogo, mas nem todos estejam capacitados ou tenham competência

58
Jacqueline de Oliveira Muniz & Domício Proença Júnior

policial no seu uso. Estes conjuntos correspondem a:


i) Suporte e articulação organizacionais, que compreendem o
que a organização policial pode prover a indivíduos ou equipes policiais
em termos de seu mútuo apoio, incluindo aí a distribuição do efetivo
policial no espaço e no tempo, a capacidade de reforço ou acesso a recursos
especializados, etc.
ii) Equipamentos e materiais, que compreendem amplamente
a logística de uma organização policial em termos materiais, incluindo desde
o fardamento, armamento e munição até o suprimento de ataduras no kit
de primeiros socorros, passando pelos instrumentos de comunicação,
de proteção pessoal, ou o talonário de multas.
iii) Acervo de procedimentos, que compreende o conjunto de
condutas de ação, que inclui a aplicação dos contornos em diversas
circunstâncias particulares, e espelha o conhecimento e os saberes policiais,
enfim, o estado das práticas partilhado pelos policiais, construído pela
experiência coletiva no planejamento e execução da ação policial, na forma
de expedientes informais ou normas e procedimentos padrão.
iv) Capacitação de indivíduos e equipes, que compreende os
resultados dos processos educacionais, isto é, a capacidade de fazer uso
concreto do que foi aprendido, seja em percursos de formação geral,
seja em percursos de formação específica. Isto se expressa em diferentes
qualidades individuais, em diferentes habilidades para o empreendimento
de uma determinada tarefa policial.
v) Capacidade decisória, que compreende a qualidade decisória
de indivíduos ou grupos policiais na realização de diagnósticos e
prognósticos em tempo hábil diante de determinadas situações, e de
decidir, implementar e supervisionar cursos de ação, usando os recursos
disponíveis e comandando indivíduos ou equipes policiais.
vi) Competência policial, que compreende os diferentes perfis
de maior ou menor grau de especialidade ou experiência dos profissionais
de polícia envolvidos na ação diante das tarefas que a situação demanda.

A apreciação desses recursos para fins de accountability depende


de sua ponderação pelas condições reais de saúde ocupacional dos
policiais. Isso se expressa, por exemplo, na apreciação da curva de fadiga

59
Da Accountability Seletiva à Plena Responsabilidade Policial

e estresse ao longo de um turno de trabalho ou ao longo da trajetória


individual de trabalho.

Imagine-se que a ação policial sobre a qual se deseja accountability


refira-se a um questionamento que suspeita que teria havido uso
excessivo da força, e que a ação seria um exemplo de violência policial.
A situação seria em que um assaltante foi alvejado pela polícia depois de
ter sido desarmado e rendido.

O primeiro passo é considerar o enquadramento desta ação em


termos de uma das categorizações indicadas. Considerou-se que a ação
policial foi “oportuna”, pois a iniciativa policial de agir para frustrar o
assalto foi compatível com os termos do mandato desta polícia.
Considerou-se, ainda, que a forma da ação policial foi “inapropriada”,
pois ter atirado no suspeito depois de rendido era, de antemão,
incompatível com os contornos do mandato desta polícia nesta situação.
Tratou-se de uma iniciativa policial entendida como adequada, porém
com uma tática policial considerada inadequada.

O segundo passo é delinear as árvores de responsabilidade


capazes de identificar as causas deste efeito indesejado, a vitimização
do suspeito sob custódia. O que pode explicar este efeito? A busca
pelas causações por sobre os recursos policiais disponíveis pode
produzir diversas respostas que se complementam ou se excluem na
identificação de cursos de responsabilização. Em termos amplos, pode-
se dizer que estas respostas poderiam apontar para incapacidades,
incompetências ou erros. Cada uma delas poderia referenciar um
determinado desenlace do processo de accountability.

Identificou-se, por exemplo, uma incapacidade de equipamento:


a arma do policial disparou sozinha, após o policial guardá-la no seu
coldre, conforme o procedimento padrão. A arma estava degradada e
sua trava de segurança não funcionou quando o policial imobilizava o
suspeito. Concluiu-se que isso sugere uma falha de manutenção ou até
de aquisição do armamento policial. Diante da importância conferida a
esta incapacidade, pode-se institucionalizar accountability sobre a
aquisição e manutenção do armamento policial. O curso de
responsabilização incide sobre o policial, mas aponta na direção dos
que respondem pelo armamento da polícia.

60
Jacqueline de Oliveira Muniz & Domício Proença Júnior

Identificou-se, por exemplo, que o policial autor do disparo foi


incompetente: o disparo teria sido acidental, porque o tiro aconteceu
quando ele tentava travar sua arma. Conclui-se que isso sugere uma falha
na sua capacitação para o manuseio da arma, o que pode indicar a
necessidade de revisão do treinamento policial do uso da arma de fogo.
Diante da importância conferida a esta incompetência, pode-se
institucionalizar accountability sobre a formação policial. O curso de
responsabilização incide sobre o policial, mas aponta na direção dos que
respondem pelo treinamento da polícia.

Identificou-se, por exemplo, que o policial autor do disparo errou


ao reagir com sua arma a uma agressão verbal de parte do suspeito.
Conclui-se que isso foi uma falha motivada pela inexperiência do policial
na administração do uso da força, reagindo desproporcionalmente à
situação. Diante da importância conferida a erros deste tipo, pode-se
institucionalizar accountabilities sobre o processo de recrutamento,
seleção e formação de policiais, a gestão das carreiras policiais e suas
trajetórias e o acervo de procedimentos no uso de força. O curso de
responsabilização incide sobre o policial, mas aponta na direção de vários
outros que respondem por diversos aspectos da polícia.

Independentemente do seu propósito, no exemplo, a suspeita de


uso excessivo da força ou violência policial, a accountability produzida
para responder a este questionamento pode ter outros usos. Nos breves
exemplos imaginados acima, tem-se a compreensão de quais recursos
policiais estavam, de fato, disponíveis numa determinada ação. Encaminha-
se a construção de um entendimento das causas desta disponibilidade.
Edifica-se um acervo de explorações que pode servir à organização para
além do estudo de caso que deu origem a uma determinada accountability.

A apreciação destas árvores de responsabilidades e suas causações


têm ainda que considerar a possibilidade da interferência de
externalidades, isto é, de imponderáveis que não derivaram de vontades
e escolhas policiais. No caso das situações imaginadas, foi possível distinguir
que eventos exteriores à situação não foram relevantes para a identificação
de causas e, portanto, de cursos de responsabilização.

Há limites sobre o que se pode obter com a aplicação do


enquadramento da ação policial em categorizações que combinam

61
Da Accountability Seletiva à Plena Responsabilidade Policial

oportunidade e propriedade. Este tipo de ferramenta de análise não


pretende dar conta, por exemplo, das motivações e intenções pessoais
ou grupais que levam os policiais a decidirem ou agirem de tal ou qual
maneira. Reflete, tão somente, as escolhas realizadas em si mesmas e
ações empreendidas à luz de sua adesão aos termos do mandato policial.
Assim, a intenção deliberada de policiais ou grupos de policiais de agirem
como “justiceiros”, “matadores de bandidos”, consiste numa violação
explícita do mandato policial. Isto demanda outros percursos de
accountability, complementares ao enquadramento da ação policial em
termos de oportunidade e propriedade. Isso porque estas perversões
do mandato policial podem ser invisíveis a este enquadramento, podendo
ser camufladas, disfarçadas, em ações oportunas e apropriadas pela
construção deliberada de falsas oportunidades e propriedades. Podem-
se constituir disfarces de ações policiais oportunas e/ou apropriadas pela
fabricação de falsos cenários, falsificação ou ocultação provas, montagem
de locais de crime, e mesmo a produção de apreensões e prisões. Tudo
isso para ocultar fracassos, ou inventar sucessos que acobertem a violação
do mandato policial e suas possíveis licenciosidades.

O enquadramento da ação policial em categorizações que combinam


oportunidade e propriedade também não tem como dar conta da
corrupção policial em toda a sua complexidade. A possibilidade de
corrupção perpassa todas as quatro alternativas lógicas de categorizações
apreciadas, podendo se fazer presente antes, durante e depois de ações
policiais (in)oportunas e (in)apropriadas.

Esta característica pervasiva da corrupção torna complexa e


desafiante sua apuração e controle. Ações policiais oportunas e apropriadas
podem ser motivadas, criadas, modificadas ou aproveitadas para atender
interesses particulares de policiais ou de outros. Isto significa dizer que
podem ocorrer modalidades ou práticas corruptas que não violem de
forma explícita o mandato policial, pois se colocam e se beneficiam de
lacunas, brechas e intervalos comuns e freqüentes entre contornos, alcance
e âmbito dos mandatos policiais concretos. Estas práticas podem ter lugar
nas interseções inescapáveis e folgas necessárias entre o que se deseja de
um mandato policial e as formas concretas de seu atendimento, entre o
que pode e o que não pode ser feito. Por isso mesmo, estas tendem a ser
menos visíveis e palpáveis, mais enraizadas e longevas do que aquelas que
confrontam explicitamente o mandato policial.

62
Jacqueline de Oliveira Muniz & Domício Proença Júnior

A isto se soma um fator complicador que é o contexto de uma


polity, que constrói e admite distintos níveis de tolerância ou aceitação
social. Em muitas comunidades, as fronteiras que distinguem o que se
costuma definir as atividades policiais como corruptas podem ser muito
fluidas, pouco nítidas. Elas podem ser favorecidas pelas, ou mesmo se
confundirem com, práticas culturalmente estabelecidas de trocas sociais,
com mecanismos informais de reciprocidade e gratuidade. Em suma,
podem ser inscritas nas dinâmicas de prestações e contraprestações que
alimentam e vivificam elos entre distintos grupos sociais.

Viu-se, pois, a abrangência e os limites da apreciação da ação policial


pelas considerações de oportunidade e propriedade como uma ferramenta
para o exercício de accountability policial. Esta ferramenta não cobre e
nem ambiciona cobrir indagações sobre as possíveis motivações ou
intenções para a ação policial. Ela as toma como elementos de partida de
qualquer escolha ou juízo, embutidos nos resultados e conseqüências que
se presente avaliar. Restringe-se, portanto, e esta é sua virtude, ao mérito
substantivo da oportunidade e propriedade da ação policial, orientando o
estabelecimento de cursos de responsabilização que, mediante orientação
da polity, pode seguir rumo ao entendimento das motivações ou intenções
as mais diversas.

4. CONSIDERAÇÕES FINAIS

O propósito deste ensaio foi o de enquadrar a questão da accountability


policial de maneira útil. Assim sendo, ele dispensou, nesta ocasião, o
preâmbulo usual de uma revisão sistemática da considerável literatura sobre
o assunto, que pode ser encontrada nas obras referenciadas mais abaixo.
Ainda assim, é oportuno compartilhar alguns dos vínculos com algumas
obras que, é importante assinalar, são a semente, a provocação, o convite a
partir dos quais se pode apresentar os elementos acima.

O vínculo mais tênue diz respeito à transitividade, à passagem, dos


termos centrais da problemática tratada (accountable, account e
accountability). Esforços anteriores já haviam identificado o conjunto de
expectativas, de significados socialmente situados, que se associam a cada
um deles no idioma inglês. Aqui foi necessário romper com a ambição,
em si mesma meritória, de intentar uma tradução, como apresentado na

63
Da Accountability Seletiva à Plena Responsabilidade Policial

nota inicial que abre o texto. O fato simples é que, como dizem os italianos,
traduttore tradittore, toda tradução é (alguma) traição. E o acervo de alguns
desvios apresentou-se como demasiado para os propósitos do texto.

Revelou-se oportuno priorizar a discussão do conteúdo dos termos,


preservando-os em seu idioma original. Aqui a discussão foi propriamente
exploratória. É oportuno registrar apenas o caráter do uso das palavras
em idiomas latinos, onde raiz e trajetória histórica apontam para
significados precisos e a forma própria do uso do idioma inglês. Até onde
é possível perceber, por exemplo, por responsible se entendem,
simultaneamente, ou se admite entender alternadamente, tanto responsável
quanto responsabilizável. Aqui os autores admitem francamente que o
que se apresenta mais acima é um esforço inicial que busca imprimir algum
rigor a termos que se ambiciona possam vir a ser categorias úteis.

Já o vínculo com a temática tratada, ela mesma, é bem mais firme e


fácil de relatar. O problema mais amplo do que é a accountability policial
tem sua expressão mais límpida no trabalho de Goldstein (1977). A
responsabilidade por um evento de violência policial é ilustrada e
problematizada pelo autor a partir da explicitação de uma árvore de
responsabilidades possíveis, que se inicia na polícia, vai ao governo e chega
até a sociedade policiada: inicia-se com o policial individual, passando por
seus superiores até o chefe de polícia, daí para o Executivo e para o
Legislativo (que controla e aprova decisões de nomeação), e culmina
atingindo os próprios cidadãos que elegeram a um e outro. Revela-se,
com isso, um problema central explorado neste texto. Esforços de
imputação de responsabilidade não chegam a lugar nenhum quando eles
perdem de vista o encadeamento de instâncias de discricionariedade, de
processo, de mediação e articulação entre a polity (que concede e é objeto
do mandato policial) e a polícia (que o recebe e o executa). Produzem, no
limite, o inverso da responsabilização, uma vez que conduz à total
indistinção entre delegações, escolhas, ações, seus resultados e
conseqüências: se todos são, a todo tempo, responsáveis por tudo, então
não se tem como atribuir responsabilidades concretas a alguém em
particular. Sem a pretensão de resolver este problema, Goldstein sugere
a responsabilização política como um ramo frutífero a ser explorado nas
democracias, indicando, por exemplo, o processo eleitoral como um
espaço relevante de expressão das autorizações, demandas e
questionamentos do público, enfim, de sua aprovação ou desaprovação

64
Jacqueline de Oliveira Muniz & Domício Proença Júnior

em relação ao governo e às polícias.

Um encaminhamento contemporâneo de alguma influência é o


esforço de Bayley (2001b), que ambiciona compreender a democratização
das polícias no mundo a partir da replicação de determinadas normas e
rotinas. Sua maior preocupação é a perversão, no sentido estrito, da polícia
num instrumento do Estado contra a sociedade, num primeiro momento,
e de grupos de poder sobre a sociedade, logo em seguida. Aqui o problema
é outro. Trata-se da difícil passagem entre o que se ambiciona produzir
pela adesão a normas ou rotinas e a construção de mecanismos capazes
de produzi-las numa dada polícia, com um dado mandato policial, numa
dada polity, num determinado momento. A generosidade e a coragem de
oferecer um modelo são empanadas, portanto, pela carga de elementos
deixados implícitos do contexto de origem, isto é, a falta de uma explicação
sobre como se operam tais normas e rotinas diferenciadamente na solução
múltipla e concorrencial dos EUA para a questão policial, que admite uma
infinidade de polícias com âmbitos e alcances sobrepostos ou coincidentes,
e com elementos de contorno afins e conflitantes. Claro, isso significaria
ter que lidar com o quanto este modelo é mais um amálgama de
experiências e experimentos do que um modelo propriamente dito, e aí
exatamente está o ponto: fazer polícia democrática seria, então, adotar
práticas policiais dos EUA? Esse é um dos elementos centrais que motivou
a clarificação dos aspectos específicos que singularizam o processo de
accountability policial quando ele se faz, se coloca, e pretende ser útil
para uma dada realidade social, ou seja, para uma dada polícia numa
determinada polity num determinado momento.

Quando Walker (2005) oferece mecanismos adaptáveis, ou a


inspiração para a edificação de tais mecanismos, na sua “nova
accountability”, a seu turno, ele arrisca-se ambicionar demasiado, além
do que seja possível para a produção de accountability policial e seus
usos. Sua proposta é estabelecer mecanismos em tempo real, abrangentes,
automáticos e redundantes. Sistemas de account autônomos e sobrepostos
que se acionam automaticamente para todo e qualquer incidente, por
exemplo, de uso de arma de fogo pela polícia. Esses sistemas incluiriam
os próprios policiais da unidade envolvida, uma primeira cobertura;
departamentos especializados em account da polícia, uma segunda
cobertura, automática e paralela a primeira; e ainda uma auditoria externa
de account, que monitora em tempo real as duas primeiras, oferecendo

65
Da Accountability Seletiva à Plena Responsabilidade Policial

uma terceira cobertura paralela e com autonomia para rever ou refazer


account. A partir de um certo ponto, se arrisca emancipar toda essa
atividade do que é que a polity, ou a polícia, desejam para diversos
propósitos, pondo em tela a questão da oportunidade dos custos e
recursos necessários para tal sistema. Um primeiro olhar é que isso
enfrenta problemas crescentes de deseconomias de escala, quanto maior
seja a organização policial que ensaie essa proposta. O que pode ser fácil
para departamentos de algumas centenas de policiais, pode ser difícil para
departamentos com milhares e impossível para departamentos com
dezenas de milhares de policiais. Fica ainda uma questão de deseconomias
de âmbito, isto é, da disponibilidade de pessoas, da factibilidade concreta,
e mesmo da utilidade de account em tempo real de tudo num nível padrão
de detalhamento. Há trade-offs, trocas cruzadas, evidentes em qualquer
proposta deste tipo e, no caso da accountability policial a sua solução é
evidente: escolhas nas diversas instâncias de discricionariedade. Mas Walker
não enfrenta o problema da discricionariedade, que permeia e perpassa
todo o mandato policial, mesmo que se sujeite a ele, no mesmo exemplo,
ao aceitar sem discutir a prioridade da accountability do uso da arma de
fogo. Assim, não há espaço para as instâncias reais de discricionariedade
em sua proposta nem para o account nem na accountability. A “new
accountability” é um pleito por uma “full accountability”, pura e
simplesmente. Por isso pareceu tão relevante dar conta, de fato expor a
falácia, da busca por uma full accountability, o que levou, a seu turno, ao
que se explicou mais acima sobre selective accountability como capaz, de
fato unicamente capaz, de levar à full responsibility.

O rumo dessa solução parece corresponder a um dos rumos que


Goldstein apontava como capazes de vir a dar conta da questão, o do
arrimo teórico, da construção de ambição conceitual, capaz de clarificar
o que é a accountability em geral, e daí dar conta do que é específico e
particular na accountability policial. Sem dúvida que o que se expôs aqui é
mais derivado, desenvolvido, a partir de Bittner (1970, especialmente
1974, 1990b) do que de Goldstein, porque é em Bittner que se tem o
rumo de uma teoria.

Mas ainda assim é simples questão de justiça apontar como a


explicitação e apreciação de Goldstein da árvore de responsabilidades,
refletida à luz da construção teórica de Bittner, permitiram avançar neste
texto rumo à compreensão do processo de identificação de

66
Jacqueline de Oliveira Muniz & Domício Proença Júnior

responsabilidades (account) e da atribuição de cursos de responsabilização


policial (accountability). É também uma questão de justiça indicar como a
clareza de Goldstein na denúncia de uma apropriação de accountability
repercute na escolha do rumo de apresentação. Sucintamente, como uma
proposição de accountability policial não pode ser submetida, não pode
ser reduzida, a uma maneira de procurar saber como ser popular ou a ser
aprovado seja pela maioria, seja por uma minoria vocal. Só faz sentido
considerar uma accountability policial como sendo a maneira pela qual a
polícia responde, em sentido amplo, sobre o exercício do mandato
recebido da e aplicado na polity. Em outras palavras, para Goldstein, o
problema de se precisar a accountability policial é o de como impedir que
a polícia possa ser uma vereda para a apropriação do exercício do mandato
policial legítimo e legal por interesses privados, sejam os da maioria, sejam
os de minorias vocais.

Que a accountability tenha utilidade para a própria polícia só soa


surpreendente porque não é ao redor da execução do mandato policial
que se costuma colocar a questão. O mais usual é que a accountability
policial seja cobrada das polícias de diversas formas, em diversos
momentos, mas muito freqüentemente quando a organização policial está
fragilizada por algum resultado ou conseqüência indesejável ou indesejada.
Mas se a questão da accountability é contextualizada, quando se percebe
que ela não pertence exclusivamente a tais momentos, então ganha-se
muito em densidade e clareza.

A institucionalização de formas de accountability policial é fértil,


uma vez que estrutura e recria capacidades para produzir account capaz
de sustentar novas accountabilities úteis para o aprimoramento e para a
multiplicação do efeito da polícia. Isso admite diversos desdobramentos
sobre as formas pelas quais legitimidade e legalidade, consentimento social
e sua expressão legal, explicam a credibilidade policial e as formas como
esta última conforma a capacidade de uma polícia cumprir o seu mandato
que podem aguardar outra ocasião.

O mais importante é destacar que este texto relata como a


accountability policial não é, e se é accountability policial não pode ser,
algo “contra a polícia”. Ao contrário, como se espera ter demonstrado, a
accountability policial é a contrapartida necessária aos poderes delegados
do mandato policial. Seu uso e aperfeiçoamento pertencem, também, ao

67
Da Accountability Seletiva à Plena Responsabilidade Policial

exercício mesmo deste mandato. Dito de outra forma: uma polícia que
avalia a maneira pela qual exerce o seu mandato, como se pratica
discricionariedade em seu patrulhamento ou sua investigação ou sua análise
forense com vistas à melhora de seu desempenho, está fazendo
accountability, mesmo que não a chame assim. Porque é desta forma que
se pode apreciar as escolhas, resultados e conseqüências do exercício do
mandato.

Daí abrem-se duas alternativas conclusivas conexas. A primeira é a


de franquear o uso da accountability policial como ele se apresenta, isto é,
como um instrumento de utilidade para quem delega e para quem recebe
o mandato policial, isto é, tanto para a polity quanto para a polícia. A
segunda é argüir pelo seus valor e oportunidade, o que pode corresponder,
na prática contemporânea, a argüir pela compreensão de suas natureza e
forma e estimular a sua prática para todos os envolvidos: para toda a
polity e, acima de tudo, para qualquer polícia.

Notas
1
Texto originalmente apresentado no Primer Curso Internacional em Rendición de Cuentas de
la Policía, 14 a 18 de maio de 2007, cidade do México, organizado por INSYDE (México), com
apoio do CESC (Chile) e da rede Altus.
2
Somos devedores das lúcidas observações de Vargas (2005) em sua nota de título (p. 19).
3
Como explicado na nota inicial, foram mantidos diversos termos em inglês, como forma de
poupar a exposição do trabalho de uma revisão dos esforços anteriores de tradução. Essa adesão
circunstancial a termos em idioma estrangeiro como vocábulos em um idioma latino necessita
de uma breve explicação de sua flexão. Sem embargo, para além da imposição de um gênero (a
“accountability”, o “account”), estes termos são tratados como palavras de pleno curso no
idioma do texto. Assim diz-se “a accountability” quando se referencia a classe, “uma
accountability” uma instância da classe, como em “o mandato” e “um mandato”. Note-se que
isso é um pequeno ganho em relação à língua inglesa que não tem este uso para, por exemplo,
“accountability”. “The accountability”, a “accountability” de alguma coisa é uma construção
rara, “an accountability”, uma construção em desuso. Em inglês se usa, de fato, “accountability
tanto para a classe geral quanto para o caso específico sem artigo, como em “police accountability”
ou até só “accountability” como sujeito de uma oração.
4
A responsibility é full, é-se plenamente responsabilizável, porque se responde, sempre, pelos
resultados dos atos e omissões. Não há, nem se pretende imunidade de quem quer que seja e
muito menos da polícia. Tudo o que decorre de um mandato é accountable em termos dos
diagnósticos, prognósticos e por extensão do desempenho de uma determinada ação; por outro
lado, o diagnóstico, o prognóstico e a justificativa de uma determinada inação. Isso inclui até
mesmo a consideração do account de atos presumidamente decorrentes do mandato, mas cuja
pertinência à atenção de quem detém o mandato pode vir a ser questionada.
5
É precisamente porque a accountability corresponde à responsabilização por escolhas que não
há contradição ao se afirmar que vai de full responsibility para selective accountability. A

68
Jacqueline de Oliveira Muniz & Domício Proença Júnior

realidade de ser-se plenamente responsabilizável corresponde a uma accountability seletiva,


melhor ainda, a accountability seleta do que é relevante para ou pelo mandato. Que a plena
responsabilização só pudesse existir diante de uma accountability completa, total e contínua
revela-se assim como uma fantasia pedante.
6
No contexto dos relacionamentos humanos, o uso de força expressa uma forma particular e
distintiva de produzir coerção. Seus fins são os mesmos que os de qualquer alternativa coercitiva:
submeter vontades, alterando atitudes e influenciando comportamentos de indivíduos e grupos.
O que o distingue de todas as outras formas coativas são seus meios, os meios de força.
7
Klockars (1985) conclui que ,ainda que se possam encontrar diversos antecedentes e
experimentos anteriores rumo à “polícia”, foi a experiência da Nova Polícia de Londres 1832 que
veio a se estabelecer como o marco na fundação das modernas burocracias policiais estatais,
tanto em termos de sua repercussão e emulação quanto como resultado de reconstrução das
trajetórias históricas que produziram a “polícia”. Sem embargo, o que se exprime no texto
significa que quem quer que receba o mandato policial, não importando se o exerce de maneira
permanente, interina, ou pontual, é de fato polícia, independentemente de sua destinação
formal ou de sua identidade institucional, como é o caso, por exemplo, do uso de contingentes de
voluntários civis ou de efetivos militares como polícia. Assim, o processo de especialização de
organizações estatais de força exclusivamente orientadas para o mandato policial não se confunde
com algum tipo de monopólio, mas expressa uma realidade histórica presente em termos da
divisão social do trabalho e de determinadas soluções para o problema da governabilidade.
8
Isto corresponde a desenvolvimentos, cuja semente está em Bittner (1974), à luz de Bittner
(1990b), e que teve tratamento inicial em Proença Jr & Muniz (2006b).
9
É oportuno lembrar que a discricionariedade foi “descoberta” pelos estudos policiais, revelando
o equívoco interpretativo pelo qual a lei teria inventado, e seria a mestra, do mandato policial.
Ver para uma trajetória deste entendimento Skolnick (1966), Goldstein, (1977), Bittner (1970),
Bayley (1982), Klockars (1985).
10
Na fórmula extraordinariamente feliz de Muir (1977).
11
Revela-se, com isso, a dimensão do equívoco de se querer “legislar a ação policial”, da ambição
de controlá-la antecipadamente em lei, o que, paradoxalmente, sabotaria a própria legalidade
da ação de polícia, pois tal legislação não poderia ser cumprida sem produzir imediatamente a
sua desqualificação, e, portanto, seria uma lei escrita para ser desobedecida. Aí tudo da ação
policial concreta seria ilegal. É essa a discussão que informa a questão do “profissionalismo
policial” em Bayley & Bittner (1989) e que motivou a discussão anterior de seu conteúdo como
sendo a perspectiva de um “novo profissionalismo” em Klockars (1985).

Referências Bibliográficas
Banton, Michael (1964), The policeman in the community. Basic Books.
Bayley, David H & Bittner, Egon (1989), ‘Learning the Skills of Policing’, Law and Contemporary
Problems, 47: 35—59. now in Roger G. Dunham and Geoffrey P. Alpert, eds., Critical Issues in
Policing – contemporary readings – 4th edition, 82—106. Prospect Heights, Ill.: Waveland
Press.
Bayley, David H. (1985), Patterns of Policing: A Comparative International Perspective. New
Haven: Rutdgers University Press.
——— (1994), Police for the Future. New York and Oxford: Oxford University Press.
——— (1996). “Measuring Overall Effectiveness” In: Hoover, Larry H (1996): Quantifying
Quality in Policing (PERF): 37-54.
——— (1998a), What Works in Policing. New York and Oxford: Oxford University Press.

69
Da Accountability Seletiva à Plena Responsabilidade Policial

——— (1998b), ‘Patrol’, in David H. Bayley, ed., What Works in Policing, 26—30. New York
and Oxford: Oxford University Press.
Bayley, David H. and Shearing, C. (1996), ‘The Future of Policing’, Law and Society Review, 30/
3: 585-606.
——— (2001a), The New Structure of Policing: description, conceptualization and research
agenda. Washington, DC: National Institute of Justice.
——— (2001b), Democratizing Police Abroad: what to do and how to do it. Washington:
National Institute of Justice.
Bittner, Egon (1967), ‘The Police in Skid Row: a study in peacekeeping’, American Sociological
Review, 32/5: 699—715 now in Egon Bittner (1990), Aspects of Police Work, 131—156.
Boston, Mass: Northeastern University Press.
——— (1970), The Functions of the Police in Modern Society: a review of background
factors, current practices, and possible role models. Rockville, MD: Center for the Study of
Crime and Dellinquency. now in Egon Bittner (1990), Aspects of Police Work, 89—232. Boston,
Mass: Northeastern University Press.
——— (1974), ‘Florence Nightingale in pursuit of Willie Sutton: a theory of the police’, in
Herbert Jacobs, ed., The Potential for Reform of Criminal Justice, vol 3. Beverly Hills, CA:
Sage. now in Egon Bittner (1990), Aspects of Police Work, 233—268. Boston, Mass: Northeastern
University Press.
——— (1983), ‘Urban Police’, in Encyclopedia of Crime and Justice. New York: The Free
Press. now in Egon Bittner (1990), Aspects of Police Work, 19-29. Boston, Mass: Northeastern
University Press.
——— (1990a), Aspects of Police Work. Boston, Mass: Northeastern University Press.
——— (1990b), ‘Introduction’, in Egon Bittner, Aspects of Police Work, 3—18. Boston, Mass:
Northeastern University Press.
Blumberg, Mark (2001), “Controlling Police Use of Deadly Force – assessing two decades of
progress” in Dunham, Roger G & Alpert, Geoffrey P, ed (2001): Critical Issues in Policing –
contemporary readings. Waveland Press, 4th Edition: 559-582.
Brooks, Laure Weber (2001), “Police Discretionary Behavior – a study of style” in Dunham, Roger
G & Alpert, Geoffrey P, ed (2001): Critical Issues in Policing – contemporary readings (Waveland
Press, 4th Edition): 117-131.
Chalon, Maurice; Leónard, Lucie; Vanderschureren, Franz and Vézina, Claude (2001), Urban
Safety and Good Governance: the role of the police. Nairobi: International Centre for the
Prevention of Crime.
Clarke, Ronald V (1992), “Introduction” in CLARKE, Ronald V, ed (1992): Situational Crime
Prevention: Successful Case Studies. Harrow & Heston: 1-42
Cordner, Gary W. (1996), ‘Evaluating Tactical Patrol’, in Larry T. Hoover, ed., Quatifying Quality
in Policing, 185—206. Washington, D.C.: Police Executive Research Forum (PERF).
Cordner, Gary W.; Gaines, Larry K. and Kappeller, Victor E., eds. (1996), Police Operations:
analysis and evaluation. Cincinnati, OH: Anderson Publishing Co.
Couper, David C. (1983). How to Rate Your Local Police. Washington, PERF.
Crank, John P. (2003), ‘Institutional theory of the police: a review of the state of the art’, Policing:
an international journal of police strategies and management, 26/2: 186-207.
Cusson, Maurice (1999), ‘Qu’est-ce que la securité intérieure?’ (What is internal security?),
electronic document, University of Montreal, [crim.umontreal.ca], 22 pages.
Dziedzic, Michael J. (1998), ‘Introduction’ in Robert B Oakley, Michael J Dziedzic and Eliot M
Goldberg, eds., Policing the New World Disorder: peace operations and public security, 3—

70
Jacqueline de Oliveira Muniz & Domício Proença Júnior

18. Washington: National Defense University Press.


Feltes, Thomas (2003), ‚Frischer Wind und Aufbruch zu neuen Ufern? Was gibt es Neues zum
Thema Polizeiforschung und Polizeiwissenschaft?’ (Fresh winds and a departure to new coasts?
What is new in police research and police science?), eletronic document, [www.thomasfeltes.de/
Literatur.htm], 9 pages.
Fielding, Nigel G. (2002), ‘Theorizing Community Policing’, British Journal of Criminology, 42:
147—163.
Hansen, A.S. (2002), From Congo to Kosovo: Civilian Police in Peace Operations. London:
IISS / Oxford University Press.
Hoover, Larry T. (coord.) (1998). Police Program Evaluation. Washington DC: Police Executive
Research Forum and Sam Houston State University.
Hunt, Jennifer (1999) “Police Accounts of Normal Force” (in Kappeler, Victor E, ed (1999): The
Police and Society – touchstone readings. Prospect Heights, Ill.: Waveland Press, 2nd Edition:
306-324.
Jones, Trevor and Newburn, Tim (2002), “The transformation of policing? understanding current
trends in policing systems”, British Journal of Criminology, 42: 120-146.
Kappeler, Victor E et al (2000a) “The Social Construction of Crime Myths” in Kappeler, Victor E
et al (2000): The Mythology of Crime and Criminal Justice. Prospect Heights, Ill.: Waveland
Press: 1-26.
——— (2000b), “Merging Myths and Misconceptions of Crime and Justice” in KAPPELER,
Victor E et al (2000): The Mythology of Crime and Criminal Justice. Prospect Heights, Ill.:
Waveland Press: 297-310.
Kappeler, Victor E., ed. (1999), The Police and Society – touchstone readings, 2nd Edition.
Prospect Heights, Ill.: Waveland Press.
Kelling, Geroge L (1996) “Defining the bottom line in policing – organizational philosophy and
accountability” in Hoover, Larry H (1996): Quantifying Quality in Policing. Wahsington DC,
PERF: 23-36.
Kelly, Michael J. (1998), ‘Legitimacy and the Public Security Function’ in Robert B Oakley,
Michael J Dziedzic and Eliot M Goldberg, eds., Policing the New World Disorder: peace
operations and public security, 399—432. Washington DC: National Defense University Press.
Klockars, Calr B (1985), The Idea of Police. London: Sage.
Lima, Roberto Kant (1994), A Polícia da Cidade do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Editora
Forense.
Manning, Peter K (1999a) “Mandate, Strategies and Appearances” in Kappeler, Victor E, ed
(1999): The Police and Society – touchstone readings. Prospect Heights, Ill.: Waveland Press,
2nd Edition: 94-122.
——— (1999b) “Economic Rethoric and Policing Reform” in Kappeler, Victor E, ed (1999): The
Police and Society – touchstone readings. Prospect Heights, Ill.: Waveland Press, 2nd Edition:
446-462.
——— (1999c) “Violence and Symbolic Violence” in Kappeler, Victor E, ed (1999): The Police
and Society – touchstone readings. Prospect Heights, Ill.: Waveland Press, 2nd Edition: 395-
401.
——— (2004), ‘Some Observations Concerning a Theory of Democratic Policing’ (Draft),
Conference on Police Violence, Bochom, Germany, April. 8 pp.
McDonald, Phyllis Parshall (2001), “COP, COMPSTAT, and the New Profissionalism – mutual support
or counterproductivity?” in Dunham, Roger G & Alpert, Geoffrey P, ed (2001): Critical Issues in
Policing – contemporary readings. Prospect Heights, Ill.: Waveland Press, 4th Edition: 255-277.

71
Da Accountability Seletiva à Plena Responsabilidade Policial

——— (2002), Managing Police Operations – implementing the New York Crime Control
Model – CompStat New York: Wadsworth.
Muir Jr, William Ker (1977). Police: Streetcorner politicians. Chicago: The University of
Chicago Press.
Muniz, Jacqueline (1999) “Ser policial é sobretudo uma razão de ser”. Tese de Doutorado. Rio de
Janeiro: IUPERJ.
——— (2001), ‘A Crise de identidade das polícias’ (The polices’ identity crisis), REDES 2001
Meeting, Washington, DC, electronic document, 42 pp.
Muniz, Jacqueline & Proença Jr, Domício (2003), “Police Use of Force: The Rule of Law and Full
Accountability”, Comparative Models of Accountability Seminar. INACIPE, Ciudad de Mexico,
29-30 October, 10 pp.
Muniz, Jacqueline; Proença Jr, Domício; Diniz, Eugenio (1999). Uso da força e ostensividade.
Boletim de Conjuntura Política. Belo Horizonte, Departamento de Ciência Política, Universidade
Federal de Minas Gerais.
Neocleous, Mark (2000a), ‘Social Police and the Mechanisms of Prevention’, British Journal of
Criminology, 40: 710—726.
——— (2000b), The Fabrication of Social Order: a critical theory of police power. London:
Pluto Press.
Proença Jr, Domício (2003a), “O enquadramento das Missões de Paz (PKO) nas teorias da
guerra e teoria de polícia”, in Esteves, Paulo Luiz (org.), 2003. Instituições Internacionais:
Comércio, Segurança e Integração. Belo Horizonte: Editora PUC Minas.
——— (2003b). “Some Considerations on the Theoretical Standing of Peacekeeping Operations”.
In: Low Intensity Conflict and Law Enforcement 9(3): 1-34. Frank Cass Co.
Proença Jr, Domício. & Muniz, Jacqueline (2006a), “Rumos para a Segurança Pública no Brasil
- o desafio do trabalho policial”, in Bartholo, R. e Porto, M.F. Sentidos do Trabalho Humano. Rio
de Janeiro: E-Papers: 257-268.
——— (2006b) “‘Stop or I’ll call the Police!’ The Idea of Police, or the effects of police encounters
over time”, British Journal of Criminology 46: 234-257.
Rahtz, Howard (2003), Understanding Police Use of Force. Monsey: Criminal Justice Press.
Reiner, Robert (1996) “Processo ou Produto? Problemas de avaliação do desempenho policial
individual” in Brouder, Jean-Paul, ed (2002): Como reconhecer bom policiamento. São Paulo:
EdUSP: 83-102.
Robinson, Cyril D.; Scaglion, Richard and Olivero, J. Michael (1994), Police in Contradiction:
the evolution of the police function in society. Westport, Conn: Greenwood Press.
Sacco, Vincent F (1996) “Avaliando Satisfação” in BROUDER, Jean-Paul, ed (2002): Como
reconhecer bom policiamento. Rio de Janeiro: EdUSP: 157-174.
Schmidl, Erwin A. (1998), ‘Police Functions in Peace Operations’ in Robert B Oakley, Michael J
Dziedzic and Eliot M Goldberg, eds., Policing the New World Disorder: peace operations and
public security, 19—40. Washington: National Defense University Press.
Skolnick, Jerome H. (1994 [1966]). Justice Without Trial: Law Enforcement in Democratic
Society. New York: Macmillan College Publishing Company, 3rd ed.
Vizzard, William J. (1995), ‘Reassessing Bittner’s thesis: understanding coercion and the police
in light of Waco and the Los Angeles riots’, Police Studies: International Review of Police
Development, 18/3: 1—18.
Varenick, Robert O. (2005), Accountability: sistema policial de rendicion de cuentas. Ciudad
de Mexico: Instituto para la Seguridad y la Democracia.
Vargas, Ernesto López Portillo (2005), “Accountability: modelos distintos, lecciones comunes” in

72
Jacqueline de Oliveira Muniz & Domício Proença Júnior

Robert O Varenik, Accountability: sistema policial de rendicion de cuentas: 19—48. Ciudad


de Mexico: Instituto para la Seguridad y la Democracia
VVAA (1998) Crime Organizado e Política de Segurança Pública no Rio de Janeiro, Arché no. 19.
Walker, Samuel (2004), ‘Science and Politics in Police Research: reflections on their tangled
relationship’, The Annals of the American Academy of Political and Social Science, 593/1:
137—155.
——— (2005), The New World of Police Accountability. New York: Sage.
Whitaker, Gordon P (1996) “What is Patrol Work?” in Cordner, Gary W et al, ed (1996): Police
Operations – analysis and evaluation. Prospect Heights, Ill.: Anderson Pub Co.: 55-70.

73
I NA
NT
GE
Artigo AR

A PARTICIPAÇÃO COMUNITÁRIA.
O CASO BRADFORD E A EXPERIÊNCIA BRITÂNICA FRENTE AOS
DESAFIOS DO RACISMO, DA EXCLUSÃO SOCIAL E DO
TERRORISMO.
Gastón Hernán Schulmeister*

O tema da participação comunitária chama a atenção para


o déficit de representatividade e para canalização de demandas de
nossas sociedades, sendo útil à melhoria do funcionamento das
instituições de segurança.
A experiência do fórum de participação social com a polícia,
na cidade de Bradford, onde as diferentes minorias étnicas estão
representadas diante de uma sociedade dividida —com problemas
de exclusão social e deteriorada pelo terrorismo—, é um modelo
para ser pensado na América Latina.
A partir das realidades locais, a constituição de foros de
participação que garantam a diversidade em termos de classe social
—derivada das desigualdades sócio-econômicas—, constitui uma
opção a ser levada em consideração na hora de formular políticas
em nossa região.

INTRODUÇÃO

Para delinear políticas de segurança e impulsionar eventuais iniciativas


e reformas, primeiramente é preciso, entre outras coisas, estar em
condições de fazer um diagnóstico adequado da realidade a ser analisada,
começando pelo cenário em questão e pelas diferentes capacidades
institucionais com as quais se conta.

No entanto, no momento de pensar na busca de novas respostas


frente a demandas cada vez mais complexas, é imperioso ter a imaginação
e a liberdade de pensamento suficientes para não ser prisioneiro de velhos

* Gastón Hernán Schulmeister é Mestre em Estudos Internacionais pela Universidade Torcuato


Di Tella. Destaca-se em sua formação e experiência profissional ter sido Chevening Fellow 2006
do Foreign and Commonwealth Office of the United Kingdom, no Department of Peace Studies
da University of Bradford, para o estudo de processos de reforma da segurança em países
emergentes de conflito. Este curso de aperfeiçoamento incluiu um programa com a West Yorkshire
Police, onde foram examinados os desafios de vigiar uma sociedade dividida dentro da Grã-
Bretanha. Além disso, entre as diversas visitas de estudo realizadas, seu programa incluiu uma
estadia na Irlanda do Norte para observar a transformação dos serviços de segurança como
74 parte do processo de paz em desenvolvimento.
Gastón Hernán Schulmeister

estereótipos, em consonância com a necessidade de entender e reconhecer


verdadeiramente o caráter multifacetário que a segurança supõe, e a
abordagem holística (leia-se integral) que a mesma requer em nossos tempos.

Partindo dessas premissas, o presente ensaio tem por objetivo


central ser o gatilho de novas idéias na América Latina. Para isso, o trabalho
enfoca a experiência do fórum social na cidade de Bradford (Inglaterra)
com a West Yorkshire Police (WYP), diante dos desafios contemporâneos
de vigiar uma sociedade dividida dentro do Reino Unido e a complexidade
do terrorismo internacional, como um modelo de participação a ser
considerado, conforme as realidades e necessidades locais.

Em conseqüência, a relevância da abordagem da participação


comunitária no estudo de caso formulado, no qual as diferentes minorias
étnicas estão representadas, tem múltiplos aspectos inter-relacionados a
serem destacados.

Em primeiro lugar, a política implementada no Reino Unido serve


para exemplificar como, inclusive para temas complexos como o
terrorismo (associados geralmente a delitos federais e/ou que afetam a
segurança nacional desde o ponto de vista institucional), a abordagem
considerando a perspectiva local, o nível de resposta mais inferior do
Estado, está ausente. Nesse sentido, esse caso, em particular, exemplifica
como o terrorismo repercute e desafia a geração de respostas a partir
do contexto local.

Em segundo lugar, o tratamento não tradicional frente ao terrorismo


que se coloca nesse caso demonstra o reconhecimento da complexidade
que o fenômeno possui, desde o aspecto social, seja pela sua natureza ou
pelos efeitos colaterais que provoca no seio da sociedade, estando em
jogo questões de critério étnico e religioso que se entrelaçam. Isso é
parte da aplicação prática de um enfoque holístico da segurança à realidade,
longe de ser um exercício ou uma conjectura meramente teórica e/ou
“politicamente correta” de abordar a questão.

Em terceiro lugar, a partir da experiência do fórum de participação


comunitária das minorias em Bradford, abordada no presente ensaio,
adverte-se que o mesmo não esgota o tema do terrorismo e que, além
disso, sua verdadeira origem remonta de fato a problemas de integração

75
A participação comunitária

social vividos pela sociedade britânica, cujos distúrbios raciais ocorridos em


julho de 2001 foram o ponto de inflexão para as relações da polícia com a
comunidade, tal como se analisará no desenvolvimento do presente trabalho.

Tal aspecto é um dos pontos mais importantes a se ter em mente,


não só para entender a gênese do processo de mudança ocorrido no caso
Bradford, mas também porque a situação que a originou nos aproxima,
para sua possível aplicação, das realidades derivadas dos problemas sócio-
econômicos visíveis em diversas comunidades da América Latina.

Esses são alguns dos aspectos que, a partir das reflexões sobre a
participação comunitária no caso extra-regional de Bradford, serão
importantes para as correspondentes reproduções a serem promovidas
na América Latina.

Nesse sentido, embora os problemas prioritários em matéria de


segurança em nossa região (associados direta ou indiretamente às
desigualdades e à marginalidade social) sejam menos complexos que o
terrorismo como problemática, nem por isso deixam de ser menos
desafiantes, compartilhando, além disso, a gênese que na verdade deu
origem aos mecanismos de participação em Bradford (a exclusão social),
impossíveis de serem superficialmente tratados sem que se ignore as
particularidades do caso.

CONTEXTO

Para identificar a literatura recente sobre o tema que nos agrega


em torno da participação comunitária, torna-se oportuno considerar como
marco de referência o trabalho realizado pela Rede 14/Urb-Al.

Montada a partir da missão geral de buscar estabelecer um vínculo


de colaboração entre cidades de continentes diferentes, a Rede 14 constitui
um programa de cooperação descentralizado da Comissão Européia com
a América Latina, cujo objetivo foi buscar soluções consensuais para os
desafios comuns das cidades européias e latino-americanas, tanto em
matéria de políticas urbanas, como de equipamentos, formação de
recursos humanos, liderança das autoridades locais e promoção das boas
práticas urbanas1.

76
Gastón Hernán Schulmeister

Foi a partir de tais objetivos que a Rede se encarregou, durante os


últimos três anos (2003-2006), de monitorar políticas públicas na esfera
da segurança cidadã em nível regional, junto com a análise de estatísticas e
realidades particulares em cada país considerado, constituindo uma fonte
de referência bibliográfica obrigatória e atualizada.
Independente de tal marco de referência bibliográfica, dois livros
de Lucía Dammert, editados pela mesma Rede, são muito valiosos para
adentrar no tema da participação comunitária. Ambos são posteriores ao
trabalho conhecido como “Documento Base” (2003), que reflete os
alicerces teóricos das discussões empreendidas desde então2.
O primeiro é o livro titulado “Segurança Cidadã: Experiências e
Desafios” (2004)3 , cujo texto se organiza em três capítulos, referentes
ao marco conceptual, às experiências temáticas e às experiências
territoriais, reunindo contribuições de destacados especialistas da América
Latina e da Europa, cujos enfoques de grande diversidade temática e
metodológica refletem o caráter interdisciplinar do campo em estudo.
O segundo trabalho é o livro “Cidade e Segurança na América Latina”
(2005)4 , cujas três seções principais abordam as áreas de intervenção
dos governos locais, as diversas experiências locais e as ferramentas e
técnicas de trabalho em nível local. O trabalho em questão vem a
complementar os debates conceituais desenvolvidos até então, constatando
a necessidade de focalizar a atenção sobre o papel do governo local na
prevenção da violência e da delinqüência.
Entre o restante da bibliografia de consulta merecem também
destaque outros dois trabalhos de Lucía Dammert: um sobre “Prevenção
comunitária do delito na América Latina” (2004)5 e outro sobre “A
construção de cidadania como estratégia para o fomento da convivência e
a segurança” (2005)6.
Além disso, o livro sobre “Segurança e reforma policial nas Américas”
(2005)7 se constitui em outra fonte a ser incluída na bibliografia de destaque
mais recente. Nesse sentido, a análise comparativa oferecida sobre
segurança pública e sobre reformas policiais na América Latina (com os
estudos de casos de Argentina, Brasil, Chile, Colômbia, El Salvador, México
e Estados Unidos) constitui outra referência obrigatória para todo aquele
interessado em abordar a relação polícia-sociedade.

77
A participação comunitária

Voltaremos mais adiante a abordar alguns dos conteúdos


particulares da bibliografia previamente citada, para podermos
contextualizar e situar a discussão do presente trabalho com ferramentas
analíticas e conceituais pontuais.

DESENVOLVIMENTO

As iniciativas de participação comunitária

Como esclarecimento conceitual, e para efeito de organização


metodológica, a participação comunitária sobre a qual se enfoca o presente
estudo de caso está associada fundamentalmente ao tipo de iniciativas que
se costuma reconhecer como produto da iniciativa do governo e da
instituição policial8, vinculadas ao âmbito específico de participação da
relação polícia-comunidade9.

Não obstante, ao longo da análise do caso Bradford, serão citados


outros tipos de iniciativas que nasceram da preocupação dos próprios
cidadãos, e estão mais vinculadas com associações comunitárias.

Por sua vez, vale lembrar que dentro a bibliografia sobre o tema
outros tipos de classificações mais completas costumam levar em conta
por um lado quem participa (distinguindo entre participação direta e
indireta, através dos vizinhos ou dos dirigentes da comunidade) e, por
outro, o tipo de participação desenvolvido (ativo ou passivo, estando
vinculado o primeiro mais com o formato e/ou com a própria
implementação das iniciativas)10.

O Caso BRADFORD

Com o propósito de adentrarmos no estudo de caso em análise,


é pertinente traçarmos algumas considerações gerais sobre a cidade
de Bradford, assim como sobre a polícia, que tem sob sua jurisdição,
além de Bradford, os distritos metropolitanos de Leeds, Wakefield,
Kirklees e Calderdale.

Situado ao norte da Inglaterra, o distrito de Bradford cobre uma


área de aproximadamente 370 quilômetros quadrados, das quais cerca

78
Gastón Hernán Schulmeister

de 65% é rural. Por cauda de sua extensão constitui-se em um dos maiores


distritos da região, com uma população ao redor de 470 mil habitantes.

O distrito de Bradford é bastante diversificado, tanto nas suas


paisagens quanto na sua demografia, contando com uma população variada
que representa uma ampla gama de origens étnico-culturais e condições
econômicas, da qual se distingue uma importante população asiática
proveniente, na sua maioria, do Paquistão.

A partir de seu crescente desenvolvimento e regeneração


populacional, Bradford teve que enfrentar diversos desafios, derivados
de um desemprego acima da média nacional, resultados educacionais e de
saúde abaixo da média, e níveis de moradias abaixo do padrão em algumas
partes do distrito.

A partir da diversidade de grupos étnicos, o distrito teve que


enfrentar problemas de integração social, diante de reiterados “incidentes
raciais”, entendendo esses como incidentes onde a raça, etnia ou religião
da vítima foi percebida como um fator contribuinte para a causa do
incidente. Segundo registros oficiais, entre 2003-2004, 648 incidentes
raciais foram denunciados à WYP (West Yorkshire Police).

Por sua vez, os problemas de integração social se combinaram com


problemas de integração econômica, com um alto índice de desemprego
do qual são vítimas especialmente os grupos minoritários, a partir dos
comportamentos raciais aludidos anteriormente. Tal quadro conduziu a
graves problemas de exclusão social, aos quais a União Européia prestou
atenção, instituindo diversos programas de ajuda e cooperação internacional
(B-Equal project)11.

Segundo estatísticas oficiais em nível nacional, perto de 2,5 milhões


de asiáticos vivem na Inglaterra, muitos dos quais se assentaram nos centros
manufatureiros do norte do país, como Bradford. O declínio da indústria
manufatureira afetou essas povoações, levando muitos de seus cidadãos
ao desemprego e à pobreza e cuja “exclusão social” implícita seria
constatada depois dos episódios raciais de 200112 , os quais analisaremos
mais adiante.

Além disso, adotando um critério religioso, na zona de Yorkshire


as cidades de Bradford e Leeds abrigam um importante número de

79
A participação comunitária

muçulmanos, mesmo que de menor importância, em termos absolutos,


do que o das comunidades presentes em Birmingham, Manchester e
Londres 13 . Neste sentido, as referências aos muçulmanos como
comunidade foram reiteradas, sobretudo após diversos episódios
relacionados com o terrorismo internacional, o que obriga a tomar tal
comunidade como critério social de análise, longe de todo clichê e
estigmatização que usualmente os meios de comunicação costumam gerar
sobre tal classificação.

WEST YORKSHIRE Police

Quanto à jurisdição da West Yorkshire Police (WYP), a mesma


excede à cidade e ao distrito de Bradford, ao prestar serviço a uma
população com cerca de 2.1 milhões de habitantes que vivem em um dos
cinco distritos metropolitanos, cuja área física assistida tem
aproximadamente 2.034 quilômetros quadrados14.

A WYP constitui a quarta maior força policial da Inglaterra, contando


com cerca de 5.685 oficiais de polícia e 3.670 de pessoal civil (incluindo
461 policiais comunitários de apoio), ambos com uma estrutura de
categorias formalizada, e organizada em 13 divisões, das quais 3 se
encontram no distrito de Bradford (Bradford North, Bradford South e
Keighley). 15

Entre suas principais atividades, encontram-se o patrulhamento


diário, as investigações criminais, o controle do trânsito e o apoio
operacional. Nesse sentido, embora as divisões policiais se encarreguem
de fornecer a maioria dos serviços policiais diários, dispõe-se também de
equipes especializadas, localizadas nos quartéis-generais e em outras
instalações.

Quanto aos objetivos perseguidos, tal como consta no relatório de


planejamento estratégico anual 2005-2006 da WYP16, as quatro prioridades
que estão estipuladas são: 1. trabalhar em sociedade para criar
comunidades mais seguras; 2. reduzir o crime e levar mais casos de delitos
à Justiça; 3. melhorar a satisfação e a confiança pública; e 4. proceder a
melhor utilização dos recursos humanos e materiais da força.

Sobre a prioridade número 1 (a criação de comunidades mais

80
Gastón Hernán Schulmeister

seguras) é que o presente ensaio pretende lançar luz, principalmente


destacando, ao mesmo tempo, sua inter-relação com as preocupações
com a confiança e com a boa imagem pública da força. Para isso, torna-se
oportuno considerar uma série de feitos e episódios inter-relacionados
nos últimos anos, os quais analisaremos nos parágrafos seguintes.

Terrorismo: entre conseqüências sociais colaterais e causas sociais


subjacentes

No dia 7 de julho de 2005, três explosões ocorreram ao redor das


8h50min da manhã no sistema de transporte subterrâneo londrino. A
primeira delas ocorreu na Circle Line, entre as estações Alégate e Liverpool
Street, a seguinte na estação Edgware Road, e a terceira na Picadilly Line,
entre Russell Square e King’s Cross. Às 9h47min, uma quarta explosão
ocorreu na parte superior de um London bus, em Tavistock Place17.

Como resultado dos atentados terroristas de 7 de julho de 2005 em


Londres (7/7), 52 pessoas foram assassinadas e centenas ficaram feridas.

Os autores dos atentados terroristas do 7/7, também mortos no


ataque suicida, foram identificados como: Mohammed Siddeque Khan,
Hasib Hussein, Shazad Tanweer e Jermaine Lindsay.

Khan, o mais velho dos quatro terroristas, com 30 anos, tinha


nascido em Leeds e parece haver sido o cabeça do grupo. Da mesma
forma que Tanweer (22 anos) e Hussein (18 anos), Khan era a segunda
geração de cidadãos britânicos, cujos pais eram de origem paquistanesa.

Os antecedentes dos homens não eram excepcionais, com pouca


diferenciação entre suas experiências de vida e de qualquer outra pessoa
da média de sua geração, origem étnica e condição social, à exceção de
Lindsay (de 19 anos) que nasceu na Jamaica.

Segundo o relatório oficial sobre os atentados em Londres, o 7/718,


o grupo de jovens perpetrador dos fatos esteve motivado por um “feroz
antagonismo para as percebidas injustiças do Ocidente contra os
muçulmanos” e por um desejo de martírio19.

Entre outras coisas, se reconhece também que permanece sem

81
A participação comunitária

esclarecimento até que ponto esteve envolvida a organização al-Qaeda


nos ataques, assim como a possibilidade de que outros elementos no
Reino Unido estivessem envolvidos na radicalização, na incitação do grupo,
ou na ajuda ao mesmo para planejar e executar o plano, mesmo porque
também não existe evidência de um quinto atacante20.

No vasto trabalho, o relatório publicado em maio de 2006 apresenta


detalhes de como os quatro atacantes se radicalizaram e de como os
ataques foram levados a cabo. Em relação à sistematização de movimentos,
obtida a partir do sistema de câmaras de vídeo CCTV e relatos de
testemunhas, cabe ressaltar a identificação da caminhonete na qual se
deslocaram os indivíduos desde a cidade de Leeds, na Hyde Park Road, na
madrugada do dia 7/721.

Uma vez ocorridos os episódios terroristas de Londres e


materializada a hipótese de que jovens islâmicos britânicos que vivem no
Reino Unido pudessem se radicalizar ou serem influenciados pela ideologia
propagada pela rede al-Qaeda (debate gerado de antemão pelos episódios
do 11 de setembro nos Estados Unidos), a comunidade muçulmana voltaria
a ser objeto de atenção, acusações e suspeitas. Tal como consta no relatório
oficial sobre o 7/7 previamente citado, o primeiro sinal concreto de que
o Reino Unido transformara-se em um alvo de ataque terrorista, mesmo
que não houvesse indício algum de um envolvimento de al-Qaeda, foi em
novembro de 2000, quando dois cidadãos britânicos de origem bengali
foram detidos em Birmingham, resultando na condenação de um deles
por delitos relacionados com explosivos, sendo sentenciado a 20 anos de
prisão 22.

Segundo Roger Ardí, analista de assuntos islâmicos da BBC, só


recentemente as comunidades muçulmanas estiveram no centro da
polêmica, apesar de terem se estabelecido no Reino Unido há muito tempo.
Segundo o especialista, até a campanha contra o escritor Salman Rushdie,
em fins da década de 80, a maioria dos britânicos estava pouco consciente
da criação de novas comunidades islâmicas em cidades industriais como
Leeds e Bradford. Nesse sentido, “o caso Rushdie abriu pela primeira
vez um debate sobre a possível aparição de uma nova geração de jovens
muçulmanos descontentes”.23

Em termos de polícia, o impacto dos eventos terroristas do 7/7


em Londres foi direto sobre a West Yorkshire. A investigação sobre

82
Gastón Hernán Schulmeister

aqueles que cometeram os atos terroristas conduziu ao condado no qual


tem jurisdição a WYP, em uma investigação conjunta com a área
metropolitana (a Operação Theseus) que demandou um importante
esforço de tempo e recursos.

Entre os episódios mais recentes que envolvem a zona, no dia 5 de


março de 2006, quatro homens, dois de 18 anos e dois de 19 anos,
foram detidos na residência de estudantes da Universidade de Bradford,
sob a suspeita de cometerem delitos de terrorismo. Segundo um porta-
voz da Polícia Metropolitana (Scotland Yard), os quatro indivíduos foram
detidos pela suspeita da comissão de preparação ou instigação de atos de
terrorismo, contemplados sob a Ata de Terrorismo 2000, mesmo que
não tenha existido conexão com os atentados do 7/7. 24

Além disso, em junho de 2006 por exemplo, um homem de


Bradford, de 21 anos e de origem paquistanesa, foi detido no Aeroporto
de Manchester. Segundo fontes consultadas pela BBC, após sua captura o
suspeito foi interrogado em relação a detenções levadas a cabo no Canadá
por um suposto atentado frustrado da al-Qaeda. A operação envolveu a
WYP e o serviço de inteligência interior britânico MI5, assim como a
Scotland Yard. Por tais motivos, a polícia de Yorkshire investigou diversas
propriedades na área de Bradford.25

Em conseqüência, aos objetivos do presente ensaio26, merece ser


destacado que a procedência dos terroristas do 7/7 da cidade de Leeds,
limítrofe a Bradford, concentrou a comoção social na zona pela
possibilidade de que rapazes britânicos, pertencentes à comunidade
muçulmana, tenham sido os primeiros suicidas nacionais a levar a cabo
atentados em solo britânico, colocando dúvidas sobre o porquê da
radicalização dos jovens.27

No entanto, a despeito do racismo e a da desintegração social no


seio da sociedade britânica terem sido potencializados pelo acirramento
do terrorismo em Londres em 2005 28 , cabe ressaltar que distúrbios
raciais ocorreram anteriormente, inclusive, aos episódios do 11/9 nos
Estados Unidos.

Esse é um ponto importante a ser levado em conta, para deixar


claro que a conformação dos fóruns de participação comunitária em
Bradford não foi motivada pela preocupação com o terrorismo (não pelo

83
A participação comunitária

menos como fator originário, mesmo que os desafios do acionamento


terrorista transformassem posteriormente tal mecanismo social em uma
ferramenta importante em termos de política contraterrorista), mas nos
problemas de marginalidade e de exclusão social e as correspondentes
tensões sociais que analisaremos na continuação deste trabalho.

Sem a intenção de pretender dar conta do fenômeno terrorista e


de suas motivações, convém traçar algumas considerações acerca da
possível incidência da marginalidade social, para criar circunstâncias nas
quais, mediante ressentimento e ódio, a população seja potencialmente
recrutada por movimentos extremistas, diferentemente de toda explicação
centrada exclusivamente no fator religioso, com a estigmatizacão que tais
enfoques fechados geram sobre o Islã.29

Enfrentamentos raciais de 2001

No mês de julho de 2001, na cidade de Bradford, ocorreram graves


enfrentamentos raciais entre grupos de brancos e asiáticos, na sua maioria
bengalis e paquistaneses.

Durante três noites consecutivas os eventos, qualificados na época


como os piores nos últimos 20 anos na Inglaterra, produziram uma cidade
com edifícios e automóveis em chamas, onde a polícia, atacada por garrafas
e bombas incendiárias, entre outras coisas, se sentia obrigada a retroceder,
não contando até então com os recursos mais eficazes para a contenção
de episódios de tal natureza.30

A tensão começou após o planejamento de uma marcha em Bradford


por parte da Frente Nacional, que é o grupo da extrema direita britânica.
Posteriormente, a Liga Anti-Nazista local decidiu realizar uma
contramanifestação, da qual participaram aproximadamente 500 pessoas, a
maioria de origem asiática, e, depois da provocação de um grupo de brancos
gritando palavras de ordem com mensagens racistas à população, tudo se
degenerou em distúrbios, dos quais participaram mais de mil jovens.

Em conseqüência, Bradford se transformou em mais uma das cidades


do norte da Inglaterra que registraram fatos de violência racial nos últimos
tempos, embora os incidentes raciais registrados em Oldham e Burnley
não tenham sido tão graves.

84
Gastón Hernán Schulmeister

Como resultado final das três noites de distúrbios, fora os destroços


e perdas materiais (calculadas entre três e quatro milhões de libras
esterlinas), as detenções e os policiais feridos, a polícia foi quem atraiu as
maiores críticas. Nesse sentido, uma grande proporção da comunidade
asiática culpou, pelos episódios, a falta de compreensão da polícia e de
outras agências governamentais, e com isso os eventos corroeram toda
confiança e credibilidade construída até o momento.31

Um relatório oficial sobre a situação de Bradford, tornado público


depois dos distúrbios de 2001, embora escrito muito antes da onda de
violência, criticava a intolerância racial, a incapacidade das autoridades de
solucionar os problemas da cidade e a falta de uma política de integração,
explicando que a “polarização racial” na cidade era produto, sobretudo,
de escolas e comunidades virtualmente segregadas.32

Além disso, segundo as conclusões de sucessivos relatórios que


averiguaram as causas dos distúrbios nas cidades de Bradford, Oldham e
Burnley, as zonas urbanas racialmente segregadas foram o caldo de cultura
para os distúrbios do verão de 2001 na Inglaterra.33

Entre episódios similares posteriores, que lembraram os incidentes


raciais em Bradford, 200 pessoas entraram em choque em Wrexham
(norte de Gales) em uma segunda noite de incidentes entre residentes
locais e refugiados iraquianos, em junho de 2003. Os problemas
começaram quando aproximadamente 30 pessoas se viram envolvidas
em dois incidentes separados, em uma zona residencial de Wrexham, e a
polícia teve que intervir depois que a violência resultou em choques que,
segundo se entendeu, foram “motivados por racismo”.34 Esse constitui
apenas outro exemplo menor de um tema que está latente no Reino Unido
e que merece atenção constante.

As relações com a comunidade

Em concordância com o assinalado anteriormente, o cenário


posterior aos distúrbios raciais de 2001 encontrou a uma polícia sem
estratégia de coordenação de relações raciais, com uma carência de contato
formal ou informal com a comunidade, com pouca confiança e credibilidade
na força, e com pouco apoio e compreensão local da situação. Esses seriam
os diferentes eixos de dificuldades e debilidades, e, além disso, os desafios

85
A participação comunitária

sobre os quais se identificariam, a partir de então, os eixos de trabalho.

Em conseqüência, a aproximação da comunidade passou a ser o


enfoque prioritário. Nesse sentido, promoveu-se o contato em todos os
níveis, tanto com organizações, como com grupos comunitários e indivíduos
particulares. Isso implicou o diálogo diário, para o qual estava claro que a
transparência devia ser a principal ferramenta de trabalho e gestão.

Depois de ter desenvolvido os episódios raciais de 2001 e a agenda


de trabalho que a situação posterior demandou, configura-se agora
oportuno adentrarmos nos alvos da atenção da polícia, hoje refletidos
por suas prioridades, para analisar algumas das iniciativas materializadas.

Vale destacar que, enquanto para atender à prioridade 1 (trabalhar


em sociedade para criar comunidades mais seguras), focaliza-se a
prevenção da desordem e do comportamento anti-social, para a prioridade
3 (melhorar a satisfação e a confiança pública) utiliza-se a idéia da polícia
comunitária (Neighbourhood Policing)35, a gestão de demandas sociais e
o apoio a vítimas e testemunhas.

Daí a razão de uma política por uma comunidade mais segura36, a


partir da qual concretizou-se a constituição de um fórum social com
comunidades étnicas minoritárias (Bradford and District Minority Ethnic
Communities Liaison Committee), que entre suas ações iniciais teve a
emissão de um programa de rádio.

Esse constitui um dos 20 foros comunitários que a polícia possui


em West Yorkshire (Police Community Forums), a maioria dos quais se
reúne quatro vezes ao ano37, embora no caso particular de Bradford a
periodicidade de suas reuniões esteja acima da média na sua regularidade.

Sobre seus objetivos, vale mencionar que os referidos encontros


são levados a cabo respeitando, principalmente, quatro pontos: 1.
promover e melhorar as relações entre o público e a polícia; 2. permitir
uma melhor compreensão sobre o uso dos recursos policiais disponíveis,
3. debater sobre os planos da autoridade policial, e 4. dar à população a
oportunidade de falar com oficiais de alto grau sobre suas preocupações,
de oferecer impressões e de fazer sugestões sobre a vigilância na
comunidade local.38

86
Gastón Hernán Schulmeister

Em termos operacionais, cada encontro tem uma agenda


preestabelecida, que encaminha uma discussão sobre temas policiais39.
No caso de Bradford, costuma-se complementar o encontro com um
jantar, onde os participantes interagem em um clima mais informal e
descontraído com a polícia.

Dessa forma, a participação da comunidade na prática começou a


exercer, além disso, o papel do que na teoria se identifica como um
mecanismo externo de accountability, complementar aos mecanismos
internos da instituição policial, entendendo-se que a participação cidadã
deve ser vista não só como um meio para assegurar que as forças policiais
respondam aos problemas da cidadania, mas também que atuem de maneira
transparente e responsável.40

Quanto ao formato dos foros de participação, cada reunião é


presidida por um membro da WYP com um forte espírito igualitário e o
vice-presidente é designado por eleição entre seus membros. Por sua
vez, embora a participação no fórum esteja aberta a todo aquele que viva
ou trabalhe na comunidade local correspondente41, sua incorporação —
prévio contato com o Departamento que em cada distrito policial se
dedique em particular a esse tema (Community Consultation Team)—
está condicionada a uma aprovação por parte do resto dos integrantes,
buscando-se, ainda, a diversidade étnica e religiosa.

Mas, sem contradizer a necessidade de focalizar a atenção sobre o


papel dos governos locais, usualmente ressaltada na América Latina diante
de paradigmas de participação tradicionais que tinham como ator quase
exclusivo as instituições policiais42 , os foros de participação comunitária
em West Yorkshire sugerem que a concepção de “local” deve exceder
também ao exclusivamente governamental.

Nesse sentido, a experiência de Bradford é eloqüente, com um


fórum social coordenado diretamente com a polícia, cuja participação
nos foros faz parte do plano de ação em que a polícia executa sua política
em matéria de consultas com a comunidade, mesmo que tal possível
distinção venha a depender também se o conceito de governo local é
exclusivamente sujeito à autoridade político-governamental, ou se tem
mais um caráter institucional-estatal, com o qual toda iniciativa promovida
e/ou implementada pela polícia estaria já contemplada.

87
A participação comunitária

No entanto, também está presente o âmbito claramente não-


governamental e nem estatal, em que a sociedade se organiza por si só, em
consonância com a necessidade de contemplar e incluir novos mecanismos
de participação da cidadania, no interesse da convivência em nível local.
Nesse sentido, voltando às iniciativas na cidade de Bradford, no nível social
também surgiu a Aliança contra o Ódio de Bradford (Bradford Hate Crime
Alliance -BHCA-), cuja associação compreende organizações voluntárias ao
longo do distrito, que se uniram para lutar contra o ódio racial43. Para isso,
tal associação ressalta a importância da população ter a possibilidade de
informar incidentes dentro de suas comunidades locais.

Em relação a assuntos considerados chaves em matéria de relações


com a comunidade, a polícia em Bradford concebe um importantíssimo e
crescente papel à mulher, como ator principal para combater a ingerência
de extremistas entre as diferentes comunidades.

Além disso, o trabalho de inteligência policial está focalizado na


manipulação efetiva de potenciais desordens sociais e eventos espontâneos
organizados pelas comunidades, como correlato lógico das desordens
ocorridas no ano 2001, previamente analisadas.

No aspecto capacitação dos recursos humanos da força policial,


este processo foi acompanhado de um treinamento de consciência cultural,
junto com uma política que incentivou o recrutamento de efetivos
provenientes das comunidades minoritárias e a lição de que as iniciativas
necessitam ser estipuladas e não impostas.

Sob essa lógica de trabalho, a participação da população e o


julgamento sobre o impacto na comunidade foram muito valiosos,
buscando-se melhorar a comunicação com a força que era identificada
como uma fonte de insatisfação para muitos na sociedade.

Agora, para entender esses tipos de iniciativas em Bradford, é


preciso ter em mente também seu impulso como resultado da vigência
de um enfoque baseado na comunidade (community-based approach), o
qual enfatiza tanto as reformas na polícia como também a reconstrução
de sua imagem pública.

Trata-se de uma visão que, longe de ter um enfoque limitado, propõe


à polícia e à comunidade que trabalhem juntas em sociedade, em prol de

88
Gastón Hernán Schulmeister

canalizar as preocupações das comunidades particulares, podendo, nos


seus casos bem-sucedidos, desenvolver segurança e assegurar o
desenvolvimento.44

Esse constitui outro ponto importante a considerar (ressaltando a


possível e recomendável inter-relação entre teoria e realidade, no interesse
de sua melhor aplicação prática), a partir da priorização na Inglaterra de
um enfoque macro para pensar o setor da segurança, que está diretamente
relacionado com uma concepção da perspectiva do desenvolvimento.
Sobre isso nos ocuparemos mais à frente, depois de retomar alguns
assuntos interconectados com o terrorismo.

Terrorismo: a atenção de um fenômeno sensível

Voltando às considerações sobre os efeitos diretos ou indiretos


provocados pelo fenômeno do terrorismo internacional, as iniciativas de
participação comunitária, além de promover a confiança com a polícia e
alcançar um feedback de informação com comunidades onde elementos
radicais pudessem pretender amparar-se ou recrutar adeptos, constituem
uma ferramenta fundamental para o trabalho contra a estigmatização
midiática, da qual geralmente diversas comunidades étnicas minoritárias
terminam sendo objeto.

Entre os episódios mais recentes no Reino Unido, basta citar a


renovada preocupação da polícia com a segurança das comunidades
muçulmanas e a relação com elas, depois da detenção de 24 pessoas,
todos eles muçulmanos britânicos de origem paquistanesa, em conexão
com um suposto plano terrorista frustrado, que consistia em detonar
explosivos líquidos em aproximadamente 10 aviões com destino aos
Estados Unidos. As prisões foram levadas a cabo nas cidades de
Birmingham, High Wycombe (ao oeste de Londres) e no distrito de
Walthamstow, na capital britânica, em uma mega operação de grande
repercussão na mídia nacional e internacional.45

Perante tais eventos, o secretário-geral do Conselho Muçulmano


britânico, Mohammed Abdul Bari, disse que os muçulmanos apóiam a
repressão ao terrorismo, mas advertiu sobre “uma distância” crescente
entre eles e a polícia.46

89
A participação comunitária

Após uma operação policial em uma casa, em junho de 2006, em


Forest Gate (zona leste de Londres), na qual um homem muçulmano de 23
anos (Mohammed Abdul Kahar) foi ferido no ombro e detido junto com
seu irmão de 20 anos (Abul Koyair), embora posteriormente tenham sido
libertados sem acusações, Mohammed Abdul Bari alertou que a confiança
entre a comunidade muçulmana e a polícia poderia ser danificada.47

O fórum de participação de Bradford no mês de março de 2006,


entre outros temas, foi palco de discussões sobre a preocupação gerada
nas comunidades minoritárias pela detenção de quase 20 estudantes da
Universidade de Bradford, acusados de estarem vinculados a atividades
terroristas. Todos estes fatos configuram-se em episódios que formatam
na realidade diária o debate entre segurança e liberdade, em relação aos
limites na luta contra o terrorismo.

Se nos remontarmos à política contraterrorista da WYP, o


terrorismo é definido como um dos crimes mais desafiantes que enfrentam
as forças policiais em nível nacional, para os quais, em diferentes eixos de
trabalho48, considera-se vital o papel dos oficiais de polícia em relação aos
quatro aspectos da estratégia contra terrorista do governo (prevenção,
perseguição, proteção e preparação).

Dentro de tal espectro de atividades que uma problemática


complexa como o terrorismo demanda, a WYP concebe o trabalho com
a comunidade, seja direto ou indireto, dentro do seu padrão de ação,
com atividades destinadas a diminuir o apoio a terroristas nos “corações
e mentes da gente”, alinhado com a prevenção do terrorismo abordando
causas subjacentes, e um trato com o público de modo tal que o mantenha
melhor informado sobre a natureza da ameaça e a forma como se pode
ajudar a polícia a prevenir atos de terrorismo.49

Entre as demais atividades que a polícia busca empreender


encontram-se: manter um corpo local de operações efetivo e eficiente
(capaz de trabalhar em apoio aos serviços de segurança para reunir
informação sobre supostas redes terroristas); realizar tarefas de
inteligência sobre terroristas e aqueles que os apóiam; e preparar-se
para possíveis conseqüências, desenvolvendo um amplo plano de
contingência e treinamento para melhorar a capacidade de superar
ataques e outros desafios.50

90
Gastón Hernán Schulmeister

Convém, por fim, ressaltar que, embora a verdadeira origem do


fórum de participação comunitária em Bradford remonte a problemas de
integração social vividos pela sociedade britânica, segundo o analisado
previamente, não se pode perder de vista que os objetivos da polícia ao
criar comunidades seguras estão alinhados ao seu trabalho com a prioridade
estratégica nacional de resistir ao terrorismo e à sua ameaça.51

Tal assertiva pode ser constatada, por exemplo, no relatório de


planejamento estratégico anual 2004-2005 da WYP52, ao associar-se
explicitamente à prioridade nacional de enfrentar ao terrorismo (junto
das prioridades relacionadas a enfrentar o comportamento anti-social e a
desordem, e às referentes ao compromisso comunitário), à prioridade
da WYP de manter a paz visando criar comunidades mais seguras, segundo
o padrão de ação operacional do Chefe de Polícia.53

A segurança a partir da perspectiva do desenvolvimento

Para terminar, e voltando à concepção do enfoque padrão imperante


no Reino Unido para pensar a segurança, é preciso começar lembrando
que esta é usualmente reconhecida como uma condição essencial para o
desenvolvimento duradouro de uma sociedade, sendo justificável a
preocupação central que ela gera entre os mais pobres.

Esse enfoque é fundamentado pelo que se entende como a


“perspectiva do desenvolvimento”, a partir da qual se promoveram
internacionalmente reformas na segurança de países emergentes de conflito,
entendo-se que o papel do Estado, e de suas forças, causa impacto direto
sobre as oportunidades para o desenvolvimento sustentável e para a
segurança física da população.

Esse foi o caso da Organização das Nações Unidas (ONU), do


Banco Mundial, da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento
Econômico (OECD) e do Reino Unido em particular, que fizeram da
reforma do setor de segurança uma prioridade em suas políticas de
desenvolvimento, através dos projetos de cooperação internacional.54
Enquanto isso, outros atores, como o Fundo Monetário Internacional ou
a própria União Européia, lidaram com certos aspectos da segurança,
mas apenas ocasionalmente, como parte de um programa integral de
reformas no setor.55

91
A participação comunitária

O Conceito do SECURITY SETOR REFORM

A partir da perspectiva em questão, infere-se o que se entende


como Security Setor Reform (SSR), cuja acepção data de fins dos anos 90
e vem ao encontro do conceito de “segurança humana”, entendida a partir
da perspectiva da proteção dos indivíduos, em contraste com a concepção
clássica da “segurança nacional”, centrada nos Estados.

O SSR é um termo utilizado para descrever a transformação do


“sistema de segurança”, (o qual inclui todos os atores envolvidos, seus
papéis, responsabilidades e ações), trabalhando em conjunto para
administrar e operar o sistema de acordo com as normas democráticas e
princípios do bom governo, contribuindo dessa forma, para um bom
funcionamento do padrão de segurança.56

Da mesma forma, a atenção sobre o setor da segurança sugere a


identificação de todas aquelas organizações em uma sociedade que são
responsáveis por proteger ao Estado e a suas comunidades, e a relação
entre elas.

Entretanto, um aspecto a destacar é que os objetivos da reforma


do setor de segurança, a partir de uma perspectiva do desenvolvimento,
diferenciam-se de metas orientadas militarmente, no sentido que a estrutura
e a capacidade dos atores do setor na sua integridade (militares e de
polícia) devem ser otimizados para o desenvolvimento social, econômico,
político e humano.

Nesse sentido, o objetivo final do SSR é criar forças que sejam


funcionalmente diferenciadas, forças profissionais sob o controle civil
objetivo e subjetivo, e com a menor utilização funcional de recursos
possível, para a provisão da segurança à população. Um entrecruzamento
de dimensões, do qual surgem principalmente os dilemas entre o controle
civil e a profissionalização (níveis político e institucional) e entre a utilização
de recursos e a provisão de segurança (níveis de desenvolvimento
econômico e da sociedade).

Em conseqüência, conforme a perspectiva esboçada, o setor da


segurança requer pessoal competente e uma boa gestão operando dentro
de um padrão institucional definido por lei. Em caso contrário, a má gestão,
entre outras conseqüências, torna-se obstáculo para o desenvolvimento,

92
Gastón Hernán Schulmeister

desestimula o investimento e ajuda a perpetuar a pobreza.57

Por que pensar a segurança como um setor?

Levando-se em conta, portanto, que dos diferentes atores


envolvidos na segurança e no funcionamento da estrutura institucional
depende o desenvolvimento sustentável integral da sociedade, a atenção
ao setor configura-se claramente inevitável e seu resultado é fundamental
para projetar cenários favoráveis nos países emergentes de conflito, tais
como Serra Leoa, Timor Leste, Afeganistão ou Haiti, no caso regional da
América Latina, para citar apenas alguns exemplos.

No entanto, o reconhecimento do setor de segurança sugere a


necessidade de ser realizado um diagnóstico sistematizado, antes de pensar
em possíveis reformas e melhoras em qualquer país, conforme as
particularidades do caso, na busca de um melhor desempenho das
instituições, da garantia de um melhor clima de segurança e em nome do
desenvolvimento da sociedade.

Voltando ao estudo do caso particular de Bradford, esse é


testemunha de como o enfoque de segurança holístico, que presta atenção
aos desafios que as reformas de segurança supõem, é não apenas aplicável
a cenários de países emergentes de conflito no subdesenvolvimento (sobre
o qual a grande maioria da bibliografia a respeito costuma se ocupar), mas
também a países desenvolvidos como a experiência do Reino Unido o
sugere.58

Frente ao desafio de abordar a segurança a partir da uma perspectiva


do desenvolvimento, a visão do SSR oferece, dessa forma, um enfoque
analítico que ajuda na abordagem integral que os assuntos de segurança
merecem, ao mesmo tempo que nos brinda com ferramentas para
pensarmos na formulação de políticas concretas.59

CONCLUSÃO

Após analisar o caso britânico de Bradford, resta concluir que embora


o tema do terrorismo provavelmente tenha potencializado a segregação
racial e as desconfianças no seio da sociedade britânica (sobretudo depois
dos episódios terroristas do 7/7 em Londres), os piores problemas raciais

93
A participação comunitária

já haviam se manifestado anteriormente.

Não obstante, ainda que os episódios raciais de 2001 tenham sido


uma advertência antecipada sobre questões sociais que excedem ao tema
do terrorismo, suas lições em matéria de relações com a comunidade,
encontraram as autoridades britânicas mais conscientes ante a sensibilidade
da problemática após os episódios posteriores.

A experiência dos distúrbios de 2001 em Bradford, e os


conseqüentes desafios que a WYP teve que enfrentar em matéria de relações
com a comunidade, foram sem dúvida determinantes para uma melhor
resposta aos temas comunitários pós 7/7, no próprio território inglês.

Por outro lado, não sendo na verdade o terrorismo o fundamento


exclusivo nem originário do fórum de participação impulsionado em Bradford
(mesmo que hoje o mesmo possa ser fundamental para a política contra
terrorista do país), a preocupação implícita pela exclusão social diante dos
enfrentamentos raciais na Inglaterra faz a experiência ainda mais aconselhável
para ser tomada como referência para a América Latina.

Coerente às considerações preliminares sobre a responsabilidade e


seriedade que supõe a discussão de uma política de segurança, mediante
diagnóstico de realidades e capacidades, encerraremos o presente ensaio
com a proposta de encorajar iniciativas de participação comunitária na
América Latina como um “caminho a percorrer”, mais do que uma fórmula
de “como percorrê-lo”.

Para este “caminho a seguir” diante das prioridades locais, incentivar


a criação de foros de participação comunitária que garantam a diversidade
em termos de “classe social” (derivada das desigualdades sócio-econômicas
e da marginalidade), constitui uma opção a ser considerada, para a formulação
de políticas em nossa região, cujo debate parece oportuno promover.

Hoje, quando são recorrentes, por exemplo, os debates sobre a


privatização da segurança (e como os maus serviços estatais em matéria de
segurança são deficientes, principalmente para os mais carentes), trabalhar
por sistemas de participação social nos quais estejam refletidas as
preocupações das diversas realidades socioeconômicas não parece ser um
detalhe menor.

94
Gastón Hernán Schulmeister

Por sua vez, o tema da participação comunitária chama a atenção


para o déficit de representatividade e para a canalização de demandas de
nossas sociedades, sendo útil, em primeiro lugar, à imagem das instituições
de segurança e contribuindo, em última instância, ao funcionamento do
sistema de forma integral.

Notas
1
Na data do fechamento da publicação da primeira revista da Rede 14 “Segurança Cidadã na
Cidade” do programa Urb-Al, no Chile, participavam 19 comunidades e, em nível mundial,
existam 29 países sócios, com um total de 189 cidades. Para visitar o portal da rede dirija-se a
http://www.urbalvalparaiso.cl/p4_urbalred14/site/edic/base/port/portada.html
2
O Documento Base foi a publicação de fundação da Rede 14, que definiu a problemática da
segurança cidadã na Europa e na América Latina, com o objetivo de estabelecer critérios comuns
de análise. Rede-14 Programa URB-AL da Comissão Européia; “Documento Base. Segurança
Cidadã na Cidade”; Valparaíso, Chile; outubro de 2003. Disponível em espanhol em http://
w w w. u r b a l v a l p a r a i s o . c l / p 4 _ u r b a l r e d 1 4 / s i t e / a r t i c / 2 0 0 3 1 1 1 9 / a s o c f i l e /
ASOCFILE120031119195112.pdf
3
DAMMERT, Lucía (ed.); Segurança Cidadã: Experiências e Desafios; I. Municipalidade de
Valparaíso, Rede 14 Segurança Cidadã na Cidade, URB-AL; Valparaíso, o Chile; 2004; 377 p.
Disponível em http://www.urbalvalparaiso.cl/p4_urbalred14/site/artic/20031119/pags/libro.html
4
DAMMERT, Lucía, PAULSEN, Gustavo (eds.); Cidade e Segurança na América Latina; FLACSO-
Chile, Rede 14 Segurança Cidadã na Cidade, I. Municipalidade de Valparaíso, URBAL; Santiago,
Chile, Série Livros FLACSO-Chile; 2005, 230 p. Disponível em http://www.urbalvalparaiso.cl/
p4_urbalred14/site/artic/20031119/asocfile/libro_ciudad_y_seguridad.pdf
5
DAMMERT, Lucía; Prevenção comunitária do delito na América Latina: Discurso ou
possibilidade?, em Pessoa e Sociedade (Chile); N°.1; 2005; pp.215/230.
6
DAMMERT, Lucía; A construção de cidadania como estratégia para o fomento da convivência
e a segurança; El Salvador, Seminário permanente sobre violência; setembro 2005. Disponível em
http://www.violenciaelsalvador.org.sv/documentos/Dammert__El_Salvador_20051.pdf
7
DAMMERT, Lucía, BAILEY John (coords.); Segurança e reforma policial nas Américas:
experiências e desafios; o México; FLACSO-Chile, as Nações Unidas-ILANUD, Século XXI Editores;
2005; 379p.
8
Sobre tipos de participação comunitária, seus problemas de conceitualização e temas implicados,
ver DAMMERT, Lucía; “Participação comunitária em prevenção do delito na América Latina”,
em DAMMERT, Lucía (ed.); Segurança Cidadã: Experiências e Desafios; op. cit.; p. 161.
9
Segundo Lucía Dammert, na América Latina as iniciativas de prevenção comunitária
desenvolvidas se vinculam a quatro âmbitos específicos: a relação polícia-comunidade aludida,
a organização comunitária de segurança, o trabalho em espaços públicos e a associação público-
privado. Ver DAMMERT, Lucía; A construção de cidadania como estratégia para o fomento da
convivência e a segurança; op. cit.; pp. 15-16.
10
Ver “Enfoques participativos” em DAMMERT, Lucía; A construção de cidadania como estratégia
para o fomento da convivência e a segurança; op. cit.; pp. 14-15. Sobre os enfoques participativos
e os âmbitos de participação, ver também DAMMERT, Lucía; “Associação município-comunidade
na prevenção do delito”, em DAMMERT, Lucía, PAULSEN, Gustavo (eds.); Cidade e segurança na
América Latina; op. cit. 61/64.

95
A participação comunitária

11
O projeto B-equal (Bradford Employment Equality Project) é, em parte, financiado pelo Fundo
Social Europeu e procura o desenvolvimento de opções inovadoras para superar barreiras das
minorias étnicas ao emprego. Site na web: http://www.b-equal.com/
12
British Broadcasting Corportation (BBC). “a Grã-Bretanha: Calma após distúrbios raciais”,
em BBC Mundo.com, 9 de julho de 2001. http://news.bbc.co.uk/hi/spanish/news/newsid_1430000/
1430199.stm
13
Calcula-se que no Reino Unido haja um milhão e meio de muçulmanos que vivem em diferentes
assentamentos distribuídos no território britânico, com diferentes formas de organização e
herança cultural. Embora exista certa crença generalizada que os muçulmanos residentes no
Reino Unido chegaram ao país a partir do sudeste asiático na década de 60, os antecedentes
históricos indicam que começaram a se estabelecer há mais de um século e que emigraram de
diferentes regiões no mundo, incluindo o norte e o este da África, Chipre, Turquia e Oriente
Médio.
14
CRAMPHORN, Colin (2006); Chief Constable’s Annual Report 2005/2006; West Yorkshire
Police. Disponível em http://www.westyorkshire.police.uk/files/docs/annualreport20052006.pdf
15
Ibid. Para mais informações dirigir-se também a “County Profile”, na seção institucional
(“About Us”) no site na web da WYP: http://www.westyorkshire.police.uk/section-
item.asp?sid=2&iid=136
16
CRAMPHORN, Colin (2006); op. cit..
17
A apenas duas semanas dos episódios do 7 de julho de 2005, no dia 21 de junho entre as
12h35min e as 13h05min, três incidentes ocorreram novamente em Londres no sistema
subterrâneo —ao redor das estações Warren Street, Oval e Shepherd’s Bush—, mais um quarto
incidente na parte superior de um London Bus na Hackney Road. MURPHY, Paul; “Intelligence
and Security Committee Report into the London Terrorist Attacks on 7 July 2005. Presented to
Parliament by the Prime Minister by Command of Her Majesty”, Mai 2006. Disponível em
http://news.bbc.co.uk/2/shared/bsp/hi/pdfs/11_05_06_isc_london_attacks_report.pdf
18
The House of Commons; “Report of the Official Account of the Bombings in London on 7th July
2005”; London; The Stationery Office (TSO); Mai 2006. Disponível em http://news.bbc.co.uk/2/
shared/bsp/hi/pdfs/11_05_06_narrative.pdf
19
Com respeito à terminologia no momento de fazer referências ao terrorismo, no relatório sobre
inteligência e segurança depois dos episódios do 7/7, o mesmo refere-se ao “terrorismo islamita”.
Um termo utilizado pelos serviços de segurança e pela polícia para descrever a ameaça de
indivíduos que alegam uma justificação religiosa para o terrorismo, cuja alegação é, além disso,
rejeitada pela maioria dos muçulmanos britânicos, cujos líderes se encarregam de assinalar que
o Islã não é uma religião violenta. Além disso, entre a comunidade contra-terrorista mais ampla
do governo especifica-se que a ameaça é também referenciada como “terrorismo internacional”.
MURPHY, Paul; “Intelligence and Security Committee Report into the London Terrorist Attacks
on 7 July 2005. Presented to Parliament by the Primer Minister by Command of Her Majesty”;
Mai 2006.
20
The House of Commons; “Report of the Official Account of the Bombings in London on 7th July
2005”; op. cit.; p. 26-27.
21
Ibid.
22
“Annex A: The evolution of the modern international terrorist threat”, em The House of
Commons; “Report of the Official Account of the Bombings in London on 7th July 2005”; London;
The Stationery Office (TSO); Mai 2006.
23
“Muçulmanos sob a lupa”, BBC Mundo.com, 13 de julho de 2005. http://news.bbc.co.uk/hi/
spanish/international/newsid_4679000/4679677.stm

96
Gastón Hernán Schulmeister

24
“Four men held after terror raid”, em BBC News, 6 March 2006. http://news.bbc.co.uk/2/hi/
uk_news/4777472.stm
25
“Police search after terror arrest”, em BBC News, 7 June 2006. http://news.bbc.co.uk/2/hi/
uk_news/5054466.stm
26
Os debates em torno da comunidade muçulmana no Reino Unido se estenderam também a
discussões sobre como os políticos e os próprios líderes das comunidades deveriam responder ao
fenômeno do descontentamento entre os jovens muçulmanos e sua possível radicalização.
27
“O que motivou os atacantes?, em BBC Mundo.com, 14 de julho de 2005. http://news.bbc.co.uk/
hi/spanish/international/newsid_4682000/4682621.stm
28
“A veia racista da Grã-Bretanha”, em BBC Mundo.com, 5 de agosto de 2005. http://
news.bbc.co.uk/hi/spanish/misc/la_columna_de_miguel/newsid_4125000/4125942.stm
29
“Webchat: Professor Paul Rogers”, em BBC News, 18 July 2005. http://www.bbc.co.uk/leeds/
content/articles/2005/07/14/messageboard_paul_rogers_webchat_feature.shtml
30
“Noite de violência racial na G. Bretanha”, em BBC Mundo.com, 8 de julho de 2001. http://
news.bbc.co.uk/hi/spanish/news/newsid_1428000/1428513.stm
31
No caso da Irlanda do Norte, por exemplo, a preocupação em melhorar a imagem e a
confiança da polícia perante a comunidade é evidente, entre outras coisas, na criação de um
Ombudsman especial para lidar com as queixas contra a polícia (The Police Ombudsman for
Nothern Ireland). O mesmo não é equivalente a um departamento de assuntos internos, mas um
interlocutor entre a sociedade e a polícia, encarregado de canalizar as denúncias da população
e que atua como um mecanismo de resolução de controvérsias. Tal iniciativa se ocupou de temas
como a má imagem da instituição policial (e a correspondente confiança que deveria melhorar
para seu desempenho), com uma particular atenção do accountability que mostra-se útil (da
mesma forma que com a canalização de demandas no caso Bradford) ao melhoramento do
funcionamento das instituições de segurança. Para mais informações sobre The Police Ombudsman
for Nothern Ireland , dirigir-se a seu site na web: http://www.policeombudsman.org/
32
“Terceira noite de violência racial”, em BBC Mundo.com, 10 de julho de 2001. http://
news.bbc.co.uk/hi/spanish/news/newsid_1431000/1431319.stm
33
“ Inglaterra: o porquê do verão da ira”, em BBC Mundo.com, 11 de dezembro de 2001. http:/
/news.bbc.co.uk/hi/spanish/news/newsid_1703000/1703347.stm
34
“R. Unido: nova onda de violência racial?”, em BBC Mundo.com, 24 de junho de 2003. http:/
/news.bbc.co.uk/hi/spanish/news/newsid_3016000/3016508.stm
35
HENDERSON, N.J., DAVIS, R.C., and MERRICK, C., “Community Policing: Variations on the
Western Model in the Developing World”, Police Practice and Research, Vera Institute of Justice;
2003; Vol. 4, Nº. 3; 16 p..
36
Emblemático de tal política é o programa denominado The Bradford District Safer Communities
Partnership, o qual inclui uma ampla gama de ações e trabalha para reduzir o crime, o
comportamento anti-social, os problemas de abusos de drogas e do medo do crime, e para
assegurar que todas as pessoas no distrito se beneficiem do clima de segurança reinante. Para
mais informações dirigir-se ao site na web: http://www.saferbradford.org.uk
37
“Community Forums”, correspondente à seção “Department Profiles” no site na web da WYP:
http://www.westyorkshire.police.uk/section-item.asp?sid=6&iid=99
38
Ibid.
39
Ibid.
40
CALL, Charles T.; “Challenges in Police Reform: Promoting Effectiveness and Accountability”;
IPA Policy Report; International Peace Academy; 2004. Disponível em http://www.ipacademy.org/
PDF_Reports/CHALLENGES_IN_POLICE.pdf

97
A participação comunitária

41
“Community Forums”, no site da WYP, op. cit.
42
Lucía Dammert, por exemplo, insistindo no papel mais ativo que o governo local deveria
assumir comprometido com a participação da cidadania, reconhece a participação da
comunidade nas iniciativas de prevenção da violência e a delinqüência como um pilar a ter em
mente para o formato e implementação de políticas de segurança em nível local, fazendo com
que a comunidade se transforme em um ator decisivo no espaço local. DAMMERT, Lucía;
“Associação município-comunidade na prevenção do delito”, em DAMMERT, Lucía, PAULSEN,
Gustavo (eds.); Cidade e Segurança na América Latina; op. cit.; pp. 51/83.
43
Bradford Hate Crime Alliance (BHCA) na web: http://www.hatecrimealliance.co.uk
44
GROENEWALD, Hesta and PEAKE, Gordon; “Police Reform Through Community-based Policing:
Philosophy and Guidelines for Implementation”; International Peace Academy (IPA) Saferworld;
New York; September 2004. Disponível em http://www.saferworld.org.uk/images/pubdocs/
police%20reform.pdf
45
“Londres: depois dos conspiradores”, BBC Mundo.com, 10 de agosto de 2006. http://
news.bbc.co.uk/hi/spanish/international/newsid_4781000/4781927.stm
46
“Police fears of threat to Muslims”, em BBC News, 11 August 2006. http://news.bbc.co.uk/2/
hi/uk_news/4783099.stm
47
“Questions over London terror raid”, em BBC News, 10 June 2006. http://news.bbc.co.uk/2/hi/
uk_news/5066846.stm; “Terror raid pair may sue police”, em BBC News, 11 June 2006. http://
news.bbc.co.uk/2/hi/uk_news/5068500.stm
48
“Counter Terrorism”, seção “Policy Statements”, na web da WYP: http://
www.westyorkshire.police.uk/section-item.asp?sid=48&iid=1365
49
Ibid.
50
Ibid.
51
National Policing Plan Priorities 2004/07.
52
CRAMPHORN, Colin (2005); Chief Constable’s Annual Report 2004/2005; West Yorkshire
Police. Disponível em http://www.westyorkshire.police.uk/files/docs/annualreport20042005.pdf
53
CRAMPHORN, Colin (2005), op. cit. p. 4.
54
Para mais informações ver SCHULMEISTER, Gastón Hernán, “A segurança segundo a visão
britânica. Um enfoque holístico para reformas no setor”, Boletim do Instituto de Assuntos
Estratégicos e Assuntos Internacionais (ISIAE), Conselho Argentino para as Relações Internacionais
(CARI), ano 9, número 38, abril 2006. Disponível em http://www.cari1.org.ar/pdf/boletin30.pdf
55
WULF, Herbert; “Brief 15. Security Setor Reform”; Bonn (Germany); Bonn International
Center for Conversion (BICC); 2000.
56
Organization for Economic Co-operation and Development (OECD); “Security System Reform
and Governance”; DAC Guidelines and reference Series; Paris (France); 2005.
57
BALY, Dick; “Understanding and Supporting Security Sector Reform”; London, United Kingdom;
Department for International Development (DFID); 2002.
58
Neste sentido, embora o presente trabalho se ocupe apenas do caso Bradford, não se pode fugir
pelo menos à menção da aplicação do mesmo enfoque ao processo de reforma acontecido nos
últimos anos na Irlanda do Norte. Ver “A New Beginning: Policing in Northern Ireland. A report
of the Independent Commission on Policing for Northern Ireland”; September 1999. Disponível
em http://www.belfast.org.uk/report/fullreport.pdf
59
Na América Latina, por exemplo, são recorrentes os debates sobre se é preciso ampliar ou não
as missões das Forças Armadas em matéria de segurança interna. Ver CA, Lucía e BAILEY, John;
“Reforma policial e participação militar no combate à delinqüência: análise e desafios para a
América Latina”; em Forças Armadas e Sociedade; FLACSO-Chile; Nº.1; 2005; pp.133-152.
Disponível em http://www.fasoc.cl/files/articulo/ART43622189c08b8.pdf

98
B IA
L ÔM
CO
Comunicação
REFORMA POLICIAL E USO LEGÍTIMO DA FORÇA
EM UM ESTADO DE DIREITO.
UM OLHAR SOBRE A EXPERIÊNCIA DA COLÔMBIA
Hugo Acero*

1. INTRODUÇÃO

No começo dos anos 90 do século passado, apenas 17 de cada


100 cidadãos confiavam na Polícia Nacional da Colômbia. As pesquisas e
estudos de percepção sobre o trabalho policial nessa época, a colocavam
como uma instituição pouco comprometida com o respeito aos direitos
e liberdades dos cidadãos, com os procedimentos legais e com o estrito
cumprimento de seus deveres constitucionais. Além disso, era considerada
pouco eficiente frente aos problemas de violência e de delinqüência com
os quais naquele momento padecia o país.

Frente a esse cenário, o governo nacional, no ano 1992, empreendeu


um processo de reforma da polícia, sustentada em uma renovada atitude
autocrítica e vontade de mudança nos altos comandos policiais. Para isso,
o governo criou uma comissão externa, com porta-vozes importantes da
sociedade colombiana, e da qual fizeram parte oficiais destacados da
instituição policial, a qual se orientou essencialmente pela modernização
de sua estrutura interna de acordo com as exigências da segurança e a
convivência cidadã no padrão de um pleno respeito pelo Estado Social de
Direito, consagrado na Constituição Política de 1991.

Parte fundamental desse processo de transição foi fazer com que


seus membros interiorizassem o respeito e a valorização aos direitos
humanos, pela proteção das liberdades e pelo fomento da vida,
promovendo estes princípios na sua prática profissional, através do uso
dos mecanismos de controle, atenção e prevenção.

Tendo como padrão de referência o Estado Social de Direito que


proclama a Constituição de 1991, a polícia deve encarregar-se de preservar
a segurança cidadã, entendendo esta como as condições de segurança,
salubridade e tranqüilidade necessárias para o gozo dos direitos humanos
e o cumprimento dos deveres. Por conseguinte, a finalidade da polícia é o

*
Sociólogo, consultor internacional em temas de segurança cidadã, segurança nacional, manejo
de crise e terrorismo. 99
Reforma Policial e uso legítimo da força em um Estado de Direito

respeito e a proteção dos direitos humanos. Todas as ações da força


pública policial, desde a ordem mais elementar, até o uso da força em
situações excepcionais, estarão ordenadas de modo a favorecer o exercício
dos direitos humanos e o desfrute dos benefícios por eles assegurados1.

Como produto desse processo de reforma foram retirados da


Polícia Nacional da Colômbia mais de 10 mil membros que, por diferentes
motivos, não se adequavam aos novos requisitos de uma polícia
respeitadora dos direitos humanos e voltada para as necessidades e
confiança dos cidadãos da Colômbia.

O objetivo desse documento é dar conta da experiência de reforma


policial, tendo como ponto de reflexão a idéia do uso legítimo da força no
modelo do Estado Social de Direito, observando detalhadamente quais
foram os limites e alcances deste conceito no âmago desta prática, ou
processo, para o qual esta apresentação se dividirá em três partes:

Inicialmente, serão apresentadas uma série de considerações


preliminares sobre os parâmetros e princípios básicos de atuação da polícia
em um Estado Social de Direito. Posteriormente, serão enfatizados os
aspectos mais relevantes dentro da experiência de reforma policial,
estabelecendo, dentro deste espaço, as limitações e alcances do uso
legítimo da força na manutenção das condições necessárias para o exercício
dos direitos e das liberdades individuais. Finalmente, serão colocados alguns
desafios e reflexões que servirão como ponto de partida ao
desenvolvimento de novos planejamentos e iniciativas neste tema.

2. SOBRE A ATUAÇÃO DA POLÍCIA EM UM ESTADO SOCIAL E


DEMOCRÁTICO DE DIREITO
Existem diversos parâmetros que definem e regulam o exercício
profissional da polícia. Esses parâmetros estão definidos dentro da
Constituição Política da Colômbia de 1991 e nos instrumentos legais
internacionais sobre direitos humanos, os quais prevalecem para a
manutenção da ordem interna e a lei, sendo amparados pela Constituição
Nacional no seu artigo 93, como verifica-se abaixo2 :
• O respeito aos direitos das pessoas.
• A observação dos procedimentos legais.

100
Hugo Acero

•O estrito cumprimento dos deveres

Derivados desses preceitos fundamentais, encontramos um


conjunto de princípios que regem a atuação da polícia, os quais delimitam
e orientam claramente sua atuação em relação aos cidadãos e a situações
particulares, como prescreve a Organização das Nações Unidas3:

•Finalidade: o fim procurado pela polícia é a prevenção de um


fato punível ou a detenção de um infrator. Algum tipo de desvio
dessa finalidade poderia conduzir a um uso desmedido do poder.

•Necessidade: as condutas tomadas pela polícia devem


constituir-se como a única possibilidade de ação para evitar a
realização de um fato punível ou dar captura a quem comete.
Adicionalmente, essas condutas devem ser as menos lesivas
possíveis aos direitos das pessoas, particularmente no que se
refere ao uso da força.

•Devida motivação: refere-se explicitamente às razões que


levam à polícia a atuar, as quais devem ser claras, objetivas e,
sobretudo, justificadas.

•Proporcionalidade: o conjunto das medidas tomadas pela polícia


deve estar ajustado à conduta da pessoa perseguida e às
circunstâncias do contexto no qual se comete o fato punível;
por isso, deve haver uma conexão direta entre a finalidade e os
meios utilizados, o que evitará o uso de medidas excessivas que
causem danos desnecessários às pessoas ou a seus bens.

•Não-discriminação: todas as pessoas, sem distinção de nenhum


tipo, têm os mesmos deveres e direitos e deverão ser tratadas
pela polícia da mesma maneira.

•Excepcionalidade do uso da força: o uso da força se admite


para situações excepcionais, nas quais ou não é possível prevenir
o delito, ou se deve perseguir o infrator por outros meios.

É necessário entender que cada um desses princípios faz parte de


um todo estreitamente inter-relacionado, onde, como já havia sido
explicitado anteriormente, aparece a proteção aos direitos das pessoas
como um eixo central.

101
Reforma Policial e uso legítimo da força em um Estado de Direito

Tomando como ponto de partida esses conceitos, no


prosseguimento deste trabalho se fará um percurso pelo processo de
reforma o qual, desde o ano 1993 a Polícia Nacional da Colômbia veio
implementando em todo o país, comentando minuciosamente até onde
chegou e como se desenvolveu no interior desse processo a idéia de uso
legítimo da força.

3. REFORMA POLICIAL NA COLÔMBIA: TRANSFORMAÇÃO DE


UMA INSTITUIÇÃO PELO RESPEITO AOS DIREITOS DOS
CIDADÃOS

A promulgação da Constituição Política de 1991 marca o início de


um novo modelo de participação cidadã nas decisões econômicas, políticas
e sociais da nação, direcionado a garantir a existência de instituições públicas
eficientes e democráticas, nas quais os usuários aparecem como legítimos
requerentes de serviços e direitos.

Nesse contexto, a Polícia Nacional (também imersa em corrupção


e deficiência no cumprimento de suas funções, por aquela época) assumiu
o desafio de “submeter-se a um processo de autocrítica e questionamento,
tanto de seu funcionamento como do comportamento de seus
integrantes4”, com o propósito de constituir-se em um organismo vivo
do país, interessado na defesa do bem comum e co-participe da
transformação da realidade nacional, partindo de suas próprias
competências de segurança e convivência.

As exigências da nova Constituição facilitaram a reestruturação


interna da polícia mediante a expedição da Lei 62 de 1993, e o
diagnóstico da realidade institucional, permitindo a identificação dos
seguintes problemas como causadores da crise de legitimidade da
Polícia Nacional5:
• Enfraquecimento de princípios e valores da corporação.
• Gestão de comando caracterizada por ausência de liderança.
• Deficientes resultados do serviço de polícia (diversificação
excessiva do serviço).
• Enfoque inadequado da administração do talento humano.

102
Hugo Acero

•Deficiências nos processos de formação e capacitação.

•Ineficazes sistemas de avaliação e acompanhamento.

•Afastamento polícia-comunidade.

•Violação dos direitos humanos.

Frente a esses problemas, a reforma policial se sustentou nos três


elementos constitutivos do sistema do serviço policial: indivíduo, instituição
e comunidade. E a priorização dos problemas detectados transformou-
se no insumo potencializador para a criação e implementação do “Plano
de Transformação Cultural”, cuja filosofia se fundamentou em:

“A mudança de atitude do homem, mediante o equilíbrio de suas


dimensões espiritual, intelectual, sócio-afetiva e física, sustento de seu
próprio desenvolvimento individual e de sua construção de uma cultura
organizacional baseada no progresso tecnológico e acomodada às
necessidades do cidadão, e do meio que o cerca, para fazer mais uma
instituição produtiva e competitiva”6.

Os programas fundamentais sobre os quais se alicerçou o Plano de


Transformação Cultural foram:

•Participação da comunidade.

•Nova cultura do trabalho.

•Fortalecimento da capacidade operativa.

•Desenvolvimento gerencial.

•Potenciação do conhecimento e da formação policial.

•Modernização da gestão administrativa.7


Desde então, a polícia não tem economizado esforços acadêmicos
para, desde suas escolas, formar indivíduos capazes de dar um tratamento
personalizado, com disposição ao diálogo e interação com civis, de uma
maneira essencialmente persuasiva ao invés de dissuasiva.
A modernização de sua gestão administrativa, a formação de seus

103
Reforma Policial e uso legítimo da força em um Estado de Direito

membros para uma nova atitude de serviço e o reconhecimento dos


cidadãos como a razão da existência da instituição têm feito da Polícia
Nacional uma instituição flexível, mais horizontal na sua organização e
com um alto nível de efetividade no cumprimento de suas funções de
segurança e convivência, conforme as necessidades cidadãs e
institucionais. Hoje, a instituição policial goza de uma aprovação por
parte da população próxima a 70%.
Parte fundamental dessa transformação da Polícia Nacional foi fazer
com que seus membros internalizassem o respeito e valorização dos Direitos
Humanos, e promovessem sua vivência em cada uma de suas ações
cotidianas, fundamentadas na proteção das liberdades e no fomento da vida.
No que tange ao uso da força, os membros da instituição cada
vez mais sabem que seu emprego deve ser realizado com extremo
cuidado e devendo ser aquela que seja necessária e proporcional ao
perigo que se procura evitar. A esse respeito, diz o artigo 3° do código
de conduta para funcionários encarregados de fazer cumprir a lei e
combater o crime, aprovado pela assembléia geral das Nações Unidas:
“Os funcionários encarregados de fazer cumprir a lei poderão usar a
força só quando seja estritamente necessária e na medida que o requeira
o desempenho de suas tarefas 8”.
Por outro lado, o artigo 29 do Código Nacional de Polícia da
Colômbia, afirma que só quando for estritamente necessário, a polícia pode
utilizar a força para impedir a perturbação da ordem pública e restabelecê-
la. Da mesma forma, o artigo 30 desse mesmo Código consagra que para
preservar a ordem pública a polícia só empregará os meios autorizados
pela lei e pelos regulamentos, escolhendo sempre entre os meios eficazes
disponíveis, aqueles que causem um menor dano à integridade das pessoas
e de seus bens. Tais meios não poderão ser utilizados além do tempo
indispensável para a manutenção da ordem e seu restabelecimento.
Sobre esses preceitos constitucionais e legais, o processo de
transformação cultural da polícia, no que diz respeito ao uso legítimo da força,
avançou, como o coloca Margarita Uprimny, sob os seguintes critérios9 :
• Critério de necessidade: será utilizada a força apenas quando a
ordem pública não puder ser preservada de outra maneira.

• Critério de legalidade: os meios utilizados devem estar previamente

104
Hugo Acero

autorizados pela lei ou por um regulamento. Isso amostra que o


uso da força tem limites legais e que as autoridades de polícia não
podem inventar sistemas imprevistos para atemorizar aos indivíduos
ou a grupos cuja atividade deva ser reprimida.

•Critério de racionalidade: devem ser evitados os danos


desnecessários.

•Critério de temporalidade: esses meios apenas poderão ser


utilizados pelo tempo indispensável.
Em coerência com esses critérios, desde meados dos anos 90 foram
destinados recursos para a capacitação e a atualização de oficiais e
suboficiais, membros do nível executivo e agentes, em temáticas como:
direitos de polícia, direitos humanos, direito internacional humanitário,
segurança e convivência cidadã, polícia comunitária, padronização de
procedimentos e pedagogia. Da mesma forma, e coadunado com as
políticas de ordem nacional10 , com as diretrizes internacionais para a
proteção dos Direitos Humanos e com o Plano de Transformação Cultural,
foi criado o Escritório de Direitos Humanos da Polícia Nacional, com suas
correspondentes instâncias setoriais.
Desde então, a Polícia Nacional tem emanado múltiplas ações de
pesquisa e educação orientadas ao conhecimento e ao bom uso do tema
por parte dos integrantes da instituição, nas suas diferentes áreas de apoio
à comunidade. Da mesma forma, a instituição coordenou atividades
orientadas para a defesa dos Direitos Humanos de seus membros. Nesse
âmbito, foram estabelecidos convênios com as Nações Unidas, com a
Secretaria para os Direitos Humanos da Presidência da República e com
instituições acadêmicas, para a realização de pesquisas que permitam
estabelecer as condutas indevidas por parte de seu pessoal e formular
linhas de trabalho que conduzam à sua melhoria.

Nos últimos anos, a Polícia Nacional, em coordenação com


diferentes instituições, como a Defensoria do Povo, o Escritório para os
Direitos Humanos da Presidência e as Personerías Municipales11, iniciou
um amplo trabalho de indagação sobre a situação dos Direitos Humanos
no interior da instituição e no serviço à comunidade através de seus
membros. Este trabalho permitiu, por um lado, colocar em evidência a
vontade política da polícia frente às exigências de mudança, e, por outro,

105
Reforma Policial e uso legítimo da força em um Estado de Direito

determinar até que ponto no exercício legítimo de suas funções


constitucionais incorreu-se em algum excesso no uso da força ou desacato
à lei, com o fim de corrigir erros e depurar cada vez mais o exercício
profissional de seus membros.

4. CONCLUSÕES

O primeiro aspecto que é preciso destacar é que hoje a Polícia


Nacional da Colômbia é uma das instituições melhor qualificadas pelos
cidadãos. Enquanto no ano 1992 apenas 17% dos cidadãos a consideravam
confiável, hoje 68% acreditam nela e, mesmo que falte muito caminho
por percorrer, a instituição policial não cessa o seu esforço para ser a
melhor instituição do país.

Cabe ressaltar que frente aos desafios que hoje impõem os


problemas de violência e delinqüência na maioria dos países latino-
americanos, o aprofundamento da modernização das forças policiais,
emoldurada no compromisso com a estrita observância aos Direitos
Humanos, constitui-se em uma necessidade inadiável caso se pretenda
dar a resposta adequada a tais desafios. Assim o considerou o governo da
Colômbia em 1993 e a Polícia Nacional, e hoje a instituição colhe os frutos
com o reconhecimento do cidadão e a redução dos indicadores de violência
e de delinqüência, como foi o claro exemplo de Bogotá nos últimos dez
anos e Medellín nos últimos quatro.

Quanto ao uso da força, ficou claro para o governo e para a


instituição que deveriam existir critérios e fundamentos claros de ação
policial considerando o Estado de Direito e que isso beneficiava aos próprios
membros da força policial que, por razões relacionadas ao serviço,
encontram-se expostos diariamente a situações nas quais é provável
cometer erros que podem resultar na perda de vidas ou na destruição de
bens ou propriedades. É claro, para qualquer membro da Instituição
Policial, que seguir as regras lhes serve para estarem blindados frente a
qualquer acusação de suposto abuso de autoridade ou uso indevido da
força. Se o policial seguir fielmente as regras de relacionamento com o
cidadão, dificilmente o resultado da investigação poderá assinalá-lo como
responsável por cometer uma arbitrariedade, pois se tratará de um erro
não premeditado12.

106
Hugo Acero

Finalmente, é necessário considerar as características excepcionais


nas quais vive a Colômbia com o conflito armado interno, cuja situação faz
com que a população civil se veja freqüentemente surpreendida em meio
ao fogo cruzado e onde os critérios de uso legítimo da força, adquirem
ainda mais importância. Nesse tipo de conflito deve-se limitar de maneira
muito cuidadosa, a aplicação do poder de fogo e do uso da força em
geral. Aqui se torna muito difícil e, em alguns casos, quase impossível,
discernir entre combatentes e não combatentes, e é no meio dessa situação
que a Polícia Nacional deve aprimorar ainda mais as regras no uso da força
para guiar as operações, minimizar erros e danos colaterais e contribuir
para evitar abusos contra a população civil.

Os critérios de ação emoldurados no respeito aos direitos humanos


são o parâmetro principal para avaliar a legitimidade das operações da
polícia, e especialmente da Polícia Nacional. Caso ocorra uma investigação
por delitos cometidos no desenvolvimento de atos do serviço, o critério
fundamental de avaliação será a observância das regras estipuladas nos
tratados e nos decretos internacionais sobre o uso legítimo da força 13.

Finalmente, cabe destacar que os critérios de ação do uso legítimo


da força não devem ser vistos como obstáculos ou impedimentos para a
adequada execução das operações militares e policiais. Pelo contrário,
devem servir como um guia e uma ajuda para todos os membros da
Polícia encarregados de velar pela vida, pela honra e pelos bens dos cidadãos
e das instituições democráticas.

Notas
1
UPRIMNY YÉPEZ, INÉS MARGARITA. Limites da polícia na perseguição do delito. Defensoria
do povo. Bogotá 2003.
2
Artigo 93 da Constituição Política Nacional
3
Assembléia Geral das Nações Unidas. 17 de dezembro de 1979. Normativa e Prática dos
Direitos Humanos para a Polícia Manual ampliado de direitos humano para a polícia.
4
POLÍCIA NACIONAL: A FORÇA DA MUDANÇA. Cartilha N° 2. Pág.14.
5
POLÍCIA NACIONAL: A FORÇA DA MUDANÇA. Cartilha N° 2.
6
GRUPO DE ESTRATEGISTAS PARA A MUDANÇA. Transformação cultural e melhoramento
institucional. Polícia Nacional. Editorial Retina. Bogotá: 1995.
7
Plano de Direcionamentos Estratégicos da Polícia Nacional.
8
Ibid. UPRIMNY YÉPEZ, INÉS MARGARITA. Limites da polícia na perseguição do delito. Defensoría
do povo. Bogotá 2003. Pág. 25
9
Ibid., UPRIMNY YÉPEZ, INÉS MARGARITA. Limites da polícia na perseguição do delito.

107
Reforma Policial e uso legítimo da força em um Estado de Direito

Defensoria do povo. Bogotá 2003. Pág. 33


10
A) Diretiva Presidencial Não. 005 de 23 de dezembro de l991: Responsabilidades das entidades
do Estado na Estratégia Nacional Contra a Violência”. B) Diretiva Presidencial 003 de maio 3 de
l994: responsabilidades do Estado na Estratégia contra a Violência e a Segurança da Gente. C)
Diretiva permanente MINDEFENSA 010 de 25 de maio de 1994: Reestruturação e ampliação do
Escritório de Direitos Humanos do Ministério da Defesa e criação das mesmas nas forças
Armadas, entre outras.
11
A Personería Municipal é um órgão público que exerce a fiscalização da administração do
município. Como parte do Ministério Público, lhe corresponde a guarda e promoção dos direitos
humanos, a proteção do interesse público e a vigilância da conduta oficial de que desempenham
funções públicas.
12
ANDRES VILLAMIZAR, Erros militares e regras de encontro, Fundação Segurança e Democracia.
Bogotá, outubro 4 de 2004
13
Ibid. ANDRES VILLAMIZAR, Erros militares e regras de encontro, Fundação Segurança e
Democracia. Bogotá, outubro 4 de 2004. Pág. 9

108
RU
PE
Comunicação
ESTRATÉGIAS POLICIAIS PERANTE NOVAS
AMEAÇAS E RELAÇÕES SEGURANÇA PÚBLICA–
DEFESA NACIONAL
Gustavo Gorriti*
A principal ameaça que viveu o Peru em termos de segurança pública
e nacional foi a insurreição do Sendero Luminoso. Desde seu início,
enganosamente simples, até o momento, no final da década de 1980 e
começo de 90, quando o Sendero afirmou haver alcançado a paridade
estratégica e iniciado a etapa dirigida a conquistar o poder, o Peru viveu uma
guerra interna na qual morreram dezenas de milhares de pessoas e sofreu
uma destruição material de bilhões de dólares.
Para fins práticos, a guerra interna terminou há alguns anos. O Sendero
Luminoso mantém grupos armados em algumas regiões do país, mas o que
restou não constitui mais uma ameaça estratégica, como foi, e muito, até
fins de 1992.
Por que trazer para discussão o caso no contexto desse estudo?
Porque aquela ameaça sem precedentes no Peru pôs em jogo todo tipo de
reações e respostas por parte de um Estado confuso, que viu como
fracassavam, um após outro, seus esforços, enquanto a situação piorava até
tornar-se quase insustentável.
Uma vez que a polícia foi derrotada em 1982, na primeira área em
estaqdo de emergência (a de Ayacucho, na serra centro-sul do país), as
Forças Armadas assumiram a tarefa contra-insurgente, pondo em prática
as doutrinas de contra-insurgência que haviam sido empregadas poucos
anos antes, frente às insurreições guerrilheiras na América do Sul,
especialmente no Cone Sul, e que em todos os casos terminaram com a
supressão da democracia, a instauração de ditaduras e a prática de
atrocidades contra dezenas de milhares de pessoas.
Essa doutrina, herdada da guerre révolutionnaire francesa,
essencialmente contrária à democracia, foi aplicada no Peru, inicialmente,
nas áreas provincianas onde se deu com maior força o crescimento da
organização maoísta. Apesar do grande número de vítimas, (mortos,
desaparecidos, refugiados), a insurreição, além de não ser dominada,
continuou crescendo e difundindo-se por novas regiões do país.

*
Jornalista, Diretor da Área de Segurança Cidadã do Instituto de Defensa Legal.

109
Estratégias policiais perante novas ameaças e
relações Segurança Pública–Defesa Nacional

O fracasso das estratégias de repressão brutal causou outro efeito


colateral: a erosão paulatina da democracia peruana, jovem, precária e
frágil, que perdia regiões inteiras do território nacional quando essas se
declaravam em emergência e se colocavam sob controle de um comando
político-militar. Assim, enquanto a insurreição se expandia e fazia
metástases, também se expandiam paralelamente ditaduras militares
estaduais, dentro de um governo democrático nacional. A democracia
peruana abdicava gradualmente, e cada vez mais, de seu governo e do
império da lei, porque simplesmente não sabia como enfrentar a
insurreição e como empregar suas próprias ferramentas de defesa.

Em fins da década de 1980, a situação havia se agravado


consideravelmente e as principais cidades do país, entre as quais Lima, se
transformavam em palcos cada vez mais centrais da guerra interna. Ao
longo desses anos, as diversas forças que enfrentavam o Sendero (as Forças
Armadas, as polícias, os grupos organizados da sociedade) haviam ensaiado
diversos meios e formas de enfrentar os maoístas. Uns mais cruéis que
outros e alguns mais eficazes que os anteriores. O Sendero tinha perdido
o controle de alguns territórios previamente dominados (e tiranizados),
sobretudo quando os camponeses se levantaram para enfrentá-los. Em
alguns casos, com a ajuda das Forças Armadas, em outros, praticamente
sós. Mas na soma total da guerra interna, o Sendero estava mais forte que
antes, controlava ou influenciava mais territórios e se preparava para variar
a clássica estratégia maoísta com uma que tinha fortes elementos da
doutrina prévia do Comintern: tentar provocar o colapso do governo
desde as cidades e de sua periferia imediata.

Uma figura de suprema importância durante toda a guerra, se fazia


agora duplamente vital. Abimael Guzmán, o “Presidente Gonzalo”, era
não só o líder indiscutível do Sendero Luminoso, mas já se transformara
no mais próximo que um movimento maoísta ultra-ortodoxo poderia ter
de adoração quase religiosa. Diferentemente dos casos de, por exemplo,
Stalin, Mao ou Kim Il-Sung, nos quais o chamado culto à personalidade se
manifestou depois da vitória e das demonstrações de rigor, o culto à
personalidade de Gonzalo foi desenvolvida durante a insurreição e cresceu
até níveis extravagantes para uma organização marxista. No meio de
terremotos internos e de algumas purgas com métodos copiados da
Revolução Cultural chinesa, a posição do “Presidente Gonzalo” se
transformara, para os senderistas, na de profeta maior de uma religião

110
Gustavo Gorriti

secular. “Gonzalo”, Abimael Guzmán, era a chave da vitória para seus


fiéis. Não só no Peru mas, eventualmente, no mundo. Para seguir as ordens
de quem chamavam “o maior homem vivente sobre a face da Terra”, os
senderistas não exitavam em entregar a vida, já que deviam levá-la sempre
“na ponta dos dedos”. No momento da morte, “da suprema entrega”,
talvez entre torturas atrozes, “a chefia” estaria com eles, em uma forma
de transporte místico que, de alguma maneira, haviam compatibilizado
com sua convicção materialista.
Uma vez que Abimael Guzmán era tão importante, como guia
estratégico, mas também objeto de culto e de fé para o Sendero, era patente
que essa sua maior força poderia converter-se na sua maior debilidade. Era
tal a dependência da organização rebelde do seu líder/profeta, que sua captura
poderia representar um golpe demolidor, decisivo e neutralizador.
Isso foi, de uma ou outra maneira, compreendido pelo Estado
peruano desde os primeiros anos da guerra. Diversos grupos de
inteligência e de operações especiais foram criados durante esses anos
para caçar Guzmán. A maioria teve nomes copiados de thrillers (o mais
popular foi Skorpio), conseguiram pressupostos especiais de operações
ajustadas de modo a ocultar o dinheiro empregado, sem chegar perto
do líder.
O que apenas uns poucos sabiam (possivelmente não o pessoal de
operações especiais de inteligência) é que Abimael Guzmán não podia estar
nos Andes. Sofria de uma doença chamada policitemia1, que tornava impossível
sua permanência nas alturas por tempo prolongado. Como também sofria
com problemas de pele (psoríase), o mais provável é que tivesse sido forçado
a viver em uma cidade, a qual, com efeito, resultou ser Lima.
Em 1989, a maioria desses grupos de inteligência já havia fracassado.
A polícia antiterrorista, afligida pelo crescimento do senderismo em Lima,
deixou a investigação em profundidade que desenvolvia em meados dos
anos 80, concentrando-se em ações táticas: incursões noturnas para
capturar o maior número possível de ativistas e interrogatórios brutais
para obter alguma informação de aproveitamento imediato. A eficiência
era medida pelo número de capturas.
Então se deram duas iniciativas, quase paralelas, que buscaram
enfrentar o mesmo problema a partir de duas perspectivas, métodos e
filosofias totalmente diferentes.

111
Estratégias policiais perante novas ameaças e
relações Segurança Pública–Defesa Nacional

A primeira foi a fundação do GEIN (Grupo Especial de Inteligência),


no final de 1989. Seu idealizador e fundador foi um major da polícia
chamado Benedicto Jiménez, que via com crescente frustração que as
ações de mano dura da Polícia, as incursões violentas, as portas quebradas
aos montes e as detenções por atacado, não solucionavam o problema,
mas o agravavam.

Jiménez reuniu um grupo pequeno de policiais e os colocou para


fazer o que lhe haviam ensinado seus mentores há anos: estudar a fundo o
senderismo, aprender a pensar como eles, conhecer sua história em
detalhes, a dinâmica de seu movimento, a sua filosofia, doutrina e estratégia.
Os outros policiais viram esse esforço com desdém e os chamaram “os
caça-fantasmas”. Seus chefes, vendo que não importava a Jiménez competir
por cotas de gente capturada e imóveis interditados, tentaram tirá-lo da
unidade. Jiménez conseguiu comunicar-se com o chefe da polícia, general
Fernando Reyes Rocha, a quem convenceu que o deixasse experimentar
seu método. Tanto Reyes Rocha, como o então ministro do Interior, Agustín
Mantilla, decidiram apoiá-lo com um mínimo de recursos.

Em poucos meses de um acompanhamento paciente de vários


suspeitos, sem deixá-los saber que eram seguidos e sem efetuar uma só
detenção, Jiménez e seu pequeno grupo de policiais foram desenredando
um novelo invisível. Finalmente, em junho de 1990, sendo ainda presidente
Alan García, o GEIN vasculhou várias casas e, em uma delas, perto do
quartel-general do Exército, encontrou não só um tesouro documental,
mas a evidência que Abimael Guzmán havia vivido ali até pouco tempo.
Plenamente motivados,prosseguiram com seu acompanhamento e pesquisas.

Houve, então, uma mudança de governo. Saiu Alan García e Alberto


Fujimori assumiu a presidência do o Peru no dia 28 de julho de 1990.

Fujimori já havia desenvolvido durante a campanha uma forte


dependência em relação ao ex-capitão do Exército, Vladimiro Montesinos.
Personagem extraordinariamente sinuoso, intrigante e carente de
escrúpulos, e ao mesmo tempo audaz, Montesinos tinha uma fixação pelo
mundo da inteligência, da espionagem e das táticas mais ameaçadoras e
coercitivas para afirmar-se no poder. Ao conseguir que Fujimori o apoiasse
em todas as suas iniciativas, Montesinos procurou reorganizar o Estado
de forma tal que o Serviço de Inteligência Nacional (SIN), que ele

112
Gustavo Gorriti

controlava, se transformasse na cúspide da pirâmide das forças de


segurança e do governo. O comando conjunto das Forças Armadas, a
Polícia, e, finalmente, o resto do Estado, se colocava sob as ordens e
dependência do SIN.

Enquanto efetuava essas mudanças, em 1991, Montesinos buscou


ter capacidade operacional própria, através de grupos de ação que estivessem
sob as ordens diretas do SIN e pudessem levar a cabo as ações que ele
estimasse convenientes. Um grupo especial foi formado com elementos
do Exército transferidos da Direção de Inteligência do Exército (Dinte)
para o SIN. O grupo se tornaria famoso pelo seu apelido: Colina.

Durante a guerra interna, houve vários grupos ou militares


encarregados de missões “especiais”, tais como assassinatos e torturas.
Mas a maioria operava no nível zonal ou regional. Essa foi a primeira vez
que um grupo operacional com experiência nesse tipo de ação passava a
depender diretamente da chefia do SIN. Isto é, da organização então
mais importante do Estado.

A idéia de Montesinos foi a de utilizar esse grupo para todo tipo de


ações que ele estimasse necessárias. Entre elas, certamente, as dedicadas
à luta contra o Sendero Luminoso. A visão de Montesinos (e certamente
a do grupo Colina) conferia grande importância às ações de contra-terror,
à eliminação de inimigos ou à capacidade de fazê-lo. O SIN teria a
informação e, em determinadas circunstâncias, o grupo Colina atuaria
expedita e letalmente, à margem da lei, mas a serviço do poder, como um
grupo secreto e aterrorizante.

Entretanto, o GEIN conseguia sobreviver à mudança de poder e


prosseguia com sua paciente tarefa de estudar cada documento, de seguir
as pistas já identificadas, sem ceder à tentação de prender, deixando que
um suspeito os levasse a outro e este a um terceiro, todos sem dar-se
conta que eram seguidos.

Considerando que esse grupo de policiais deveria ser muito


especializado, levar a cabo um trabalho extremamente fatigante e
desgastante, além de enfrentar um inimigo convencido de ser portador
da verdade histórica, Benedicto Jiménez promoveu o desenvolvimento

113
Estratégias policiais perante novas ameaças e
relações Segurança Pública–Defesa Nacional

de uma doutrina operacional que pode ser resumida nos seguintes aspectos:

• O GEIN proclamava sua superioridade ideológica e moral, uma


vez que lutava pela defesa da vida, da liberdade e da democracia.

• O GEIN baseava sua superioridade no conhecimento profundo e


detalhado do inimigo. A detenção deveria efetuar-se quando a vigilância e
o acompanhamento tivessem rendido todos seus frutos. O interrogatório
deveria partir de um conhecimento muito maior do que o inimigo pudesse
suspeitar que se tinha dele. O conhecimento e a inteligência faziam não só
desnecessária qualquer pressão, mas a superioridade funcional e moral
do GEIN fazia com que se descartasse plenamente a tortura ou qualquer
ilegalidade.

• Por essa razão, as detenções deveriam efetuar-se com rapidez e


eficiência, mas sem nenhum excesso de força.

No final de janeiro de 1991, o GEIN interveio em uma casa na zona


residencial de Chacarilla de Estanque, três dias depois que Abimael Guzmán
a tinha deixado. Ali, e em outro lugar invadido ao mesmo tempo,
encontrou-se outro acervo documental do Sendero, incluindo vídeos de
Guzmán e seus partidários mais próximos. Nunca se chegara tão perto
do chefe senderista.

O GEIN, como era seu procedimento, se dedicou a analisar os


documentos, enquanto continuava com a caçada à liderança senderista.
Mas desta vez o SIN exigiu que fosse permitido ao grupo Colina estudar
também a mesma documentação. O GEIN não teve outra opção senão
permití-lo.

Assim, durante algumas semanas, dois grupos com as metodologias,


doutrinas, visões da guerra, da segurança, da lei e da vida mais opostas
que se possa pensar, coabitaram dedicados, um junto ao outro, a estudar
e extrair conclusões dos mesmos documentos.

Eventualmente, Jiménez expulsou o grupo Colina dos escritórios


do GEIN. Pôs assim em risco sua carreira, mas seus lucros recentes lhe
permitiram salvá-la. Tomou a decisão quando soube que eram espionados

pelo Colina. De qualquer forma, o estudo já havia sido realizado por ambos.

114
Gustavo Gorriti

A partir desse momento, o extraordinário é a diferença de atitudes


entre dois grupos que tinham estudado o mesmo material, que possuíam
parecidas missões e serviam, pelo menos em teoria, às mesmas
necessidades de segurança do Estado.

O grupo Colina fez um “manual” sobre o Sendero Luminoso, que


lhes valeu uma felicitação e pressões para ascensões por parte do então
presidente Fujimori. Poucos meses depois, no final de 1991, perpetraram
o massacre de Bairros Altos, um dos motivos centrais pelos quais Fujimori
foi extraditado do Chile ao Peru. Meses depois, após o golpe de estado
de 5 de abril de 1992, seqüestraram e assassinaram vários estudantes e
um catedrático da Universidade da Cantuta (entre vários outros
assassinatos), como parte de uma política de represálias e mensagens à
cúpula do Sendero Luminoso.

Por sua vez, o GEIN só disparou duas vezes nesse período, uma
vez para o ar e outra acidentalmente, sem ferir nem bater em ninguém.
Mas, no dia 12 de setembro de 1992, depois de uma longa vigilância a
várias casas, invadiram uma academia de balé em um distrito de classe
média de Lima e, no segundo andar, capturaram a Abimael Guzmán. Esse
foi o golpe mortal que destruiu o Sendero Luminoso.

O paradoxal dessa captura foi que esse grupo de policiais que atuou
dentro de uma impecável legalidade e que teve como norte defender a
democracia, ajudou Fujimori a receber o crédito da captura e alcançasse
com isso um tremendo apoio, o que justificou seu golpe de estado e a
derrocada da democracia.

Ao mesmo tempo, o grupo Colina, de assassinos presumivelmente


seletos, é agora o que pode levar, através da corrente de
responsabilidades surgida de seus crimes, Fujimori e Montesinos a
enfrentarem severas condenações.

Por outro lado, é profundamente significativo e interessante


constatar a diferença que os resultados de dois grupos com a mesma
missão de segurança do Estado, mas com filosofias, doutrinas,
metodologias e práticas completamente diferentes, podem ter, em termos
de eficácia e resultados. Essa comparação é particularmente significativa
em circunstâncias de luta contra o crime organizado e contra o terrorismo.

115
Estratégias policiais perante novas ameaças e
relações Segurança Pública–Defesa Nacional

Bem entendida, como o compreendeu o GEIN, a democracia é


uma causa poderosa que ajuda a desenvolver formas superiores e altamente
eficazes de pesquisa, que cumprem plenamente a função de proteger a
sociedade sem fraturar nem suas leis, nem seus ideais.

Nota
1
Alteração sanguínea caracterizada por grande aumento da quantidade de hemácias circulantes

116
B IA
L ÔM
CO
Relato Policial
RESPONSABILIDADE DA POLÍCIA NACIONAL NA
SEGURANÇA URBANA E RURAL, FRENTE AO
CONFLITO E PÓS-CONFLITO COLOMBIANO
Major Julio Cesar Sánchez Molina*

INTRODUÇÃO

O conflito endêmico que aflige o Estado Colombiano há cinco


décadas chegou a um momento de transição na busca da paz, sob três
cenários diferentes. O primeiro deles, e o mais relevante, é a
desmobilização dos paramilitares; o segundo, a negociação com o ELN; e
o terceiro, a manutenção da ofensiva para neutralizar as Farc, o que coloca
a nosso país em uma dupla situação, pois, se por um lado o conflito
continua, de outro o pós-conflito bate às nossas portas.

Diante dessa situação, a Polícia Nacional da Colômbia assumiu


grandes responsabilidades para o sucesso dos programas de governo
destinados a exaurir o conflito interno. Entretanto, o fez sem esquecer
seu papel e sua missão constitucional e legal: a segurança cidadã. E para
assumi-la com eficiência e responsabilidade nas áreas urbanas e rurais do
território nacional, é necessário que sejam realizados planejamentos e
projeções baseados em políticas, planos e estratégias. Esses, por sua vez,
devem ser derivados de permanente análise do ambiente e da realidade
nacional, que permita encarar, de maneira sólida, profissional e coordenada
com as autoridades administrativas, esses cenários que estão marcando e
marcarão os destinos da nação colombiana.

Nesse sentido, hoje podemos afirmar que a Colômbia tem um


Corpo de Polícia consciente de sua importância no desenvolvimento integral
da nação como gerador de mudanças e transformador de ambientes. Uma
polícia que adota, dentro de sua dinâmica, o conceito de não ser apenas a
instituição encarregada da garantia da segurança e da convivência cidadã,
procurando, além disso, contribuir eficazmente na melhoria das condições
sociais e econômicas de todos os colombianos.

O objetivo do presente documento é informar parte da atividade

*
Oficial da Polícia Nacional de Colômbia, assessor do Escritório de Gestão Institucional da
Direção Geral da Polícia Nacional
117
Responsabilidade da Polícia Nacional na Segurança Urbana e
Rural, frente ao Conflito e Pós-conflito Colombiano

de planejamento realizada para definir as prioridades, imperativos e


principais estratégias que desenvolverá a Polícia Nacional no próximo
quadriênio. Tem como seu ponto de partida a situação atual, derivada dos
avanços e efeitos positivos da Política de Segurança Democrática e da
projeção governamental na busca do “país em paz”, formulado no
documento “Visão Colômbia 2019”.

Nessa perspectiva, na primeira parte será realizada uma


apresentação das características do conflito. Abordar-se-á, a seguir, o
cenário do pós-conflito e sua importância para a instituição.
Posteriormente, serão indicadas as frentes de atenção institucional. O
trabalho será finalizado com as projeções e linhas de ação a serem
desenvolvidos durante o próximo quadriênio, por parte da Polícia
Nacional da Colômbia.

1. O CONFLITO COLOMBIANO:
EVOLUÇÃO E CARACTERÍSTICAS

O principal desafio para fortalecer a democracia e as instituições,


alcançando a segurança de todos os habitantes da Colômbia, é a
superação da violência fratricida das últimas décadas, gerada, na maior
parte, pelos grupos armados ilegais, sejam as FARC, o ELN ou as
autodefesas ilegais.

1.1 FARC – ELN

A partir da década de 80 do século passado, as denominadas


guerrilhas (Farc-ELN) passaram de possuidoras de bases ideológicas de
linha pró-soviética ou maoísta, influenciadas pela incidência da Guerra Fria,
a grupos narco-terroristas que buscam manter seu aparelho armado, para
conservar os ganhos extraordinários provenientes do narcotráfico, do
seqüestro, da extorsão e do saque, outorgando-lhes um orçamento
superior ao de vários países do continente.

Durante a última década, esses grupos orientaram suas táticas


criminais para a prática de homicídios seletivos, massacres, seqüestros,
deslocamentos forçados, ataques indiscriminados com explosivos contra
a população civil, bloqueio de alimentos, impedimento do livre trânsito,

118
Major Julio Cesar Sánchez Molina

assassinato de autoridades democraticamente eleitas, extorsão, saque,


recrutamento forçado e atos contra a população indígena e afro-
colombiana, para manter o negócio do narcotráfico.

No entanto, a nova realidade política pós-Guerra Fria debilitou os


projetos insurgentes e, ao desembocar em práticas terroristas
generalizadas, anularam qualquer discurso ou plataforma política real e
voltada aos interesses da população que diziam defender. A posição da
comunidade internacional a partir do 11 de setembro de 2001, frente à
ameaça derivada do terrorismo, isolou os grupos guerrilheiros
colombianos, transformados e catalogados em organizações terroristas,
como com efeito o são1.

Essa realidade indiscutível tornou possível o desenvolvimento da


política de Defesa e Segurança Democrática, que no último quadriênio se
traduziu em resultados importantes, como a redução dos homicídios a
níveis que o país não possuía há 20 anos. Os massacres, o deslocamento
forçado, o seqüestro e os efeitos sobre a população se reduziram
consideravelmente, a maioria deles acima de 50%, no ultimo quadriênio.
As autoridades se restabeleceram em seus lugares de trabalho, a economia
foi reativada pela segurança e pela confiança que se instaurou no país. Sete
mil pessoas abandonaram esses grupos, voluntária e individualmente, e
aderiram aos programas de reinclusão do Governo. Mais de 80% deles
apresentaram-se voluntariamente à polícia.

Essa situação debilitou a estrutura e as capacidades das Farc e do


ELN. Hoje não existem grupos subversivos consolidados com influência
regional e domínio territorial, já que se fortaleceu a Força Pública e a
Polícia Nacional está presente e presta seu serviço permanente em todos
os municípios do país, contando com o apoio que a maioria do povo
colombiano apresenta às políticas públicas e aos planos do governo.

1.1 AUTODEFESAS ILEGAIS

Da mesma forma, o fenômeno do paramilitarismo irrompe no


cenário do conflito como um terceiro elemento em discórdia. Surgiu no
ano de 1980, quando o Governo Nacional revogou a Lei nº 48 de 1968,
definindo, sob um quadro de pressão internacional, a ilegalidade desses
grupos. A partir deste momento, até 1991, funcionaram como ala militar

119
Responsabilidade da Polícia Nacional na Segurança Urbana e
Rural, frente ao Conflito e Pós-conflito Colombiano

do narcotráfico, de onde obtiveram sua principal fonte de renda. Em 1990,


e depois da queda de Pablo Escobar Gaviria, inicia-se um processo de
reorientação ideológica, com a criação das Autodefesas Camponesas de
Córdoba e Urabá, dirigidas por Fidel Castaño Gil e Carlos Castaño Gil.
Ampliaram sua ação delituosa a muitas áreas do território nacional, graças
aos recursos do narcotráfico, do furto de combustível, do tráfico de
armas, da extorsão e da contribuição de pecuaristas e fazendeiros que
estavam desprotegidos.

Afortunadamente para o povo colombiano, durante o ano de 2003,


as AUC2 assinaram o Acordo de Santa fé de Ralito, por meio do qual se
comprometeram a desmobilizar-se gradualmente, até desaparecer na
atualidade como grupo armado, mediante a desmontagem de 34
estruturas, a incorporação à vida civil de 32.986 homens e mulheres, a
entrega de 12.193 armas longas, 2.733 armas curtas, 1.151 armas de
apoio, 9.105 granadas e 2.070.395 munições, entrando, dessa forma,
em um período de pós-conflito.

2. O PÓS-CONFLITO: UM CENÁRIO EM DESENVOLVIMENTO

A desmobilização individual e coletiva dos grupos de autodefesa e


demais grupos armados ilegais, que superaram os 40 mil homens durante
os últimos anos, colocou a instituição e o país em uma situação de pós-
conflito que afeta a realidade atual e o futuro, a curto e médio prazo. Por
esse motivo, a compreensão das características e dos fenômenos
apresentados em outros países, como a Guatemala, a Nicarágua e El
Salvador, são necessários para a definição das políticas, planos e estratégias
que permitam resistir aos seguintes aspectos que caracterizam esse
cenário, especialmente na sua fase inicial:

2.1 Uma elevada agitação social

Por definição, a superação de um conflito armado deve dar atenção


a problemas e necessidades urgentes dos setores mais carentes da
população, que são, ao mesmo tempo, os mais afetados pelo conflito.
Na medida em que as respostas do governo não satisfaçam essas
demandas sociais, é muito alta a probabilidade que se multipliquem as
mobilizações e os protestos.

120
Major Julio Cesar Sánchez Molina

2.2 Modificação do quadro delituoso e contravencional

Muitos ex-combatentes, não obstante os benefícios que


recebem para sua reinclusão à vida civil, incorrem em condutas
puníveis de caráter nacional ou transnacional, para manter o status
ou a forma de vida que levavam como integrantes do grupo armado.

2.3 O impacto da desconfiança e o sentimento de ódio acumulado.

É gerada na comunidade uma alta desconfiança e um sentimento


de ódio, e inclusive desejos de vingança, entre os afetados diretamente
pela ação dos grupos armados e terroristas, quando é identificada a
figura do ex-combatente a quem se atribui a autoria de um atentado ou
de um delito anterior no contexto do conflito.

Frente a essas características de um cenário de pós-conflito,


representa um verdadeiro desafio, para a reconstrução e a reconciliação,
que seja possível resolver os problemas subjacentes, limitar a
desconfiança e desmontar o ódio e o sentimento de vingança. É um
empreendimento de pedagogia e de atenção oportuna à comunidade,
onde a Polícia Nacional tem uma função importante. Mas a polícia não é
a única instituição chamada a trabalhar nesse sentido, pois se requer o
esforço coletivo de toda a sociedade colombiana, liderada pelas
autoridades, nos diferentes níveis da administração.

No que diz respeito à Instituição Policial, é claro que as redes de


colaboradores, as Escolas de Segurança Cidadã, as Frentes de Segurança
Local e todo o campo de ação do modelo de Polícia Comunitária,
constituem-se em avanços importantes para o pós-conflito, na medida
em que estão sendo alicerçadas as bases para a reconciliação e a
construção do novo país, a partir da cooperação, da tolerância e da
solução de problemas cotidianos que, de outra maneira, poderiam ser
geradores de violência.

3. FRENTES DE RESPONSABILIDADE INSTITUCIONAL3

Para lidar com a questão da violência e dos diferentes problemas


de índole criminal e contravencional nas últimas décadas, a Polícia Nacional
evoluiu de maneira eficiente através de suas direções especializadas,

121
Responsabilidade da Polícia Nacional na Segurança Urbana e
Rural, frente ao Conflito e Pós-conflito Colombiano

que lhe permitiram assumir seu papel contra as organizações narco-


terroristas, sem abandonar, descuidar ou desprezar o serviço básico
policial, razão pela qual a instituição deve atender a três grandes frentes
de responsabilidade:

3.1 A segurança cidadã

Esse é o serviço básico, ou essencial, que atende no que se refere


à vigilância, prevenção, ação contra o delito comum e ao trabalho
comunitário, que caracteriza qualquer corpo de polícia,
independentemente do país em que atue, para garantir um clima de
convivência aceitável, a vigência das normas, o desfrute dos direitos e
o cumprimento dos deveres por parte dos cidadãos.

3.2 O conflito

Junto com as Forças Militares, a polícia atua nos planos e na


política governamental para neutralizar as organizações terroristas
(entendendo que aqueles que a promovem têm uma ativa participação
em atividades delituosas próprias do crime organizado, como o
narcotráfico e o tráfico de armas, entre outros). Esse campo de ação
é prioritário no desenvolvimento da Política de Segurança Democrática.

3.3 O crime transnacional

Essa é uma situação própria da última década, produto da


evolução do delito e da globalização, em que crime organizado,
principalmente associado ao narcotráfico e ao tráfico de armas,
estruturou verdadeiras multinacionais do crime, que se constituem
em um desafio para os corpos de polícia e organismos de pesquisa
criminal.

Esses três âmbitos de responsabilidade materializam-se em uma


diversidade de serviços e atuações, tornando complexa a função policial
e a capacitação dos funcionários, pois devem atuar, ao mesmo tempo,
no serviço básico da prevenção e em tarefas de choque, a cargo de
grupos elite, da mesma forma que em procedimentos em nível nacional
e internacional, frente às organizações delituosas que transcendem as

fronteiras do país.

122
Major Julio Cesar Sánchez Molina

4. PROJEÇÕES E LINHAS DE AÇÃO A SEREM DESENVOLVIDOS


DURANTE O PRÓXIMO QUADRIÊNIO

4.1 VISÃO COLÔMBIA 2019

O Departamento Nacional de Planejamento, em cumprimento às


políticas de governo, desenvolveu um trabalho prospectivo de
planejamento, denominado Visão Colômbia II Centenário: 2019, cujo
objetivo é servir como ponto de partida para pensar o país que todos os
colombianos desejam ter para o momento da comemoração do segundo
centenário de vida política independente, a ser celebrado no dia 7 de
agosto de 2019.

Nesse documento apresenta-se uma completa radiografia sobre


aspectos do passado, sobre perspectivas futuras e sobre o que deve ser
realizado para obter os melhores resultados no período compreendido
entre os anos de 2005 e 2019, no qual se projeta um país sustentado nos
princípios de liberdade, tolerância, fraternidade, inclusão e igualdade de
oportunidades.

4.1.1 Os objetivos

Os quatro grandes objetivos da Colômbia até o ano 2019 devem ser:


Primeiro: uma economia eficiente, que garanta um
maior bem-estar social;
Segundo: ter uma sociedade mais igualitária e solidária;
Terceiro: contar com um Estado eficiente, a serviço
dos cidadãos;
Quarto: ser uma sociedade de cidadãos livres e
responsáveis.

4.1.2 Um país em paz

Para o desenvolvimento do quarto grande objetivo, que é o de ser


uma sociedade de cidadãos livres e responsáveis, há quatro estratégias:
ter um país em paz, uma sociedade melhor informada, uma democracia
consolidada e uma justiça eficiente.

123
Responsabilidade da Polícia Nacional na Segurança Urbana e
Rural, frente ao Conflito e Pós-conflito Colombiano

Com a finalidade de ter um país em paz, devem ser alcançados


avanços substanciais nos seguintes aspectos, relacionados com a Polícia
Nacional: ampliar a cobertura do efetivo da força policial, superar os
problemas de direitos humanos e eliminar as atividades relacionadas com
o narcotráfico.

4.2 PRIORIDADES E LINHAS DE AÇÃO A SEREM DESENVOLVIDOS


PELA POLÍCIA NACIONAL PARA O QUADRIÊNIO 4

A partir da prospectiva governamental para 2019, das necessidades


do pós-conflito e da atenção permanente dos objetivos da polícia a longo
prazo, projetou-se um aumento adicional do efetivo em 20 mil homens
para o próximo quadriênio, o que permitirá o fortalecimento da vigilância
urbana e rural, bem como o aumento das unidades dedicadas à inteligência
e à investigação criminal nacional e internacional.

4.2.1 NO ÂMBITO URBANO

Frente à responsabilidade da instituição nas áreas urbanas do


território nacional, foram desenvolvidas, e se encontram em construção,
várias estratégias, modelos e melhores práticas sobre políticas públicas
de convivência e segurança cidadã. Destinam-se à prevenção, observação
e controle de comportamentos geradores de violência e delinqüência,
como conseqüência do pós-conflito e do acelerado crescimento da
população nas capitais, razão pela qual se determinou a seguinte linha de
ação e prioridades:

OBJETIVO PRIORIDADES A SEREM


ESTRATÉGICO DESENVOVIDAS
Implementar a Direção de Segurança
ASSEGURAR O
Cidadã
SERVIÇO DE POLÍCIA
NO TERRITÓRIO Fortalecer a segurança cidadã como base
NACIONAL fundamental da missão institucional
Implementar o modelo de Vigilância
Comunitária
Implementar a vigilância por quadrantes
nas principais cidades do país

124
Major Julio Cesar Sánchez Molina

Otimizar a proteção das áreas produtivas


e infra-estrutura de vias, portos e
aeroportos
Fortalecer a polícia especial (Polícia de
Menores, de Trânsito, Ambiental e
Ecológica)
Aumentar a cobertura da rede viária
nacional primária
Assumir o controle do trânsito urbano nas
capitais

CONSOLIDAR UM Posicionar como política de Estado a


AMBIENTE DE Gestão Territorial da Segurança Cidadã,
CONVIVÊNCIA E através do programa Departamentos e
CONFIANÇA Municípios Seguros (DMS )
CIDADÃ, MEDIANTE
Promover a participação efetiva da
A INTEGRAÇÃO DE
cidadania nos processos de convivência e
COMUNIDADE,
segurança cidadã (frentes de segurança,
AUTORIDADES E
escolas de segurança, redes comunitárias
POLÍCIA
viárias, redes de apoio e comunicações,
redes de apoio e solidariedade e redes de
colaboradores)
Fortalecer a ação coordenada entre polícia
e vigilância privada para a melhoria dos
níveis de segurança

CONSOLIDAR A Reduzir os índices de criminalidade que


AÇÃO POLICIAL afetam a Segurança Cidadã
PARA NEUTRALIZAR Reduzir os índices de criminalidade que
A DELINQÜÊNCIA afetam a Segurança Democrática
COMUM E
ORGANIZADA E Planejar, desenvolver e ajustar a matriz
CONTRIBUIR PARA operacional para a vigência 2007 - 2010
ELIMINAR OS
GRUPOS ARMADOS
ILEGAIS

125
Responsabilidade da Polícia Nacional na Segurança Urbana e
Rural, frente ao Conflito e Pós-conflito Colombiano

4.1.1 NO ÂMBITO RURAL

A visão de Estado que se confere ao ano 2019, segundo centenário


da independência nacional, projeta um país com ênfase no aproveitamento
das potencialidades do campo e com um setor agropecuário que será um
motor do crescimento, o qual requer a presença ativa e permanente do
Estado. Para isso, a Polícia Nacional contribuirá com a prestação de um
adequado serviço nas áreas rurais, que estará dirigido à proteção da
atividade agrária e à formação e consolidação do tecido social nessas
comunidades, mediante um trabalho preventivo e de assistência ao
camponês, desenvolvido pela Vigilância Comunitária Rural.

OBJETIVO
ESTRATÉGICO PRIORIDADES A SEREM DESENVOLVIDAS

CONSOLIDAR O Implementar a direção dos Carabineros e


SERVIÇO DE Segurança Rural
POLÍCIA NAS Ampliar a cobertura e consolidar o serviço de
ÁREAS RURAIS polícia em Corregedorias, Inspeções, Zonas
DO TERRITÓRIO Estratégicas, Zonas de Fronteira, Reservas e
NACIONAL Parques Naturais
Ampliar os grupos operacionais e especialidades
que atuam em áreas rurais
Proporcionar segurança à população camponesa
Atender as zonas de desmobilização
Confrontar facções criminais

4.1.1 CAMPOS TRANSVERSAIS DE INTERESSE QUE CONTRIBUEM


PARA A SEGURANÇA URBANA E RURAL

Fortalecimento do serviço de inteligência, especialmente em nível


regional, para aumentar a capacidade de coleta de informação e atender
de forma mais oportuna às necessidades das Direções Operacionais e
dos Comandos de Departamento.

126
Major Julio Cesar Sánchez Molina

Fortalecimento da Polícia Judiciária como fator essencial não só da


luta contra a criminalidade transnacional, mas também em nível nacional,
frente à implementação do novo Sistema Penal Acusatório.

Ação frontal contra o crime organizado. A Polícia Nacional mantém


a liderança que lhe caracterizou nas últimas décadas na luta contra o
narcotráfico. Nesse sentido, aumentam as ações contra as organizações
emergentes do narcotráfico. As normas de extinção de domínio foram
aplicadas de forma efetiva, mas é necessário um esforço contundente
que permita afetar de maneira estrutural essa problemática e os grupos
narco-terroristas que se valem dessa fonte de financiamento para seguir
em conflito. E para alcançar tal intento, devem ser desenvolvidas as
seguintes prioridades:

OBJETIVO
ESTRATÉGICO PRIORIDADES A SEREM DESENVOLVIDAS

AÇÕES Atacar o narcotráfico em todas as suas


DEFINITIVAS manifestações
CONTRA O Eliminar de maneira definitiva os cultivos ilícitos.
NARCOTRÁFICO
Destruir a infra-estrutura de laboratórios e pistas
Incrementar as operações de interdição,
erradicação e prevenção
Atacar o comércio internacional de drogas
mediante coordenação e operações
transnacionais.
Incrementar as ações de extinção de domínio
aos bens oriundos do narcotráfico.
Eliminar 100% dos estabelecimentos e locais de
distribuição de drogas ilícitas em menor escala
(vendedores a varejo, andarilhos e outros).
Desmembrar as organizações dedicadas ao
narcotráfico.

127
Responsabilidade da Polícia Nacional na Segurança Urbana e
Rural, frente ao Conflito e Pós-conflito Colombiano

Notas
1
Mayor CIRO CARVAJAL CARVAJAL, La Policía Nacional en el Post- Conflicto, artículo Revista de
Criminalidad Policía Nacional de Colombia, 2004 / artigo Revista de Criminalidade. Polícia
Nacional da Colômbia.
2
Autodefesas Unidas da Colômbia
3
MY. MARTHA FRANCISCA ALVAREZ BUITRAGO, MY. CIRO CARVAJAL CARVAJAL, MY. LUCY
MARIELA LEMUS MURCIA, Ensaio “Cambio Cultural de la Policía en el Postconflicto”, Escola de
Estudos Superiores de Polícia, Especialização em segurança, 2005.
4
Projeto Plano Estratégico Institucional 2007-2010, Polícia Nacional.

128
C O
É XI
M
Relato Policial
TRÁFICO DE SERES HUMANOS
Juan Sonoqui Martinez *

TRÁFICO DE PESSOAS MENORES DE IDADE.

Campanha para funcionários dos postos policiais, com a qual se


pretende informar sobre os problemas que estão afetando muitas
crianças e adolescentes que atravessam as fronteiras de nosso país: o
tráfico e a exploração sexual comercial de pessoas menores de idade.

Como parte desta campanha, tem-se elaborado uma série de


informações dirigidas a: agentes de migração, grupos Beta, Polícia
Ministerial, Polícia Municipal, Polícia Federal Preventiva e
agentes do Ministério Público, com a finalidade de contar com a
colaboração na proteção das pessoas menores de idade que entram e
saem do país.

Embora seja certo que uma maioria das pessoas menores de 18


anos que atravessam as fronteiras, o façam em companhia de suas
famílias por motivos turísticos, de trabalho ou buscando melhores
condições de vida, também é certo que levam-se muitas outras crianças
e adolescentes de um país a outro com o propósito de explorá-los,
sendo, desta forma, vítimas do crime de tráfico de pessoas.

As pessoas que cometem este crime chamam-se “traficantes”1, e se


valem de muitos meios para captar as vítimas, como, por exemplo: a ameaça,
o abuso da força, o seqüestro, o fraude, o engano e o abuso de poder.

No caso de pessoas menores de idade, embora nenhum destes


meios seja utilizado diretamente, apenas o fato de levá-las de um lugar
a outro com fins de exploração é considerado tráfico de pessoas. Em
muitos casos, utiliza-se o pagamento ou outorgar benefícios para
conseguir o consentimento ou autorização da pessoa que exerce o
controle sobre a criança ou adolescente (por exemplo, seu pai ou sua
mãe).

Independentemente do meio utilizado para captar a criança ou


adolescente ou de contar com seu consentimento para ser trasladado(a)
*
Direção Geral de Segurança Pública e Trânsito Municipal na Cidade do México

129
Tráfico de seres humanos

a outra região ou país, os propósitos de exploração a convertem em


uma atividade criminosa que viola os direitos das pessoas menores de
idade que têm sido vítimas dela.

Os propósitos da exploração do tráfico de pessoas podem se


manifestar em quaisquer das seguintes formas:
· Exploração sexual comercial
· Exploração laboral
· Venda e adoção ilegal
· Extração de órgãos
· Escravidão ou qualquer prática semelhante à
escravidão
· Matrimônios servis

POR QUE EXISTE O TRÁFICO DE PESSOAS?

Causas:
· o desenvolvimento econômico desigual de certas
regiões e países;
· a procura de mão de obra barata ou dócil para que
realize trabalhos perigosos ou em condições inumanas;
· o aumento da indústria baseada na venda de sexo;
· a existência de pessoas intermediárias e de redes
muito organizadas, que têm feito desta modalidade de
tráfico uma atividade que proporciona múltiplos ganhos
econômicos;
· a inexistência ou a falta de sanções penais adequadas
para os traficantes.

Fatores de risco:
· pelas condições de pobreza extrema em que vivem
muitas pessoas e a falta de políticas sociais dirigidas a toda

130
Juan Sonoqui Martinez

a população;

· pelos conflitos políticos e guerras que vivem alguns


países;

· pelas poucas oportunidades educativas;

· pela falta de proteção que vivenciam muitas pessoas


menores de idade por parte de suas famílias,
comunidades e instituições públicas;

· pelos desastres naturais, que promovem a migração;

· pelo abuso e a violência que experimentam em seus


lares.

Os traficantes se aproveitam das situações negativas (fatores de


risco) que afetam a muitas crianças e adolescentes, para enganá-los(as)
oferecendo melhores condições de vida em outra região ou país. No
entanto, quando as vítimas chegam a seu destino, se dão conta da
situação de exploração e abuso na qual tem sido envolvidas.

Evidentemente, as pessoas menores de idade que tem sido


vítimas de tráfioco de pessoas se enfrentam com uma série de
conseqüências negativas em suas vidas, dentre as quais podemos citar:
o afastamento de suas famílias e escolas, o encarceramento ou
isolamento, o abuso físico, emocional e sexual, os quais danificam sua
integridade como pessoas, ou que mesmo podem provocar sua morte.

Devido às conseqüências tão severas que vivem as vítimas de


trata, queremos detectar possíveis vítimas e tratantes e, por sua vez,
evitar que mais crianças e adolescentes sejam submetidos(as) a
situações de exploração. Para poder realizar esta tarefa, fazemos uma
chamada a funcionários(as) como você, já que com seu trabalho, você
pode colaborar nesta missão:
· protegendo as pessoas menores de idade, através
do controle efetivo de suas entradas e saídas do país;
· denunciando os atos criminosos que cometem as
pessoas tratantes, com o fim de possibilitar sua sanção.

131
Tráfico de seres humanos

TRÁFICO DE PESSOAS COM FINS DE EXPLORAÇÃO SEXUAL


COMERCIAL
· A utilização de uma criança ou adolescente para
manter relações ou realizar atos sexuais.
· A utilização de uma pessoa menor de idade para
material pornográfico infantil: fotos, vídeos, filmes, etc.
· A utilização de crianças ou adolescentes em
espetáculos sexuais públicos ou privados, que se
realizam em clubes noturnos, festas, entre outros.

Modalidades ou formas em que se dá a EXPLORAÇÃO SEXUAL


COMERCIAL:
· exploração por parte de pessoas locais: pessoas do
mesmo país (podem ser nativass ou residentes);
· exploração por turistas sexuais: pessoas estrangeiras
ou turistas que aproveitam sua visita ao país para
realizar atividades sexuais comerciais com pessoas
menores de idade;
· tráfico de pessoas: que ocorre quando uma pessoa
menor de idade é trasladada de uma região a outra, ou
de um país a outro, com o fim de explorá-la
sexualmente;
· distribuição de pornografia infantil através da Internet
ou de qualquer outro meio.

Os responsáveis diretos ou culpados da exploração sexual comercial


são as pessoas exploradoras, dentre as que se encontram:
· “clientes-exploradores”: são as pessoas que pagam
para realizar atividades sexuais com crianças e
adolescentes, podem ser de qualquer nacionalidade,
idade, profissão e classe social;
· proxenetas;
· intermediários;

132
Juan Sonoqui Martinez

· pessoas indiretamente.

O certo é que as pessoas exploradoras se aproveitam das


condições de pobreza, abuso, violência intra-familiar, poucas
oportunidades educacionais, marginalização e exclusão social em que
vivem muitas crianças e adolescentes, para submetê-los(as) a situações
de exploração.

Não é verdade que as vítimas de exploração sexual e comercial…


· estejam nessa atividade porque querem, porque
gostem e que se não fosse assim fariam outra coisa;
· levem uma vida “fácil e alegre”;
· ganhem muito dinheiro;
· sejam pessoas perversas, promiscuas e sedutoras.

É verdade que...
· as vítimas não escolheram essa atividade, são
envolvidas por pessoas inescrupulosas, que se
aproveitam de suas necessidades econômicas;
· nenhuma pessoa menor de idade pode consentir ou
autorizar sua exploração;
· nenhuma pessoa gosta de ser abusada;
· a maior parte do dinheiro que recebem é deixada
para seus proxenetas e para as pessoas intermediárias;
· as vítimas não perdem seus valores morais,
simplesmente vêem desrespeitados seus direitos
humanos.

As pessoas menores de idade que são utilizadas na exploração sexual


comercial sofrem muitas conseqüências negativas em suas vidas, tais como:
gravidez não desejada, infecções transmitidfas sexualmente, HIV-AIDS,
agressões físicas e emocionais, envolvimento com drogas, humilhações,
baixa auto-estima, sentem-se culpados pelo que lhes acontece e não
encontram uma saída para o problema.

133
Tráfico de seres humanos

DIFERENÇAS ENTRE O TRÁFICO ILÍCITO DE MIGRANTES E O


TRÁFICO DE PESSOAS MENORES DE IDADE
· Tráfico de pessoas menores de idade
· Tráfico ilícito de imigrantes

Tráfico de pessoas:
· os deslocamentos podem ser legais ou ilegais;
· utiliza-se documentos originais ou falsos;
· a pessoa tratante busca ganhar através do traslado de
uma pessoa com fins de exploração;
· obriga-se ou engana-se a vítima, não há consentimento;
· restringe-se ou limita-se o movimento da vítima com
o fim de submetê-la a exploração;
· o bem comercial é a pessoa;
· comete-se um crime contra a pessoa vítima de trata.

Tráfico ilícito de imigrantes:


· pode-se utilizar ou não documentos falsos;
· supõe atravessar irregularmente as fronteiras, os
deslocamentos podem ser feitos por lugares não
autorizados;
· o traficante busca ganhar dinheiro ou algum outro
benefício possibilitando que uma pessoa atravesse a
fronteira sem os documentos e procedimentos
requeridos por lei;
· o traslado é voluntário, há consentimento da vítima;
· não há restrição de movimentos (na maioria dos casos
o tráfico termina ao se atravessar a fronteira);
· o bem comercial é o serviço de atravessar a fronteira;
· comete-se um delito contra o Estado.

134
Juan Sonoqui Martinez

Aspectos em comum do Tráfico de Pessoas e do Tráfico Ilícito de


Imigrantes:
· são atividades criminosas de acordo com os
instrumentos de direito internacional;
· são cometidos por grupos muito organizados de
traficantes;
· envolvem um comércio com seres humanos.

Pessoas que intervêm em uma situação de Tráfico de Pessoas e


Tráfico Ilícito de imigrantes

No Tráfico de Pessoas e no Tráfico Ilícito de Imigrantes há


intervenção de muitas pessoas, que formam redes e grupos criminosos
muito organizados, compostos por:
· uma pessoa recrutadora;
· uma pessoa responsável por transladar a criança ou
adolescente ou por lhe facilitar o transporte;
· as pessoas exploradoras.

O PAPEL DOS CORPOS POLICIAIS DIANTE DO TRÁFICO E A


EXPLORAÇÃO SEXUAL COMERCIAL DE PESSOAS MENORES DE
IDADE

Situações para prestar atenção:

Os exemplos que se descrevem a seguir são indicadores de uma


possível situação de tráfico de pessoas, de imigração ilegal ou exploração
sexual comercial.
· a criança ou adolescente viaja;
· apresenta documentos falsos;
· a criança ou adolescente se mostra temeroso;
· a pessoa que tenta atravessar fronteira;

135
Tráfico de seres humanos

· ao realizar a revista de um meio de transporte;


· em um caminhão, ônibus, carro, ao fazer a revista
da bagagem, apreende-se material que contem
pornografia infantil ou adolescente (revistas, vídeos,
entre outros).

Detecção de uma situação de tráfico de pessoas

Ao detectar uma ou várias das situações anteriores, se houver


uma pessoa menor de idade envolvida, recomenda-se fazer uma pequena
entrevista com a criança ou adolescente e com a pessoa que a
acompanha.

Se for detectado um caso de pornografia infantil ou adolescente


ou se detecta uma pessoa que está sendo buscada pela INTERPOL,
imediatamente se poderá proceder a apresentar a denúncia diante das
autoridades do Ministério Público de forma tal que iniciem o processo
de investigação.

Entrevista com a pessoa menor de idade:


· deve ser entrevistada;
· buscar uma sala;
· apresente-se como um agente policial;
· esclareça que não deve se atemorizar;
· indague;
· evite advertir;
· agradeça sua colaboração ao outorgar a informação.

Entrevista com a pessoa que acompanha ou translada a criança ou


adolescente:
· indague.

Ao conversar com a pessoa, que fazer no caso de detectar uma


situação de tráfico ou de exploração sexual comercial?

136
Juan Sonoqui Martinez

· informe sobre a situação encontrada a seu chefe;


· comunique-se imediatamente com a instituição
encarregada, garanta segurança e proteção;
· escute a opinião da vítima e mantenha a mesma
informada;
· leve em conta que é uma pessoa menor de idade;
· se em um registro ou sistema de informação, a pessoa
adulta aparece como procurada por proxenetismo,
tráfico, ou abuso sexual em outro país, comunique-se
imediatamente com Interpol.

Algumas outras medidas que podem tomar os corpos policiais:


· estabelecer registros ou sistemas de informação;
· elaborar registros de crianças e adolescentes
perdidos. Botar as lâminas ou materiais de informação
(advertência);
· incluir nos formulários de migração;
· definir e acordar, enquanto repartição, alguns
procedimentos.

CÓDIGO PENAL FEDERAL.


Corrupção de menores e incapazes. Pornografia
infantil e prostituição sexual de menores.
Artigo 201.- Ao autor deste crime, lhe será aplicada a
pena de cinco a dez anos de prisão e de quinhentos a
dois mil dias de multa.
TRÁFICO DE PESSOAS E LENOCÍNIO.
Artigo 206.- O lenocínio será sancionado com prisão
de dois a nove anos e de cinqüenta a quinhentos dias
multa.

137
Tráfico de seres humanos

CÓDIGO PENAL DO ESTADO DO MÉXICO.


CORRUPÇÃO DE MENORES.
Artigo 205.- Será imposta uma pena de cinco a dez
anos de prisão e quinhentos a dois mil dias de multa.
LENOCÍNIO E TRÁFICO DE PESSOAS.
Artigo 209 – Será imposta uma pena de dois a cinco
anos de prisão e de cinqüenta a trezentos dias de multa.
TRAFICO DE MENORES.
Artigo 219.- Será imposta uma pena de três a dez anos
de prisão e de cinqüenta a quatrocentos dias de multa.
EXPLORAÇÃO DE PESSOAS.
Artigo 220.- Será imposta uma pena de um a três
anos de prisão e trinta a cem dias de multa.

138
L A
UE
N EZ
Relato Policial VE
CASO: EVITAR UM LINCHAMENTO. UM ASSUNTO
DE CONFIANÇA
Delegado Jorge Sará*

INTRODUÇÃO

Para o Instituto Autônomo Polícia do Município de San Francisco,


coloquialmente conhecido como POLISUR, o conceito de Comunidade é
assumido como um Ecossistema Social.

Por que um Ecossistema Social?

Simplesmente porque é um meio onde convivem os cidadãos em


nossa comunidade, constituída pelos cidadãos que a habitam com
diversidade de interesses e requerimentos, interagindo conjuntamente
com a policía em função de uma melhor qualidade de vida para os cidadãos.

UM POUCO DE HISTÓRIA.

Quando, em 1996, foi criado o Município de San Francisco, no


Estado Zulia, Oeste da Venezuela, existia uma comunidade dispersa de
uns 300 mil habitantes em uma superfície de 164,7 Km², que subsistia
mediante uma agricultura incipiente, baseada na produção de legumes e
verduras em caniçadas e canteiros.

Simultaneamente à criação do Município nasceu também, em 14 de


dezembro de 1996, o Instituto Autônomo Polícia do Município de San
Francisco (POLISUR). No início, dispúnhamos unicamente de duas
patrulhas para oferecer segurança a este povoado, em meio a natural
desconfiança da mesma com relação à Polícia, já que recebia a adequada
capacidade de resposta.

Em virtude de que tínhamos que depender como município de


outras corporações policiais para cobrir todos os aspectos operacionais,
o Delegado Biagio Parisi – Diretor-Fundador do Polisur – decidiu formar
uma polícia integral que pudesse cobrir os aspectos de prevenção de

* Comissário, Chefe da Divisão de Patrulhamento, Policia Municipal de San Francisco. Maracaibo.


Estado Zulia
139
Caso: Evitar um linchamento. Um assunto de confiança

delito, segurança em geral, aparato e viação, para não depender de outras


corporações especializadas em nossas operações, simplificando e agilizando
desta forma os procedimentos. Precisamente nisto radicava a urgência em
criar esse oficial integral. Esta nova concepção, ao ampliar as faculdades e
competências de nossos recursos humanos, nos levou ao que poderíamos
chamar de globalização das atividades operacionais da polícia.

Devo indicar que – previamente – foram estabelecidos compromissos


com as comunidades, com o objetivo de que se integrassem às atividades
de nossa policía. Esta forma de participação foi a base do que lhes defini há
pouco como Ecossistema Social.

Feito este breve, mas necessário marco introdutório, eu vou lhes


apresentar o caso descrito no resumo que aparece no trabalho e a
metodologia operacional que foi seguida para resolvê-lo com sucesso.

É apresentado um caso onde é mostrada uma estreita interação entre


a Polícia e a Comunidade. Isto foi possível devido a três aspectos
fundamentais: confiança, credibilidade e respeito, fatores que permitem uma
retroalimentação mútua, chave para os aspectos operacionais.

Especificamente, trata-se de uma pessoa que tinha incorrido em uma


violação e tinha se refugiado em uma moradia, já que seria linchado pela
Comunidade. Esta tratou de fazer pressão ao querer incendiar o imóvel
para obrigar o estuprador a sair e assim poder fazer justiça com as próprias
mãos, reação gerada pela perda de credibilidade do cidadão diante do sistema
judicial existente.

Referimo-nos ao caso em que agiram três oficiais, os quais, utilizando


o diálogo como um dos níveis mais baixos na aplicação do uso progressivo
de força, persuadiram um grupo de 20 a 30 pessoas, e conseguiram resgatar
o infrator e convencer a Comunidade de que seria feita a justiça que o caso
merecia. Esta confiança foi factível graças ao que nós chamamos familiarmente
de fatores de sucesso do POLISUR e que abarcam cinco itens fundamentais,
que por sua vez foram subdivididos.

GERAR CONFIANÇA

· uma gestão incorruptível e acessível.


· capacidade de resposta rápida.

140
Delegado Jorge Sara

· comunicação transparente.
· coerência na ação

EDUCANDO
· cursos curtos ou oficinas de interesse para a
comunidade e para a polícia.

ATUANDO
· estrito apego à lei.
· uso adequado da força
· cumprir os compromissos assumidos
· discricionariedade a favor da comunidade
· proteção irrestrita à fonte de informação.

FORMAÇÃO POLICIAL
· alto nível de profissionalismo
· clara política de uso da força
· valores éticos e comportamentos que os qualificam
como modeladores de conduta.

PROCEDIMENTO
· contatos com grupos de vizinhos organizados
· instrução em técnicas básicas de inteligência
· elaboração de planos conjuntos de trabalho

Os aspectos anteriores foram complementados com: 1) Um efetivo


sistema de patrulhamento, que permite uma rápida capacidade de resposta
frente a qualquer denúncia; 2) Confiança da polícia em relação à comunidade
e vice-versa, sendo estabelecida uma verdadeira interação, onde ambas
as partes participam como atores, e 3) A imagem de que goza o Polisur
como garantidor dos direitos e garantias dos cidadãos. Tudo isso como

141
Caso: Evitar um linchamento. Um assunto de confiança

resultado de uma série de fatores gerados pela política aberta que o Polisur
aplica, baseada em seu lema “Para nós primeiro vem você”.

Tudo o que foi apresentado anteriormente se materializou porque


a aplicação do Espectro de Uso Progressivo de Força nasceu na Venezuela
com o Instituto Autônomo Polícia do Município San Francisco (POLISUR)
e outros corpos policiais copiaram nosso modelo, mas este não é praticado
com o nível de sistematização que prevaleceu em nossa polícia.

Outro aspecto muito significativo é o acompanhamento que o


supervisor faz de cada procedimento mediante interrogatório de
testemunhas, vizinhos, observadores e outros atores envolvidos, com
objetivo de determinar se a comissão encarregada do caso aplicou o nível
de força requerido que essa circunstância específica merecia.

Por outro lado, nossos procedimentos sempre estão ajustados a


um absoluto respeito aos direitos humanos, aspecto importante que
devem levar em consideração todos os nossos oficiais em seus
procedimentos operacionais, independentemente de a pessoa ser
delinqüente.

Isto nos obriga a garantir ao infrator a sua integridade física. Devido


às ações que a comunidade podia tomar contra ele, foi fundamental o uso
progressivo da força, que no caso que estamos apresentando foi aplicado
em um de seus níveis mais baixos, especificamente o diálogo que ocupa o
segundo entre os cinco que integram o mencionado espectro.

O Polisur sempre esteve identificada com a sua comunidade e, neste


sentido, podemos dizer que somos uma polícia comunitária, onde existe
uma retroalimentação informativa permanente entre ambas, que permitiu
uma capacidade de resposta oportuna e eficaz, e esta confluência de
objetivos mútuos foi a base para o nosso sucesso operacional e - de certa
forma – para alcançar nossa Missão e Visão, além de preservar a qualidade
de vida desse ecossistema social sobre o qual falamos no começo.

142
I LE
CH
Artigo
DILEMAS DA REFORMA POLICIAL NA AMÉRICA
LATINA
Lucía Dammert*

Em um continente marcado pelo aumento da violência e da


criminalidade, as polícias adquirem um papel cada vez mais central na
governabilidade dos países. Paradoxalmente, o retorno da democracia
tem gerado uma maior dependência governamental para as polícias,
principal instituição encarregada da ordem e da estabilidade pública. No
entanto, esse papel principal não tem sido complementado por uma
mudança institucional que leve a maiores níveis de profissionalização e
eficácia. Ao contrário, a utilização excessiva da força, a corrupção e a
participação em atos criminosos são elementos do cotidiano de
praticamente todos os países da região.

Este contexto tem gerado a implantação de diversas iniciativas de


reforma que buscam não só gerar impactos sobre a gestão, mas também
sobre a doutrina e a cultura institucional. Além disso, na maioria dos casos,
as experiências são incipientes e os resultados variados e, inclusive,
contraditórios.

Ora, os problemas da polícia interpelam a sociedade como um todo


e a qualidade do Estado democrático em seu conjunto. Dessa maneira,
não se pode analisar as polícias como entidades isoladas do resto do
aparato governamental, mas é necessário reconhecer os desafios que
impõe para o exercício democrático poder confrontá-las enquanto política
de Estado. Dessa forma, corresponde ao Estado oferecer os pressupostos
necessários para que as instituições policiais funcionem com qualidade,
bem como desenhar os processos de capacitação dos corpos policiais
com ênfase no Estado de Direito, incentivando uma doutrina e gestão
policial modernas. Da mesma maneira, o Estado deve estabelecer
mecanismos de pesos e contrapesos mútuos para limitar o uso da força,
a violação aos direitos humanos, a ineficiência e inclusive a ineficácia da
ação policial.

O presente artigo tem como objetivo sistematizar as diversas


experiências de reforma desenvolvidas na região nas últimas décadas. Neste
processo, busca-se identificar os elementos que têm levado a processos
*Diretora do Programa Segurança e Cidadania – FLACSO Chile

143
Dilemas da Reforma Policial na América Latina

erráticos de implantação, bem como aqueles elementos que servem de


base para a geração de mudanças duráveis.

O texto está dividido em 6 partes. A primeira delas analisa o


contexto geral de segurança na América Latina, o qual nos permitirá
compreender as mudanças institucionais nas polícias e seus resultados.
Em um segundo momento, descreve-se, em linhas gerais, as principais
características das instituições policiais da região para, em seguida,
aprofundar na principal resposta pública diante dos desafios que a América
Latina enfrenta em matéria de segurança, isto é, as reformas policiais.
Posteriormente, revisa-se as experiências internacionais em matéria de
reformas e seu impacto na América Latina e no Caribe. Seguidamente, se
dá passo à caracterização e reflexão crítica das mudanças institucionais e
reformas policiais na região e, finalmente, apresenta-se alguns avanços e
retrocessos passíveis de serem visualizados neste processo. .

1. VIOLÊNCIAS, CRIME E TEMOR NA AMÉRICA LATINA

Na atualidade, a violência é um dos problemas sociais mais


importantes, porém é também um dos menos entendidos. Talvez um dos
motivos dessa débil correspondência esteja basedo no fato da
compreensão sobre a mesma se gerar através da imprensa massiva, que
muitas vezes forma uma imagem distorcida da realidade, bem como propõe
soluções que eventualmente servem de muito pouco para a redução da
taxa de criminalidade. É evidente que as perspectivas teóricas utilizadas
para analisar esse fenômeno proporcionam uma imagem sobre o que é a
violência e como atuar diante dela. Lamentavelmente, o senso comum
está intimamente relacionado a perspectivas teóricas que enfatizam o
componente individual do fenômeno violento, bem como as saídas
repressivas, sem discutir a origem social do mesmo.

Embora a violência seja um fenômeno complexo, que cobre uma


variedade de tipos e categorias que tornam impossível a formulação de
uma teoria que explique todas as formas de conduta violenta, é necessário
explicitar o esvaziamento do conteúdo das principais categorias
relacionadas a esta problemática. Quer dizer, a presença de enfoques
diversos e especializados sobre a violência tem gerado um uso inadequado
dessas categorias. Tende-se a confundir conflito com violência, violência

144
Lucía Dammert

com criminalidade e criminalidade com sensação de insegurança. Essa falta


de clareza na utilização dos termos gera sérias conseqüências na análise
social e tem implicações relevantes na formulação e implementação de
políticas públicas.

A análise da violência urbana requer entender as cidades enquanto


um campo de relações e de conflito social permanente devido à diversidade
de pessoas e interesses que a habitam (Carrión, 1998). Dessa forma, é
importante ressaltar que o conflito é consubstancial com a cidade e,
portanto, propor a desaparição do conflito só pode estar baseado na
imposição autoritária de um único olhar e interpretação da realidade. Assim,
embora a cidade seja um território onde os conflitos se potencializam,
isto não implica que seja também um território onde a violência deva se
reproduzir, já que os conflitos nem sempre têm como conseqüência
respostas violentas. Caso partamos de uma definição de violência como o
“uso ou ameaça de uso da força física ou psicológica com intenção de
provocar dano de maneira recorrente ou como forma de resolver conflitos”
(Arriaga, 1999), nos encontramos diante de uma multiplicidade de
violências que podem ser agrupadas conforme diversos fatores, dentre
os quais destaca-se o espaço geográfico onde se realizam (Búvinic e
Morrison, 1999).

Esta última caracterização se torna central na América Latina,


continente com um alto grau de urbanização e um aumento explosivo da
violência em praticamente todas suas dimensões. Especificamente na
Argentina, a alta percentagem de urbanização, a constante exposição de
atos violentos na imprensa massiva (Concha, 1994), a evidente decadência
das condições de vida de uma proporção importante de seus habitantes e
o crescimento sustentado das taxas de criminalidade são fatores que tem
colocado a problemática da violência urbana no centro da discussão política.
De forma notável, a violência urbana é equiparada quase diretamente com
a criminalidade, mais especificamente com os crimes contra a propriedade,
que representam mais de 70 % dos crimes cometidos no Chile inteiro,
por exemplo (Ministério do Interior, 2002).

A complexidade do assunto e suas diversas dimensões têm


dificultado o desenvolvimento de diagnósticos e análises que permitam
um olhar integral sobre o horizonte de problemas existentes. No entanto,
podem ser ressaltadas algumas características na América Latina: é um

145
Dilemas da Reforma Policial na América Latina

fenômeno novo do ponto de vista de sua magnitude; tem se diversificado


pelo fato de incluir novas modalidades, como o tráfico de drogas, o
seqüestro relâmpago e as gangues de rua; inclui a emergência de novos
atores que superam a criminalidade comum, como os sicários (matadores)
na Colômbia; e penetra em todos os domínios da vida urbana.

A década de 90 marca a aparição da criminalidade como principal


problemática urbana na América Latina. Embora a maioria dos países tenha
vivido durante os anos 80 processos violentos, estes estiveram vinculados
principalmente com a presença de conflitos políticos. Uma das principais
características da problemática criminal é sua “urbanização”, quer dizer,
apresenta-se com maior clareza nas cidades grandes e médias da região.
Neste quadro, é necessário levar em consideração que a América Latina e
o Caribe constituem a região em desenvolvimento mais urbanizada do
mundo, com uma população urbana que alcançou, no ano 2000, 75%
(CEPAL, 2000). Inclusive com porcentagens mais altas em países como a
Argentina onde, conforme informação oficial, estima-se que mais de 90%
da população mora em cidades. Ao mesmo tempo, as principais cidades
da região experimentam índices críticos na última década, período no
qual a região se tornou a segunda mais violenta do mundo. Esta análise
comparada mostra que a América Latina e o Caribe, em 1990, alcançaram
uma taxa de homicídios regional de 22,9 por 100 mil habitantes, isto é,
mais do dobro da média mundial – 10,7 - (Búvinic e Morrison, 1999).

Além da informação oficial analisada anteriormente, os dados de


vitimização confirmam que a América do Sul ocupou o segundo lugar
dentre as regiões com maior porcentagem de população vítima de um
crime (68 %). Uma das características chamativas desta informação é a
porcentagem de população assaltada (31%), muito acima da média mundial
(19%) e da América do Norte, que ocupou o terceiro lugar (22%) (Gaviria
e Pages, 1999).

As variações regionais merecem uma análise especial, já que não só


se apresentam em nível nacional, mas também dentro de cada país. Assim,
por exemplo, as taxas de homicídio na região variam de 117 por cada
100 mil habitantes em El Salvador a 1.8 por cada 100 mil habitantes no
Chile. Estas disparidades são críticas também na análise nacional já que se
apresentam realidades complexas em cidades que, de fato, concentram a
criminalidade.

146
Lucía Dammert

Quanto à análise das denúncias, é preciso ressaltar que seu


incremento pode se explicar por duas situações divergentes. Uma primeira
interpretação enfatiza o fato dessa tendência demonstrar um aumento da
criminalidade e, portanto, dos crimes realmente cometidos, enquanto a
segunda explicação enfatiza o aumento dos níveis de denúncia, isto é, uma
diminuição da cifra negra de crimes não denunciados. Praticamente em
nenhum dos países da região tem sido possível estabelecer uma
interpretação única desta variação, mas é possível afirmar que a magnitude
do incremento não pode refletir unicamente um aumento da ação
criminosa.

Outro fenômeno interessante se relaciona com a “geografia do


crime”, que no início da década passada concentrava-se nas cidades capitais
de cada país, mas que tem mostrado capacidade de mobilidade para as
cidades intermediárias. Assim, por exemplo, no Chile e na Colômbia as
taxas de crimes evidenciam o fato da incidência desta problemática, em
alguns casos, ser superior em cidades intermediárias do que na mesma
Capital.

Outro elemento a ser considerado é a emergência da “sensação de


insegurança ou temor” como problema público. Diversos estudos
realizados na região mostram níveis significativos de temor na população,
os quais têm um impacto em áreas tão diversas como: a estrutura de
crescimento da cidade (cada vez com mais grades e segregada), a
privatização da segurança, o aumento da desconfiança cidadã e a sensação
de impunidade diante do crime. Embora esta situação seja identificada a
partir de inícios dos anos 90, diversos estudos mostram que este temor
diante da criminalidade esconde, muitas vezes, outros temores
característicos da vida atual (precariedade no emprego, carência de plano
de saúde e previdência social, entre outros) (PNUD, 1998). Da mesma
maneira, a forma com a qual tem crescido a cidade (planejada ou não) se
caracteriza por níveis de segregação significativos, que apóiam a
configuração de um “outro” identificável socioeconômica e
territorialmente.

Todo o dito anteriormente, embora escape a uma política pública


orientada para a mudança policial, tem tido repercussões importantes
neste âmbito, fato que muitas vezes exigiu das instituições policiais a
necessidade de responder problemáticas que vão muito além de suas

147
Dilemas da Reforma Policial na América Latina

funções e que estão claramente ligadas a fenômenos estruturais complexos


que não podem ser abordados apenas por instituições de ordem pública.
Neste contexto, é importante ter presente que as problemáticas da
violência, da criminalidade e do temor que enfrenta a região não podem
ser abordadas apenas a partir do olhar do controle policial, embora não
deva se desconsiderar que boa parte das mudanças institucionais baseadas,
em grande medida, no papel principal que adquiriram estas instituições na
problemática da segurança, tenha incorrido nesse erro. .

2. AS INSTITUIÇÕES POLICIAIS NA AMÉRICA LATINA

Na América Latina existem diversas instituições policiais. Por um


lado, estas podem ser caracterizadas por seu âmbito de ação: nacionais
(como Carabineros no Chile ou a Polícia Nacional da Colômbia), regionais
(em países federais como o México, o Brasil e a Argentina), e inclusive
locais (alguns municípios contam com forças policiais próprias). Por outro
lado, podem ser classificadas conforme com seus objetivos específicos:
há instituições dedicadas unicamente à investigação policial (como a polícia
judiciária de Córdoba1) ou aquelas dedicadas à prevenção e controle da
criminalidade. No entanto, além dessas diferenças, as instituições policiais
podem ser caracterizadas em termos gerais como “... as pessoas
autorizadas por um grupo para regular as relações interpessoais dentro
do grupo, através da aplicação da força física” (Bayley, 2001).

Esta definição tem três elementos centrais: força pública, uso da


força e profissionalização. Quanto ao primeiro, a instituição policial
responde às necessidades da sociedade na sua totalidade, fato que a obriga
a responder de forma equiparável diante das diversas pressões da
cidadania. No entanto, na última década, esta característica tem se
desvirtuado em praticamente todos os países da região, em virtude de
dois processos paralelos. Em primeiro lugar, o aumento do investimento
privado e a carência de regulação para este fluxo têm um impacto negativo
evidente na distribuição da infra-estrutura e atendimento policial, ocupando
seus espaços, limitando sua ação e, em alguns casos, debilitando sua
capacidade de resposta. Assim, a proliferação de empresas de vigilância
particular, paradoxalmente, aumenta a sensação de falta de proteção de
muitos cidadãos que não têm acesso a esse serviço, bem como daqueles
que investem em mecanismos de encerramento e alarme coletivos.

148
Lucía Dammert

Em segundo lugar, as polícias deveriam ser as instituições que


possuem o monopólio do uso legítimo da força do Estado, entendendo
que em um Estado de Direito a força pode ser utilizada para restabelecer
a ordem social. Lamentavelmente, em muitos casos, a força é utilizada de
forma ilegítima, conduzindo ao aumento de cidadãos mortos pelas polícias
(como mostram as estatísticas apresentadas no Brasil e na Argentina) ou
a violação de outros direitos humanos (Equador e Peru). Esta utilização
da força se evidencia especialmente nos processos de prisões, bem como
no tratamento da população carcerária.

Em terceiro lugar, a instituição policial deveria ser um corpo


profissional capaz de desenvolver iniciativas de prevenção, controle e
investigação criminal de forma eficaz e eficiente. Este preparo profissional
é fundamental pelo fato de outorgar às polícias certa autonomia diante do
mando político em relação à tomada de decisões de intervenção e à
aplicação de conhecimentos técnicos no fazer policial, porém, de forma
alguma, lhe outorgua independência completa. Neste sentido, a
responsabilidade pela segurança deve ser assumida pelo poder político,
assim como também deve assumir a necessidade e avaliar o impacto das
estratégias utilizadas. Lamentavelmente, em alguns casos, é a própria
opinião pública que pressiona para destinar mais policiais para o policiamento
ostensivo, fato que gera uma redução dos períodos de capacitação do
corpo policial. Embora haja elementos específicos a ser enfrentados, como
a quantidade de anos de escolaridade exigidos para ingressar e se formar
na instituição, o que é relevante e primordial é redefinir que tipo de polícia
precisamos. Sobre a base disto, poderá ser estabelecido um perfil
adequado, tanto na sua capacitação quanto nas suas habilidades pessoais.

Especialmente na América Latina, Bayley assinala dois temas


recorrentes da organização policial. Primeiro, historicamente a diferença
entre segurança interna e externa não tem se apagado; as forças militares
têm jogado (e em alguns países ainda o mantêm) um papel central na
manutenção da ordem interna. Essa situação se consolida com a estrutura
militarizada das polícias que, em diversos países da região, mantêm
inclusive uma dependência administrativa e funcional da área militar.

Não existem dúvidas de que o papel da polícia é ainda mais complexo


onde sua legitimidade e autoridade estão em disputa. Um segundo elemento
caracterizador das polícias latino-americanas é que as mesmas são vistas

149
Dilemas da Reforma Policial na América Latina

pela cidadania com desconfiança devido à pouca eficiência, à corrupção e


à baixa profissionalização de seus integrantes. Assim, por exemplo, em El
Salvador, José Miguel Cruz explicita que, ao longo da história, a prática do
uso das forças de segurança para proteger os interesses de grupos bem
posicionados tem causado danos à sua legitimidade aos olhos das camadas
sociais mais baixas (Cruz, no prelo).

3. A REFORMA POLICIAL COMO PRINCIPAL RESPOSTA PÚBLICA

Em um contexto marcado pela crescente presença da


criminalidade, pela desconfiança cidadã com as polícias e pelo
desenvolvimento de práticas corruptas e de uso excessivo da força, a
reforma da polícia se converteu na principal resposta de política pública
na região. Cabe mencionar que essas reformas estão inscritas dentro do
que O’Donnell chama “a terceira geração” no processo de consolidação
democrática. Devido a isso, sem dúvida, durante os primeiros anos de
democracia, foram poucos os países que puderam gerar uma mudança
na gestão e na doutrina policial na América Latina.

Desta maneira, a reforma das polícias não é apenas uma necessidade


de responder aos problemas de criminalidade presentes em todos os países
da região, mas também um elemento fundador do processo de consolidação
democrática.

A expectativa pública, no entanto, enfatizou a possibilidade de que


uma polícia mais eficiente e efetiva poderia resolver o problema da
segurança. Situação essa que se apoiava em intervenções realizadas nos
Estados Unidos, onde a sociedade parecia, inclusive, disposta a sacrificar
em certa medida a proteção de seus direitos civis a favor de mais
segurança. Paradoxalmente, na América Latina, esta disponibilidade se
observa especialmente naqueles países que têm sofrido ditaduras militares,
motivo pelo qual os esforços em promover o respeito aos direitos
humanos e a responsabilidade do governo nas novas democracias se
enfrentaram com uma carga adicional.

Sem dúvida, a reforma policial é apenas um elemento das políticas


para diminuir a criminalidade. No entanto, durante a primeira metade dos
anos 90, essa foi vista como a principal saída para enfrentar essa problemática.

150
Lucía Dammert

Assim, se tem limitado o desenvolvimento de uma perspectiva


sistêmica e integrada que inclua, pelo menos, programas e iniciativas
dedicadas a: (1) prevenção do crime (educação, proteção infantil e bem-
estar familiar, lazer, emprego, policiamento de rotina e sensibilização da
comunidade, entre outros); (2) repressão do crime e investigação (polícia
com ou sem farda, peritos criminalistas, inteligência criminal); (3) julgamento
(promotores públicos, varas2 - incluindo juízes e postos administrativos -,
advogados de defesa); (4) sistema penitenciário e pós-penitenciário
(emprego, assistência pessoal e familiar, tratamento anti-drogas).

Sem dúvida, a reforma policial é um elemento central do processo,


mas não pode, por si só, prevenir e controlar a violência e a criminalidade
em um certo país. Assim, por exemplo, uma maior presença policial e
repressão do crime têm como conseqüência um maior número de presos,
que nem sempre são culpados. Este processo tem efeitos negativos, como
o colapso do sistema judiciário e do sistema penitenciário, bem como um
processo de “esquecimento” da importância da reabilitação. Em troca, o
sistema judiciário colapsado se torna mais vulnerável à ineficiência, à
injustiça, à corrupção e ao abuso. E as prisões, superlotadas e com infra-
estrutura precária, se tornam violentos e perigosos depósitos humanos,
conhecidos também como escolas do crime.

4. O PAPEL DA EXPERIÊNCIA INTERNACIONAL

A crise policial na América Latina encontrou um espaço limitado


de referências internacionais bem sucedidas que poderiam servir como
referência ou modelo de ação. Certamente, aquelas iniciativas de
reforma implementada em países europeus e inclusive nos Estados
Unidos partem de supostos financeiros extremamente diferentes aos
encontrados na região. Além disso, a cultura policial é diferente e, sem
dúvida, os problemas apresentados em cada um desses contextos é,
inclusive, variada.

Apesar da diversidade institucional e contextual comentada


previamente, se tem gerado um processo bastante expandido de
importação de “modelos” considerados bem sucedidos de gestão,
administração e operação policial. A principal iniciativa importada é a
experiência do Prefeito Giuliani na cidade de Nova York.

151
Dilemas da Reforma Policial na América Latina

O apoio de instituições não governamentais, como o Manhatan


Institute, tem sido decisivo para dar a conhecer uma experiência de
intervenção que tem supostos teóricos claros e implicações políticas. Desta
forma, a “tolerância zero” ou “janelas quebradas”3, como indistintamente
se conhece na América Latina as medidas adotadas na cidade de Nova
York, são a principal mostra da importação de políticas. A contratação de
Giuliani na Cidade do México por mais de quatro milhões de dólares,
com vistas a que fizesse um diagnóstico da situação e uma listagem de
146 recomendações, é um exemplo do tipo de ações que se tem
desenvolvido na região para gerar iniciativas de impacto público,
comunicacional e institucional. Por sua parte, o chefe policial Bratton, de
Nova York, tem sido também assessor de governo de cidades como
Lima, Caras e Guayquil.

O elemento comum aos diagnósticos na América Latina é a


identificação de problemáticas que têm mais a ver com a cultura nacional
do que com a especificidade policial. Assim, por exemplo, a alta presença
de comércio ambulante nas cidades de Lima e México foi percebida como
um problema central que deveria ser enfrentado com a força pública.
Indicação que só mostra o desconhecimento da realidade destas cidades
onde importantes porcentagens de população carecem de trabalho formal
e, portanto, a informalidade é seu único meio de sobrevivência.

Adicionalmente é importante mencionar que essas iniciativas têm


chegado da mão de um processo de modernização tecnológica onde o
COMPSAT (Pacote Estatístico ou de Análise Estatística) é a palavra mágica
para o fazer policial. Nesse ponto, é importante ressaltar que esse sistema
de informação estatística, desenvolvido em Nova York, permite conhecer
o fenômeno criminal com maiores detalhes, mas também permite avançar
em processos de descentralização das tarefas e procedimentos policiais.
Consolidando uma institucionalização menos hierárquica e com
importantes componentes de discricionaridade na tomada de decisões
operacionais por parte do agente policial responsável.

É claro que, no processo de importação, a iniciativa não se adota


de forma completa, mas, ao contrário, tem desembarcado em terras
latino-americanas como um sistema altamente tecnologizado para o manejo
de informação criminosa. Portanto, realizam-se investimentos significativos
para equipar melhor a capacidade policial em termos de sistemas de coleta

152
Lucía Dammert

e análise de informação, bem como de sistemas de informação geográfica,


entre outros. Tudo aquilo vinculado com a definição de uma instituição
menos hierárquica, com espaços de debates e distribuição de tarefas e
responsabilidades entre os agentes, ficou no caminho.

A polícia comunitária é outra iniciativa dentre os múltiplos


desenvolvimentos na região com um viés internacional de “boa prática”,
auspiciada principalmente pelo Banco Internacional de Desenvolvimento.
Embora a idéia de gerar instituições policiais com uma maior e melhor
relação com a comunidade seja um excelente ponto de partida para as
mudanças necessárias no interior das instituições policiais, o conceito de
“polícia comunitária” tem sido utilizado para denominar experiências diversas
e inclusive distantes do objetivo mesmo do “community policing”,
desenvolvido nos Estados Unidos ou a “polícia de proximidade”, francesa.
De fato, na maioria dos casos latino-americanos, encontra-se um pequeno
grupo no interior da instituição policial dedicado à “comunidade” e o
restante do pessoal mantém as mesmas práticas tradicionais. Em muitos
casos, esse “plano piloto” não é assumido como uma verdadeira mudança
de paradigma, mas como uma forma de cumprir com a nova ótica
institucional.

Os exemplos utilizados previamente mostram que o processo de


importação de políticas se enfrenta com um sério problema de aplicabilidade,
mas sobretudo com um déficit de conhecimento relativo às iniciativas a
serem desenvolvidas. Nesse sentido, o que seja considerado exitoso não é
colocado em dúvida antes de sua aplicação, o que traz sérias conseqüências.

5. O QUE SE ENTENDE POR REFORMA POLICIAL?

A experiência européia e norte-americana mostra significativas


mudanças em aspectos da função e doutrina policial. Em geral, essas
reformas se realizam em dois vértices: a capacidade operacional (eficiência
e eficácia da polícia) e a responsabilidade democrática (as respostas da
polícia diante do controle político e ao respeito aos direitos civis e
humanos). Desta forma, busca-se aumentar os mecanismos de
fiscalização e controle das instituições policiais, não só em termos de
atuação no âmbito da lei, mas também pela eficácia e eficiência das
iniciativas desenvolvidas.

153
Dilemas da Reforma Policial na América Latina

Essas mudanças foram revisadas na América Latina, onde o


incremento da sensação de insegurança, a corrupção e a ineficácia da ação
policial mostraram a necessidade de mudanças profundas na sua doutrina
e gestão. Dessa forma, pode-se evidenciar quatro processos ocorridos
nas últimas décadas: a criação de novas instituições policiais naqueles países
que sofreram guerras civis (como El Salvador); as reformas parciais
ocorridas na Argentina e na Colômbia; as iniciativas inovadoras
desenvolvidas por diversas instituições na região.

Novas polícias

Até meados dos anos 90, a polícia centro-americana era um elemento


central na manutenção da ordem interna e no apoio das Forças Armadas.
Dessa forma, sua subordinação doutrinal e de gestão era evidente. Assim,
por exemplo, em Honduras, a Força de Segurança Pública estava sob o
comando das forças armadas; enquanto que, em El Salvador, em 1992
(data em que se assinaram os acordos de paz) as três instituições policiais
dependiam do Ministério da Defesa.

Dessa maneira, os efetivos policiais estavam treinados quase


exclusivamente para confrontar a insurgência armada e para cooperar com
militares na manutenção da ordem interna. Situação que ia contra a
formação e capacitação em funções próprias da polícia, como a prevenção
e o controle da criminalidade.

Adicionalmente, a participação de polícias em confronto com a


população e a extrema utilização da força geraram a necessidade de
definir novas institucionalidades com legitimidade e certo
reconhecimento cidadão. Dessa forma, criaram-se instituições policiais
praticamente novas na região.

Em El Salvador, a criação de uma nova polícia foi um dos acordos


centrais do Tratado de Paz de 1992, que deu fim a uma longa e dramática
guerra civil. Dessa forma, tratou-se de limitar a participação das forças
de polícia como elementos que servem para fins políticos, já que no
velho regime as forças de segurança representavam os interesses das
camadas sociais altas; um exemplo deles é o fato das forças de segurança
nacional serem usadas para manter a ordem nas plantações de café nas
épocas de colheita.

154
Lucía Dammert

Essa nova polícia nacional se aliou a veteranos da guerrilha e das


Forças Armadas, assim como com novos recrutas. Lamentavelmente, o
processo foi bem sucedido no início, mas posteriormente fracassou, o
que foi evidenciado pela diminuição do alto grau de aprovação social que
tinha a mencionada instituição.

Paradoxalmente, na atualidade, percebe-se um regresso paulatino


dos militares a funções de manutenção da ordem pública. Situação que
encontra justificativa na sensação de insegurança da população e na aparente
limitada efetividade da nova instituição policial.

Reformas parciais

Diferente dos processos apresentados previamente, a maioria das


iniciativas vinculadas às instituições policiais na América Latina relaciona-
se com esforços parciais de mudança, tanto na doutrina quanto na gestão
policial. Em linhas gerais, a causa principal destas reformas foi a
preocupação da sociedade com o forte incremento do crime e da violência,
junto com a percepção geral da força policial como uma instituição corrupta
e ineficaz. As reformas giraram, sobretudo, em torno de esforços graduais
para reorganizar a polícia, purgar os oficiais corruptos e melhorar o
recrutamento e formação, bem como melhorar a vigilância e a participação
da sociedade civil.

Vale destacar que, na maioria dos casos, os mencionados processos


se enquadraram em contendas políticas e não incluíram o apoio
institucional. Portanto, contaram com uma ampla resistência institucional
e, inclusive, com uma constante rejeição por parte da sociedade4.

Diversos são os casos onde se implementaram essas reformas.


Seguidamente, apresenta-se brevemente a experiência da Argentina, da
Colômbia e do Peru, que mostram elementos comuns a outras experiências
da região.

Argentina

Em meados da década de 90, a Argentina assistiu a um aumento da


preocupação pública sobre a denominada crise de segurança, que teve
como elemento central a baixa eficácia e a alta corrupção das instituições

155
Dilemas da Reforma Policial na América Latina

policiais. Nesse contexto, diversas províncias do país enfrentaram


iniciativas de reforma da instituição policial (Santa Fe, Buenos Aires,
Córdoba, Mendoza são apenas alguns exemplos). Sem dúvida, a
experiência da Província de Buenos Aires, que representa mais de um
terço da população nacional e conta com uma das polícias do país pior
avaliadas, é um exemplo paradigmático dos objetivos, resultados e
problemáticas destas iniciativas.

A Polícia da Província de Buenos Aires é reconhecida historicamente


pelos altos níveis de violência rotineira e pela sistemática violação dos
direitos humanos, conduzida por certos “grupos operacionais” no interior
de sua estrutura (Saín, 2002). No entanto, no final de 1996, os graves
fatos de violência policial, incluindo a detenção e a denúncia judicial de
oficiais envolvidos no ataque terrorista contra a sede da Associação Mutual
Israelense Argentina (AMIA), geraram mudanças na chefia policial.

Assim foi aprovada a Lei de Emergência Policial (Lei 11.880), que


modificou a estrutura da Polícia e impôs que todos os integrantes da força
fossem postos a prova no prazo de um ano, durante o qual se analisaria
sua conduta e, no caso de serem comprovadas irregularidades, seriam
separados da instituição através de um afastamento desonroso. De igual
modo, foi modificada a lei de procedimento criminal, com o objetivo de
melhorar o controle das atividades da polícia e modificar sua relação com
o poder judiciário.

Esse início de reforma sofreu diversos contratempos, marcados


especialmente pela constante negativa dos oficiais em aceitar as mudanças
propostas. Situação que se manteve no ano 1997, quando se aprovou o
“Plano de Reorganização Geral do Sistema Integral de Segurança e
Investigação dos Crimes da Província de Buenos Aires”. A primeira medida
do Plano foi a intervenção da Polícia a efeitos de sua reorganização,
estabelecendo um prazo de 90 dias para essa ação.

O interventor destituiu toda a equipe supervisora da força policial,


desmantelou as linhas de mando e ordenou o afastamento de mais de 300
comisarios generales e mayores5. De igual forma, foi sancionada a Lei 12.090
que criou o Ministério de Justiça e Segurança, com funções na gestão das
áreas de segurança, investigações policiais, justiça, sistema penitenciário e
relações com a comunidade.

156
Lucía Dammert

Este processo de reforma tem passado por diversas etapas de


avanço e retrocesso, marcadas principalmente pelo interesse e utilização
política da temática. Nesse sentido, as mudanças não podem ser analisadas
na sua integridade, já que as denúncias de corrupção e de utilização
excessiva da força são ainda cotidianas.

Colômbia

O processo de reforma da Polícia Nacional da Colômbia foi gerado


no interior da instituição a partir de meados dos anos 90, a partir da
percepção geral de uma instituição penetrada pela corrupção e o tráfico
de drogas. Sem dúvidas, a liderança do chefe da polícia José Serrano,
nomeado no ano 1994, oferece um elemento central desse processo.
Essa se iniciou com uma limpeza de mais de 7 mil funcionários policiais de
todas as hierarquias, bem como com a mudança da estrutura e da cultura
institucional. Nesse sentido, foi desenvolvida uma perspectiva gerencial
baseada no planejamento estratégico, que permitia espaços de liberdade
e certa autonomia dos chefes regionais, os quais teoricamente poderiam
desenhar e implementar iniciativas focalizadas de controle e prevenção.

As reformas realizadas por Serrano tiveram um impacto positivo


sobre a percepção da população, que reconhece o esforço realizado por
aumentar a efetividade e o profissionalismo da instituição policial.

Esse processo ressaltou a capacidade da polícia para superar


problemas de corrupção e demostrou sua efetividade na prisão de
traficantes importantes. No entanto, os resultados têm sido muito mais
parciais quanto à melhora da organização interna e dos procedimentos,
fato que tem terminado com novos escândalos de corrupção, que
reapareceram publicamente no início do ano 2003.

Peru

O caso peruano mostra também a importância da liderança civil no


processo de reforma da polícia, bem como os vaivéns políticos a que esta
é submetida. Neste caso, a preocupação central da instituição policial
durante os anos 80 e início dos 90 foi o combate ao terrorismo e ao
tráfico de drogas. Esta situação gerou um paulatino abandono das
estratégias policiais vinculadas à segurança interna, um aumento da violação
dos direitos humanos e uma crescente corrupção e ineficiência.

157
Dilemas da Reforma Policial na América Latina

Nesse processo, ficou evidente a necessidade de uma reforma da


estrutura e de uma doutrina policial que incluíssem a recuperação das
tarefas próprias de uma polícia preventiva, bem como a regulação dos
serviços locais (serenazgos) e privados de segurança. Neste contexto, o
Ministro Rospigliosi e, posteriormente, Costa, tomaram as propostas das
“Bases para a Reforma Policial” preparadas pelo governo de Valentin
Paniagua em 2002. Paralelamente, o Congresso da República tinha avançado
na mesma direção e contava com um projeto de lei sobre o tema, situação
que permitiu alcançar um consenso cidadão e político.

Assim, em janeiro de 2003, foi aprovada a Lei do Sistema Nacional


de Segurança Cidadã, junto com outras normas enviadas pelo Executivo,
dentre as quais encontra-se a criação do sistema de segurança cidadã.

Esse processo envolveu uma mudança na relação entre a polícia


e a cidadania, buscando envolvê-las na prevenção e no controle da
criminalidade em nível local. Para isso, foi outorgado especial interesse
à infra-estrutura das comisarías, bem como ao atendimento outorgado
aos denunciantes. Igualmente, envolveu uma mudança na estrutura da
instituição. Tanto a criação das divisões de segurança cidadã em cada
região, quanto a melhora na organização das comisarías e a simplifição
de seus processos administrativos, são aspectos importantes no
esforço por fazer mais eficiente a atividade policial e reduzir os índices
da insegurança e do crime.

Apesar das boas intenções, ambos os ministros estiveram em seus


postos por um período de no máximo dois anos (não consecutivos), o
que significou importantes avanços e retrocessos na estratégia em questão.

Polícia Comunitária

A relação com a comunidade tem se convertido em um dos


elementos centrais de qualquer estratégia de prevenção e controle do
crime. É assim como a maioria das instituições policiais da região tem
adotado um discurso que enfatiza a importância da colaboração com a
comunidade. O leque de ações consideradas comunitárias é amplo e
abrange iniciativas como: grupos de vizinhos para vigilância, assistência
com contas públicas, geração de financiamento para as polícias locais e
participação em projetos de prevenção.

158
Lucía Dammert

Lamentavelmente, estas iniciativas têm ficado, em muitas ocasiões,


no nível do discurso político e institucional e não têm se refletido em
mudanças no interior das polícias que permitam uma efetiva inter-relação
com a cidadania. As iniciativas de polícia comunitária desenvolvidas na
América Latina são recentes e têm sido pouco estudadas. O especialista
em temas policiais Hugo Frühling tem realizado uma das primeiras
sistematizações de diversos casos na região e estabeleceu alguns
elementos que precisam ser enfatizados.

Em primeiro lugar, estas iniciativas geram certa diminuição de


alguns crimes, bem como do sentimento de insegurança da população
que observa uma maior presença policial nas ruas. Adicionalmente,
evidencia-se uma melhor imagem cidadã a respeito da instituição e
principalmente dos oficiais responsáveis pelo policiamento das
vizinhanças. Finalmente, os esquemas de polícia comunitária envolvem
uma diminuição das possibilidades de abuso policial ou do uso
desnecessário da força graças ao conhecimento que tem a população
dos oficiais responsáveis pelo policiamento.

Por outro lado, estes esquemas não constituem um método eficaz


para controlar o crime (Rico e Chinchilla, 2003, p.102), mas sim para
enfrentar algumas situações concretas em nível local. Igualmente, fica
evidente que as propostas são de difícil adaptação nas estruturas policiais
devido à necessidade de descentralizar a tomada de decisões e diminuir
a forma militarizada de sua ação. Estas duas últimas características são
as principais das polícias latino-americanas. Outra das limitações se
relaciona com sua avaliação devido à necessidade de definir quais são os
indicadores de eficiência e, sobretudo, o prazo em que estes podem
ser avaliados. Neste sentido, a participação limitada de certos integrantes
da instituição em estratégias comunitárias parece erodir as bases mesmas
de um modelo alternativo do funcionamento policial na região.

Outras Inovações

Além dos processos de mudança analisados previamente, na região


existem outros esquemas de mudança menos difundidos, mas, com
certeza, também interessantes. Em seguida, apresentam-se dois casos
que consideramos emblemáticos, não só pelos temas que colocam, mas
também porque representam uma tendência generalizada na região.

159
Dilemas da Reforma Policial na América Latina

Em primeiro lugar, a necessidade de uma estreita colaboração entre


a polícia e o setor privado é um tema ainda em debate, que pretende superar
a já tradicional colaboração financeira para a compra ou manutenção de
infra-estrutura básica da polícia em um certo setor e desenvolver novas
ferramentas de cooperação.

Um exemplo destas iniciativas é aquela apresentada pelo Instituto


contra a Violência de São Paulo, que descreve uma recente parceria entre o
setor público e privado para melhorar a manutenção da ordem e contribuir
com a prevenção do crime, em uma área metropolitana que sofre severos
níveis de violência criminal. A partir de um esforço conjunto de associações
de empresários, instituições acadêmicas e empresas de comunicação, foi
estabelecida uma resposta criativa da sociedade civil para melhorar a
eficiência policial, assim como sua eficácia (ver Mesquita Neto, no prelo).
Dessa forma, os interesses privados, em parceria com centros de pesquisa
na temática e com as polícias, podem gerar mecanismos de investimento
em programas comunitários, de participação da cidadania, de melhora da
eficácia e transparência das ações policiais, entre outras atividades.

Ao mesmo tempo, é possível observar o desenvolvimento de


processos não tão alentadores, tais como aqueles que devido ao incremento
do crime, junto com o processo de responsabilização da sociedade, podem
gerar mecanismos não desejados de justiça pelas próprias mãos. Um caso,
talvez extremo, se apresenta no Estado Guerrero no Sul do México onde a
cidadania cooperou para dar resposta à percepção de ineficácia e, inclusive,
de abuso das forças policiais estatais. Assim, as comunidades indígenas
criaram uma polícia local formada quase na sua maioria por voluntários, cuja
legalidade é questionada por parte das autoridades estatais. Nesse caso,
não só se tornaram uma patrulha comunitária mas, de fato, passaram a
substituir a instituição dedicada a cuidar da ordem pública. Sem dúvida,
essas iniciativas chamadas de “polícia comunitária” podem se converter no
germe de um novo autoritarismo local que imponha justiça e castigos.

6. CONCLUSÃO. AVANÇO OU RETROCESSO?

Os processos de reforma têm enfrentado diversos problemas. Em


primeiro lugar, a reação no interior da instituição, que percebe as novas

160
Lucía Dammert

diretrizes como ameaçadoras. Em segundo lugar, a negação da opinião


pública ou dos grupos políticos conservadores, que colocam em dúvida a
eficácia destes processos no combate à criminalidade. Em terceiro lugar,
o apoio político tem sido errático. De certa forma, poderia se afirmar
que as reformas não têm sobrevivido à mudança de liderança nas instituições
ou no âmbito político. Portanto, todas essas iniciativas não têm perdurado
no tempo e seu caminho de implementação mostra múltiplos avanços e
retrocessos.

Por outro lado, não é inteiramente evidente que essas mudanças


afetem as taxas de crimes denunciados ou a sensação de insegurança da
população. Situação essa que imprime um maior nível de tensão política,
ao não mostrar resultados imediatos.

Apesar dos problemas mencionados, diversos são os avanços


alcançados nesta temática. Talvez o mais importante seja o reconhecimento
geral da necessidade de mudança nas instituições policiais, a diminuição
do uso ilegal da força, sua desmilitarização e paralela profissionalização.
Da mesma forma, o reconhecimento, por parte das mesmas polícias, da
necessidade de estabelecer mecanismos de colaboração com a cidadania
que permitam diminuir a desconfiança e aumentar a legitimidade da
atividade policial.

Em resumo, por enquanto, os resultados mostram a complexidade


de se reformar as instituições policiais na região. Mas também abrem um
caminho para a consolidação de uma visão moderna, eficiente, transparente
e responsável do funcionamento policial na América Latina. Neste quadro,
colocam-se desafios que não só envolvem o tipo de polícia que temos,
mas especialmente a qualidade mesma de nossas democracias.

Referências Bibliográficas
Bayley, David H. 1990. Patterns of Policing: A Comparative International Analysis (New Brunswick:
Rutgers University Press).
——. 2001. Democratizing the Police Abroad: What to Do and How to Do It (Washington, D.C.:
U.S. Department of Justice, National Institute of Justice, Publicado em , http://www.ojp.usdoj.gov/nij).
Cruz, José Miguel (no prelo) “Violencia, Inseguridad Ciudadana y las Maniobras de las Elites: La
Dinámica de la Reforma Policial en El Salvador” Em Bailey, John e Dammert, Lucía (org.).
Public Security and Police Reform in the Americas. University of Pittsburgh Press.

161
Dilemas da Reforma Policial na América Latina

Mesquita Neto (no prelo) “Asociaciones Públicas-Privadas para la Reforma Policial en Brasil:
Instituto de São Paulo Contra la Violencia”. Em Bailey, John e Dammert, Lucía (org). Public
Security and Police Reform in the Américas. University of Pittsburgh Press.
Rowland, Allison (no prelo) “Respuestas Locales a la Inseguridad en México: la Policía Comunitaria
de la Costa Chica y la Montaña de Guerrero”. Em Bailey, John e Dammert, Lucía (org). Public
Security and Police Reform in the Américas. University of Pittsburgh Press.
Rico, Jose María e Chinchilla, Laura (2003) Seguridad ciudadana en América Latina. SXXI,
México.
Frühling, Hugo (2003), Policía Comunitaria y Reforma Policial en América Latina. ¿Cuál es
el impacto?. Série Documentos do Centro de Estudios en Seguridad Ciudadana, Instituto de
Asuntos Públicos de la Universidad de Chile.
Frühling, Hugo (2001), La Reforma Policial y el Proceso de Democratización en América
Latina. CED, Santiago.
Llorente, M.V (no prelo) “¿Demilitarización en Tiempos de Guerra? La Reforma Policial en
Colombia”. Em Bailey, John e Dammert, Lucía (edit). Public Security and Police Reform in the
Américas. University of Pittsburgh Press.
Costa, Gino (2004) “Nuevo enfoque de seguridad ciudadana post Fujimori: Desafíos, realizaciones
y tareas pendientes” Em: Dammert, Lucía (Edit). Seguridad Ciudadana: Experiencias y desafíos.
Programa URBAL, Valparaíso.

Notas
1
Córdoba é uma província (estado) da Argentina. (N.T.)
2
Juzgados, no original (N.T.)
3
No Brasil é conhecido por “teoria das janelas quebradas”, segundo a qual uma janela quebrada
observável em uma rua pode influir para uma possível representação de desordem em uma
região (NT).
4
Bayley (2001, p. 25) enfatiza que “se a incidência do crime e a desordem se percebe como
inaceitável ou crescente, a reforma policial será inibida”. A reforma nestes casos pode ser vista
como uma distração da aplicação efetiva da lei.
5
Ambas as categorias correspondem as duas hierarquias mais altas da carreira policial. (N.T.)

162
I L
AS
BR
Comunicação
“A POLÍCIA QUE QUEREMOS”: CONSIDERAÇÕES
SOBRE O PROCESSO DE REFORMA DA POLÍCIA
MILITAR DO RIO DE JANEIRO1.
Haydée Caruso*, Luciane Patrício** e Elizabete R. Albernaz***

APRESENTAÇÃO

A derrocada dos regimes autoritários na América Latina, instaurados


em um contexto de polarização continental suscitado pela Guerra Fria,
deu início a uma longa e complicada jornada de transição democrática. As
organizações policiais, enquanto instrumentos historicamente privilegiados
de enraizamento do princípio da autoridade e de consolidação dos
chamados estados modernos (MUNIZ, 2002), receberam especial atenção
nos diversos processos de institucionalização dessa nova ordem política.

Voltadas para a proteção dos interesses do Estado, operando lógicas


altamente militaristas, de ênfase repressiva e autoritária, essas agências
policiais vêem-se então progressivamente expostas a demandas e problemas
oriundos de uma nova e complexa configuração social. Devido ao seu papel
central na ação política, as polícias são organismos públicos altamente
sensíveis a estes tipos de dinâmicas de mudanças histórico-sociais e rearranjos
estatais (MUNIZ, 2002). O contato diário destas agências com os anseios
e expectativas da população tende a acentuar o processo, evidenciando os
contrastes entre o aparato de controle social totalitário e a busca pela
universalização dos direitos individuais e coletivos (MUNIZ, 2001).

Longe de estarem consolidados, porém em diferentes estágios de


maturação, os diversos processos de transição democrática das polícias
latino-americanas são fortemente marcados por algumas características
comuns. Partindo de um nível seguro de generalização, as demandas em
torno da profissionalização dos agentes, da redução dos níveis de violência
na ação policial, de uma maior participação da comunidade, do incremento

*
Antropóloga, Coordenadora da Rede de Policiais e Sociedade Civil da América Latina, Doutoranda
do Programa de Pós-Graduação em Antropologia – PPGA/UFF.
**
Antropóloga, Pesquisadora e Consultora em Segurança Pública, Doutoranda em Antropologia
pela UFF, especialista em Políticas Públicas de Justiça Criminal e Segurança Pública pela UFF,
Professora de Sociologia, Sociologia Jurídica e Criminologia da Universidade Candido Mendes -
UCAM.
***
Antropóloga, Mestranda do Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social – PPGAS/
UFRJ, Pesquisadora e Consultora em segurança pública. 163
“A Polícia que queremos”: considerações sobre o processo de
reforma da Polícia Militar do Rio de Janeiro

da eficiência em lidar com as dinâmicas criminais e a busca de modelos


flexíveis e descentralizados de gestão podem ser identificadas como as
grandes linhas de transformação regional (FRUHLING, 2003).

No Brasil, a abertura política e a promulgação da Constituição de


1988 inauguram uma mudança de paradigmas no que se refere ao
provimento público de segurança. Historicamente vinculadas aos
segmentos militares, atuando como forças auxiliares ao exército, as polícias
brasileiras tiveram um papel central no suporte a atividades de inteligência,
na repressão a distúrbios civis e na segurança de pontos estratégicos, sob
a perspectiva da chamada “doutrina de segurança nacional”. Visando à
manutenção da soberania do Estado brasileiro frente à “ameaça comunista”
e à “subversão”, as agências policiais encontravam-se, em muitos sentidos,
afastadas da população, com uma relação fortemente marcada pela violência
e desconfiança sistemática (MUNIZ, 2001).

A carta constitucional de 1988, como marco do processo de


transição democrática brasileira, transportou o eixo de atuação das polícias
da manutenção da chamada segurança interna, pautada em um modelo de
ordem pública harmônico, cujo foco era a supressão dos conflitos e a
formação de consensos, para o provimento de segurança pública.
Pressupondo um novo arranjo social, onde os conflitos e jogos de interesses
constituem a dinâmica por excelência de uma ordem social democrática,
o foco na segurança pública implica o incremento de meios comedidos de
força para a negociação da socialidade nos espaços públicos, o reforço de
canais de participação comunitária enquanto instrumentos de planejamento,
controle social e legitimidade das ações policiais. (Kant de Lima, 1995)

Frente às pressões internas e externas para a reestruturação de


seus modelos de atuação, diversas agências policiais por todo o país
iniciaram processos de reformulação estrutural nas últimas décadas.
Partindo de diferentes focos, como a qualificação dos agentes, estratégias
de planejamento e avaliação do policiamento, valorização profissional e
criação de canais de interlocução comunitária, as polícias brasileiras vêm
progressivamente buscando se ajustar às demandas democráticas por
ampliação da cidadania2. O ritmo da mudança é marcado por avanços e
retrocessos. Os jogos e disputas de poder entre segmentos internos às
agências policiais, bem como os reveses da política nacional, ora constituem
grandes obstáculos, ora forças catalisadoras deste processo.

164
Haydée Caruso, Luciane Patrício e Elizabete R. Albernaz

Guardadas as devidas especificidades históricas de cada país, esta


condição compartilhada de transição política, institucional e cultural
caracteriza o contexto em que germinaram diversas iniciativas e
modalidades de reformas conduzidas na América Latina. As disputas em
torno da multiplicidade de significados envolvidos na experiência
democrática, onde, dentre elas, figura os sentidos de atuação das agências
policiais, impulsionaram e continuam a impulsionar o acúmulo de reflexões
teóricas sobre esta temática.

Com o objetivo de somar em termos de elementos empíricos para


as discussões sobre a reestruturação organizacional das polícias no Brasil
e na América Latina, o relato que segue se propõe iluminar preliminarmente
os obstáculos e lições vivenciadas na co-produção de um processo de
reforma. A Polícia Militar do Estado do Rio de Janeiro (PMERJ) e o Viva
Rio, ONG carioca dedicada à pesquisa e intervenção na área de segurança
pública, tornaram-se parceiros nesta iniciativa, cujos desdobramentos ainda
estão sendo explorados.

Baseado na perspectiva de participação do Viva Rio no projeto


“Desenvolvimento Institucional da Polícia Militar do Estado do Rio de Janeiro”3,
o presente artigo propõe algumas linhas de atuação para os processos de
reforma de instituições policiais, partindo de três princípios estruturantes:
1) a condução do processo precisa ser incorporada, enquanto
responsabilidade e valor, pelos gestores e demais membros da corporação
policial, representando os anseios e expectativas dos segmentos internos;
2) qualquer plano de reforma precisa encontrar pontos focais sobre os
quais articulem-se diversas problemáticas diagnosticadas, desencadeando
desdobramentos indiretos sobre todo o sistema policial; 3) a ampla
participação da sociedade civil é crucial para dar legitimidade ao processo,
influindo em sua condução e participando ativamente na definição das
propostas.

Para uma melhor leitura desta experiência, com o intuito de


apresentar as principais lições e obstáculos vivenciados, a primeira parte
deste artigo pretende situar o público em relação ao histórico e à
metodologia empregada para a realização do diagnóstico institucional da
PMERJ. Em seguida, partindo dos desdobramentos do “Seminário A Polícia
que Queremos”, serão apresentadas as principais propostas de reforma
para a corporação, onde se busca estabelecer alguns paralelos entre estes

165
“A Polícia que queremos”: considerações sobre o processo de
reforma da Polícia Militar do Rio de Janeiro

resultados e as grandes linhas da política nacional, previstas no Plano


Nacional de Segurança Pública (PNSP, 2003).

RELATOS DE UMA EXPERIÊNCIA: CONSTRUINDO O


DIAGNÓSTICO INSTITUCIONAL DA PMERJ4
Em meados de 2004, o Conselho Diretor do Viva Rio5 propôs que
a equipe de pesquisadores da instituição elaborasse um estudo sobre a
situação da segurança pública no estado do Rio de Janeiro, onde deveriam
constar propostas que pudessem servir de subsídios para o debate
eleitoral ao Governo do Estado em 2006.

O principal desafio estava em escolher por onde começar, tendo em


vista a impossibilidade de estudar, em tão curto espaço de tempo, todas as
instituições que compõem o sistema de segurança pública e justiça criminal.

A Polícia Militar do Estado do Rio de Janeiro (PMERJ) apareceu como


a melhor opção para dar o primeiro passo; principalmente pelo fato de
ser a instituição de segurança pública de maior capilaridade no Estado,
visualmente identificada, porém pouco estudada e compreendida6. Outro
fator relevante foi a própria experiência pregressa de cooperação entre o
Viva Rio e a PM, através dos diversos trabalhos desenvolvidos em parceria
ao longo dos últimos anos, facilitando o diálogo necessário para realização
deste tipo de empreendimento.

Inicialmente, foram organizadas reuniões de trabalho7 onde técnicos


do Viva Rio, representantes de seu Conselho Diretor e policiais militares
debatiam os problemas enfrentados pela PMERJ, sempre partindo de uma
agenda de temas definida pelos próprios policiais e equipe Viva Rio. Em
paralelo, o Comando da Corporação também estava organizando um
grupo de trabalho, que tinha por objetivo apresentar insumos para a
constituição de um novo Plano Diretor, estruturado em propostas de
curto, médio e longo prazo.

O desafio estava em unir esforços em prol de um grupo misto de


trabalho, visando assim otimizar tempo e recursos. Esta proposta foi
levada ao comando da corporação e prontamente aceita8, fazendo com
que as reuniões fossem unificadas e transferidas para o Quartel General
da PMERJ.

166
Haydée Caruso, Luciane Patrício e Elizabete R. Albernaz

Assim, o primeiro grande obstáculo ao processo havia sido


superado. Era preciso discutir a realidade da PMERJ com os seus próprios
integrantes, no interior de sua instituição. Romper com os pré-conceitos
de ambos os lados e construir um ambiente que propiciasse uma escuta
ativa, capaz de permitir aos PMs falar abertamente de seus dilemas,
resistências e desafios e, em contrapartida, admitir que a equipe do Viva
Rio fizesse ponderações sem medo de sofrer constrangimentos mostrou-
se crucial.

Como documentos referenciais para o início do processo, optou-


se por recuperar o que a PM já havia produzido em prol de uma agenda
de mudanças institucionais. A surpresa foi constatar que, ao longo de sua
história, o único Plano Diretor encontrado datava de 1984. Foi produzido
sob a orientação e comando do Coronel Carlos Magno Nazaré Cerqueira,
conteúdo que, entretanto, nunca foi implementado.

Impressionou a todos os envolvidos no processo, policiais ou civis,


a qualidade do documento e a atualidade de suas propostas. Entretanto,
ficava também patente um grande desconhecimento da própria corporação
em relação ao Plano Diretor de 84. Somente um pequeno grupo de oficiais
conhecia-o em profundidade, tendo em vista ter, de alguma maneira,
participado de sua construção.

Aqueles que sob comando do Coronel Cerqueira eram tenentes e


capitães, hoje estão nos postos mais altos da carreira policial militar e,
como se quisessem retomar o tempo perdido, propuseram ao Viva Rio a
atualização do Plano Diretor da PMERJ. Todavia, passados tantos anos da
primeira edição, verificou-se a concreta necessidade de primeiro elaborar
um profundo diagnóstico, que permitisse sustentar qualquer proposta de
mudança.

É importante relembrar quem foi Carlos Magno Nazaré Cerqueira:


o primeiro comandante de carreira policial militar a comandar a instituição,
rompendo com 175 anos de história onde Generais e Coronéis do Exército
exerciam o alto comando da Corporação. Cerqueira foi também o primeiro
policial negro a assumir tal posto. Sua trajetória profissional chama atenção
por seu amplo interesse em dialogar com o mundo acadêmico e com a
sociedade civil organizada, rompendo barreiras e propondo um diálogo
entre universos tradicionalmente distantes e antagônicos.

167
“A Polícia que queremos”: considerações sobre o processo de
reforma da Polícia Militar do Rio de Janeiro

Em sua gestão, a Polícia Militar publicou seus principais documentos


de referência, utilizados até os dias atuais, mesmo datados de antes da
promulgação da Constituição de 1988. Como exemplo, destaca-se o
Manual Básico do Policial Militar, publicado em 1987 e até a presente data
sem atualização. Sua preocupação em elaborar estudos que gerassem
publicações extrapolou o ambiente intramuros dos quartéis e ganhou o
mundo acadêmico com a Coleção Polícia Amanhã, elaborada pelo Instituto
Carioca de Criminologia com apoio da Fundação Ford9.

Diante do objetivo preliminar de elaborar um amplo diagnóstico


institucional da PMERJ, foi definida a metodologia de trabalho, que previu
encontros semanais com os responsáveis pelas políticas setoriais da
corporação. Em cada encontro o roteiro proposto focava: a) apresentação
do cenário atual, b) problemas enfrentados e c) propostas de melhoria
para o seu setor.

Ao longo do processo de consulta, mostrou-se necessário ampliar


o foco da pesquisa, partindo para a realização de entrevistas em
profundidade com atores-chave, dentro e fora da corporação, e grupos
focais, a fim de contemplar também a perspectiva dos praças10 e dos
profissionais de saúde11.

Os dados produzidos pelo diagnóstico foram analisados pela equipe


técnica do Viva Rio à luz de um amplo levantamento bibliográfico sobre o
que hoje existe em termos de estudos, nacionais e internacionais, de
reformas institucionais de polícia. Foram consultados também os
documentos oficiais da PMERJ e das demais Polícias Militares do país.

Todo este material foi consolidado no documento “Diagnóstico


Institucional da Polícia Militar do Estado do Rio de Janeiro”, estruturado
em três grandes eixos temáticos: 1) A PMERJ e o Estado 2) A PMERJ e a
Corporação; 3) A PMERJ e a Sociedade. Este documento foi entregue ao
Comando Geral da corporação em dezembro de 2005.

A partir da consolidação destas informações, o grande desafio estava


em construir propostas que dialogassem com a realidade institucional
delineada pelo diagnóstico. Na perspectiva de quem atuou na
sistematização das informações, este seria o principal desafio que a PMERJ
iria enfrentar. Isto porque, ao longo de todo o processo de consulta, os

168
Haydée Caruso, Luciane Patrício e Elizabete R. Albernaz

atores acionados apresentavam com clareza os problemas enfrentados.


Todavia, no momento da proposição de alternativas para solucionar tais
problemas havia enorme dificuldade em construir concretamente uma
ação. Tal fato foi constatado tanto no círculo de oficiais quanto no círculo
dos praças.

Outras resistências foram constatadas e devem aqui ser pontuadas.


Em muitos momentos, a alta rotatividade dos cargos de chefia atrapalhou
a condução das atividades. A principal razão, dada a grande movimentação
de policiais entre as diretorias e setores da corporação, era a lacuna de
conhecimento mais aprofundado sobre a área investigada, prejudicando o
mapeamento setorial.

A realização de um diagnóstico desta magnitude, numa instituição


de larga escala como a PMERJ, pressupõe a adesão de seus atores, fato
que, por algumas vezes, não ocorreu, exigindo esforços redobrados de
convencimento sobre a relevância do processo.

Outro aspecto que por vezes dificultou o trabalho refere-se à falta


de informações sistematizadas e centralizadas. Cada setor produz diversos
tipos de dados não sistematizados e, portanto, incapazes de gerar
informações úteis para a tomada de decisão. Esta dificuldade foi sentida
com maior força quando o Viva Rio propôs um estudo complementar ao
diagnóstico institucional que focasse a saúde do policial militar, em especial,
as causas geradoras de altos índices de policiais militares mortos e feridos
em folga ou em serviço. Neste caso, parte das informações necessárias
estava armazenada no setor de pessoal, outra parte no setor de saúde e
ambos não dialogavam em prol da sistematização de tais informações.

A atuação de uma organização não governamental como facilitadora


do processo de coleta de informações também não foi algo trivial. Muitas
resistências e desconfianças surgiram, traduzindo-se em dificuldades em
conversar com determinados setores, ou melhor, com determinados
atores, que relutavam em “expor a corporação” para uma entidade que,
aos olhos de alguns, defendia exclusivamente os “direitos humanos dos
bandidos” ou que, na arena pública “só se colocava contra a PMERJ, fazendo
críticas e cobranças”.

Obviamente, a construção da legitimidade do Viva Rio na facilitação

169
“A Polícia que queremos”: considerações sobre o processo de
reforma da Polícia Militar do Rio de Janeiro

deste processo ocorreu de modo gradual, mas não consensual. Todavia,


importantes passos foram dados, resultando no diálogo com setores até
então distantes. A opção institucional do Viva Rio foi contribuir com a
sistematização e redação do documento, a partir do que os integrantes
da corporação identificavam como relevante. Tal escolha visava a construir
consensos sobre o que seria escrito e garantir que todos os consultados
se sentissem co-produtores desse investimento. Logo, a definição desse
lugar para o Viva Rio em muito facilitou a aceitação desse trabalho, fazendo
com que todos assumissem o diagnóstico como produto da PMERJ e não
de uma organização de fora da corporação.

O diagnóstico institucional foi entregue oficialmente em dezembro


de 2005 e, passados alguns meses sem maiores desdobramentos desta
ação, eis que a PMERJ traz à tona a discussão em torno das mudanças
institucionais, propondo que fosse criada uma comissão interna intitulada “A
Polícia que Queremos”. Esta comissão seria responsável por conduzir
consultas junto ao público interno e externo para coletar propostas de
mudança com base no diagnóstico previamente realizado. Posteriormente,
como desdobramento das atividades dessa comissão, foi realizado um
seminário, onde as propostas apresentadas foram discutidas e sistematizadas.

Eis o passo desafiador dado pela PMERJ, fato sem precedente na


história das polícias brasileiras, e que será objeto de nosso próximo
assunto.

O SEMINÁRIO “A POLÍCIA QUE QUEREMOS”

Ainda que a proposta inicial do Projeto Desenvolvimento Institucional


da PMERJ enfocasse a elaboração de um Plano Diretor para a Polícia Militar
do Estado do Rio de Janeiro, documento este que serviria como base
para pensar e projetar a instituição num espaço de aproximadamente 10
anos, o que foi possível perceber é que essa experiência trouxe outros
desdobramentos.

Assim, diante dos resultados dos grupos de trabalho que foram


constituídos no seminário “A Polícia que Queremos”, foi possível perceber
analogias e traçar paralelos entre o que os policiais militares e a população
carioca estavam vislumbrando para a modernização de sua polícia e o que

170
Haydée Caruso, Luciane Patrício e Elizabete R. Albernaz

tem sido discutido em âmbito federal nessa matéria. Além de pensar cada
setor estratégico da polícia militar a partir do debate em torno dos 10
eixos apresentados12, a metodologia proposta no evento pôde evidenciar
que, para desencadear um processo de modernização, seria preciso levar
em consideração não apenas aspectos estritamente comuns ao universo
policial, mas sua relação com as demais áreas e órgãos diretamente
interessados na promoção da segurança pública.

O Seminário “A Polícia que Queremos! Compartilhando a Visão e


Construindo o Futuro!” foi realizado pela Polícia Militar nos dias 18, 19 e
20 de julho de 2006. A metodologia foi dividida em três momentos: o
primeiro contou com a participação de todos os círculos hierárquicos da
PMERJ, através da coleta de dados (sugestões) em todas as unidades da
Polícia Militar. O segundo, realizado paralelamente, contou com a
participação da sociedade civil, tanto através da realização de reuniões
com grupos representativos, como da coleta de sugestões através de um
formulário eletrônico13, onde qualquer pessoa pôde enviar sugestões
dentre os 10 eixos apresentados. E, finalmente, o terceiro momento,
construído no seminário, onde os grupos temáticos 14 tinham como
objetivo discutir os temas em torno das propostas previamente levantadas
no público interno e externo.

O documento organizado como produto do seminário reuniu cerca


de 300 propostas. Ao final do evento, a Polícia Militar fez a entrega de seu
Relatório Final aos candidatos ao Executivo estadual do Rio de Janeiro, de
modo que pudessem ter conhecimento dos anseios da instituição e da
sociedade civil e planejassem suas propostas de governo à luz dos
resultados do seminário.

CONSTRUINDO UMA AGENDA DE SEGURANÇA PÚBLICA PARA O


RIO DE JANEIRO

O Plano Nacional de Segurança Pública do Governo Federal (PNSP),


documento lançado pela Secretaria Nacional de Segurança Pública (SENASP)
do Ministério da Justiça, dedica, dentre os pontos apresentados em seu
conteúdo, boa parte ao universo policial e especialmente à Polícia Militar.

Segundo o PNSP, um dos requisitos fundamentais para a implantação


de um processo de cultura de paz, é a modernização das instituições

171
“A Polícia que queremos”: considerações sobre o processo de
reforma da Polícia Militar do Rio de Janeiro

policiais, cuja transformação necessariamente passa pela revisão de seus


valores, de sua identidade institucional, de sua cultura profissional e de
seus padrões de comportamento.

Dentre os pontos levantados pelo Plano, direcionados


especialmente à Polícia Militar, é possível destacar:
· qualificação do Policiamento Ostensivo;
· reformulação dos regulamentos disciplinares;
· diminuição dos graus hierárquicos;
· controle rigoroso do uso da força letal (arma de fogo);
· redução do efetivo nas funções administrativas.

Traçando um paralelo entre o PNSP, ou seja, a política proposta


nacionalmente no que tange a segurança pública, e as propostas
apresentadas no seminário, é possível perceber, em primeiro lugar, que
muitas das reivindicações e necessidades apontadas no interior da PMERJ,
de alguma forma já tinham sido indicadas no documento da SENASP. No
conjunto das propostas que dialogam diretamente com os pontos acima
apresentados pode-se destacar:
· criação de equivalência dos Cursos de Formação de
Praças (Soldados, Cabos e Sargentos) e dos Cursos
de Formação de Oficiais a cursos técnicos (no caso de
praças) e a curso superior, no caso dos oficiais;
· imposição de rígido cumprimento de cargas horárias
de cursos de formação, de modo a acabar com uso
operacional de pessoal em formação, salvo em
situações excepcionais ou em funções de estágio;
· criação de Núcleo de Instrução em Defesa Pessoal e
Uso Comedido da Força;
· criação de corpo (fixo) de Instrutores Civis e Militares,
remunerados através de encargos especiais;
· valorização da filosofia e expansão do programa de
policiamento comunitário;

172
Haydée Caruso, Luciane Patrício e Elizabete R. Albernaz

· priorização da revisão e reformulação da legislação


referente aos processos administrativos disciplinares
e ao Regulamento Disciplinar da PMERJ, promovendo
a compatibilização com a ordem constitucional
(garantias individuais) e com os anseios sociais (pronta
resposta institucional);
· inclusão formal das entidades de classe para a
discussão, na assembléia legislativa, do Regulamento
Disciplinar da Polícia Militar;
· criação de instrumentos institucionais de controle
efetivo da letalidade policial em ocorrências que
resultem em confrontos armados, sejam aqueles
envolvendo a letalidade de civis ou de policiais. Para
tanto, seria fundamental a criação de um banco de
dados com informações precisas sobre este tipo de
ocorrências;
· necessidade de acompanhamento psicológico ex officio
do PM envolvido em ocorrências de confronto armado
com mortos e/ou feridos;
· criação de mecanismos de administração e controle
no uso de munições, armamento e viaturas.
É interessante destacar também que muitas foram as propostas
que tinham como objetivo criar instrumentos institucionais internos que
qualificassem o serviço policial. Nesse aspecto, destacam-se os seguintes:
· criação de uma Escola de Inteligência, que assumiria
toda parte educacional do Sistema de Inteligência da
PMERJ, vinculada a Diretoria de Ensino e Instrução;
· descentralização das Áreas Integradas de Segurança
Pública (AISPs), tornando-as menores, mais
homogêneas, em maior número. A cada AISP deve
corresponder a área de ação de uma Companhia da
PM e a circunscrição de uma Delegacia de Polícia;
· utilização do geoprocessamento nas áreas integradas
de segurança pública;

173
“A Polícia que queremos”: considerações sobre o processo de
reforma da Polícia Militar do Rio de Janeiro

· utilização de indicadores de avaliação quantitativos e


qualitativos, que não se restrinjam a apreensão de
armas, drogas e prisões efetuadas, buscando incorporar
outros indicadores que contemplem outras dimensões
da ação policial;
· integração no mesmo ambiente físico dos mecanismos
de atendimento da Polícia Militar, Civil, Rodoviária
Federal, Corpo de Bombeiros Militar, entre outros;
· criação, na PMERJ, dos Serviços de Saúde
Ocupacional, Promoção da Saúde e de Epidemiologia
e Estatística;
· criar Programa de Vigilância de Riscos, para prevenir
e reduzir vitimização de policiais (por causas externas
– ferimentos e mortes, em serviço ou folga, intencional
ou acidental e por causas internas – problemas de
saúde, física ou psicológica);
· criação de um sistema de dados com as informações
de todos os policiais de forma acessível para todas as
Unidades, visando a integrar as informações de diversos
órgãos, hoje descentralizadas;
· valorização e disseminação de modalidades alternativas
de resolução de conflitos, que não estejam pautadas
no enfrentamento pontual e repressivo;
· lavratura de Termos Circunstanciados pela Polícia
Militar, conforme determina a Lei nº 9099/95.

Por outro lado, é importante ressaltar que muitos foram os pontos


apresentados que evidenciam a necessidade da aproximação entre a polícia
e a sociedade, seja com a população no dia a dia, seja através de convênios
e parcerias com centros de produção de conhecimento, como
universidades e institutos de pesquisa. Neste sentido, observa-se a:
· criação de uma linha de estudo na área de Inteligência,
de modo a fomentar uma discussão sobre inteligência,
fórum no qual participarão o público interno e externo;

174
Haydée Caruso, Luciane Patrício e Elizabete R. Albernaz

· dinamização do telefone 190 e realização de


campanhas educativas para o cidadão quanto ao bom
uso do sistema;
· estabelecimento de parceria com a imprensa, de
modo pró ativo;
· reunião sistemática de especialistas e pesquisadores
policiais e não-policiais para elaborar indicadores de
avaliação do trabalho policial;
· realização de pesquisas de vitimização a fim de
identificar a sensação de segurança das pessoas e sua
relação com a imagem da polícia;
· inclusão nos critérios de ascensão profissional,
pontuações que valorizem ações policiais voltadas para
a promoção da cidadania e a garantia dos direitos
constitucionais;
· criação de uma política de segurança cidadã que deve
reconhecer e respeitar o cidadão como sujeito de
direitos;
· fortalecer os canais de cooperação entre a polícia e a
sociedade, tais como Conselhos Comunitários de
Segurança;
· inserção na prática policial da mediação de conflitos e
do diálogo com a comunidade, viabilizando a sua co-
participação nas políticas de segurança;
· criação de estratégias regulares de prestação de
contas à sociedade;
· envolvimento das universidades e centros de pesquisa
no processo de melhoria da polícia.

E, finalmente, em que pese o esforço de construir um conjunto


sugestões para a modernização policial militar, muitas foram as propostas
relacionadas a questões mais amplas na agenda de segurança pública, cujo
foco principal não seria a PM, mas o sistema de uma maneira geral, evidenciando

175
“A Polícia que queremos”: considerações sobre o processo de
reforma da Polícia Militar do Rio de Janeiro

que o processo de modernização de uma instituição policial necessariamente


apontará para questões mais estruturais nesta área. São elas:
· criação de uma regulamentação que proíba o
secretário de segurança de se candidatar a cargos
políticos imediatamente após a sua saída do governo;
· realização efetiva de um trabalho integrado entre
estados e municípios, de modo a investir nos problemas
de ordenamento público;
· integração entre a Polícia Militar e a Polícia Civil.

Vale lembrar que um passo fundamental para iniciar qualquer


processo de mudança é a elaboração de um diagnóstico que subsidie a
construção de uma política pública. Um diagnóstico que contemple
informações qualificadas e consistentes, que reúna dados quantitativos e
qualitativos. Um bom diagnóstico, com dados confiáveis e elaborado com
rigor científico, é o primeiro passo para a concepção de uma política e,
com esta, o planejamento das ações e a definição de metas claras e de
indicadores de avaliação.

Seguindo o mesmo raciocínio e reconhecendo a importância da


qualificação e elaboração de uma pesquisa que indique pontos nevrálgicos
na instituição policial militar, dentre o conjunto de propostas incluídas no
documento final do seminário, foi definida uma Ação Preliminar: a elaboração
de um censo da Polícia Militar do Estado do Rio de Janeiro. Esta iniciativa
serviria como fonte de informação não apenas para a construção de uma
nova política de pessoal, como também para inaugurar uma cultura de
valorização e qualificação da informação, reunidos num banco de dados
que reflita o universo da Polícia Militar, facilitando assim o planejamento de
suas ações.

Passado mais de um ano, é possível constatar que o censo


institucional, definido como prioridade inicial, ainda não foi desenvolvido
conforme previsto. Entretanto, algumas das ações começaram a ser
executadas, mesmo que de modo pontual, como, por exemplo, a criação
de instrumentos institucionais de controle da letalidade policial e a
reformulação do currículo do curso de formação de oficiais, com vistas a
transformá-lo num curso de graduação em segurança pública. Tais ações,

176
Haydée Caruso, Luciane Patrício e Elizabete R. Albernaz

no entanto, não guardam entre si uma linha de trabalho comum de maneira


a representar um processo sistêmico de mudança institucional.

Bibliografia
ARAÚJO FILHO, Wilson. 2003. Ordem pública ou ordem unida? Uma análise do curso de
formação de soldados da Polícia Militar em composição com a política de segurança pública
do governo do Estado do Rio de Janeiro. In: Políticas Públicas de Justiça Criminal e Segurança
Pública. EDUFF.
BRETAS, Marcos Luiz. 1997. A Guerra das ruas: povo e polícia na cidade do Rio de Janeiro. Rio
de Janeiro. Arquivo Nacional.
FRÜHLING, Hugo. 2003. “Policía Comunitaria y Reforma Policial en América Latina. ¿Cuál
es el impacto?”. Série Documentos do Centro de Estudios en Seguridad Ciudadana, Instituto de
Asuntos Públicos de la Universidad de Chile.
HOLLOWAY, Thomas H. 1997. Polícia no Rio de Janeiro. Repressão e resistência em uma
cidade do século XIX. Rio de Janeiro. Fundação Getúlio Vargas.
KANT DE LIMA, Roberto. 1995. A polícia na cidade do Rio de Janeiro. Ed.Forense.
MUNIZ, Jacqueline. 2001. “A Crise de Identidade das Polícias Militares Brasileiras: dilemas
e paradoxos da formação educacional”. Security and Defense Studies Review. Vol. 1. Washington,
DC.
MUNIZ, Jacqueline. Ser Policial é sobretudo uma razão de ser. Cultura e cotidiano da Polícia
Militar do Estado do Rio de Janeiro. Tese de Doutoramento em Ciência Política. IUPERJ. 1999.
_______________. 2002. “Recomendações para a Reforma Policial na América Latina”.
PONCIONI, Paula. 2004. Tornar-se policial: a construção da identidade profissional do policial
do estado do Rio de Janeiro, Tese de doutoramento em Sociologia, USP.
DA SILVA, Jorge. 2005. Violência e identidade social: um estudo comparativo sobre a atuação
policial em duas comunidades no Rio de Janeiro. Tese de doutoramento, UERJ.
Centro de Estudos de Segurança Cidadã – CESC, Santiago, Chile.
Diagnóstico Institucional da PMERJ. Viva Rio, 2005. (no prelo)
Plano Nacional de Segurança Pública. Secretaria Nacional de Segurança Pública/Ministério da
Justiça, 2003.
Seminário “A Polícia que queremos! Compartilhando a visão e construindo o futuro”. Relatório
final consolidado. PMERJ, 2006

Notas
1
O relato aqui apresentado foi originalmente apresentado na coletânea Cadernos Adenauer,
Brasil: O que resta a fazer? Vol 3. Rio de Janeiro, 2006.
2
Vide exemplos: Projeto “Integração e Gestão da Segurança Pública” (IGESP), desenvolvido pelo
Centro de Estudos em Criminalidade e Segurança Pública (CRISP-UFMG); Formação Integrada
de Policiais Militares e Policiais Civis da Polícia Militar do Estado de Pernambuco (PMPE), da
Polícia Militar do Estado do Paraná (PMPR) e da Polícia Militar do Estado do Rio de Janeiro
(PMERJ), através do Curso de Políticas Públicas em Justiça Criminal e Segurança Pública da
Universidade Federal Fluminense (UFF); iniciativas de interlocução comunitária como os
Grupamentos de Policiamento em Áreas Especiais (GPAE-PMERJ), o Grupo Especializado de
Policiamento em Áreas de Risco (GEPAR-PMMG); iniciativas de valorização policial como o
“Prêmio Policia Cidadã”, realizado pelo Instituto Sou da Paz.

177
“A Polícia que queremos”: considerações sobre o processo de
reforma da Polícia Militar do Rio de Janeiro

3
Projeto financiado pela Fundação Konrad Adenauer no período de 2005/2006.
4
A PMERJ possui 37502 policiais na ativa e 23 mil inativos. Fonte: PMERJ/PM1-2006.
5
O Conselho Diretor é constituído por integrantes de diversos segmentos representativos da
sociedade fluminense, tais como: empresários, acadêmicos, jornalistas, lideranças comunitárias,
esportistas, artistas entre outros.
6
Importantes referências de estudos sobre a PMERJ são Bretas (1997), Holloway (1997), Muniz
(1999), Araújo Filho (2003), Poncioni (2004), Caruso (2004) e Silva (2005).
7
As reuniões ocorreram na Assessoria de Planejamento, Organização e Modernização – APOM
sob a coordenação logística do chefe deste setor e coordenação operacional do CEL PM Ubiratan
Ângelo, então Diretor de Ensino e Instrução, atual Comandante Geral da corporação.
8
Foi publicada a criação do Grupo de Trabalho em Boletim Interno da PMERJ, principal
instrumento de comunicação da Instituição.
9
Destaca-se nesta coleção o último volume, publicado após a morte do Cel Cerqueira, e intitulado:
“O futuro de uma ilusão: o sonho de uma nova polícia”. Esta obra encerra prematuramente a
carreira de um dos mais respeitáveis oficiais de Polícia Militar no Brasil.
10
Os praças da PMERJ (soldados, cabos e sargentos) correspondem a 93% do efetivo da corporação.
Fonte: PM1/PMERJ-2005.
11
Foram consultados policiais médicos e também profissionais civis que atuam na área de
saúde.
12
Eixo 01: Pessoal; Eixo 02: Ensino e Instrução; Eixo 03: Inteligência; Eixo 04: Operacional; Eixo
05: Comunicação Social; Eixo 06: Apoio Logístico; Eixo 07: Orçamento e Finanças; Eixo 08:
Saúde; Eixo 09: Controle Interno; Eixo 10: Modernização Administrativa e Tecnológica e Eixo 11:
Visão do Cliente. Vale destacar que sobre o eixo 11, a proposta era levantar junto à sociedade
civil sugestões acerca de todos os eixos previamente elencados.
13
O endereço eletrônico para acessar o formulário foi www.apoliciaquequeremos.com.br. A
divulgação do mesmo foi realizada através da confecção de spots de serviço com duração de 30
segundos, veiculado pela TV Globo e algumas emissoras de TV. Foram recolhidas cerca de 5.000
propostas pela internet.
14
Foram formados grupos temáticos compostos, tanto por representantes da sociedade civil,
quanto por membros da corporação policial militar. Embora tenham sido concebidos enquanto
grupos mistos, a representatividade da sociedade civil em alguns temas foi limitada, bem como
de representantes do círculo dos praças.

178
L A
UE
N EZ
Comunicação VE

REFORMA POLICIAL NA VENEZUELA: UMA


EXPERIÊNCIA EM CURSO
Soraya El Achkar*

INTRODUÇÃO

Esta apresentação de trabalho pretende apresentar a experiência


venezuelana a respeito dos processos de reforma policial: propósitos,
plano de ação, metodologia de trabalho, principais resultados, perspectivas
e reflexões sobre os processos de reforma policial na América Latina.

É de conhecimento comum que os propósitos de reforma policial


estiveram vinculados à idéia de melhoras no serviço policial, de diminuir
as violações aos direitos humanos, otimizar a contribuição da polícia para
o sistema judicial, desenhar instâncias de inspeção da polícia e,
fundamentalmente, à expectativa que tem a população de reduzir os
delitos. Entretanto, os especialistas coincidem em indicar que ainda que
tenham sido gerados processos de reforma em quase todos os países da
região, ainda há muito a fazer porque não foram cumpridos os propósitos.

Depois de mais de duas décadas de reformas policiais na América


Latina, entendemos que é um processo contínuo, cíclico e inclusive
inesgotável, que requer permanentes arranjos a partir de uma visão de longo
prazo e que, além disso, deve ser resultado do consenso social e sempre
estar ajustado às variações na percepção social dos aspectos fundamentais.

Todos os especialistas coincidem em indicar que a reforma policial


implica a formação de novas atitudes, aptidões e comportamentos por
parte de todos os membros da polícia, que conduzam a uma nova forma
de pensar, a novos enfoques e a novos mecanismos de feedback para
supervisionar e avaliar objetivamente o desempenho policial. Mas, além
disso, implica um processo de mudanças de comportamento da população
em geral, dos atores políticos e das autoridades civis. Por isso, os efeitos
de qualquer reforma não poderão ser vistos em um prazo tão curto.

Todas as exposições na oficina de especialistas na Venezuela a respeito


da reforma policial coincidem em indicar que um processo de reforma tem
sucesso, é duradouro e sustentável se convergem três atores chave:
* Licenciada Soraya El Achkar. Red de Apoyo por la Justicia y la Paz

179
Reforma Policial na Venezuela: uma Experiência em Curso

1. o Estado, mediante uma clara política pública que


trace uma orientação a longo prazo e estabeleça os
compromissos econômicos, políticos e jurídicos para
torná-la sustentável;
2. os órgãos vinculados à segurança pública, que são
parte ativa da reforma e assumem o compromisso e
participam como agentes técnicos em sua
implementação. Os policiais, defensores, fiscais e juízes
devem impulsionar um plano de reforma integral de
todo o sistema de segurança pública;
3. a sociedade, as suas organizações, as comunidades
locais, que assumem o seu papel de participação e
controle, aproveitando os espaços que são gerados.
(El Achkar e Gabaldón; 2006)

Eu acrescentaria que ainda assim não é suficiente que haja participação


dos diferentes atores e sim que ocorram mudanças nas formas culturais
do poder da polícia. E ainda que é evidente que todo modelo de polícia
deve ser desenhado sobre a base do modelo de Estado e das políticas
que tenham sido formuladas sobre segurança pública. É definitivamente
inegável que o modelo contemple dispositivos que irrompam práticas
culturais que geraram um poder da polícia diluído em múltiplas ilegalidades.

Os especialistas asseguram que os processos de reforma policial


devem incluir os seguintes componentes: reforma do marco legal para
definir o mandato da polícia; os sistemas de organização, funcionamento e
dispersão territorial; infra-estrutura, equipamentos e tecnologia; recursos
humanos; sistema de seleção e educação; orçamentos; comunicação e
informação; participação e controle social. Não obstante, nenhuma reforma
pode dar resultado e ser sustentável no tempo caso não se consiga
identificar as práticas institucionais não formais que foram criando uma
cultura policial, que configura uma particular forma de relacionar-se com
o sistema judicial e de exercer governança, porque toda mudança só é
possível se é feita a partir de mudanças da rotina e se reorientam as práticas
institucionais não formais.

Porém, além disso, é necessário que haja certas condições

180
Soraya El Achkar

políticas e sociais para que os processos de reforma sejam possíveis e


sustentáveis no tempo:

1. um plano de ação racional e consensual, que acolha


as aspirações mais sentidas tanto pelos policiais quanto
pela população em geral, assim como o modelo
democrático a ser construído a partir de regras
constitucionais;

2. clara e sustentada vontade pública e orçamentária


para que, independentemente das mudanças dos atores
políticos, se possa seguir o plano de ação acordado;

3. uma opinião pública que se mantenha pressionando


a reforma, que estimule a vontade política, gere
informação suficiente sobre o processo de reforma
para que a população se aproprie do mencionado
processo e promova uma matriz a favor das mudanças
institucionais necessárias;

4. uma equipe de trabalho onde confluam atores


políticos e pessoal técnico especializado, interno e
externo para a instituição policial, que seja uma equipe
estável, que não se submeta ao vai-e-vem das mudanças
políticas, de tal modo que possa ir acumulando
conhecimentos na área;

5. informar permanentemente sobre todo o processo


de reforma a opinião pública, os policiais, os outros
componentes do sistema de segurança pública, para
que possam ser corrigidas as medidas tomadas (no
caso de erro) ou implementadas com maior facilidade
(no caso de acertos);

6. recomenda-se que toda reforma esteja


acompanhada de medidas de prevenção social que
contribuam para reduzir os graves problemas de
segurança cidadã sem comprometer o programa de
minimização da violência e aumento da prestação de
contas para a polícia.

181
Reforma Policial na Venezuela: uma Experiência em Curso

Asseguraram na oficina de especialistas na Venezuela que as


reformas policiais deveriam indicar à configuração de uma polícia como
um meio de força moderada para a criação de alternativas pacíficas,
de obediência sobre a base da aceitação social, uma polícia como
instrumento de administração e mediação de conflitos; em oposição a
qualquer vontade dentro da ordem social, cuja autoridade não é
negociável, o que requer independência e, ao mesmo tempo,
subordinação a princípios e regras.

Em todo caso, as reformas policiais continuam sendo um desafio


para todos os países da região e ainda que hoje tenhamos conhecimento
acumulado que nos permite pensar em processos de reforma de forma
mais acertada, é inviável se, em qualquer tentativa que façamos,
primeiro o fazemos com especialistas estrangeiros: segundo, sem
funcionários policiais convencidos e preparados para assumir tal
desafio; e por último, sem uma população capaz de se mobilizar a
favor da mencionada reforma. Por isso, é tão importante qualquer esforço
que seja feito para:
1. gerar espaços de diálogo reflexivo com funcionários
e funcionárias policiais da região sobre todas as arestas
da segurança pública e da democracia, os direitos
humanos, o enfoque de gênero, os processos de
reforma policial, entre outros temas tão importantes
para a promoção de uma cultura de justiça e paz;
2. a criação de redes que funcionem de forma
coordenada e ensaiem mecanismos de articulação com
a sociedade civil a favor dos processos da reforma do
setor de segurança na região continua, por enquanto,
sendo um desafio para a justiça e a paz.

CONTEXTO

O registro sistemático que as organizações de direitos humanos


fizeram durante mais de três décadas nos permite afirmar, sem duvidar,
que na Venezuela as corporações policiais e militares violam os direitos
humanos e que estão arraigados mecanismos de impunidade que impedem
a justa sanção dos responsáveis por estas violações. Uma evidência disso

182
Soraya El Achkar

são os dados que foram lançados nos últimos 16 anos pelos relatórios de
PROVEA. Uma média ponderada anual de 15 pessoas falecidas
mensalmente nas mãos de funcionários policiais1.

Pesquisa própria

Por sua parte, a Rede de Apoio à Justiça e à Paz (outra das


organizações não-governamentais de direitos humanos) atendeu e
assessorou durante o qüinqüênio 2000-2005 361 casos onde o direito à
vida, à integridade física, à inviolabilidade do lar ou à liberdade pessoal
foram vulnerados pelos organismos encarregados da segurança pública.

A Assembléia Nacional Constituinte (1999) conseguiu ampliar o


capítulo de direitos humanos e garantias constitucionais e o governo, desde
então, manteve um discurso a favor do respeito aos direitos fundamentais.
No entanto, na prática, não foram impulsionadas as reformas necessárias
em matéria de segurança e com relação às instituições policiais para reverter
a violência institucional que atenta contra a dignidade humana e enfraquece
o Estado de direito.

Através dos casos atendidos na Rede de Apoio, pôde ser realizada


uma pesquisa documental sobre os padrões das violações aos direitos
humanos e os mecanismos de impunidade durante o período 1985-1999.
Esta pesquisa, publicada no ano 2004, revela que todas as corporações
de segurança (as de caráter nacional, estadual e municipal) tiveram
responsabilidade nas violações aos direitos humanos. Mais de 90% das
vítimas são homens, entre os 15 e os 24 anos, de pele morena, residentes
em setores populares, com ofícios variados, estudantes, trabalhadores.

183
Reforma Policial na Venezuela: uma Experiência em Curso

Estas violações, cujas causas são muitas vezes desconhecidas, são de


responsabilidade de policiais no exercício de suas funções e estes graves
acontecimentos costumam ocorrer na rua ou em centros policiais com
aquiescência de funcionários da alta hierarquia.

Os padrões de atuação mais comuns, segundo esta pesquisa, são: o


uso desproporcional, indiscriminado, discricionário da força; a negligência
e imperícia no uso das armas de fogo; os múltiplos e aberrantes métodos
de tortura; as ameaças e a fustigação; a simulação de execuções, as
detenções arbitrárias; as invasões ilegais; a demora nas transferências das
pessoas feridas aos centros de saúde depois de tê-las ferido; os disparos
para o ar; a adulteração dos cartuchos; o porte de armas ilegais e de
entorpecentes. Os funcionários de um modo geral, quando fazem estes
procedimentos, não costumam portar sua identificação corretamente e,
pelo contrário, cobrem os rostos com capuzes.

O diagnóstico indica que são graves também as conseqüências destas


práticas vexatórias e alude: ao menosprezo pela confiança do público no
Estado de direito; ao agravamento do mal-estar social; à redução da eficácia
dos processos judiciais; à separação e ao isolamento da polícia de sua
comunidade; à deformação do conceito de aplicação da lei, privando-a de
toda licitude; ao enfraquecimento das instituições e do sistema
democrático; ao medo, à raiva, aos desejos de vingança no coração das
pessoas, que condicionam o seu comportamento social.

A Rede de Apoio indicou em uma sistematização publicada no ano


de 2004, onde se reúne um diálogo entre ativistas de direitos humanos e
polícias, que o diagnóstico que foi feito nestes últimos anos, a partitr de
diferentes setores da sociedade e do governo nacional, coincide em
apresentar um serviço de polícia incapaz de garantir a segurança cidadã e
o livre exercício dos direitos e liberdades fundamentais. O mencionado
diagnóstico se refere a: incapacidade estrutural de coordenação entre as
diferentes corporações de segurança pública; falta de controle externo
sobre as suas atividades; confusão dos critérios de eficácia e eficiência
com os de liberdade de ação; militarização em todos os níveis dos serviços
que são essencialmente civis; corrupção e ausência de mecanismos de
prestação de contas perante a população; ações violentas para o controle
da criminalidade; ausência de políticas preventivas e de pesquisa da
criminalidade; uma visão do problema centrado no agente e não na

184
Soraya El Achkar

instituição; pouca capacidade de reunir informação e fazer análises


estatísticas sobre criminalidade;, desdobramento irregular de efetivos na
cidade, com planos de efeito pouco confiáveis; baixos níveis de treinamento;
condições precárias de trabalho e instabilidade no trabalho; regulamentos
internos fora da legalidade; uma estrutura gerencial excessivamente rígida;
uma formação militarizada e violenta, que atenta contra os direitos
humanos. Vale dizer que o diagnóstico coloca em evidência o fracasso na
configuração de um serviço de polícia que responda às demandas de
segurança pública.

Depois da Constituinte de 1999, e com a aprovação das primeiras


leis habilitadoras no ano de 2001, a sociedade venezuelana ficou polarizada
em duas frentes políticas antagônicas e esta polarização, caracterizada
pela radicalização das posturas dos grupos e pela mútua negação e
exclusão, exacerbou os enfrentamentos simbólico-discursivos e físicos,
frente aos quais muitas das corporações de segurança não deram
respostas imparciais. A instrumentalização das corporações de segurança
por parte dos governos da vez enfraqueceram as instituições policiais,
tirando-lhes a sua função original de proteger a cidadania para impor-
lhes a tarefa de defender o Estado e os interesses de setores políticos
ou do governo.

Apesar das muitas tentativas na história da humanidade de diminuir


os níveis de violência e de alcançar formas de comportamento policial
que não atentem contra a dignidade humana, não conseguimos que a polícia
seja uma instituição que respeite os direitos humanos. Vejamos os esforços.

1. O mandamento de Deus “amem-se uns aos outros”, que está


sustentado na capacidade de melhorar moralmente.

2. A capacidade que supostamente, temos, os seres humanos, de


“auto-controle” ou “exercício de autonomia”.

3. O desenho de sistemas de governo democrático cuja


característica principal é o Estado de direito, o qual implica:
a) ter normas que, em teoria, são expressão da vontade
popular, evitam a discricionariedade, proporcionam
informações sobre as condutas dos sujeitos em marcos

185
Reforma Policial na Venezuela: uma Experiência em Curso

institucionais e, principalmente, que tenhamos que usar


a violência para resolver nossos conflitos;
b) uma separação de poderes e mecanismos
institucionais para que uns poderes controlem os outros;
c) a consagração constitucional da responsabilidade
administrativa, civil e política das autoridades;
d) a disposição dos direitos humanos no ordenamento
jurídico interno e os mecanismos para a sua defesa.

4. A existência da opinião pública que se estabelece como uma


consciência crítica, um tribunal moral contra as violações aos direitos
humanos, que exige aos que decidem reverter as políticas, fazer corretivos
institucionais.

5. Os argumentos da razão ou princípios pelos quais se apela para


legislar como são: a não discriminação; o uso adequado e proporcional da
força; o respeito das garantias do detido; a eficácia policial, que deve ser
exercida com respeito ao Direito; a proteção às vítimas; a desobediência
a ordens ilegais e arbitrárias.

No caso venezuelano, nenhum dos esforços anteriores foi suficiente,


como tampouco foi suficiente o trânsito para democracia com a aprovação
da Constituição de 1961, nem uma nova Assembléia Nacional Constituinte
realizada em 1999, na qual é feito um reconhecimento especial do tema
dos direitos humanos em todas as áreas da vida social. Tanto em situações
cotidianas “normais”, como em meio a graves conflitos sociais e políticos,
as instituições encarregadas de velar pela proteção da segurança não
responderam com o critério profissional e ético que se espera delas em
regimes democráticos.

No ano passado (2006), a imprensa nacional revelou um par de


acontecimentos de seqüestros onde funcionários policiais, de diferentes
corporações, estiveram envolvidos. O primeiro referido a um empresário
muito conhecido de nome Filippo Sindoni do estado de Aragua, que foi
assassinado, e o segundo caso é o seqüestro, durante mais de 40 dias,
dos irmãos Faddoul Diab e do motorista Miguel Rivas, que também foram
encontrados mortos.

186
Soraya El Achkar

REFORMA POLICIAL NA VENEZUELA:

A COMISSÃO

O Ministro do Interior, o engenheiro Jesse Cahcón, tomou a iniciativa


de formar uma ampla comissão dedicada à construção de um novo modelo
policial e apresentar ao país um caminho para a reforma policial. Esta
comissão era formada por representantes do: Ministério do Interior e da
Justiça, Tribunal Supremo de Justiça, Assembléia Nacional, prefeituras e
governos, Defensoria Pública, Ministério Público, Corpo de Inquéritos
Científicos Penais e de Criminalística, principais universidades com centros
de pesquisa na área criminal, igreja, empresariado e grupos de direitos
humanos.

O objetivo geral da Comissão para a Reforma Policial foi a construção,


através de um processo de diagnóstico e consulta ampla e participativa,
de um novo modelo de polícia para a sociedade venezuelana, mediante
um marco jurídico institucional e de gestão que permita concebê-la como
um serviço público geral, orientado pelos princípios de permanência,
eficiência, extensão, democracia e participação, controle de desempenho,
avaliação de acordo com processos e padrões definidos e planejamento e
desenvolvimento em função das necessidades nacionais, estatais e
municipais, dentro do marco da Constituição da República Bolivariana da
Venezuela e dos tratados e princípios internacionais sobre proteção dos
direitos humanos.

Esta Comissão definiu alguns princípios de trabalho que guiaram o seu


plano de ação, o desenho das estratégias para a abordagem do problema e da
organização de todas as atividades realizadas. Estes princípios são os seguintes:
a. participação, entendida como a mais ampla, plural e
democrática consulta de todos os setores da vida
nacional para alcançar um acordo fundamental sobre o
novo modelo que se propõe.
b. imparcialidade, entendendo que nesta tarefa deve
predominar o interesse coletivo, evitando a
subordinação a interesses particulares, o que supõe
que o modelo policial deve ser entendido como um
assunto de Estado.

187
Reforma Policial na Venezuela: uma Experiência em Curso

c. transparência, entendida como a difusão e publicidade


dos achados, critérios e propostas, a fim de que sejam
amplamente conhecidos e debatidos pelos cidadãos e
instâncias públicas e privadas em nível nacional.
d. co-responsabilidade, no entendimento de que a
segurança e a função policial supõem uma
responsabilidade compartilhada entre a sociedade civil
e o Estado.

PROPÓSITOS

Para alcançar o seu objetivo geral, a Comissão Nacional se propôs


três tarefas fundamentais, que foram cumpridas cabalmente em um lapso
de nove (9) meses, com a orientação política e estratégica de 16
comissionados, os quais mantiveram 36 sessões de trabalho e uma
Secretaria Técnica, que funcionou durante (6) meses, encarregada de
executar o mandato da Comissão e formada por um grupo de 30
funcionários contratados e 50 pessoas contratadas para estudos ou tarefas
específicas:
1. elaborar um diagnóstico geral da situação atual das
corporações policiais no âmbito nacional, regional e
municipal;
2. sugerir um modelo policial que possa se adequar às
condições sociais, culturais e políticas da Venezuela;
3. sugerir algumas recomendações imediatas que
favoreçam a efetividade no serviço policial, a diminuição
das violações aos direitos humanos e o controle da
gestão policial com foco no desenho proposto.

EIXO TRANSVERSAL: A CONSULTA

A construção do modelo passou, necessariamente, pela consulta


sobre critérios para a definição da função policial, das formas socialmente
aceitáveis para exercê-la, dos pontos fortes e mecanismos mais adequados
para conseguir o seu funcionamento em consonância com as necessidades
da comunidade. Nesse sentido, o plano de ação esteve articulado com
uma grande consulta nacional, desenvolvida mediante mecanismos difusos

188
Soraya El Achkar

(páginas da web, linhas de telefone gratuita e caixas físicas) e mecanismos


concentrados (oficinas setoriais, foros temáticos e mesas técnicas), onde
participaram aproximadamente 70 mil pessoas opinando sobre temas policiais
específicos de interesse nacional, regional ou local, durante dois meses
consecutivos. Esta consulta foi acompanhada de uma campanha de difusão
para que todo o país estivesse informado sobre os mecanismos de participação.

Esta consulta esteve orientada segundo 7 eixos temáticos que


facilitaram a discussão sem prejuízo de outros tópicos que pudessem ser
levantados pelos participantes da consulta (El Achkar e Riveros 2007):

Uso da força física

Se algo é próprio da polícia é o fato de que esta administra a força


física. Quando se exerce de forma proporcional, para proteger as pessoas
diante de ameaças violentas e de delitos, é um uso justo e adequado da
força. Mas quando se exerce de forma desproporcional ou em situações
nas quais não é necessária, estamos diante do uso abusivo da força. Por
isso, a consulta incluiu temas como: a regulação do uso da força por parte
da polícia; os problemas vinculados ao uso da força física; o treinamento
para o uso da força física; o gradualismo e os princípios de excepcionalidade,
proporcionalidade e legalidade na aplicação da força.

Corrupção

A corrupção é a obtenção de vantagens particulares ou para o grupo


de forma ilícita. Ainda que não seja exclusiva da polícia, existe consenso
em que, por múltiplos fatores, os organismos policiais estão muito
corrompidos, e isso se traduz em muitos abusos, não necessariamente
físicos, contra os cidadãos e as cidadãs. Por esse motivo, a consulta incluiu
temas como: a identificação das diferentes formas de corrupção na polícia;
a relação entre corrupção policial e delinqüência; as estratégias, políticas
e estímulos institucionais e comunitários para controlar e repreender a
corrupção na polícia; as causas da corrupção na polícia; e o encobrimento
como parte da cultural organizacional.

Cultura organizacional

Assim como nas famílias existem valores, princípios e regras não


escritas que definem e marcam cada uma delas, nas instituições existe

189
Reforma Policial na Venezuela: uma Experiência em Curso

uma cultura organizacional, muitas vezes não escrita, mas que tem grande
incidência no comportamento de seus membros. A cultura organizacional
da polícia foi analisada levando em consideração temas como: as políticas
de disciplina; a supervisão, a obediência e a discricionariedade dos
funcionários e das funcionárias; o sentido de camaradagem e o apego
institucional; a autonomia e a permanência diante das mudanças de governo.

Carreira policial

Ser policial é uma carreira. Tanto porque é necessário estudar para


exercer essa importante função, quanto porque é possível (com o tempo,
os conhecimentos, a experiência e os méritos) obter melhores cargos e
posições dentro da instituição. Em conseqüência, a consulta contemplou
temas como: as políticas de captação, seleção, incorporação e indução;
as políticas de reconhecimento, reforços, permanência e fortalecimento
do sentido de pertencer à instituição policial; as políticas de formação,
treinamento, capacitação e currículo acadêmico; os sistemas de proteção
social do pessoal e os seus direitos trabalhistas; as políticas de avaliação
de desempenho e promoções; e as possibilidades de projeção e
desenvolvimento institucional.

Gestão e eficiência

Fazer com que a instituição funcione e que cumpra os seus objetivos


é essencial para toda organização. No caso da polícia, o seu correto
funcionamento implica maior segurança e proteção dos direitos das
pessoas. É por isso que foram incluídos temas como: o aproveitamento
dos recursos; os indicadores para medir a criminalidade e avaliar a eficiência
do desempenho policial; a articulação da polícia com o sistema de justiça
penal: as capacidades, aptidões, habilidades e destrezas que constituem o
perfil de um funcionário policial; a dotação de recursos para o adequado
desempenho da tarefa policial; a continuidade administrativa; e o vínculo
com a comunidade.

Prestação de contas

Toda instituição deve saber se está ou não cumprindo os seus


objetivos e metas. No caso da polícia, trata-se da proteção à população,
sem discriminação de qualquer tipo, através de diferentes vias. É por isso
que a consulta abarcou: as formas efetivas de acompanhamento, avaliação,

190
Soraya El Achkar

diagnóstico e controle; o controle interno e externo; a participação


comunitária na avaliação e no controle policial; a disciplina e as sanções.

Atenção às vítimas

As vítimas podem ser aquelas pessoas afetadas pela delinqüência e


aquelas afetadas pela própria atuação policial inadequada. Assim que este
eixo contemplou temas como: o abuso de poder; a compensação e a
indenização às vítimas, a proteção contra retaliações; a mediação e
resolução de conflitos; e o tratamento digno e respeitoso às vítimas da
delinqüência ou aos afetados pela própria polícia.

Estrutura e competências

Como se organiza e do que se encarrega a polícia é um tema muito


importante no debate. Por isso, foram incluídos aspectos como: a
centralização e a descentralização das competências; a efetividade e a
eficácia de cada estrutura organizacional; as competências em situações
normais e excepcionais; a autonomia da gestão e a necessidade da
coordenação policial inter-institucional.

Mecanismos de consulta

A consulta difusa:

A consulta difusa esteve dirigida a toda a população e as


contribuições, opiniões e/ou recomendações foram realizadas mediante
perguntas abertas ou de seleção, com a participação individual, fluida e
confidencial. Três mecanismos diferentes coletaram mais de 60 mil opiniões
diferentes em todo o território nacional.

Uma página da Web que tinha espaços para fóruns virtuais, outros
para responder uma pesquisa semi-aberta e espaços para que a Comissão
informasse sobre todas as suas atividades e os resultados prévios.

Cerca de 1000 caixas foram distribuídas em todo o território


nacional (prefeituras, governos, corporações policiais, principais registros,
tabelionatos, bancos, farmácias, centros comerciais, estações de metrô,
escritórios do Ministério Público), assim como também foram feitas batidas
especiais nos feriados, com jovens que percorreram os principais centros

191
Reforma Policial na Venezuela: uma Experiência em Curso

comerciais. Os questionários foram publicados durante 15 dias em 3 jornais


de circulação nacional e também foram colocados nos centros de
armazenamento de caixas para envio de respostas.

As ligações telefônicas funcionaram por duas vias diferentes. As que


entravam por um número gratuito (0-800-Refopol), onde as pessoas
podiam respondem a três perguntas fechadas. As de saída, que foram
feitas pelo serviço de telefonia a mais de 40 mil famílias venezuelanas de
diferentes estratos sociais com perguntas fechadas.

Foi criada uma grande base de dados para registrar os resultados


que foram lançados pela consulta difusa, na qual foram desenhadas mais
de 45 descrições em uma escala de 6 valorações diferentes e todas as
papeletas, as mensagens na Web e de telefone foram coletadas para poder
conhecer a opinião geral da população sobre as questões consultadas.

Nos mecanismos difusos, a consulta lançou basicamente a) que a


polícia é uma instituição corrupta, b) que é necessário desenhar
mecanismos expeditivos e eficientes para a sanção das faltas cometidas
pelos funcionários e c) que os cidadãos podemos cooperar com as
denúncias das irregularidades para ajudar a resolver os problemas da Polícia.

A consulta concentrada:

Na consulta concentrada trabalhamos com três mecanismos


diferentes: os fóruns regionais, as oficinas setoriais e as mesas técnicas.

O Fórum Temático Regional foi um espaço de encontro para a


discussão e o debate entre instituições públicas e privadas sobre os pontos
fortes e fracos do desempenho policial, em sentido amplo e com referência
particular às diversas corporações policiais da região, com o objetivo de
identificar áreas de intervenção e propostas para a definição de um modelo
policial para o país, diferenciando as características e as propriedades
gerais das particulares ou específicas em função das condições regionais e
locais do serviço policial. Todos os fóruns realizados foram organizados
com as universidades do país.

A oficina era um espaço de reflexão em pequenos grupos que facilita


o debate a partir de experiências pessoais e de grupo a propósito da
função policial, dos mecanismos de controle, das áreas de necessária

192
Soraya El Achkar

intervenção, do modelo mais desejável para o país e a região em particular.


As oficinas foram convocadas pelas alianças que a Comissão conseguiu
estabelecer em todo o território nacional com governadores e
governadoras, prefeitos e prefeitas, diretores e funcionários de
corporações da polícia nacional, estadual e municipal, incluindo a Guarda
Nacional, acadêmicos em geral e especialistas no campo, estudantes
universitários, operadores penais (fiscais, juízes, defensores públicos),
representantes da Defensoria Pública, indígenas, estudantes,
transportadores, comunidades populares, camponeses, meninos, meninas
e adolescentes, trabalhadores sexuais e transexuais, transgressores
intervindos pelo sistema e transgressores sem nenhuma intervenção do
sistema penal, empresários e empresárias, sindicatos, familiares de vítimas
de abusos policiais, trabalhadores organizados e informais, pescadores,
mães de setores populares, jovens de setores populares e de classe média,
organizações sociais e de direitos humanos, representantes das principais
igrejas.

A seleção dos grupos não foi arbitrária, respondia a alguns critérios


de justiça: a) os grupos que se veriam diretamente afetados pela política a
ser desenhada, b) grupos das diferentes regiões do país, c) grupos que
respondiam aos mais diversos setores da vida nacional, d) os grupos
tradicionalmente vulnerados pela ação policial.

De todos os setores consultados, a Comissão Nacional pôs ênfase


especial naqueles setores que se veriam afetados mais diretamente pelo
desenho da política, como é o caso dos funcionários civis ou militares em
exercício de funções policiais. Estávamos convencidos de que estes grupos
contribuiriam significativamente tanto no diagnóstico dos principais e mais
graves problemas, quanto na construção das possíveis fórmulas que
servissem na correção das políticas institucionais.Ee assim foi. Os policiais
que participaram cooperaram abertamente na elaboração de um novo
modelo policial, colocando os elementos-chave no diagnóstico e sugerindo
as recomendações que serviram de base para o desenho do novo modelo
policial. Agora estamos seguros de que a implementação será um processo
sem maiores resistências, já que os policiais (aos quais lhes corresponde
principalmente a tarefa de implementar) foram partícipes da construção
do novo modelo.

As mesas técnicas serviram para agrupar os atores chaves e alcançar


acordos mínimos em relação às mudanças normativas e políticas que supõe

193
Reforma Policial na Venezuela: uma Experiência em Curso

o novo marco constitucional e legal em referência a 1) segurança pública


e condições de trabalho (benefícios trabalhistas ou socioeconômicos) das/
dos funcionárias/os policiais; 2) um modelo desejável de regime disciplinar
para as instituições policiais, e 3) melhor modelo democrático de Polícia
de Investigação.

Para o registro de toda a informação da consulta concentrada, foram


feitos relatórios por cada oficina setorial e estes foram passados para uma
grande matriz de “problemas e propostas” com a sua respectiva
ponderação, segundo os níveis de recorrência em cada tema levantado.
Assim podemos identificar os consensos e os nós problemáticos em cada
eixo temático. Eram os nós os que foram sendo discutidos no seio da
Comissão para elaborar fórmulas constitucionais e éticas de resolução.

Na consulta concentrada os temas relevantes foram: o uso


desproporcional da força, os múltiplos mecanismos de corrupção e de
impunidade dentro das corporações policiais, a interferência política na
organização policial, a dispersão e improvisação da formação policial, a
instabilidade de trabalho dos funcionários, a ineficiência da gestão das
diferentes corporações de segurança, a ausência de mecanismos de
participação comunitária no controle da administração e gestão policial, a
atenção imprópria para as vítimas, as condições de trabalho injustas.

Oficinas com especialistas

No marco desta consulta, foram organizados dois eventos que


conseguiram convocar mais de 25 especialistas - dentro e fora do país –
dedicados aos estudos sobre a polícia e sobre os processos de reforma,
com a finalidade específica de analisar, por um lado, as experiências que
tivessem expandido a eficiência, o profissionalismo, a prestação de contas
e a avaliação de gestão da polícia e, por outro lado, aspectos críticos da
função policial, incluindo o uso da força e os mecanismos de
acompanhamento e controle.

A Comissão Nacional para a Reforma Policial organizou a consulta


nacional com o propósito de coletar informação detalhada sobre as práticas
policiais concretas porque o fato de saber tanto e com tanto detalhe é
uma contribuição para a melhoria do estado atual das coisas, pois só uma
ampla e detalhada base de informação pode favorecer o desenho de

194
Soraya El Achkar

políticas públicas pertinentes, acertadas e com capacidade de corrigir os


projetos institucionais.

É a informação que proporciona os elementos necessários para


que o desenho das políticas públicas seja feito de forma racional, coerente,
ajustada à realidade e com critério de correção. A Comissão Nacional
manteve uma reunião com todos os diretores dos meios de comunicação
para apresentar o plano de trabalho e solicitar-lhes que promovessem
investigações jornalísticas sobre os 8 eixos temáticos da reforma policial,
artigos de opinião e colunas permanentes sobre a situação atual da polícia
e as expectativas que sobre ela se tem. Esta solicitação foi feita sob a
consideração que o escrutínio público comunitário é fundamental em um
sistema democrático, onde as políticas públicas devem responder às
necessidades deliberadas publicamente e são produto de um acordo
nacional.2

A idéia de consultar tem seu apoio nos princípios da democracia


que, mesmo entendendo, não são um remédio que sane os males de forma
automática. Constitui uma oportunidade que deve ser aproveitada para
acordar desenhos institucionais que respondam às demandas mais sentidas
pelas pessoas. Assim, a consulta nacional sobre a polícia acrescentou um
valor instrumental à democracia porque permitiu aos cidadãos e cidadãs
a) ter um canal de expressão que lhes permitisse conseguir a atenção
requerida às suas demandas; b) a oportunidade de aprender uns com os
outros; c) delinear os seus valores e prioridades como sociedade e d)
desenhar as instituições públicas que estarão a serviço de todos.

Definitivamente, a Consulta foi um exercício de reflexão ideo-político


que permitiu que todos os setores expressassem publicamente o que
desejam e valorizam; expusessem os seus argumentos e juízos sobre os
problemas que mais lhes angustiam como comunidade; mostrassem os
seus esquemas axiológicos e exigissem atenção a suas demandas.

As reformas policiais devem ser entendidas como um processo


não só de reformas institucionais internas das polícias, mas sim como um
processo que promova o ofício da cidadania, entendendo que este ofício
não é mais que um conhecimento prático vinculado às práticas discursivas
que se constroem essencialmente a partir dos desenhos institucionais
estabelecidos. O ofício da cidadania se aprende, como se aprende o

195
Reforma Policial na Venezuela: uma Experiência em Curso

exercício da democracia, e para isso é necessário criar as oportunidades


e os mecanismos de diálogo e deliberação onde podem ser desenvolvidos
os juízos morais iniludíveis na construção da comunidade política (El Achkar
e Riveros 2007).

O ofício da cidadania é uma prática eticamente boa em si mesma


porque sempre é a definição de um exercício moral e a execução de uma
prática de compromisso. Não é um mero status legal, a cidadania se traduz
em práticas políticas que supõe mcerto saber prático-normativo, onde
se manifesta a capacidade de interpretação e deliberação a respeito do
bem comum (entendido este não como a soma dos bens privados, mas
sim como o que beneficia o conjunto da sociedade), assim como a
capacidade para julgar e atuar correspondentes às realidades do público e
do político e, portanto, o ofício da cidadania constitui uma qualidade moral.
Sob esta premissa, a Comissão Nacional para a Reforma Policial assumiu
que a consulta nacional podia ser também um espaço para educar na virtude
cívica que implica essa vontade orientada para administrar o bem de todos,
nas questões públicas (El Achkar e Riversos 2007).

ESTUDOS DIAGNÓSTICOS

Além da consulta, a Comissão Nacional para a Reforma Policial na


Venezuela realizou vários estudos diagnósticos que permitiram caracterizar
a polícia venezuelana e desenhar a primeira base de dados sobre as 126
polícias no país.

Os estudos foram os seguintes:


1. um Relatório de Autopercepção Policial, realizado sobre a base
de 2.217 pesquisas e 8 entrevistas em profundidade realizadas com
funcionários policiais e da Guarda Nacional.
2. um Relatório de Análise Organizacional dos corpos de segurança
do Estado, sobre a base de informação obtida em 11 corporações policiais
estatais e 29 municipais.
3. uma pesquisa Nacional de Vitimização e Percepção Policial,
aplicada em nível nacional através de um processo de seleção aleatório de
moradias emuma amostra de 6.945 moradias.
4. um Relatório da Formação Policial na Venezuela, com base em

196
Soraya El Achkar

30 institutos de formação.
5. um Relatório de Análise do Orçamento das Corporações Policiais
Estatais e Municipais da Venezuela, realizado com base em uma amostra
de 18 corporações estaduais e 48 municipais.
6. um inventário de normas jurídicas reguladoras das corporações
policiais da Venezuela.
7. um relatório de Compromissos Internacionais do Estado com
organismos de direitos humanos
8. um relatório de caracterização do Corpo Técnico da Polícia Judicial
(CICPC)
9. uma pesquisa feita com cada uma das 126 polícias do país com
mais de 80 perguntas diferentes.

Toda a informação, tanto da consulta nacional quanto do diagnóstico


institucional deve receber o tratamento necessário para a construção de
argumentos que não são mais que cápsulas de informação que restringem
as decisões discricionárias, arbitrárias ou caprichosas por parte do tomador
de decisões público e sobre as quais todo o desenho institucional deve se
apoiar. Em nosso caso, a Comissão criou os mecanismos de participação e
os dispositivos para processar toda a consulta nacional e cruzar variáveis
qualitativas e quantitativas que permitissem desenhar uma política pública
ajustada ao diagnóstico participativo, às expectativas de todos os setores,
aos acordos e dissensos, às estruturas mais desejáveis e às demandas exigidas.

Caracterização da polícia venezuelana

Os dados que na continuação são especificados estão amplamente


indicados no relatório de caracterização realizado pelo comissionado
professor Andrés Antillano e publicados em “A polícia venezuelana.
Desenvolvimento institucional e perspectivas de reforma no início do
terceiro milênio (2007)

O estudo realizado pela Comissão Nacional para a Reforma Policial


indica que, em termos gerais, a polícia venezuelana é uma instituição
ineficiente, que realiza um uso inadequado da força, sem critérios de
funcionamento unificados, sem mecanismos de controle internos e externos

197
Reforma Policial na Venezuela: uma Experiência em Curso

eficientes, que afeta negativamente os setores populares, que carece dos


recursos adequados para melhorar o seu desempenho e garantir aos
funcionários a plenitude de seus direitos sociais e que é percebida pela
população com desconfiança.

Os dados mostram que na Venezuela existem 126 corporações


policiais: 24 estatais e 99 municipais. Adicionalmente cumprem funções
de polícia preventiva ou ostensiva: a Guarda Nacional, o Corpo de
Investigações Científicas Penais e Criminológicas e o Corpo de Guardas
de Trânsito Terrestre.

Entre 1990 e 2006, foram criadas 105 novas polícias, o que supõe
um aumento de 363,64%. Contamos no país com uma taxa de 457,18
funcionários por cem mil habitantes cumprindo funções de polícia
ostensiva e, no entanto, não resolvemos os problemas de segurança
pública e a distribuição dos funcionários não é a mais adequada. 17 dos
24 estados têm uma taxa menor que o padrão de 350,19 por cada
100.000 habitantes.

Os problemas mais importantes:

Pluralidade de normativas que regulam a atividade policial (21 leis


estaduais e 77 decretos e disposições municipais), a doutrina, os manuais
de procedimentos, os critérios e mecanismos de seleção e entrada.

Uso ineficiente dos recursos policiais disponíveis: do número total


de agentes policiais, aproximadamente 11% estão inativos, 10% se
encontram em comissão de serviço ou de férias no momento de coleta
da informação, outros 10% estão destacados em funções administrativas.

Do total de agentes operativos, só 52% realizam atividades


relacionadas à segurança pública (patrulhamento e investigação), enquanto
o resto tem como funções designadas a custódia de edifícios, a proteção
a personalidades, o trabalho de transporte e logística, entre outras.

Existência de muitas polícias dos níveis organizacionais


claramente diferenciados e separados (agentes e oficiais) e um déficit
freqüente de gerentes médios e supervisores, além de uma cultura
fortemente militarizada que impediu o trânsito para uma polícia
eminentemente civil.

198
Soraya El Achkar

A subordinação e dependência das polícias aos comandos políticos


é um problema relevante.

O funcionamento da maior parte das polícias depende da designação


orçamentária que realizam os governos e as prefeituras segundo as suas
prioridades (98% de seus recursos provêm das contribuições destes
entes), o que faz que as suas atividades e o desenvolvimento estejam
sujeitos à agenda conjuntural do executivo).

70,33% das polícias não contam com manuais de procedimentos e


76% não contam com manuais de organização, portanto os procedimentos
para a seleção, a entrada, as ascensões e a designação de tarefas e funções,
assim como as sanções disciplinares e a aposentadoria são discricionárias
e arbitrárias, de acordo com a vontade dos políticos da vez.

O mesmo acontece com o regime disciplinar que se caracteriza


por ser: heterogêneo, discricionário, arbitrário, contraditório com os
princípios legais, como o devido processo e a proporcionalidade. Não
costuma haver procedimentos claros para sancionar os policiais e quando
isso é feito, muitas vezes, é inconstitucional.

Números e médias de policiais demitidos de corpos de segurança


que se encontram trabalhando em alguma outra corporação de segurança:
754. Funcionários ativos com antecedentes penais: 1.316 (1,7%).
Funcionários ativos têm antecedentes penais por diversos delitos, apesar
de a maioria dos organismos considerar a inexistência de antecedentes
como condição para a entrada no organismo.

Os policiais menos formados são aqueles que têm menor patente e


fazem o trabalho de supervisão ou de contato com as pessoas. Uma
porcentagem alta tem problemas para redigir relatórios e os
procedimentos são declarados nulos, o que aumenta a impunidade. Na
formação, a dispersão é expressa na ausência de unidade de critérios de
formação e de certificação das instituições. Existem tantos documentos
curriculares como modelos de formação policial existentes no país. Os
propósitos da formação variam de um desenho para outro; assim como
variam os planos de estudo, o perfil de formatura, os lapsos, a densidade
curricular, o título que é outorgado, o enfoque pedagógico, a relação teoria-
prática, o vínculo com a comunidade. Com as guardadas exceções, os

199
Reforma Policial na Venezuela: uma Experiência em Curso

enfoques de formação são fortemente militarizados.

Muitas polícias não contam com infra-estrutura adequada, carecem


de instalações de serviços básicos ou de espaços necessários para a
atividade policial, como as áreas de detenção preventiva. Em outros casos,
nem ao menos se conta com sede própria. Recursos de maior nível
tecnológico (telefones e faxes, acesso à Internet, computadores, software)
são relativamente estranhos ou, quando existem, concentram-se nas sedes
principais.

Do mesmo modo, do conjunto de armas informadas (mais de


100.000), aproximadamente 20% são declaradas como inoperantes. Em
relação aos veículos, considera-se que estão em condições de operatividade
64,95% para as polícias estaduais e 70,17% para as municipais.

Os baixos salários e as desigualdades nas receitas tornam a carreira


policial pouco atraente. A média nacional de salário das patentes mais
baixas é de Bs. 476.444 mensais (200$USA). O salário médio dos oficiais
de patente mais alta é de Bs. 1.616.289 (753$USA), o que representa
3,38 vezes mais que o salário médio dos agentes de base. O regime de
segurança social é disperso e heterogêneo. Existem polícias com regimes
próprios, sendo gerada uma situação de discriminação entre os
funcionários.

MEDIDAS IMEDIATAS

Considerando que nenhuma reforma muda o estado da arte de forma


imediata, foi decidido recomendar ao governo nacional algumas medidas de
caráter imediatas, mas que fossem transitórias com relação ao novo modelo
policial. Assim, essas medidas são um conjunto de recomendações aos
poderes nacionais, com o objetivo de resolver problemas imediatos
relacionados com a efetividade no serviço policial, o controle de gestão
policial, as violações aos direitos humanos e a formação policial.

Primeira Resolução (aprovada)

Que é necessário um instrumento legal que previna e controle os


operativos de segurança pública, como postos e pontos policiais de
controle móvel em áreas urbanas, não previstos no decreto com força de
lei de coordenação de segurança cidadã. O Ministério do Interior e de

200
Soraya El Achkar

Justiça resolveu estabelecer medidas de regulação, controle e supervisão


dos postos e pontos de controle policial a fim de garantir que as ações
cometidas sejam puníveis nos mencionados postos.

Esta Resolução foi adotada mediante resolução ministerial 189, em


Diário Oficial Nº 38.441 do dia 22 de maio de 2006. Não obstante, não
é uma publicação oficial que foi suficientemente difundida entre as
corporações policiais, tampouco foram implementados os mecanismos
para a supervisão dos postos móveis.

Segunda Resolução (aprovada):

Considerando que se requer um instrumento eficaz em matéria


policial, de caráter ético e moral que honre a função policial e contribua
para o melhor cumprimento de suas funções, ajustado aos princípios
constitucionais em matéria de direitos humanos e aos avanços do
ordenamento jurídico geral, o Ministério do Interior e Justiça decidiu ditar
um código de conduta para os funcionários civis ou militares que cumpram
funções policiais no âmbito nacional, estadual e municipal.

Esta Resolução foi adotada mediante resolução ministerial 364, em


Diário Oficial Nº 38.527 do dia 21 de setembro de 2006. Este Código
foi desenhado em versão • de bolso e foram editados 200 mil exemplares
com o propósito de serem distribuídos a todos os funcionários civis ou
militares que cumpram funções policiais.

Terceira Resolução (não aprovada)

Considerando que o Executivo Nacional, para o cumprimento das


exigências contempladas na Constituição da República Bolivariana e nas
Leis, deve proceder a elaboração de um registro integral de controle
das armas que se encontram em poder das diferentes Corporações de
Polícia do país em nível nacional. Neste sentido, deveria resolver que os
Ministérios do Interior e de Justiça e da Defesa procedam realizar um
inventário digitalizado de todas as armas corporativas, particulares e
apreendidas, em poder das polícias nacionais, estatais e municipais e
daquelas que estiverem em poder dos funcionários que prestam serviço
nos estabelecimentos penitenciários e nas empresas dos serviços de
segurança privada.

201
Reforma Policial na Venezuela: uma Experiência em Curso

Esta Resolução também deveria contemplar a formação no


espectro contínuo do uso de força, especialmente no uso das armas de
fogo, a partir de um enfoque de direitos humanos.

Quarta Resolução (não aprovada)

Considerando que é necessário sistematizar as Boas Práticas


Policiais através de um programa permanente e integral, que permita ao
Estado venezuelano o fortalecimento da qualidade do serviço policial
nos âmbitos nacional, estadual e municipal, gerando um processo
pedagógico, de indagação auto-reflexiva e valoração sobre o acervo de
conhecimentos e experiências vividas nas instituições policiais, o
Ministério do Interior e da Justiça deveria resolver: a criação do programa
permanente de certificação das boas práticas policiais.

Esta Resolução teria como objeto a criação do Programa de


Certificação das Boas Práticas Policiais; cuja finalidade é incentivar,
reconhecer, promover, fortalecer e difundir os programas, projetos e
estratégias policiais nas áreas de recursos humanos, investigação,
tecnologia, destrezas, capacitação e interação social que tenham
permitido melhorar os indicadores de atuação policial através de um
processo de avaliação e certificação das boas práticas policiais.

Quinta Resolução (não aprovada)

Considerando que a ocorrência de mortes e outras violações aos


direitos humanos, nos quais participaram funcionários policiais são
inaceitáveis ética e juridicamente e que isso desonra a função policial
como serviço humanitário. Considerando que a dispersão e incoerência
da normativa que consta contra a legalidade e a segurança jurídica
coadjuvam para a falta de uniformidade e para a carência de respostas
adequadas e oportunas para as vítimas de violações aos direitos humanos,
o Executivo Nacional deveria resolver ditar uma instrução de supervisão
dos órgãos policiais.

A Resolução tem como objetivo acentuar a supervisão dos órgãos


policiais mediante instruções que conduzam a que cada um deles leve
adiante os procedimentos de lei correspondentes

202
Soraya El Achkar

O MODELO DE POLÍCIA

Com toda a informação recolhida na consulta nacional e com os


estudos diagnósticos, foi desenhado um novo modelo policial para a
Venezuela sob as seguintes considerações:

O Modelo policial constitui um conjunto de supostos e princípios


sobre a organização desejável da polícia como agência de segurança pública.
Os princípios do modelo são as coordenadas institucionais através das
quais se articula todo o exercício e funcionamento da organização.

Abarca supostos e princípios intra-institucionais, que têm a ver com


a organização, gestão, desempenho e avaliação comuns para os corpos
de polícia, e que devem ser aplicados dentro de cada um deles. Supostos
e princípios inter-institucionais, que têm a ver com a coordenação,
cooperação, sinergia e acoplamento dos diversos corpos policiais dentro
do marco de uma ação convergente para a realização das políticas públicas
de segurança cidadã que correspondem à polícia.

Entende-se por polícia uma instituição pública, dotada de poder


coercitivo imediato, cuja função é individualizar, detectar, restringir e/ou
suprimir condutas previstas como lesivas de interesses juridicamente
protegidos e, portanto, submetidas a sanção pública.

O modelo definido conta com 8 itens:

Um primeiro item sobre os Princípios Gerais da polícia venezuelana,


onde define a Polícia como uma instituição pública, de função indelegável,
civil, que opera dentro do marco da Constituição da República Bolivariana
da Venezuela e dos tratados e princípios internacionais sobre proteção
dos direitos humanos, orientada pelos princípios de permanência, eficácia,
eficiência, universalidade, democracia e participação, controle de
desempenho e avaliação de acordo com processos e padrões definidos,
e submetida a um processo de planejamento e desenvolvimento de acordo
com as necessidades dentro dos âmbitos político-territoriais nos âmbitos
nacional, estadual e municipal.

Um segundo item, que especifica as funções da polícia, onde se


indica que a função principal das polícias é expressa nas seguintes ações:

203
Reforma Policial na Venezuela: uma Experiência em Curso

a) garantir o livre exercício dos direitos humanos e as


liberdades públicas;
b) prevenir a prática de delitos;
c) apoiar o cumprimento das decisões da autoridade
competente;
d) garantir o controle e a vigilância da circulação e o
trânsito terrestre;
e) facilitar a resolução de conflitos mediante o diálogo,
a mediação e a conciliação.

Ações que, por mandato constitucional, são coincidentes entre os


três âmbitos político-territoriaais do poder público nacional, estadual e
municipal. Portanto são competentes para exercê-las tanto a polícia nacional
como as polícias estaduais e municipais.

Um terceiro item sobre a estrutura onde se define quem realiza a


função policial e as atribuições que correspondem ao Ministro do Interior
e de Justiça, aos governadores de Estado e aos prefeitos a respeito das
corporações nacionais, estaduais e municipais, respectivamente. Assim
como as atribuições que são próprias dos diretores das diversas
corporações policiais e dos funcionários com responsabilidades de
comando na relação hierárquica com seus subordinados.

Um quarto item que define os princípios de designação de


competências da polícia nos âmbitos político-territoriais nacional, estadual
e municipal, os quais são enunciados como concorrência, coordenação,
cooperação e atenção antecipada. Além de explicar quatro critérios de
distribuição de competências, a saber: 1) critério de territorialidade, 2)
critério de complexidade, 3) critério da intensidade da intervenção e 4)
critério da especificidade da intervenção.

Um quinto item sobre a Carreira policial, que compreende tudo o


que seja relativo às categorias na hierarquia policial, sistema de formação,
requisitos para a ascensão, permanência e aposentadoria, incluindo regime
de segurança social.

Um sexto item sobre o desempenho policial que compreende tudo

204
Soraya El Achkar

o que seja relativo a pautas de comportamento e indicadores de


rendimento, eficiência, eficácia, uso da força, respeito aos direitos humanos,
meios e recursos disponíveis e, em geral, critérios para o desenvolvimento
do trabalho policial dentro de limites socialmente aceitáveis.

Um sétimo item, que compreende tudo que seja relativo a


mecanismos de controle interno e externo da polícia, regime disciplinar,
assuntos internos, procedimentos de detecção e correção de má prática,
instâncias externas de supervisão e auditoria, coordenação governamental
e corregedoria social.

Um oitavo item onde se define o sistema integrado de polícia que


supõe o cumprimento da função policial coincidente, através do
desenvolvimento de uma estrutura que assegure a gestão e a eficiência
dos corpos policiais mediante o cumprimento de princípios e regras
comuns sobre a carreira, o desempenho, os níveis de intervenção, as
atribuições e os mecanismos de supervisão e controle.

Recomendações Finais da Comissão Nacional para a Reforma


Policial:

Deste conjunto de propostas que definem as tarefas centrais para a


construção de um modelo democrático de polícia derivam as seguintes
recomendações imediatas:

1. Elaborar a lei de bases e demais normativas que regulam o sistema


integrado de polícia e demais leis vinculadas aos corpos policiais, segundo
o previsto no Modelo proposto. O Executivo Nacional elaborará as linhas
para o desenho das políticas de segurança pública e os programas gerais
para o controle do delito.

Aspectos destacáveis a incluir na lei:


a) os princípios organizativos, a gestão e as pautas de
atuação e avaliação da polícia devem responder a
critérios estritamente civis;
b) incorporar o controle, ordenação da circulação e o
trânsito de veículos, assim como a segurança viária para
as funções da polícia nacional, estadual e municipal;

205
Reforma Policial na Venezuela: uma Experiência em Curso

c) adotar uma carreira única e uma escala hierárquica


de 9 posições que compreenda: a) alta gerência,
planejamento e avaliação; b) gerência média, desenho
de operações, supervisão e avaliação e c) nível
operacional;
d) desenhar um sistema uniforme de condições de
trabalho e previdência social, de acordo com as
particularidades da polícia, a intangibilidade e
progressividade dos direitos trabalhistas;
e) adotar um regime disciplinar unificado com relação
a faltas, procedimentos para determinar a
responsabilidade e instâncias encarregadas de aplicar
as sanções;
f) a Polícia deve estar submetida a mecanismos de
prestação de contas por parte da cidadania;
g) regulamentar as competências da direção de assuntos
internos do Comitê Cidadãos de Supervisão Policial e
do Auditor Policial, a fim de alcançar um sistema
coerente, funcional e racional para o controle da
atividade policial mediante a participação cidadã;
h) estabelecer um mecanismo de caráter nacional e
independente das polícias que permita processar,
investigar e levar a juízo as violações aos direitos
humanos.

2. Difundir, exigir e supervisionar o cumprimento do código de


conduta policial.

3. A Polícia deve ser treinada na proteção dos direitos humanos,


conforme a constituição e o sistema internacional de proteção; bem como
no uso da força. A segurança privada é subsidiária da polícia e regem para
ela os princípios sobre proteção aos direitos humanos e o uso da força.

4. Implementar medidas para evitar que a Polícia suspenda a


prestação do serviço por nenhum motivo.

206
Soraya El Achkar

5. Adotar critérios de avaliação de desempenho policial que levem


em consideração a relação entre recursos disponíveis e obtenção de
resultados.

6. As diferentes corporações de polícia devem preparar um plano


anual de gestão.

7. Elaborar os protocolos de intervenção policial segundo os


critérios de territorialidade, complexidade, intensidade e especificidade
da intervenção aplicáveis a todas as polícias.

8. Desenhar uma política sobre o uso de força física que inclua a


aquisição, registro, controle e utilização de armamentos e equipamentos
autorizados e homologados. Esta política deve se restringir segundo os
seguintes princípios a: afirmação da vida como um valor supremo
constitucional, o desestímulo ao uso da força como castigo, as escalas
progressivas para o uso da força em função do nível de resistência do
cidadão, procedimentos de acompanhamento e supervisão de seu uso,
treinamento permanente policial e a difusão de instruções entre a
comunidade.

9. Desenvolver manuais e protocolos para a aplicação de escalas


progressivas no uso da força física em função da resistência do cidadão.

10. Adotar um plano para a polícia de dotação e manutenção da


capacidade operativa que inclua ambientes físicos, unidades móveis,
uniformes e insígnias e tecnologia de informação e de comunicação.

11. Consolidar a base de dados nacional sobre a polícia venezuelana


no âmbito nacional, regional e municipal e acordar critérios de unificação
sobre os registros de criminalidade e índices de letalidade policial.

12. Executar, com a máxima brevidade que seja possível, um


inventário digitalizado de todas as armas corporativas, particulares e
apreendidas, bem como um registro balístico.

13. Implementar um programa de certificação de boas práticas


policiais que premie os policiais ou as instituições que adiantem programas
que garantam segurança cidadã e respeitem os direitos humanos.

207
Reforma Policial na Venezuela: uma Experiência em Curso

14. Regular a re-designação em uma atividade compatível com a


sua formação e as necessidades do serviço daqueles funcionários
supostamente incluídos em delitos e em faltas graves enquanto se resolve
definitivamente a sua situação.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O objetivo geral da Comissão para a Reforma Policial em uma fase


II era implantar o novo modelo policial, mediante um marco jurídico
institucional e de gestão que permita conceber a polícia como uma
instituição pública, de função indelegável, civil, que opera dentro do marco
da Constituição da República Bolivariana da Venezuela e dos tratados e
princípios internacionais sobre proteção dos direitos humanos, orientada
pelos princípios de permanência, eficácia, eficiência, universalidade,
democracia e participação, controle de desempenho e avaliação, de acordo
com os processos e os padrões definidos e submetida a um processo de
planejamento e desenvolvimento de acordo com as necessidades dentro
dos âmbitos político-territoriais nacional, estadual e municipal.

A estratégia central compreendia o acompanhamento ao Ministro


do Interior e da Justiça mediante o desenho de mecanismos para a
implementação do conjunto de recomendações sugeridas pela Comissão,
com o objetivo de resolver problemas imediatos relacionados com a
efetividade no serviço policial, o controle de gestão policial, as violações
aos direitos humanos e a formação policial.

Foi proposto um plano de desenvolvimento do modelo articulado


através de 5 áreas temáticas fundamentais com o objetivo de desenvolver
padrões aplicáveis a todas as corporações de polícia que proceda mediante
a aplicação e avaliação em princípio, de mínimas medidas imediatas que
culmine em um sistema de certificação policial, acompanhado de um
Programa de Assistência Técnica para aquelas polícias que não alcancem
os padrões adequados, com o objetivo de atingir a sua melhora e, em
caso de falha, o seu eventual descredenciamento e/ou reorganização ou
eliminação.
a) funções e competências: princípios para a
distribuição de competências segundo a territorialidade,

208
Soraya El Achkar

complexidade, intensidade e especificidade da


intervenção.
b) carreira policial: Categorias na hierarquia policial,
um sistema de formação, requisitos para a ascensão,
permanência e aposentadoria, incluindo um regime de
previdência social e de direitos trabalhistas.
c) prestação de contas: Mecanismos de controle
interno e externo da polícia, regime disciplinar, assuntos
internos, procedimentos de detecção e correção de
má prática, instâncias externas de supervisão e
auditoria, coordenação governamental e corregedoria
social.
d) desempenho policial: Pautas de comportamento
e indicadores de rendimento, eficiência, eficácia, uso
da força, respeito aos direitos humanos, meios e
recursos disponíveis e, em geral, critérios para o
desenvolvimento do trabalho policial dentro de limites
socialmente aceitáveis.
e) uso da força física: Mecanismos para o treinamento,
uso, acompanhamento e supervisão da aplicação da
coerção física por parte da polícia, levando em
consideração escalas progressivas para o uso da força
em função do nível de resistência e oposição do
cidadão, promovendo a difusão de instruções entre a
comunidade, com o objetivo de facilitar a inspeção
social nesta matéria.

Na Venezuela se dão todas as condições para levar adiante uma


reforma policial.

1. Alcançamos um acordo nacional a respeito dos temas da reforma


policial, mediante uma ampla consulta nacional a todos os setores do país.
Todos coincidem em indicar a necessidade de adiantar uma reforma nas
áreas temáticas levantadas.

2. Os funcionários e funcionárias de polícia mostraram (de um modo

209
Reforma Policial na Venezuela: uma Experiência em Curso

geral) vontade política para se submeter a um processo de reforma policial


e participar ativamente no mencionado processo.

3. O diagnóstico institucional conseguiu esboçar uma caracterização


detalhada da polícia venezuelana.

4. Um plano de ação a curto, médio e longo prazo para implementar


a reforma policial e algumas medidas imediatas para resolver os problemas
mais graves dentro das instituições policiais.

5. No país existe um grupo de especialistas dentro e fora da


academia que estão dispostos a acompanhar o processo de reforma, e
muitos dos especialistas internacionais se mostraram solidários e
anunciaram a sua disposição em colaborar.

6. Nestes tempos de bonança, o país tem suficiente recurso


tecnológico e financeiro para organizar o processo de reforma no âmbito
nacional, estadual e municipal.

7. A população está disposta a exercer o direito que lhe dá a


Constituição para desenhar as políticas públicas em matéria de segurança
e para controlar as instituições públicas como a polícia.

8. Temos uma opinião pública a favor da reforma que estaria disposta


a promovê-la e a criar uma matriz de opinião que animasse positivamente
o processo.

Não obstante, existem situações complexas que foram ou são


potencialmente elementos que impedem a Reforma Policial:

1. A reforma policial nunca foi assumida nem pelo Conselho de


Ministério nem pelo Presidente da República. Foi uma iniciativa do Ministro
do Interior e de Justiça, que não a promoveu no gabinete com a força que
correspondia.

2. Os níveis de rotação de funcionários nos cargos ministeriais são


muito altos e cada rotação implica começar de novo, desconhecendo o
trabalho de seu antecessor. Cabe indicar que em 8 anos de governo com
o presidente Hugo Chávez Frías houve 9 Ministros do Interior e de Justiça,
e nenhum deles deu prioridade à reforma policial, com exceção do Ministro

210
Soraya El Achkar

Jesse Chacón, que nomeara a Comissão Nacional para a Reforma policial.

3. Neste momento (2007), estamos em um processo de reforma


constitucional (iniciativa presidencial), assunto que poderia afetar
radicalmente o modelo policial proposto pela Comissão porque se planejou
revisar a estrutura do território e demais espaços geográficos, assim como
a divisão política (nova geometria do poder); as competências do poder
público nacional, regional e municipal (novo poder comunal); a estruturação
e funções da Força Armada Nacional. Por isso dizemos que é uma
experiência em curso.

4. Algumas das recomendações topam com interesses institucionais


que poderiam desviar a reforma policial para não ceder cotas de poder
que foram conquistadas na estrutura do Estado: 1) A criação da Polícia
Nacional, como corpo uniforme de Polícia Geral, dependente do Executivo
Nacional, 2) A definição, instalação do sistema integrado de polícia e a
criação e ativação do Conselho Geral de Polícia como máxima instância
de definição, planejamento e coordenação das políticas públicas de
segurança cidadã; 3) A eliminação da Polícia Metropolitana e do Corpo de
Vigilância e Trânsito Terrestre em um processo de transição que implique
respeito aos direitos humanos trabalhistas. 4) A retirada da Guarda
Nacional das funções de segurança cidadã, da formação policial e de outros
âmbitos de exercício policial; 5) A eliminação dos grupos especiais do
Corpo de Investigações Científicas, Penais e de Criminalística, e a retirada
desta polícia das tarefas de patrulhamento; 6) A restrição às atribuições
dos prefeitos e governadores na vida institucional das polícias (a não
ingerência política).

5. A ausência de políticas públicas no âmbito nacional, estadual e


municipal com relação aos temas da segurança pública afetam diretamente
qualquer reforma policial, porque a polícia não é mais que um meio para
alcançar propósitos de Estado e de governabilidade que, neste caso, não
estão claramente definidos.

Não quero terminar sem me referir à necessidade de pensar de


forma complexa na reforma policial porque esta é apenas a ponta de uma
reforma muito mais ampla: a reforma do setor segurança; entendendo
que a segurança é uma responsabilidade pública essencial e necessária
para alcançar níveis aceitáveis de vida boa e de justa governabilidade. Na

211
Reforma Policial na Venezuela: uma Experiência em Curso

Venezuela, a Constituição da República define a segurança como um direito


humano, uma garantia constitucional onde o Estado se responsabiliza pela
proteção das pessoas e comunidades frente a ameaças, vulnerabilidades,
riscos e agressões a vida, integridade, liberdade, desfrute de seus direitos
e cumprimento de seus deveres. Neste sentido, não é competência
exclusiva da Polícia.

Pensar na reforma policial implica, então, empreender um caminho


de 1) múltiplas reformas para mudar o desenho institucional do complexo
sistema de administração de justiça; 2) Integrar no planejamento público
os assuntos vinculados com a segurança. Ou seja, desenhar políticas inter-
setoriais para assumir um enfoque de ação pública integral em matéria de
segurança cidadã; 3) promover mecanismos de difusão sobre a gestão de
todas as reformas para que toda a sociedade civil possa estar informada e
participe ativamente na correção de todos os desenhos institucionais.

Notas
1
O Relatório anual de PROVEA traz um registro estatístico das pessoas vulneradas em seu
direito à vida (entre outros) que nos permitiu estabelecer a média em um período de 16 anos
(1988-2006).
2
Cabe indicar que, apesar da campanha para a eleição presidencial (dezembro 2006), os donos
dos meios de informação e os candidatos (em geral) respeitaram o acordo de evitar que a
Comissão, como uma instância ministerial fosse desprestigiada em uma sorte de estratégia do
debate eleitoral.

Referências bibliográficas:
EL ACHKAR Soraya, Gabaldón Luis Gerardo. Comissão Nacional para a Reforma Policial
(2006) Reforma policial. Um olhar de fora e de dentro. Ministério do Interior e da Justiça na
Venezuela.
EL ACHKAR Soraya, Riveros Amaylin. Comissão Nacional para a Reforma Policial (2007). A
consulta Nacional sobre reforma policial na Venezuela. Uma proposta para o diálogo e o consenso.
Ministério do Interior e da Justiça da Venezuela.
EL ACHKAR, Soraya (2000) “Educação em direitos humanos na Venezuela (1983-1999)”
Em: Experiências de Educação em direitos humanos na América Latina. Edita o Instituto
Interamericano de direitos Humanos. San José de Costa Rica.
GABADÓN Luis Gerardo e Antillano Andrés. Comissão Nacional para a Reforma Policial
(2007) A polícia venezuelana. Desenvolvimento institucional e perspectivas de reforma no início
do terceiro milênio. Ministério do Interior e da Justiça da Venezuela.
PROVEA (1990-1991) “Situação dos Direitos Humanos na Venezuela. Relatório anual”.
Caracas,
PROVEA (1991-1992) “Situação dos Direitos Humanos na Venezuela. Relatório anual”.
Caracas.
PROVEA (1992-1993) “Situação dos Direitos Humanos na Venezuela. Relatório anual”.

212
Soraya El Achkar

Caracas.
PROVEA (1993-1994) “Situação dos Direitos Humanos na Venezuela. Relatório anual”.
Caracas.
PROVEA (1994-1995) “Situação dos Direitos Humanos na Venezuela. Relatório anual”.
Caracas.
PROVEA (1995-1996) “Situação dos Direitos Humanos na Venezuela. Relatório anual”.
Caracas.
PROVEA (1996-1997) “Situação dos Direitos Humanos na Venezuela. Relatório anual”.
Caracas.
PROVEA (1997-1998) “Situação dos Direitos Humanos na Venezuela. Relatório anual”.
Caracas.
PROVEA (1998-1999) “Situação dos Direitos Humanos na Venezuela. Relatório anual”.
Caracas.
PROVEA (1999-2000) “Situação dos Direitos Humanos na Venezuela. Relatório anual”.
Caracas.
PROVEA (2000-2001) “Situação dos Direitos Humanos na Venezuela. Relatório anual”.
Caracas.
PROVEA (2001-2002) “Situação dos Direitos Humanos na Venezuela. Relatório anual”.
Caracas.
PROVEA (2002-2003) “Situação dos Direitos Humanos na Venezuela. Relatório anual”.
Caracas.
PROVEA (2003-2004) “Situação dos Direitos Humanos na Venezuela. Relatório anual”.
Caracas.
REDE DE APOIO PELA JUSTIÇA E PELA PAZ (1985-1993) “Venezuela: Horror e impunidade.
Inventário 1”. Caracas.
REDE DE APOIO PELA JUSTIÇA E PELA PAZ (1993-1994) “Venezuela: Horror e impunidade.
Inventário 1”. Caracas.
REDE DE APOIO PELA JUSTIÇA E PELA PAZ (1994-1995) “Venezuela: Horror e impunidade.
Inventário 1”. Caracas.
REDE DE APOIO PELA JUSTIÇA E PELA PAZ (1995-1996) “Venezuela: Horror e impunidade.
Inventário 1”. Caracas.
REDE DE APOIO PELA JUSTIÇA E PELA PAZ (2000) “Relatório de atividades Janeiro
Dezembro 2000” Caracas, Venezuela.
REDE DE APOIO PELA JUSTIÇA E PELA PAZ (2001) “Relatório de atividades Janeiro
Dezembro 2001” Caracas, Venezuela.
REDE DE APOIO PELA JUSTIÇA E PELA PAZ (2002) “Relatório de atividades Janeiro
Dezembro 2002” Caracas, Venezuela.
REDE DE APOIO PELA JUSTIÇA E PELA LA PAZ (2002) “Relatório sobre a situação dos
direitos civis durante a presidência de Hugo Chávez Frías no período 1999-2002. Série de
Relatórios Nº4. Caracas, Venezuela.
REDE DE APOIO PELA JUSTIÇA E PELA PAZ (2003) “Relatório de atividades Janeiro
Dezembro 2003” Caracas, Venezuela.
REDE DE APOIO PELA JUSTIÇA E PELA LA PAZ (2003) “Relatório sobre a situação de
direitos civis durante a presidência de Hugo Chávez Frías no período 1999-2003. Série de
Relatórios Nº5. Caracas, Venezuela.
REDE DE APOIO PELA JUSTIÇA E PELA PAZ (2004) “1985-1999 Quinze Anos De
Impunidade Na Venezuela”. Pesquisa documental. Padrões das violações aos direitos humanos

213
Reforma Policial na Venezuela: uma Experiência em Curso

e os mecanismos de impunidade. Série de cadernos Pensar direitos humanos. Nº 7. Caracas,


Venezuela.
REDE DE APOIO PELA JUSTIÇA E PELA PAZ (2004) “ Ativistas de direitos Humanos e
Polícias em diálogo”. Crônica do encontro para um mútuo aprendizado. Contam Ileana Ruiz
e Soraya El Achkar. Série de cadernos Pensar direitos humanos. Nº8. Caracas, Venezuela.
REDE DE APOIO PELA JUSTIÇA E PELA PAZ (2004) “Relatório de atividades Janeiro
Dezembro 2004” Caracas, Venezuela.
REDE DE APOIO PELA JUSTIÇA E PELA PAZ (2005) “Relatório de atividades Janeiro
Dezembro 2005” Caracas, Venezuela.
REDE DE APOIO PELA JUSTIÇA E PELA PAZ (2005) “Três histórias e um caminho
reparador. Relatos soltos de três mulheres que reconstruiram noções, experiências e emoções a
partir da dor pela morte injusta de seus filhos”, Caracas, Venezuela.
REDE DE APOIO PELA JUSTIÇA E A PAZ (1996) “A história de Juan”. Caracas, Venezuela.
REDE DE APOIO PELA JUSTIÇA E A PAZ (1997) “História de Lourdes Campos de Hurtado”.
Caracas, Venezuela.
REDE DE APOIO PELA JUSTIÇA E A PAZ (1999) “Pela vida e diante da vida”. História de
vida de Ramón Parra.
REDE DE APOIO PELA JUSTIÇA E A PAZ (1999) “Reconstruindo as minhas lutas”. História
de vida de Luz Ortiz. Caracas, Venezuela.
REDE DE APOIO PELA JUSTICIA E A PAZ (2006) “Impunidade na Venezuela 2000-2005”.
Pesquisa documental de violações aos direitos humanos e mecanismos de impunidade.
Série de cadernos Pensar direitos humanos. Nº9

214
D OR
LVA
SA
EL
Comunicação
A POLÍCIA EM SOCIEDADES PÓS-CONFLITO
Edgardo A. Amaya Cóbar*

INTRODUÇÃO

Um dos temas-chave dos processos de pacificação (peace


building), em países que saem de períodos de conflito, é o
restabelecimento da ordem, como pressuposto para a recuperação
da institucionalidade. No quadro das ações de cooperação internacional
para processos de paz, foram desenvolvidas diferentes estratégias para
alcançar esse objetivo, a partir de tipos e graus de intervenção em
diferentes situações conflituosas.

Em processos bélicos de grande envergadura, como na guerra


dos Bálcãs ou em diversos conflitos armados na África, onde além dos
processos de pacificação há, paralelamente, processos de construção
de estado (state building), foram realizadas intervenções por forças
internacionais militares como uma primeira medida de restabelecimento
da ordem, seguida de posteriores intervenções para o
desenvolvimento de condições para a nomeação de autoridades que
administrassem a transição. Mas, uma vez iniciada essa trajetória, e
com a paulatina saída do atores militares, nacionais ou internacionais,
permanecia a necessidade de manutenção da ordem. Dessa forma,
verifica-se que o fortalecimento ou desenvolvimento de uma força
policial para tais fins é indiscutível.

Regularmente, países que saem de amplos conflitos ficam com uma


institucionalidade debilitada e com pouca capacidade de reverter essa
situação. A cooperação internacional, em diferentes níveis e formas, tem
apoiado os processos de pacificação, mediante o envio de forças militares
no cumprimento de missões de paz. Mas, ao mesmo tempo, registrou-se
uma crescente demanda de assistência técnica em matéria policial, pelos
desafios que já foram assinalados. Diversos países da América Latina na
atualidade contribuem com missões de paz em diferentes partes do mundo.
Por isso, o conhecimento de fatores relacionados à atuação policial em
sociedades pós-conflito é de grande interesse para que, eventualmente,
quando tenhamos que participar dessas iniciativas, saibamos assumir alguns
dos desafios que aqui são colocados.
* Coordenador da Área de Segurança Pública e Justiça Penal da Fundação de Estudos para a
Aplicação do Direito (Fespad)
215
A polícia em sociedades pós-conflito

CONTEXTOS
Existem casos em que as dimensões dos conflitos fragmentam ou
dividem as sociedades. Assim, parte do processo de pacificação requer
a geração de medidas que, como premissa para a desativação da
conflagração, garantam a segurança dos integrantes dos grupos em divisão
ou discórdia. Por exemplo, diversos países, como El Salvador ou Ruanda,
tiveram que realizar, em maior ou menor medida, reformas no setor de
segurança como parte de seus respectivos processos de paz, para
minimizar a inércia oriunda do período do conflito ou a sua manipulação
por grupos sediciosos remanescentes.

A reforma do setor de segurança1, inserida em um processo de


pacificação em sociedades pós-conflito, está orientada para a formação
de instituições neutras, ou acima dos interesses que originaram a
dissensão, e capazes de administrar os novos tipos de conflitos que
surgem nos seus respectivos contextos. Essas mudanças incluem
processos de reforma policial que criam novas instituições policiais ou
transformam as já existentes.

Diversas sociedades sob regimes autoritários ou ditatoriais, como


muitos países da América Latina, algumas delas precedidas de conflitos
armados internos, como no caso salvadorenho, realizaram processos
de mudança ou transições políticas, que geraram mudanças institucionais
para desmontar as estruturas do Estado anterior e que, geralmente,
buscariam a implantação de um regime democrático (liberdades civis e
políticas, eleições limpas, competitivas, plurais e periódicas).

No cenário de conflitos, ou no Estado autoritário ou pré-transição,


regularmente, o aparelho coercitivo (forças de segurança) desempenhou
um papel fundamental como instrumento de gestão do poder, tal como
se verifica nos antecedentes da reforma policial em El Salvador.

Uma vez iniciada uma transição política que vise superar esse estado
prévio e que seja orientada para a adoção de um regime democrático, é
necessário suplantar ou minimizar a influência dos atores autoritários
pré-transição e a potencialidade desses em bloquear ou sabotar o
processo, como, por exemplo, através da capacidade de controle da
população (Cruz 2005: 242). É por isso que a reforma do setor
segurança é um aspecto fundamental da transição, não só pela mudança

216
Edgardo A. Amaya Cóbar

de relações de poder na gestão do controle social, mas também pelas


transformações da atividade de gerenciamento de conflito dessa sociedade.

Como parte da desmontagem das estruturas pré-transição, a


transformação das forças policiais é um aspecto comum em vários processos
de mudança. Tais processos são denominados como reformas policiais.

Mesmo que não se encontre na literatura um esforço exaustivo na


definição do que é uma reforma policial, segundo Candina (2005) essa
teria duas grandes caracterizações: por um lado, seria um conjunto de
transformações institucionais em padrões normativos e aspectos
organizacionais, para alcançar maior eficiência e eficácia na função policial
em uma sociedade concreta. Essa visão estaria mais perto da idéia de
modernização. Em uma segunda abordagem, seria uma linha de
transformação ou mudança de corpos policiais para formas de exercício
da função policial, emoldurada na responsabilidade democrática do
respeito ao Estado de Direito e aos direitos humanos. É nesse ponto
que a atuação da polícia exerce um papel transcendental, como um
instrumento de pacificação.

DESAFIOS

Desmilitarização e definição de papéis

A literatura sobre os processos de reforma do setor segurança e,


em particular, de reforma policial em sociedades pós-conflito, são
praticamente unânimes em reconhecer que um procedimento básico é a
separação das funções das Forças Armadas daquelas inerentes à atividade
policial, assim como a necessidade de que as Forças Policiais encontrem-
se sob o comando de autoridades civis, fora da influência militar.

As razões para a adoção desse critério de ação são variadas. Talvez


as de maior relevância são as que têm a ver com o papel negativo
protagonizado por forças de segurança militarizadas em diversos conflitos
armados, como violadores dos direitos humanos. Mesmo que isso não
implique em uma regra obrigatória, onde exista uma relação direta entre
uma coisa e a outra, a experiência histórica ressaltou esse fator e colocou
como uma questão fundamental na hora de reformar o setor de segurança.

217
A polícia em sociedades pós-conflito

Em segundo lugar, temos questões de identidade e de adequação


institucional. Os exércitos têm como missão a defesa da soberania e da
territorialidade do Estado, em casos de confrontos de grande monta. Por
isso, seus mecanismos de intervenção são os apropriados para tais
circunstâncias. Em concordância com sua missão, sua forma de atuação
está condicionada pela eliminação de ameaças claramente identificadas e
que são catalogadas como alvos militares.

Por outro lado, as forças policiais, desdobradas na vida cotidiana da


sociedade, devem enfrentar a complexidade da agitação que se manifesta
em diversos espaços e intensidades. Por isso, sua visão do conflito não
pode ser taxativa. A polícia se movimenta em um espaço “cinzento” e,
portanto, necessita de um padrão e de formas de intervenção compatíveis
com o complexo entrecruzado social em que atua. Deve ser considerado,
além disso, que as pessoas com as quais cotidianamente interage são seus
pares, e não seus inimigos.

Deve se ter em conta que, embora a militarização faça referência a


um tipo de relação orgânica entre polícia e forças militares, não se limita a
ela, mas também opera no marco de entidades supostamente civis, que
adotam metodologias castrenses de organização, desdobramento e
relacionamento com a sociedade (Palmieri 1998). Por isso a
desmilitarização passa pela adoção de uma identidade, forma de
organização e formação civil das forças policiais, baseadas em uma doutrina
democrática de segurança pública, submetidas a autoridades civis e à
auditoria social, como qualquer instituição pública.

Legitimidade e credibilidade

O primeiro grande desafio que a instituição policial enfrenta em


uma sociedade pós-conflito é o da legitimidade e respeito por parte de
todos os atores sociais. Por esse motivo, deve contar com procedimentos
claros de respeito aos direitos humanos e de aproximação da comunidade,
que a diferenciem de antecedentes negativos, como a instrumentalização
de forças policiais, em um contexto de conflito, para fins de perseguição
política e repressão de opositores.

No caso de Ruanda, uma das medidas adotadas foi a criação, através


de um difícil processo, de uma força policial composta por elementos
dos antigos bandos oponentes no genocídio. No caso salvadorenho, mesmo

218
Edgardo A. Amaya Cóbar

que originalmente tenha sido definida a criação de uma polícia


completamente nova, no processo de negociação foi estabelecido que as
partes que se enfrentaram teriam uma quota de 20% cada uma do plantel
policial previsto no novo corpo, e os 60% restantes seriam de pessoal
completamente novo, sem vinculos com o conflito armado2.

No caso da reforma policial na Guatemala, depois dos acordos de


paz de 1996, basicamente foi reciclado o antigo pessoal policial, sem um
processo formativo rigoroso prévio3. Esse cenário foi posteriormente
considerado por analistas como causa de deterioração e do desprestígio
de uma polícia com graves problemas de violência, abusos e corrupção.

Todas as reformas devem partir de estruturas e pessoal existente;


não é uma opção factível realizá-las de outra forma, salvo em circunstâncias
excepcionais. Não obstante, a maneira como os antigos agentes de
segurança são incluídos na reforma deve ser rigorosamente regulada e
verificada, para evitar que violadores de direitos humanos ou pessoas de
antecedentes nocivos contaminem a nova institucionalidade.

A imparcialidade ou neutralidade da força policial, face às


divergências de conflitos de grupos sociais, é indispensável para a
manutenção da ordem e para a legitimidade social da instituição. A missão
consiste em garantir o respeito aos direitos e às liberdades dos cidadãos
por igual, assim como a intervenção oportuna, profissional e objetiva na
aplicação da lei, de maneira indistinta perante os envolvidos.

Violência pós-conflito

Outro aspecto que deve ser considerado como uma variável


importante nos processos de transição pós-conflito ou transições políticas,
é o surgimento de novas fontes de agitação social, que se traduzem no
aumento do delito, devido ao processo de readequação social que se
encontra em fase de adaptação, o que supõe um transe anômico, enquanto
são ajustadas as condições da institucionalidade.

Esse aspecto é muito delicado, pois gera múltiplos dilemas.


Desenvolver um processo de reforma policial em um contexto de violência
social e demanda cidadã de segurança, é um desafio sumamente complexo.
Concomitantemente à obrigação de desenvolver uma instituição policial
profissional, está a necessidade de favorecer o crescimento quantitativo

219
A polícia em sociedades pós-conflito

para efeitos de cobertura, acima das necessidades de qualificação.

Outra tentação que é enfrentada no contexto que analisamos, é


o do efectismo, isto é, forçar a reação policial de controle do delito e,
por essa via, desvalorizar o papel policial de proteção de direitos e
liberdades da cidadania. Seria paradoxal e contraditório a busca da
“(..) ordem e da estabilidade por meio da involução dos processos
democráticos e do respeito aos direitos humanos4”.

Esse contexto demanda a necessidade de implementação de


estratégias orientadas à redução de certas variáveis, associadas aos
índices delitivos pós-conflitos. Algumas estratégias são de nível
superior, tais como aspectos redistributivos e de atenção a setores
populacionais necessitados, assim como programas de inserção de
antigos adversários bélicos e a implementação de controles sobre
vetores de grande impacto na violência, como os remanescentes de
armas circulantes ou grupos renegados do processo de pacificação ou
transição, que possam constituir-se em potenciais poderes de fato,
que trunquem ou dificultem a transição.

No nível do desdobramento territorial, deve se dar uma


aproximação entre a polícia e a comunidade, como um mecanismo
para minimizar ou diminuir as velhas desconfianças mútuas que possam
existir, gerar confiança e promover o reconhecimento mútuo. Uma
parte dos processos de pacificação pós-conflito fundamenta-se na
capacidade das instituições de poder gerar confiança, credibilidade e
estabilidade na população.

Reforma, ação e inovação

Muitas vezes, as reformas policiais, ou do setor de segurança,


em contextos de processos de paz ou de transições políticas, estão
motivadas por um histórico de forças de segurança violentas,
descontroladas e corruptas, de tal sorte que as propostas de reforma
são definidas em oposição a tais antecedentes.

No entanto, não basta, nem é suficiente, somente contar com


uma polícia controlada, com um regime legal progressista e
transparente. As polícias devem ser eficientes e eficazes para pacificar

220
Edgardo A. Amaya Cóbar

a sociedade da qual fazem parte, e, para isso, necessitam ser dotadas


de ferramentas inteligentes de intervenção e respostas a demandas
sociais de segurança. Isso implica a geração e instalação de sistemas
de informação, análise e inteligência policial que permitam contar com
um panorama do que acontece na sociedade e possibilite ações precisas
e contundentes.

Tal como o expressa Rachel Neild, ante as experiências anteriores


nesse ponto: “(...) foi comprovado que era mais fácil fundar uma nova
força policial com legitimidade política, que com credibilidade operacional5”.
E, nessas circunstâncias, a tentação por remilitarizar ou reverter o que foi
realizado é muito forte para determinados atores políticos.

Por outro lado, a formação do recurso humano é fundamental


não só no seu caráter deontológico (valores institucionais e sociais,
em relação aos direitos humanos) mas para o efetivo e correto
desempenho de suas tarefas, isto é, formação prática orientada à
solução de problemas. Poderia ser feita uma comparação com o futebol:
não basta saber as regras do futebol. É preciso saber jogar, conhecer
a cancha e as jogadas, assim como melhorá-las constantemente, para
manter o nível. “Uma formação policial adequada pode, por exemplo,
ajudar a criar quadros policiais partidários de uma nova concepção
dos direitos humanos e da liderança civil6”.

A eficiência não é só uma questão referente ao seu mandato


pacificador, mas também diz respeito à sua organização interna e
capacidade de gestão.

Transparência e responsabilidade institucional

Como colocamos anteriormente, existe uma urgente necessidade


de dotar a polícia de legitimidade e credibilidade em uma sociedade
fragmentada. Uma das formas de resguardar essa credibilidade e
legitimidade, é assumindo o controle da função policial no respeito
aos direitos humanos, como um elemento essencial da transparência
institucional. Na medida em que a sociedade percebe que a polícia
conta com mecanismos ativos (internos ou externos) para controlar e
investigar feitos irregulares ou violações dos direitos humanos, terá
maiores garantias que não será objeto de abusos e, dessa forma, as
possíveis desconfianças serão canalizadas nessa direção.

221
A polícia em sociedades pós-conflito

Responsabilidade democrática

Esse, provavelmente, é um desafio que não corresponde somente


à instituição policial, mas também a suas autoridades civis. A polícia, mesmo
tendo uma dependência orgânica do Poder Executivo, e obedecendo a
suas diretrizes, não deveria responder a agendas particulares do tipo
partidário, ou de motivação política, alheias à sua função.

Isso supõe tensões particularmente difíceis frente a certas liberdades


democráticas, tais como a manutenção da ordem em contextos de protesto
social. Enquanto, por um lado, possa existir um interesse governamental
em aplacar o clamor popular que desprestigia sua política e, para isso,
intervir policialmente nos protestos, por outro, devemos possa o princípio
policial de respeito aos direitos humanos, entre eles, o da livre manifestação
e expressão da sociedade.

Nesse sentido, a presença de mecanismos de controle institucional


e político (Parlamento), que garantam a transparência da função policial, é
indispensável para resolver ou prever alternativas de resposta frente a
essas tensões.

CONCLUSÕES

Antes de emitir conclusões, o mais prudente é fazer uma advertência:


o que aqui foi apresentado é um resumo a partir de diversas experiências
e lições aprendidas em variados contextos, com diferentes níveis de
sucesso ou fracasso. Não existem receitas únicas. As soluções e
intervenções dependem de contextos concretos e dos equilíbrios de
poder estabelecidos.

Não obstante, existe um consenso em manifestar que, para o sucesso


da pacificação de uma sociedade pós-conflito, é necessária uma força
policial socialmente legítima, que tenha um efeito demonstrativo de
estabilidade e construção de institucionalidade. E a forma de alcançar isso
é através do estabelecimento de uma polícia respeitosa dos direitos
humanos, eficiente, eficaz, transparente e democraticamente responsável,
que atue a serviço de toda a sociedade.

O êxito do pressuposto anterior está condicionado às limitações

222
Edgardo A. Amaya Cóbar

próprias de cada processo. A presença de atores externos (internacionais)


que supram a ausência ou debilidade da vontade política interna, as
necessidades financeiras e técnicas, e que verifiquem o rigor do processo
de implementação e o desempenho da força policial, foi um dos mais
poderosos instrumentos para viabilizar esses processos.

A principal meta a ser alcançada por uma polícia em uma sociedade


pós-conflito é mostrar-se como um exemplo de reconciliação e de
superação do enfrentamento passado. E, para isso, deve erigir-se como
uma instituição obediente a autoridades civis democraticamente escolhidas
e imparcial quanto aos diversos atores sociais e políticos com os quais
interage. O estabelecimento de uma visão e missão claramente orientadas
pelo respeito aos direitos humanos e pela transparência institucional, são
aspectos basilares para obter credibilidade e autoridade moral ante a
sociedade. Mas, igualmente importante, é o desempenho de instituições
atentas às demandas sociais e capazes de dar respostas efetivas e eficientes,
que permitam uma pacificação social sustentável.

Notas
1
O setor de segurança: “Engloba aquelas instituições públicas com atribuição de ‘produzir’
segurança, junto com aquelas que asseguram seu controle democrático, gerência e supervisão
(…) Deve-se assinalar que isto se refere a um tipo ideal de como as estruturas do Estado foram
tradicionalmente ajustadas para fornecer segurança pública. Isto pode diferir grandemente das
realidades das situações nas quais muitos processos de reformas estão sendo levados a cabo. Há,
certamente, aqueles atores como vigilantes, forças de defesa civil e companhias de segurança
privadas, que são, em certos aspectos, um sintoma do fracasso das instituições do Estado em
fornecer segurança pública, lei e ordem (…) Estas não necessariamente devem ser excluídas do
setor de segurança, mas colocam perguntas cruciais sobre seu controle e regulação, para assegurar
que podem prestar contas.” Lilly, Damian; Robin Luckham e Michael von Tangen Page.
Governabilidad y reforma del sector seguridad: Un enfoque orientado a metas. Londres,
International Alert, 2002. Pág. 9
2
No caso salvadorenho, o processo de incorporação de antigos elementos dos corpos de segurança
foi objeto de duras críticas, devido a seus vínculos com graves violações aos direitos humanos.
Posteriormente, membros desse pessoal participaram de graves atos de violência política, que
geraram uma crise no processo de paz, ver: Costa, Gino. La Policía Nacional Civil de El Salvador
(1990-1997), San Salvador, UCA Editores, 1999. Por isso a lição aprendida é que a criação de
um novo corpo necessita dos melhores e maiores filtros possíveis, para evitar o ingresso de
elementos nocivos que possam rachar a confiança na nascente polícia.
3
Neild, Rachel. Sosteniendo la reforma: Policía democrática en América Central. Boletín Enfoque:
seguridad ciudadana, WOLA, Washington, outubro, 2002. Pág. 3
4
Washington Office on Latin América. Desmilitarizar el Orden Público. La Comunidad
Internacional, la Reforma Policial y los Derechos Humanos en Centromérica y Haití. Wola,
Washington, 1996. Pág. 1.
5
Neild, Rachel. Sosteniendo la reforma: Policía democrática en América Central. Boletín Enfoque:

223
A polícia em sociedades pós-conflito

seguridad ciudadana, WOLA, Washington, outubro 2002. Pag. 2.


6
Ibid., Pág. 20.

Bibliografia e Referências
Amaya Cóbar, Edgardo. “Políticas de Seguridad en El Salvador 1992-2002”. In: Bayley, John y
Lucía Dammert (Eds.) Seguridad y Reforma Policial en las Américas: Experiencias y desafíos,
México, Siglo XXI editores, 2005.
Candina, Azun, 2005. “Carabineros de Chile: una mirada histórica a la identidad institucional”.
In: Bayley, John y Lucía Dammert (2005) Seguridad y reforma policial en las Américas. Experiencias
y desafíos. México, Siglo XXI editores, 2005. Págs. 145-167.
Costa, Gino. La Policía Nacional Civil de El Salvador (1990-1997), San Salvador, UCA Editores,
1999.
Cruz, José Miguel. “Violencia, inseguridad ciudadana y las maniobras de las élites: la dinámica
de la reforma policial en El Salvador”. In: Bayley, John y Lucía Dammert (Coord.) (2005)
Seguridad y reforma policial en las Américas. Experiencias y desafíos. México, Siglo XXI editores,
2005, Págs. 239-270.
Lilly, Damian; Robin Luckham y Michael von Tangen Page. Gobernabilidad y reforma del sector
seguridad: Un enfoque orientado a metas. Londres, International Alert, 2002.
Neild, Rachel. Sosteniendo la reforma: Policía democrática en América Central. Boletín Enfoque:
seguridad ciudadana, Washington, WOLA, outubro, 2002.
Palmieri, “Gustavo. Reflexiones y perspectivas a partir de la reforma policial en El Salvador”. En
Revista Pena y Estado Nº 3 Policía y sociedad democrática, Buenos Aires, Programa
Latinoamericano de investigación conjunta en política criminal (PLIC/PC),1998.
Washington Office on Latin America (WOLA). Desmilitarizar el Orden Público: La Comunidad
Internacional, la Reforma Policial y los Derechos Humanos en Centroamérica y Haití. Washington,
WOLA, setembro, 1996.

224
D OR
LVA
SA
Relato Policial EL
A PLATAFORMA DO MODELO DE POLÍCIA
COMUNITÁRIA DE EL SALVADOR
Olga Alfaro de Pinto*

Consiste em estabelecer um modelo de polícia comunitária em El


Salvador, com base em estudos de outros modelos de sucesso no mundo,
o processo está sendo desenvolvido pela Secretaria de Relações com a
Comunidade da qual sou atualmente chefe.

Meta alcançada até a data: o compromisso e aceitação do diretor


da Polícia Nacional Civil para que seja elaborada a proposta do modelo e
a sua execução.

Ameaças: A possibilidade de alguns chefes se oporem ao processo.

Antecedentes:

A PNC nasce como um acordo político dentro do contexto dos


Acordos de Paz em 1992. Seu principal ponto forte é o equilíbrio
democrático de seus integrantes, originários dos setores imersos no
conflito armado em que se privilegiou a participação de uma alta
porcentagem de profissionais acadêmicos universitários não vinculados
ao conflito de níveis superior, executivo e, em alguma medida, básico.

O Acordo Político para a formação da Polícia Nacional Civil é


composto da seguinte forma:
20 % agentes oriundos dos antigos corpos de segurança
(polícia, guarda nacional, polícia de ‘hacienda’ – corpo
de segurança fiscal)
20 % de agentes oriundos da guerrilha.
60 % de elementos oriundos do setor civil (profissionais
universitários).

Atualmente, a maioria de seus agentes, em diversos níveis,


completaram estudos superiores, como por exemplo:
Básico: 60 % aprox. com nível de educação superior,
sem título
*
Inspetora da Polícia Nacional Civil, Mestre em Direitos Humanos e doutoranda em projetos de
pesquisa e aplicações em Psicologia e Saúde (Universidade de Granada-Espanha).
225
Plataforma del Modelo de Policía Comunitaria de El Salvador

Executivo: 99 % aprox. com nível superior (bacharel)


Superior: 70 % aprox. com nível superior (bacharel)

É importante mencionar que como qualquer polícia do mundo os


recursos são limitados e, no nosso caso, não foi planejada a construção de
instalações próprias e a renovação dos recursos.

Ao longo dos 14 anos da criação da Polícia Nacional Civil esta vem


sofrendo uma deterioração quanto à qualidade do serviço policial, além
de ter sido questionada por diversos atos de corrupção, de faltas leves
até gravíssimas (execuções e roubos), e é a sociedade civil, os meios de
comunicação, a empresa privada e as instituições vinculadas aos direitos
humanos que denunciam tais ações.

De dentro, como é o meu caso, como chefe policial, vemos esta


deterioração como conseqüência de não haver manuais de procedimento
definidos, além de uma supervisão inadequada e outras situações do tipo,
e nos sentimos impotentes junto a outros chefes policiais diante de tal
situação.

No entanto, a raiz desta situação, precisamos iniciar una reengenharia


da Instituição Policial, da qual somos participantes muitos membros da
polícia que temos incidência técnica sobre as mudanças a serem realizadas.
Duas das grandes linhas consideradas para iniciar são as seguintes:
1.- o processo de elaboração de um manual de polícia
comunitária e o modelo de polícia comunitária que
estaria sendo colocado em prática durante 2008
2.- um componente essencial é a estratégia de
conseguir a mudança de atitude de cada um dos
membros da instituição para assimilar o modelo e isto
é uma “campanha interna denominada Resgate da
nossa razão de ser”.

Em síntese a proposta é:

Fortalecer as estratégias da relação entre polícia e comunidade,


com estrito respeito aos direitos humanos e à dignidade das pessoas.

226
Olga Alfaro de Pinto

Fica sob responsabilidade da Secretaria de Relações com a


Comunidade (SRCC) e suas unidades, a administração das políticas,
estratégias, planos, programas e modelos de prevenção e participação
cidadã, implementados pelas chefaturas das dependências policiais.

Cada Chefe policial deve colaborar e coordenar de forma funcional


o trabalho, segundo requerido pela SRCC e suas Unidades.

Cumprir o mandato policial, dedicando-se prioritariamente à


resolução dos problemas da comunidade numa relação de parceria,
participando da prevenção social da violência e delinqüência, impulsionando
e/ou acompanhando diversos programas preventivos institucionais, assim
como melhorando a qualidade de atenção à cidadania na denúncia e
investigação.

Segundo os Acordos de Paz e a Lei Orgânica da Polícia Nacional


Civil, fica implícito todo o exposto anteriormente, considerando que se
pode avançar para melhorar os serviços policiais em El Salvador.

A resistência a uma Polícia Comunitária é por si um desafio, um


desafio em relação aos que comandam a polícia e desafio aos políticos
deste país, no entanto, devido às mudanças causadas pela globalização, a
situação geográfica deste país, a imigração e a exclusão, que a tornaram
violenta e vulnerável, tudo isto contribuiu a que se dê importância a gerar
uma mudança institucional, mostrando que a segurança pública é um
baluarte para a democracia de qualquer país.

227
228
PARTE II - POLÍCIA E POLÍCIA

• Caracteriza a polícia na sua instrumentalidade. Diz respeito


à organização, conteúdo, gestão e modalidades do trabalho
policial, circunscrevendo a cadeia de comando e controle,
comunicação, inteligência e computação (C3IC).
• Reporta-se aos condicionantes políticos, estratégicos,
táticos e logísticos para o desenho e o emprego dos
recursos policiais.
• Refere-se aos elementos de contorno para a avaliação
da polícia em relação aos seus fins e diante de seus meios.

229
S IL
B RA
Artigo

BASES CONCEITUAIS DE MÉTRICAS E PADRÕES


DE MEDIDA DE DESEMPENHO POLICIAL 1
Profa. Dra. Jacqueline de Oliveira Muniz*
Prof. Dr. Domício Proença Júnior**

1. INTRODUÇÃO

Como medir o que a polícia faz? É necessário tratar a questão de


frente. Buscar refúgio nas perspectivas de que a avaliação policial seria um
saber iniciático, vedado a quem não tenha a vivência policial, ou que o
trabalho da polícia se resume a dar insumos ao sistema de justiça criminal
e agências de assistência social, ou a alguma relação entre efetivos policiais
e populações policiadas, são bálsamos que anestesiam, mas não dão
solução. São insuficientes para avaliar a polícia. Induzem a erros
corporativistas, funcionalistas ou empiricistas que acabam por ignorar o
que é a realidade do trabalho policial, chegando a inverter os termos de
seus sucesso e fracasso. Reduzir a polícia aos resultados pontuais de ações
espetaculares ou memoráveis, aos números de pessoas e bens apresados,
à convergência com alguma medida de proporção demográfica esvazia a
função policial, simplificando-a em cifras progressivamente estéreis. De
tais perspectivas, emerge a falsa impressão de que não haveria como
aferir o desempenho policial propriamente dito, ou pior ainda, que o que
a polícia faz, e como faz, é irrelevante em si mesmo. Seria então impossível
formular e, por sua vez, avaliar, qualquer orientação ou política pública
(policy) sobre a polícia [Cusson 1999 cf. Reiner 1996, Sacco 1996, Diedizic
1998 e Walker 2004].

Nada disso se sustenta diante da literatura de estudos policiais


[Bayley 1996, Kelling 1996]. Mas mesmo essa literatura reconhece que
medir o que a polícia de fato faz é um dos maiores desafios contemporâneos
para a Segurança Pública2, e isso basta para colocar a sua relevância3.

Neste ambiente, compreende-se que vicejem modismos, em que


um ou outro arranjo parcial, independente de sua aplicabilidade e valor
*
Profesora do Mestrado em direito da Universidade Candido Mendes. Diretora Científica do
Instituto Brasileiro de Combate ao Crime (IBCC). Consultora da Rede de Policiais e Sociedade
Cvil na América Latina.
**
Professor da Coppe/UFRJ, Ordem do Mérito da Defesa, Membro do Instituto Internacional de
Estudos Estratégicos (IISS, Londres) e da Associação Internacional de Chefes de Policia (IACP,
2 3 0 Leesburg, Va), Diretor Científico do Instituto Brasileiro de Combate ao Crime (IBCC).
Jacqueline de Oliveira Muniz e Domício Proença Júnior

pontual, acabe erigido em fórmula capaz de dar conta do desempenho


policial. Isso é particularmente danoso quando indicadores são
transplantados de uma realidade social para outra, sem qualquer atenção
para as circunstâncias, contextos e limites de sua aplicação original. Passa-
se o tempo, por vezes um tempo breve, e a incapacidade do modismo da
ocasião acaba levando a um novo modismo. Diversas abordagens úteis
em seus locais e para seus propósitos de origem foram destruídas pela
implantação apressada, distorcendo o que pudessem informar e
alimentando um ceticismo quanto à utilidade de qualquer abordagem4.

A questão é compreender que indicadores e abordagens necessitam


de inserção mais ampla para que possam contribuir de maneira significativa
ao entendimento. Isso expressa, em parte, a necessidade de se situar um
indicador ou abordagem em termos de sua origem, que inclui os elementos
normativos tanto quanto as expectativas e representações sociais do que
seja e para que exista a polícia. Mas expressa de maneira decisiva que só
se pode dar uso, ou apreciar, ou criticar um indicador ou abordagem
quando se tem claro os termos pelos quais eles expressam o entendimento
sobre o que e porque medir.

Esse é o rumo proposto para o presente texto. Estabelecer os termos


pelos quais se pode dar conta do que é relevante medir para avaliar o
desempenho policial, compartilhando de maneira transparente porque são
estes os termos necessários e suficientes para dar conta da realidade da
polícia. Propõe-se estabelecer as bases conceituais das métricas do
desempenho policial, das quais depende a capacidade de produzir padrões
de medida que tenham significado, constituindo o substrato conceitual da
apreciação, uso e crítica de todo e qualquer indicador ou abordagem.

Para isso, inicia-se pela apresentação da teoria de polícia, que


enquadra os fenômenos da realidade policial, explicando-os e relacionando-
os. Em seguida, apresentam-se de maneira sumária os elementos
conceituais de mensuração do desempenho. A isso se segue o corpo
principal da apresentação: a instituição de métricas e padrões de medida
capazes, necessários e suficientes de lidar com o cerne teoricamente
identificado do lugar de polícia: o exercício autorizado do uso de força
sob a lei. Finalmente, apresentam-se algumas considerações finais sobre
as circunstâncias e a utilidade potencial da capacidade de avaliação do
desempenho policial.

231
Bases Conceituais de Métricas e Padrões de
Medida do Desempenho Policial

2. TEORIA DE POLÍCIA: O MANDATO POLICIAL

Alguns dos mais influentes autores contemporâneos do campo dos


Estudos Policiais não elaboraram uma teoria da polícia que buscasse dar
conta do fenômeno policial. Optaram por abordar questões específicas
acerca das práticas policiais. Skolnick [1966] aponta como o dilema entre
lei e ordem estrutural e permite compreender as práticas policiais nas
sociedades democráticas. Muir Jr. [1977] ambiciona analisar as dinâmicas
de poder pela caracterização de diferentes tipos-ideais de coerção nas
interações entre policiais e cidadãos. Klockars [1985] apresenta a tensão
constitutiva entre práticas ostensivas e investigativas como reveladora da
natureza do trabalho policial. Bayley [1985] propõe uma teorização do
policiamento ao longo da história, em busca de uma compreensão dos
diversos mecanismos de regulação e controle social. Neocleous [2000b]
teoriza sobre as funções sociais da polícia, enfatizando o seu papel como
um instrumento de dominação de classes. Rathz [2003] oferece uma
síntese das práticas policiais com relação ao uso da força, afirmando que
uma teoria da polícia, ainda que útil, não é necessária para o entendimento
da ação policial. Feltes [2003] vai mais longe afirmando que inexiste uma
teoria de polícia e que seria necessário construí-la. Proença Jr & Muniz
[2006b] desdobram a teoria de polícia de Bittner, evidenciando as
implicações do mandato do uso da força nos processos de auto-regulação
social, a partir da análise dos experimentos de patrulha em Kansas City e
Newark e das greves policiais no Brasil. Todos estes trabalhos dialogam,
de maneira direta ou indireta, mais ou menos explícita, com a proposta
de Bittner [1974] de uma teoria de polícia5, cujo centro é a conceituação
do mandato policial.

2.1. Conceito e Praxis de polícia a partir de Bittner

De acordo com Bittner, o mandato autorizativo da polícia é o uso


da força. O conceito de polícia corresponde à proposição de que “a polícia,
e apenas a polícia, está equipada [armada e treinada], autorizada [respaldo
legal e consentimento social] e é necessária para lidar com toda exigência
[qualquer situação de perturbação da paz social] em que possa ter que
ser usada a força para enfrentá-la.” [Bittner 1974: 256]. Esta conceituação
de polícia pretende superar a perspectiva de que a dicotomia entre oficial
da lei e oficial da ordem explicaria todo o conteúdo do trabalho policial
[Banton 1964], sendo a solução para o clássico dilema entre lei e ordem

232
Jacqueline de Oliveira Muniz e Domício Proença Júnior

[Skolnick 1966, Muir Jr 1977]. Ao conceituar a polícia como uma realidade


que compreende, mas não se reduz, às práticas de policiamento, Bittner
revela a ilusão empírica, simplista, que equivale “o que as polícias fazem”
ao “porque fazem” e, com isso, “ao que a polícia é”. Expõe como tal lapso
ou relapso do olhar reifica as formas departamentais de divisão do trabalho
policial, patrulha e investigação, como expressões necessárias e suficientes,
únicas e últimas do lugar de polícia [cf. Bittner 1967, 1970, 1983].

Bittner reconstitui a integralidade do trabalho policial dando conta de


duas dimensões empíricas: o que se espera que a polícia faça e o que ela de
fato faz. Identifica o uso da força como o atributo comum que articula as
expectativas sociais em tudo que a polícia é chamada a fazer e o conteúdo
substantivo de tudo que a polícia faz. Estabelece, desta forma, a plenitude
do mandato policial, delimitando conceitualmente o que a polícia é.

Porque a polícia está autorizada a usar da força, e se espera que ela


o faça sempre que isso seja necessário, é que ela é chamada a atuar quando
“algo que não deveria estar acontecendo está acontecendo e alguém deve
fazer algo a respeito agora” (Bittner 1974: 249, ênfases no original). Isso
revela porque a polícia pode atender a emergências, respaldar a lei,
sustentar a ordem pública, preservar a paz social, ou desempenhar
quaisquer outras funções sociais. Esclarece porque as polícias executam
as mais diversas formas ou padrões de policiamento. Enfim, explica que a
polícia seja chamada a atuar, e atue, em todas as situações em que a força
possa ser útil.

Por que é a polícia que é chamada quando a força pode ser útil? O
que distingue o uso de força pela polícia do uso de força por quaisquer
outros atores? A polícia é uma resposta ao desafio de produzir enforcement
sem que este leve à tirania ou passe a servir interesses particulares. Por
esta razão, o uso de força pela polícia tem um propósito político distintivo
e invariante: produzir alternativas pacíficas de obediência sob consentimento
social, no Império da Lei. Isto corresponde a uma destinação do uso da
força para fins restritos e transparentes, de tais maneiras e com tais
controles, que o salvaguarde de se converter numa ferramenta de opressão
ou num instrumento a serviço de indivíduos ou grupos de poder.

A natureza política da polícia aqui se revela de forma clara e explícita:


a polícia é o instrumento legal e legítimo de respaldo pela força dos termos do

233
Bases Conceituais de Métricas e Padrões de
Medida do Desempenho Policial

contrato social de uma determinada comunidade política (polity). A polícia se


interpõe, e se espera que ela se interponha, entre vontades em oposição ou
interesses em conflito, em qualquer outra situação que ameace a paz social,
arrisque direitos e garantias, ou viole as leis. A polícia é um instrumento de
poder, cuja intervenção produz obediência pelo uso apropriado de força
sempre que necessário, nos termos e formas da pactuação social. A
autorização socialmente conferida para o uso de força pela polícia é objeto
de constante negociação na realidade social. Ela é processual, ainda que os
seus contornos estejam dados por um consentimento prévio, oriundo do
pacto social, instrumentalizado numa dada forma de governança. Esta
autorização social resulta do embate continuado entre as múltiplas dinâmicas
de legitimação do mandato policial, as quais se alimentam das representações
sociais acerca da polícia e da lógica-em-uso do fazer policial. A autorização
da polícia para vigiar, intervir e usar de força para produzir obediência se
encontra, ela mesma, sob controle coletivo, submetida à aprovação dos
olhares vigilantes dos grupos sociais.

A produção de obediência respaldada pelo uso policial de força


tem limites, seja em termos de sua aplicação, seja em termos do alcance
das soluções que pode impor. Isto empresta um caráter pragmático e
finito à solução policial. Se, por um lado, a polícia pode impor uma solução
imediata, de sua própria lavra, sem admitir atraso, recurso ou recusa, por
outro, toda solução policial é expediente, parcial e finita no tempo. Assistir,
socorrer, dissuadir, comandar, sujeitar, submeter, ou o que quer que a
polícia possa fazer é transiente e provisório. A provisoriedade da solução
policial reflete tanto a impossibilidade deste tipo de solução dar conta das
causas dos eventos sociais em que a polícia intervém, quanto a inviabilidade
da sustentação de coerção pela força por tempo indeterminado.

A solução policial se dirige a situações, conflitos, atos e atitudes. Ela


é uma resposta à sua existência e a seus efeitos, posto que os processos
sociais que os produzem estão aquém do lugar de polícia e além do alcance
de sua instrumentalidade. A solução policial está constrangida pela
legalidade e legitimidade que conformam o lugar de polícia. Isso, a seu
turno, determina as alternativas admissíveis quando a polícia usa de força,
exigindo, moderando, modificando ou proibindo determinadas escolhas
ou possibilidades táticas, de maneira que as alternativas de obediência que
a polícia pode impor sejam pacíficas. A polícia atua com estas regras de
enfrentamento, estabelecidas para assegurar que os meios não atentem

234
Jacqueline de Oliveira Muniz e Domício Proença Júnior

contra os fins, espelhando o pacto social de uma comunidade política


(polity) sob o Império da Lei. Porque a solução policial resulta de uma
alternativa pacífica de obediência sob consentimento social, ela admite
revisão, emenda ou reversão política, legal ou judiciária.

O poder de decidir sobre o tipo solução mais adequada a um certo


tipo de evento, ou mesmo de decidir agir ou não agir numa determinada
situação, revela que a tomada de decisão discricionária é a práxis essencial
da polícia. Por sua própria natureza e contexto, a solução policial só pode
ser produzida através de uma abordagem autônoma. A produção da solução
policial, premida pelas circunstâncias e exposta às contingências da vida
social, revela uma temporalidade particular, transversal. A solução policial
se dá num tempo presente estendido. Inscreve-se numa sucessão de
eventos, conexos ou desconexos, contínuos ou descontínuos, envolvendo
dinâmicas multi-interativas, cujas intensidade, densidade e conseqüência
impõem a tempestividade do agir para o agente policial. Isto torna
impossível pré-determinar a ação de cada policial em cada situação,
precisamente porque os elementos idiossincráticos presentes em uma
situação particular podem constituir o relevo mais importante na solução
policial, e é igualmente impossível conhecê-los até que se revelem de
maneira concreta, imediata, presente. O conteúdo do que seja a ação
policial não é redutível a um roteiro pré-determinado, nem passível de
ser dirigido por outrem, nem mesmo afeito a um conjunto rígido de
princípios normativos. Isso caracteriza o trabalho policial como sendo
profissional no sentido estrito e técnico do termo.

A decisão sobre a forma de agir pertence inescapavelmente ao


policial individual, que depende de seu poder discricionário para poder
realizar o seu trabalho. Por conta disso, a ação policial está sujeita à
apreciação política, social ou judicial apenas a posteriori. É diante deste
entendimento que se pode compreender como a iniciativa da ação policial
resulta de uma avaliação ad hoc pelo agente policial. Esta avaliação está
sujeita a diretrizes amplas quanto a sua oportunidade e iniciativa, quanto a
sua prioridade e conteúdo, emanadas da organização policial ou apreendidas
num determinado contexto. Ordinariamente ela se realiza independente
de um enquadramento legal prévio.

O poder discricionário da polícia revela-se, então, bem mais amplo


do que a autorização do uso da força [cf. Brooks 2001, por exemplo].

235
Bases Conceituais de Métricas e Padrões de
Medida do Desempenho Policial

Reporta-se não apenas as oportunidade e propriedade do uso de força,


mas alcança a pertinência e a forma de toda e qualquer atividade policial,
uma vez que corresponde ao exercício da governança, ao exercício da
tomada de decisão política na esquina (streetcorner politics). Sem embargo,
o poder discricionário ganha em complexidade e latitude quanto mais o
agente policial esteja envolvido com as tarefas de policiamento, as quais
estão, por sua visibilidade, mais expostas à apreciação e ao controle sociais.

A contrapartida à delegação aos policiais de poderes superiores


aos de um cidadão comum, em especial a possibilidade do recurso à
coerção pelo uso de força, é a apreciação cotidiana dos atores sociais
diante de cada fazer de polícia. Estes atores reiteram, ou não, sua confiança
na polícia. Como resultado desta apreciação, confere-se, ou não,
legitimidade, emprestando ou não credibilidade às soluções policiais. Sem
embargo do impacto potencial de desvios de conduta e erros, é esta
apreciação que afere a aderência das regras de enfrentamento e dos
procedimentos policiais aos termos presentes do mandato policial, sob
Império da Lei.

A esta altura, é oportuno comentar alguns dos ganhos da posse de


um conceito de polícia. Conceituou-se polícia como sendo quem responda
pelo mandato do uso da força sob consentimento social, no Império da Lei
em uma comunidade política (polity). Tal construto permite um
ordenamento consistente das realidades relacionadas com o uso da força
no interior dos territórios, identificando de maneira clara quais delas
correspondem à polícia, quais não e porque. Esta classificação se faz pela
apreciação das regras de enfrentamento, que determinam as alternativas
de uso da força. Onde as regras de enfrentamento expressam o conteúdo
do mandato policial, tem-se polícia. Neste caso, o conceito serve para
que se possa apreciar o quanto as atividades de uma organização policial
se aproximam ou se afastam do núcleo duro que singulariza o lugar de
polícia.

Do ponto de vista conceitual, qualquer organização que atue, ou


passe a atuar, sob regras de enfrentamento que expressem o mandato
policial é de facto polícia, independente se esta atuação é permanente,
interina, ou pontual. Isso esclarece os termos pelos quais se pode fazer
uso das organizações em um Estado para o cumprimento do mandato
policial, independentemente de sua destinação formal ou de sua identidade

236
Jacqueline de Oliveira Muniz e Domício Proença Júnior

institucional, como é o caso, por exemplo, do uso dos contingentes


militares como polícia em Missões de Paz [Diedizic 1998, Hansen 2002]
que seguem dependentes da legitimidade da populações que policiam,
mesmo que estrangeiras e sem um idioma em comum [Kelly 1998, Schmidl
1998]. Da mesma forma, revela que organizações de força que não atuam
sob regras de enfrentamento que expressem o mandato policial não são,
de facto, polícias, ainda que possam sê-lo de jure, ou realizar uma ou mais
atividades que emulem o trabalho policial. Neste caso, a despeito de sua
origem doméstica ou externa, caracterizam-se como forças invasoras,
de ocupação ou de repressão ao dissenso, que sustentam distintas formas
de opressão sobre as populações nos territórios em que atuam.

É interessante observar que a conceituação de polícia traz consigo


um resultado curioso no que diz respeito ao relacionamento entre o Estado
Democrático de Direito e o alcance da ação policial, que contraria o senso
comum. Ao contrário do que se imagina, o círculo virtuoso da polícia
torna-se possível e factível à medida em que avançam os processos de
constituição, expansão e consolidação dos direitos civis, políticos e sociais.
A garantia dos direitos constituídos e o reconhecimento de novos direitos,
difusos ou emergentes, justificam, ampliam, adensam e atualizam regras
de enfrentamento e procedimentos policiais adiante, simultaneamente ou
na esteira de sua expressão legal. Ensejam espaços e formas de controle e
participação social na administração do Estado, induzindo espaços de
transparência que propiciam o aperfeiçoamento das práticas policiais. Estas
dinâmicas de transformação social vivificam os contornos do mandato
policial, levando a que surjam novas funções e atribuições para as polícias
que, neste contexto, têm cada vez mais o que fazer e insumo para fazê-lo
cada vez melhor.

Assim, não é no chamado “Estado Policial” que se teria uma “era de


ouro das polícias”. A rigor, o lugar de polícia sequer existe em tal Estado,
posto que ele se confunde com a própria governança, correspondendo a
alguma forma de tirania. Em tal contexto, o consentimento social, o
Império da Lei, ou ambos, não informam o uso de força. O apego a esta
fantasia pode alimentar-se da crença de que, num “Estado Policial”, as
soluções policiais deixariam de ser provisórias e finitas, passando a ser
definitivas e completas, a ponto de promover uma sociedade quimérica,
sem desordem ou crime. Edifica-se, desta forma, uma falsa nostalgia de
que quando a polícia pode tudo ela é uma polícia melhor.

237
Bases Conceituais de Métricas e Padrões de
Medida do Desempenho Policial

2.2. Para além de Bittner: os efeitos da polícia

Em seus termos originais, Bittner [1974] define polícia como o


exercício autorizado do uso da força no interior de uma dada comunidade
política. Contudo, não desdobra as implicações de sua própria formulação,
cujo mérito é inegável. Não aprecia, de modo explícito e conseqüente, o
que seja o uso da força e as formas pelas quais a autorização para o seu
emprego se expressa numa sociedade. Tudo se passa como se tomasse
os termos que emprestam singularidade ao mandato policial como
realidades presumidas, dadas a priori.

Tal ordem de naturalização acaba por ocultar a realidade mesma da


práxis policial que sua própria conceituação fez aparecer. Mesmo em textos
posteriores, Bittner [1990b] expressa um entendimento do uso da força
como sendo pura sanção, restrita unicamente ao ato físico, sem
consideração da utilidade de seu potencial. Da mesma forma, num texto
escrito com David Bayley [Bayley & Bittner 1985] contenta-se em anunciar
a autorização social como uma realidade auto-referida, abstrata, despida
das representações, expectativas e contextos sociais que lhe emprestam
materialidade em termos da confiança pública e da credibilidade policial.
Percebe-se como os conteúdos dos dois termos centrais do mandato
policial, uso de força e autorização social, ficam aquém da ambição
conceitual da própria formulação teórica de Bittner.

Para se compreender plenamente a práxis policial é necessário dar


conta, por um lado, da integralidade do uso de força pela polícia, e por
outro, do alcance da autorização social, relacionando-as. Só assim torna-
se possível apreciar o desempenho da polícia de forma consistente. Trata-
se, então, de ir além de Bittner. Trata-se de compreender os efeitos da
polícia na comunidade política que ela policia, resgatando as inter-relações
entre o que a polícia faz e pode fazer, o que ela é ou pode ser, à luz do que
se espera e consente que ela seja e faça.

2.2.1. Uso pontencial e concreto da força: a possibilidade de ação


policial6

No contexto dos relacionamentos humanos, o uso de força expressa


uma forma particular de produzir coerção. Seus fins são os mesmos que
os de qualquer alternativa coercitiva: submeter vontades, alterando

238
Jacqueline de Oliveira Muniz e Domício Proença Júnior

atitudes e influenciando comportamentos de indivíduos e grupos. O que a


distingue de todas as outras formas coativas são seus meios, os meios de
força.

Não há como compreender o uso de força como um fenômeno


autônomo, que existe em si mesmo, algo exterior às relações sociais e,
por isso, capaz de interrompê-las ou substituí-las. O uso de força é um
instrumento a serviço das formas de exercício de poder, com tudo que
este tem de paixões, vontades e interesses. A alternativa do uso de força
expressa um modo particular de interação social, tão previsível como
qualquer outro. Neste sentido, o uso de força reflete as expectativas
sociais quanto à sua possibilidade e conseqüência, conformando sua
experimentação antecipada como um fato possível ou sua vivência como
um ato manifesto. Isto revela a integralidade das expressões empíricas do
uso (potencial e concreto) de força. Permite compreender seus efeitos,
sobretudo onde a sua manifestação em ato não teve lugar, isto é, onde a
apreciação de sua potencialidade foi suficiente para dobrar vontades. Este
efeito não é menos uso de força porque prescindiu da realização em ato.
Ao contrário, revela-se plenamente uso de força ao produzir coerção.

Com o exposto, esclarece-se o universo de resultados plausíveis


da práxis policial em termos da utilidade da força. O potencial de força
explica os efeitos dissuasórios e, em alguma medida, preventivos da
presença da polícia, ou até da possibilidade desta presença. O concreto
de força explica os efeitos repressivos e, em alguma medida, dissuasórios
da ação manifesta da polícia.

Os termos do exercício autorizado do uso da força configuram o rol


de alternativas táticas admissíveis para a polícia numa dada comunidade
política (polity). É, precisamente, a autorização ou consentimento social,
traduzido em aderência social, pactuação política e dispositivos legais,
que dão o conteúdo das regras de enfrentamento sob as quais a polícia
executa o seu mandato. Isso é tão mais evidente e distintivo quanto mais
próximo se está da ação manifesta da polícia, onde a oportunidade do
concreto de força se põe. Uma polícia pode estar autorizada ou não a
usar determinados armamentos ou táticas em função das exigências
colocadas pelas regras de enfrentamento. Estas podem exigir, modificar,
moderar ou proibir alternativas de uso de força, dando conta das
representações, expectativas e contextos sociais específicos de uma polity

239
Bases Conceituais de Métricas e Padrões de
Medida do Desempenho Policial

em relação à sua polícia. Vê-se, assim, como o uso de força que a polícia
faz e pode fazer depende do que se espera e consente do que ela seja e
faça. Depende, enfim, da idéia de polícia numa comunidade política.

2.2.2. A idéia de polícia: a expectativa do mandato policial

No processo de fabricação simbólica e material da ordem social, a


autorização que conforma o mandato policial, emprestando conteúdos
específicos à sua realização, resulta do que uma comunidade política, de
modo mais ou menos tácito, espera, deseja e consinta que sua polícia seja
e faça em prol da sustentação da ordem social7. Isto é o mesmo que
dizer, que o consentimento social que sustenta o lugar de polícia reflete
uma idéia de polícia elaborada e negociada pelos diversos grupos sociais
que constituem uma dada sociedade policiada.

A Idéia de Polícia pode ser compreendida como um conjunto diverso


de representações e expectativas sociais acerca da polícia, seus papéis e
funções na produção de controle social. Refere-se, assim, às percepções
sobre o exercício da coerção pelo uso (potencial e concreto, lembre-se)
de força. Trata-se de um universo de significações associadas a um tipo
particular de autoridade política as quais se encontram em permanente
construção, ao sabor das experimentações e vivências constituídas nas e
pelas próprias interações entre policiais e demais atores sociais.

Na dimensão da práxis social, a idéia de polícia retrata o modo


mesmo como as polícias estão e vão sendo inscritas no imaginário social
de uma sociedade ao longo do tempo. Retrata as concepções e vivências
de uma comunidade política sobre a práxis policial. Remete à capacidade
da Polícia (The Police) cumprir o mandato policial, produzindo alternativas
pacíficas de obediência pelo uso da força (policing stricto sensu), segundo
as regras sociais do jogo e sob o Império da Lei, de acordo com um
determinado conjunto de prioridades de governo (policy) fruto do processo
político (politics).

A idéia de polícia articula-se, de forma sensível, com os instrumentos


de controle e regulação da ordem social. Ela estimula, e até mesmo induz,
a busca pelos mecanismos comunitários de auto-regulação, que seguem
sendo o recurso primeiro e mais importante a ser esgotado nas dinâmicas
conflituosas. Isto se dá porque as expectativas quanto ao mandato policial

240
Jacqueline de Oliveira Muniz e Domício Proença Júnior

e sua práxis orientam as ponderações e escolhas dos atores sociais quanto


aos meios empregáveis e suas conseqüências diante do fim pretendido
por cada um deles em seu convívio e no encaminhamento da solução de
seus problemas. A existência da polícia como uma alternativa de produção
de coerção passível de ser mobilizada por todos motiva mudanças nas
estratégias sociais de convivencialidade e na administração de vontades
em conflito.

A Idéia de Polícia engloba todos os possíveis efeitos que a polícia


pode produzir em razão de sua existência, da expectativa ou manifestação
de sua presença ou ação. Revela e articula os efeitos indutores sobre a
auto-regulação social: os efeitos preventivos quando a polícia não está
fisicamente presente, dissuasivos quando ela se faz presente sem agir, e
repressivos quando ela atua para frustrar ações que atentem contra a paz
social ou violem as leis. Seu alcance pode ser visualizado na seguinte
ilustração (Figura 1):

Figura 1. Efeitos da polícia na ordem social

Os efeitos da existência da polícia, da presença policial e da ação


policial propriamente dita dependem, se subordinam, aos instrumentos
de controle da ordem social que são estruturalmente anteriores à ação
policial e conformam o contexto de sua práxis. Estes mecanismos de
regulação intergrupais e intragrupais, formais ou informais, diretos ou
indiretos, manifestos ou potenciais, expressam níveis diferenciados e
descontínuos de coerção social, constituindo a infra-estrutura do exercício
do mandato policial. É a sua dinâmica que conforma o campo de
possibilidades dos efeitos policiais, e não a própria polícia. Isto qualifica,

241
Bases Conceituais de Métricas e Padrões de
Medida do Desempenho Policial

uma vez mais, o caráter intrinsecamente finito e provisório das soluções


policiais na construção da ordem social.

A idéia de polícia, com tudo que ela significa em termos de


expectativas e vivências relacionadas à existência da polícia e à execução
do seu mandato, media a aceitabilidade e a adesão às soluções policiais,
determinando as formas do recurso à força para produzir obediência.
Contextualiza os efeitos preventivos e dissuasórios da presença policial
pelo impacto do uso potencial de força, situando a oportunidade dos
efeitos repressivos da ação policial pelo uso concreto de força. A
pertinência do uso concreto de força é um dos fatores que fortalece ou
fragiliza a autorização social da polícia, reforçando ou não a credibilidade
das soluções policiais.

A idéia de polícia tem a sua expressão mais aparente e instrumental


na credibilidade policial. A credibilidade policial pode ser compreendida como
um tipo de síntese funcional da idéia de polícia, uma forma de apreensão do
consentimento social quanto ao exercício autorizado do uso da força no interior
de uma dada comunidade política, sob o império da lei.

Nas dinâmicas de controle e auto-regulação social, a credibilidade


policial traduz as expectativas coletivas de que a polícia virá, se fará
presente, naquelas situações em que se deseja que a polícia apresente-se
como uma alternativa necessária, ofertando soluções aceitáveis.
Corresponde à percepção de que a polícia é capaz de cumprir o seu
mandato, respondendo em cada situação vivida e no conjunto de todas as
interações com a sociedade, ao que polícia é ou deve ser tanto quanto aos
“por que” e “para que” e “como” fazer polícia.

A credibilidade policial instrumentaliza a confiança e a adesão sociais


diante da perspectiva do quanto a polícia é uma alternativa equânime e igualitária,
competente para construir soluções diferenciadas e aceitáveis em uma ampla
variedade de circunstâncias, exteriores aos interesses particulares, porém
obedientes ao pacto social e às leis. Em cada solução policial, tem-se ou não o
reforço da credibilidade policial, resultante do questionamento cotidiano do
mandato e práticas policiais pelos indivíduos e grupos sociais. É a credibilidade
policial que mais imediatamente é considerada quando se chama ou não a
polícia, aceita-se ou não o que ela propõe, acredita-se ou não no que ela faz,
diz que faz, informa ou sugere; quando se contempla a adoção ou não de
arranjos particulares de uso de força.

242
Jacqueline de Oliveira Muniz e Domício Proença Júnior

Quando uma polícia desfruta de razoável credibilidade, passa a


operacionalizar o controle social com um grau de adesão tal que a
orientação policial é tomada, e cada vez mais expressa, nos termos
presentes da pactuação social mais ampla. Neste contexto, a ação policial
apresenta uma elevada consonância com os termos e requisitos do mandato
policial. Essa perspectiva tem lugar quando a polícia, de maneira
transparente, continuada e, sempre que necessário, explícita, reconhece,
se constrange e adapta aos requisitos cambiantes de tal mandato. As regras
de enfrentamento, os procedimentos e as práticas policiais tornam-se
cada vez mais conhecidos, compartilhados e apreciados pelos indivíduos
ou grupos. Isto, por sua vez, empresta crescente previsibilidade às ações
policiais, ampliando e reforçando a adesão social às soluções policiais.

Tem-se, com isso, uma maximização do controle social da polícia.


Em contextos de significativa credibilidade policial, o questionamento das
ações policiais reveste-se de um caráter pedagógico, resultante do acervo
de saberes partilhados entre polícia e sociedade. Isso instrui tanto os
agentes policiais quanto a comunidade sobre o que fundamenta e como se
operacionaliza uma solução policial. Permite a vigência de formas de
controle que se aproximam da responsabilização plena das soluções
policiais e da prestação de contas sobre como, e porquê, foram
produzidas. Estabelece-se, assim, um equilíbrio sutil entre a polícia
obediente ao mandato policial e uma comunidade que consente em
obedecer sua polícia. Uma alta credibilidade policial significa que o público
reconhece sua polícia, e a polícia se reconhece no público.

Quando uma polícia desfruta de pouca credibilidade, seu papel


indutor no controle social esmaeceu a tal ponto que suas soluções,
quaisquer que sejam, são recebidas com desconfiança antecipada ou
suspeita prévia. Estas soluções são percebidas como alheias aos termos
presentes da pactuação social mais ampla, dissonantes em relação ao que
seja considerado aceitável em seu conteúdo ou forma. Baixa credibilidade
amplia e recrudesce os níveis de resistência à ação policial,
comprometendo os efeitos indutores da polícia em termos de resultados
preventivos e dissuasórios, acabando por sobrelevar artificialmente as
soluções repressivas diante de qualquer situação que ameace a paz social
ou o cumprimento das leis. Neste contexto, motiva-se a disseminação de
atitudes intolerantes, discriminatórias e provocativas dos indivíduos em
relação à polícia e da polícia em relação ao público.

243
Bases Conceituais de Métricas e Padrões de
Medida do Desempenho Policial

Na medida em que a policia torna-se, e sente-se estrangeira aos


olhos de sua comunidade, passa a ser ameaçada diante de qualquer
questionamento social e, ao mesmo tempo, é percebida como uma ameaça
a esta comunidade. A perda de credibilidade policial corresponde,
tacitamente, a uma fragilização da autorização social, uma perda de
legitimidade da polícia para exercer o seu mandato. Uma polícia
desautorizada se vê premida ao exercício de uma conduta pautada
unicamente pela lei, arriscando-se a impor uma visão intolerante de ordem
que conflita com a ordem social propriamente dita.

Em contextos sociais de baixa credibilidade policial, aumenta-se o


risco do recurso à força reduzir-se à sua dimensão concreta. Cria-se o
cenário no qual uma polícia desautorizada usa de força concreta com mais
freqüência e intensidade do que seria oportuno e apropriado. Isto por sua
vez aumenta ainda mais o descrédito e resistência social, incitando mais o
uso concreto de força.

É importante assinalar que a rotinização do uso inoportuno ou


inapropriado de força evidencia que uma dada polícia tornou-se menos
capaz do exercício do seu mandato, agregando custos e riscos.
Paradoxalmente, esta situação coloca uma demanda crescente sobre os
recursos policiais. A polícia tem que gastar mais tempo e esforço para
atuar em cada evento porque se confronta com resistências prévias e
recrudescimentos. Como resultado, a polícia lida com um número menor
de eventos, por conta da imobilização por longos períodos dos agentes
policiais em cada atendimento. Demora cada vez mais para atender
chamados e tende a declinar de atendê-los, especialmente nos casos de
emergência e nos períodos de alta demanda. Isso reforça a perda de
credibilidade da polícia, na medida exata em que chamá-la deixa de
produzir resultado.

Quando desconfiança e suspeita da polícia se transformam numa


recusa da solução policial, chega-se a inviabilizar a presença da polícia em
determinados territórios, em certas comunidades, sobretudo aquelas
expostas a alto risco social, as assim chamadas “áreas degradadas”. No
limite, a população pode excluir deliberadamente as soluções policiais como
uma alternativa aceitável. Neste caso, não tem porque chamar mais a
polícia ou esperar por ela, podendo mesmo vir a resistir ativamente às
soluções ou, até, à presença policial. Qualquer alternativa de resolução de

244
Jacqueline de Oliveira Muniz e Domício Proença Júnior

conflitos, violenta ou não, legal ou ilegal, passa a ser preferível ao


envolvimento da polícia. Nestes casos, a polícia passa a ser percebida
como invasora, como força de ocupação: ilegítima, ainda que possa estar
legalmente respaldada. Neste contexto, a polícia se vê diante da terrível
situação de ser sentida como um instrumento de opressão.

Se a credibilidade policial cai a tal ponto que se reduz tão somente


à credibilidade de agentes ou equipes policiais individuais, tem-se o
prenúncio do colapso da polícia como o exercício autorizado do uso da
força sob o Império da Lei. A véspera do instante em que pode se perder a
expectativa pública de que há uma polícia e que ela virá.

Quando a credibilidade policial se aproxima de tal ponto, pode ser


tarde demais. Exatamente quando a polícia necessitaria de toda a presteza
para poder recuperar sua credibilidade, é quando ela se revela menos
capaz de agir. A redução da autorização social à sua dimensão formal,
protocolar, de jure, removeu da polícia a capacidade de produzir a
totalidade de seus efeitos pela cristalização de uma Idéia de Polícia cujas
expectativas quanto ao mandato policial são inteiramente negativas. A
polícia passa então a ser percebida como um mal, que nem mais se justifica
como necessário, a menos da emergência mais extrema que,
paradoxalmente, se torna mais freqüente porque a solução policial não
está mais disponível como uma alternativa rotineira. Aqui, a polícia pode
viver a sua hora mais desesperada: é chamada a lidar com um número
cada vez maior de demandas requisitando sua intervenção. Isto inclui
chamadas que nunca teriam chegado à polícia, a não ser pela perda da
credibilidade policial; chamadas nas quais a simples perspectiva da chegada
da polícia teria sido o bastante. Isto também inclui demandas por reforços
do efetivo policial independente de necessidade real, precisamente porque
a presença física, quando não mesmo a ação manifesta do uso de força
pela polícia se tornou a única alternativa restante para produzir algum
efeito. Mas é também possível que, muito antes que essa hora chegue, o
público já tenha abandonado a polícia como alternativa, e o apagar das
luzes de uma organização policial seja marcada pelo fato de que ela não é
mais chamada, e que quando ela se faz presente, é confrontada ou ignorada.

Em todo o processo, num caso ou noutro, a comunidade política


ainda mantém uma Idéia de Polícia, que diante da realidade do colapso da
credibilidade policial, preserva e alimenta um devir. Conquanto julgue que

245
Bases Conceituais de Métricas e Padrões de
Medida do Desempenho Policial

uma polícia pode ser útil e aceite os custos de sua reinstituição, pode
inaugurar, ou refundar, a organização a quem confiar o mandato policial.

Uma vez que se compreenda como a Idéia de Polícia conforma os


contornos e os conteúdos do que polícia é capaz de produzir em termos
de efeitos sobre a ordem social, pode-se reapresentar as práticas policiais
em termos teoricamente consistentes. É possível identificar o que sejam
os resultados da polícia como expressão da articulação entre as
expectativas do mandato policial e as possibilidades da ação policial. Isto
exclui as outras destinações que sejam dadas, ou atribuídas, ou esperadas
de uma determinada polícia, uma vez que elas não pertencem ao lugar de
polícia stricto sensu. Neste sentido, as assim chamadas “competências
residuais” de uma determinada polícia são atribuições ou papéis adicionais,
variáveis. Elas correspondem a expedientes administrativos ou funcionais
que se utilizam das organizações policiais como poderiam se utilizar de
quaisquer outras organizações de regulação social. O esquema abaixo
(Figura 2) dá conta dos relacionamentos entre os efeitos preventivos,
dissuasórios e repressivos da polícia, reinterpretando-os em termos dos
resultados da existência, presença e ação da polícia.

Figura 2. Resultados da ação policial

Tudo o que a polícia faz em termos de ação manifesta, com uso de


força (potencial ou concreto), para interromper, reverter ou anular uma
ação recalcitrante 8 diante da paz social ou do cumprimento às leis
corresponde ao resultado geral de “frustração da ação”, que compreende
os efeitos repressivos e, em alguma medida, dissuasórios da polícia. Quando

246
Jacqueline de Oliveira Muniz e Domício Proença Júnior

o uso de força potencial, a simples presença, ou a perspectiva da presença,


policial é suficiente para impedir, ou evitar, uma ação recalcitrante, então
isto corresponde à “frustração da oportunidade da ação”, que compreende
os efeitos dissuasórios e, em alguma medida, preventivos da polícia.

A combinação da presença policial com arranjos situacionais, capazes


de eliminar ou restringir as próprias oportunidades de ação recalcitrante,
corresponde à “redução antecipada de oportunidades de ação”, que
compreende os efeitos preventivos e, de maneira mais ampla, os efeitos
indutores de auto-regulação social9. Os efeitos preventivos da polícia na
redução de oportunidades de ação podem ser compreendidos como
efeitos associados, uma vez que se inscrevem em processos que se
estendem para além da polícia. Ultrapassam o que pode ser atribuído ao
que ela faz ou pode fazer. Em termos amplos, eles dizem respeito às
dinâmicas de auto-regulação social e aos arranjos situacionais que as
potencializam numa dada comunidade, e que envolvem uma variedade de
atores e possibilidades, inclusive a polícia. Mais especificamente, reportam-
se aos efeitos cumulativos de um conjunto de ações policiais (inclusive
dissuasórias e repressivas) e de iniciativas individuais e grupais, que se
beneficiam da, mas ultrapassam a presença policial ou sua expectativa,
modificando as condições materiais ou a predisposição de atores à
realização de ações recalcitrantes. Tal ordem de complexidade na produção
da prevenção inviabiliza a atribuição de causalidade entre um dado
resultado de redução de oportunidades de ação recalcitrante e uma dada
ação policial preventiva. Se por um lado, a polícia tem um papel importante
nas dinâmicas de redução de oportunidades, por outro, não é possível
isolar o que seja a sua contribuição em nenhum caso particular.

A forma como as expectativas e representações sobre a polícia, a


Idéia de Polícia que se associa à da existência da Polícia, à perspectiva e ao
efeito cumulativo de suas ações, referencia, pauta, modifica e sustenta
comportamentos de indivíduos e grupos sociais. Serve como um elemento
que media soluções convivenciais em que um ou mais atores modifica
suas atitudes quando considera a perspectiva de que a polícia pode vir a
ser chamada, ou se fazer presente, alterando a dinâmica de um determinado
contexto ou conflito de vontades. Essa ampla variedade de resultados,
que tem efeito na ausência da polícia mas como decorrência de sua
existência corresponde à “indução a auto-regulação” da ordem social. Neste
caso, ainda que seja a polícia que se encontra no centro deste processo,

247
Bases Conceituais de Métricas e Padrões de
Medida do Desempenho Policial

não é possível isolar, e muitas vezes nem identificar, o processo pelo qual
se produz esse resultado.

Cada um destes resultados admite uma medida de superposição


em termos de sua caracterização e causalidade. Pode-se identificar os
dois primeiros como resultados diferenciados da presença policial, na
frustração da ação e de sua oportunidade. No entanto, esta identificação
se torna mais difícil à medida em que se consideram os efeitos preventivos,
os resultados de redução de oportunidade e a indução de auto-regulação.
Esse recorte inicial, que distingue os resultados em que a presença policial
é certa, podendo ser isolada como produzindo uma solução policial,
configura o alcance das métricas consideradas a estes resultados.

3. CONCEITO DE DESEMPENHO: EFICÁCIA E COMPETÊNCIA10

O conceito de desempenho corresponde ao reconhecimento de


que há dois aspectos a serem considerados: a situação ou resultado final e
a forma como se produziu esta situação ou resultado. Este último tem
implícito o processo de planejamento, preparação e execução que
conformam a ação policial, de maneira ampla, a forma como se utilizam
os recursos disponíveis. Esta dualidade corresponde ao entendimento de
que não seria suficiente aferir o desempenho apenas pelos resultados
obtidos ou pela forma como foram produzidos. Este conceito de
desempenho é capaz de lidar com esta dualidade, e nomeia como eficácia
a produção da situação final desejada, como proficiência a forma de obtenção
desta situação, ou seja, a utilização dos recursos policiais disponíveis.

Daí ser possível identificar, em termos abstratos, quatro alternativas


para a caracterização do desempenho policial. Os dois primeiros
correspondem ao “melhor” resultado possível e ao “pior” resultado
possível. Em termos absolutos,
(1) o melhor desempenho possível corresponde à
obtenção do resultado desejado de acordo com o
estado-da-arte das formas de ação legal e legítima, sem
mortos ou feridos (baixas zero), sem efeitos colaterais
(danos materiais, por exemplo), com a submissão dos
recalcitrantes sem uso inadequado de força, obtendo
o controle dos locais visados.

248
Jacqueline de Oliveira Muniz e Domício Proença Júnior

(2) o pior desempenho possível corresponderia a não


obtenção do resultado desejado, com formas de ação
ilegais e ilegítimas, com baixas de todos os
recalcitrantes, policiais e civis envolvidos, com extensos
efeitos colaterais, a não-submissão dos recalcitrantes
e sem que se obtenha o controle dos locais visados.

A estes se acrescentam ainda as situações intermediárias, já nos


termos definidos acima,
(3) em que se tem eficácia, mas não proficiência.
(4) em que se tem proficiência, mas não eficácia.

Estes quatro pontos absolutos circunscrevem os termos para a


avaliação de desempenho policial, caracterizando-a como uma análise
conjunta da eficácia e da proficiência, que permite a seguinte ilustração
(Figura 3) dos resultados possíveis de serem obtidos, onde os números
indicam os extremos descritos e se identificam os quartis associados a
altas e baixas eficácias e proficiências.

Figura 3. Eficácia e proficiência

Uma abordagem simplista para a avaliação do desempenho seria a


de se tomar uma razão direta entre uma medida de eficácia e uma medida
de proficiência. Mas esta abordagem é insuficiente, na medida em que
torna impossível comparar o desempenho em duas ações distintas ou
mesmo em ações similares. Isto porque não leva em conta a realidade do
trabalho policial, ignorando os elementos que emprestam singularidade
aos casos reais. Essa simplificação oculta as condições de contorno da

249
Bases Conceituais de Métricas e Padrões de
Medida do Desempenho Policial

ação policial: as exigências legais que circunscrevem o mandato policial, as


considerações políticas que orientam e qualificam a missão atribuída e a
situação final desejada, as considerações sociais, logísticas e, eventualmente,
estratégicas, que caracterizam o cenário e o ambiente da ação; a dinâmica
interativa entre os atores envolvidos, especialmente entre recalcitrantes
e policiais; e quaisquer externalidades.

3.1. Eficácia

Eficácia não é sinônimo de vitória. Depende da consideração dos


resultados desejados e da forma como estes resultados são obtidos. O
entendimento corriqueiro de que ser eficaz é “vencer” reflete uma visão
marcial, guerreira, que sabota o lugar de polícia pela destituição da natureza
política de sua ação e, por sua vez, da sua instrumentalidade. A polícia não
luta, não luta por lutar, não luta para “vencer”. Ela usa de força para produzir
obediência sob consentimento social. Isto significa que os resultados da
ação policial só fazem sentido quando tomados como meios para um
determinado fim, isto é, para a sustentação autorizada da paz social, da
ordem pública e das leis. Esta é a única perspectiva que pode permitir
compreender de que maneira a polícia pode ser eficaz, ponderando tanto
o resultado que se deseja obter quanto as regras de enfrentamento policiais,
cujo conteúdo expressa o que está pactuado como legal, politicamente
admissível e consentido pelos cidadãos.

A definição de eficácia tem que dar conta de dois aspectos: a missão,


que corresponde à expressão explícita do resultado desejado no
empreendimento de uma dada ação policial, ambicionando aproximar o
objetivo político mais amplo; e o conjunto de resultados colaterais ou
associados à maneira como se conduziu a ação.

3.2. Proficiência

Proficiência não é sinônimo de capacitação técnica. Depende da


consideração da práxis policial, à luz de seu estado-das-práticas ou mesmo
de seu estado-da-arte. O entendimento usual de que proficiência é o
atingimento de um determinado nível de desempenho no treinamento,
seja no uso de equipamentos ou na aderência a uma doutrina, reflete uma
visão fordista, burocrática, que oculta a discricionaridade policial,
desqualificando o processo decisório e a própria ação policial. Por exemplo,

250
Jacqueline de Oliveira Muniz e Domício Proença Júnior

reduzir a tarefa policial a “atirar bem” arrisca perder de vista quando


atirar é oportuno, quando atirar bem é apropriado. A polícia não é uma
linha de produção, em que cada policial faz melhor quando obedece
mecanicamente à fração de trabalho que lhe cabe num esquema abstrato,
suposto inteiramente previsível em termos de recursos disponíveis e do
inventário de soluções imediatamente aplicáveis. Ao contrário, a ação
policial depende do juízo e talento dos agentes policiais, de sua tomada de
decisão rumo à adaptação virtuosa de seus saberes, habilidades e recursos
diante da realidade, caso a caso. Esta é a única perspectiva que pode
permitir compreender de que maneira a polícia pode ser proficiente, ao
considerar como cada ação policial conjuga recursos disponíveis e as
decisões de seu uso oportuno e apropriado num determinado caso, para
um determinado fim, isto é, para ser eficaz.

Independentemente de sua aderência ao conjunto de práticas


conhecidas, o estado-das-práticas, ou mesmo à melhor prática, best
practice, conhecida, o estado-da-arte, a proficiência não pode obedecer à
sua própria lógica. Ela só faz sentido no contexto da busca de um
determinado resultado, isto é, como instrumento da busca por eficácia.
Com esta ressalva, então a definição de proficiência tem que dar conta da
apreciação da qualidade da tomada de decisão e execução da ação à luz de
um determinado critério de aderência, seja ao estado-das-práticas, seja ao
estado-da-arte.

4. MÉTRICAS E PADRÕES DE MEDIDA DE DESEMPENHO


POLICIAL

Para medir alguma coisa, é preciso antes saber por que uma
determinada medida é útil para um determinado fim, estabelecendo o que
se quer medir. Sabendo o que se quer medir, pode-se então considerar
como medir.

4.1. Métricas e indicadores11

O porque e o que medir são evidentes quando se trata da medida


de grandezas físicas elementares. O espaço, por exemplo, é uma vivência
compartilhada por todos os seres humanos. Assim, o porque medir é de
fácil compreensão. Todos sabem que para ir daqui ali é preciso atravessar

251
Bases Conceituais de Métricas e Padrões de
Medida do Desempenho Policial

um certo trecho do espaço. Saber o quanto de espaço separa cá de lá


pode ter alguma utilidade, e isto permite uma apreensão da distância e a
sua definição como o menor trajeto que vai de um ponto a outro,
descartando volteios e desvios. Isto permite estabelecer o conceito de
“extensão” como um padrão de medida. Pode-se medir a extensão de
diversas maneiras, seja em linha reta, seja ao longo de um caminho. Uma
vez que se tenha estabelecido um padrão de medida, é necessário
expressar sua grandeza, o que leva a que se escolha uma unidade de medida.

Uma unidade de medida natural é o passo. Mas o passo varia de


pessoa para pessoa, de ritmo de marcha para ritmo de marcha: é uma
unidade de medida tão variável, idiossincrática que compromete os
elementos de regularidade e precisão que permitem sistematizar e
comparar realidades. Para se obter uma medida mais constante e útil, é
razoável eleger uma unidade comum e invariante, universal. No caso do
Sistema Internacional de Medidas, tem-se o metro.

As noções geométricas de “extensão”, “área” e “volume” expressam


entendimentos conceituais: o espaço que separa dois pontos, a superfície
de um determinado perímetro, o conteúdo de um determinado recipiente.
Extensão, área, volume são padrões de medida qualitativamente distintos
e conceitualmente precisos. A extensão trata do menor caminho entre
dois pontos, não importa em que direção; a área trata da superfície de um
perímetro, não importa o seu desenho; e o volume trata do conteúdo de
um recipiente, não importa a sua forma. Este entendimento do espaço
como tridimensional afirma que área pode ser expressa como o quadrado
das dimensões que a delimitam (medidas como extensões) e que volume
pode ser expresso pelo cubo das dimensões que o circunscrevem
(também medidas como extensões). Este relacionamento não é auto-
evidente, depende de uma teoria geométrica que o demonstre, mesmo
que as qualidades que distinguem extensão, área e volume sejam evidentes.

Ainda que seja possível estimar extensões, áreas e volumes, é difícil


medir diretamente todas as distâncias, superfícies e conteúdos (de
recipientes). É possível mensurar um caminho com um bastão graduado,
superpor quadrados de uma área conhecida à superfície que se quer medir
ou fracionar um volume que se deseja conhecer em pequenos volumes
conhecidos. Mas é mais simples calcular a extensão, a área ou o volume a
partir do conhecimento das dimensões de seus contornos, admitindo

252
Jacqueline de Oliveira Muniz e Domício Proença Júnior

uma margem de erro conhecida. Por outro lado, só o entendimento que


nasce do cálculo resolve problemas de erros intuitivos, como aqueles
com que as crianças são familiarizadas: o mesmo volume de água num
copo alto, numa tigela, ou numa bandeja. É a partir da compreensão das
bases conceituais que explicam porque medir alguma coisa, estabelecendo
o que medir, que se pode compreender que o como medir depende do
desdobramento de entendimentos conceituais. É a partir desses que se
estabelecem os padrões de medida da extensão, área e volume, para os
quais se pode então eleger (de fato, arbitrar) unidades de medida úteis e
adotar formas práticas de mensuração12.

Com este preâmbulo, pode-se compreender métrica como o arranjo


conceitual que explica de maneira teoricamente consistente o que é relevante
medir. A partir da elaboração de uma métrica é que se torna possível
estabelecer padrões de medida e, a partir deles, unidades de medida para
mensurar uma determinada qualidade. Essa medida pode ser quantitativa
ou qualitativa. No exemplo apresentado, a posse de uma métrica do espaço
permite o estabelecimento de padrões de medida quantitativos: a medida
da distância entre duas cidades, da superfície de um terreno ou do
conteúdo de uma caixa d’água. A métrica do espaço compreende a utilização
das idéias geométricas para formular padrões de medida (quantitativa) da
extensão, da área e do volume afirmando-os como necessários e
suficientes, integrando-os pela adoção de unidades de medida consistentes
do m, m2 e m3.

Uma vez que se estabeleçam métricas, padrões e unidades de


medida, é possível medir. Então pode se buscar compreender o significado
das medidas de diversas maneiras. Neste processo, que combina análise
e criatividade, desdobram-se uma ou mais métricas de maneira a produzir
resultados analíticos ou descritivos, elaborando indicadores para
determinados fins. Esse é um recurso necessário e útil em função dos
limites da cognição humana.

Por exemplo, qualquer usuário de computador experimenta falhas


no funcionamento um determinado software. Estas resultam de
impropriedades de programação ou erros de processamento. Em diversos
casos, como em sistemas de monitoramento médico ou processamento
químico, é importante saber o quão confiável é um determinado software,
porque uma falha pode ter conseqüências funestas ou causar grandes

253
Bases Conceituais de Métricas e Padrões de
Medida do Desempenho Policial

prejuízos. Uma métrica da qualidade “confiabilidade” associa a interrupção


de funcionamento do software, cujo padrão de medida é qualitativo, a
“falha”, com o controle do tempo, cujo padrão de medida é quantitativo,
medido em unidades de tempo (horas), mensurando o número de falhas
por unidade de tempo.

A escolha de uma determinada unidade de medida para mensurar a


confiabilidade com essa métrica depende de quem deseja mensurar e para
que. Um hospital pode considerar que uma métrica como a de
confiabilidade é o “tempo médio entre falhas” (Mean Time Between Failures
- MTBF), porque o que lhe é importante é a ocorrência, ou não, da falha.
Para produzir uma medida da confiabilidade de software, pode-se operar
o software por 2100 horas, acumulando-se o número de falhas a cada 300
horas. Nas primeiras 300 horas registram-se duas falhas, o que estabelece
um MTBF de 150 horas. Nas horas seguintes, cada levantamento de 300
horas produz respectivamente duas, uma, uma, uma, zero e zero falhas.
Com o uso do software ao longo do tempo, pode-se então elaborar um
registro que revela que o MTBF do software variou (150, 300, 300, 300,
e mais de 600, já que não houve falha em duas períodos de 300 horas
sucessivos). Assim, o resultado da medida seria que MTBF médio do
software é de 300 horas.

Um indicador corresponde à escolha do resultado de uma ou mais


métricas para ampliar o entendimento. No exemplo do software, o indicador
“falhas acumuladas ao longo do tempo em períodos de medida” sugere
algo que poderia se perder diante da medida “MTBF médio = 300 horas”.
Ele indica que quanto mais tempo se usa o software, mais confiável ele se
torna. Essa capacidade de iluminar algo que poderia passar desapercebido
é a grande vantagem de se utilizar indicadores. Embora, num senso estrito,
eles não agreguem mais informação sobre a realidade, podem vir a
reapresentá-la de diversas maneiras, facilitando a cognição de aspectos da
realidade ou produzindo insights13.

A capacidade de qualquer indicador ampliar o entendimento ou


produzir insights válidos depende da robustez das métricas adotadas. Estas,
a seu turno, dependem da qualidade conceitual de seus fundamentos. Só
métricas conceitualmente robustas permitem identificar padrões de
medida consistentes com o que se quer medir, possibilitando escolher
unidades de medida compatíveis com o que se pretende medir e formas

254
Jacqueline de Oliveira Muniz e Domício Proença Júnior

viáveis de como se medir (e produzir medidas). Esse percurso pode ser


visualizado pelo seguinte esquema:

Figura 4. De métricas a indicadores

O que se segue corresponde, como indicado na parte hachurada


da figura acima, à elaboração de métricas e padrões de medida
conceitualmente robustos. Eles associam a teorização sobre a polícia
com a apreciação conceitual do desempenho em termos de eficácia e
proficiência, apresentados anteriormente. Circunscrevem o que se quer
medir pela explicitação do porque sua mensuração é pertinente para a
avaliação do desempenho policial.

O estágio atual dos estudos policiais ainda não permite a elaboração


de métricas capazes de mensurar o conjunto dos resultados do trabalho
policial anunciados em nossa construção teórica, em termos das
“expectativas do Mandato Policial”, dos “efeitos da presença policial” e
da “possibilidade da ação policial”. Este texto corresponde à expressão
de uma agenda de pesquisa em desenvolvimento, e se limita à
consideração de métricas e padrões de medida capazes de mensurar o
que se apresentou mais acima como a “frustração da oportunidade da
ação” e a “frustração da ação”.

4.2. Métrica e padrão de medida da eficácia

Estabelecer os termos de uma métrica para eficácia corresponde


ao desdobramento dos aspectos da (i) missão e dos (ii) resultados colaterais
e associados em termos de uma determinada forma de mensuração. Como
qualquer mensuração, ela se apóia na adoção arbitrária de um determinado
padrão de medida, qualitativo ou quantitativo, que exige a tradução das
dimensões do conceito de eficácia em definições operacionais.

255
Bases Conceituais de Métricas e Padrões de
Medida do Desempenho Policial

(i) Missão policial. A missão policial (M) é definida como


a expressão da situação final desejada pela autoridade
competente, à luz de prioridades políticas, quando
determina a realização de uma ação policial. Em si
mesma, uma missão admite graus variados de
expectativas, conteúdos e detalhamento, implícitos
ou explícitos. Por isso é útil tratá-la em termos
qualitativos, aferindo exclusivamente o atendimento
de seu conteúdo explícito, na produção ou não do
resultado desejado. Assim, a métrica da missão policial
é simplesmente: o seu cumprimento ou não-
cumprimento 14.
(ii) Resultados associados e colaterais. Os resultados
associados e colaterais correspondem à apreciação da
forma pela qual a missão foi cumprida. Em si mesma,
admitiria todo o universo de eventos, resultados e
conseqüências, intencionais ou acidentais, durante e
depois da ação policial. Dada a sua amplitude, é
necessário tratá-los de forma analítica, recortando o
processo de produção e o resultado da ação, a partir de
conjuntos de variáveis afins, potencialmente presentes
em qualquer ação policial. Estes conjuntos são
agrupados ao redor das variáveis recalcitrante (R),
terreno (T), tempo (T), agentes policiais (P) e o vasto
universo de cautelas (C) políticas, sociais e logísticas
que conformam as regras de enfrentamento da ação
policial. Reconhece-se que estes conjuntos são
heterogêneos e agrupam variáveis multidimensionais
e descontínuas. Por isso, é útil combinar critérios
qualitativos e quantitativos de mensuração, cujas
métricas não existem por si mesmas como ocorre na
missão policial. As métricas relacionadas a resultados
associados e colaterais refletem prioridades políticas
para a ação policial, e se modificam para dar conta
destas mesmas prioridades.

Cabe ressaltar que, quando um determinado resultado associado


ou colateral é parte explícita da situação final desejada pela autoridade

256
Jacqueline de Oliveira Muniz e Domício Proença Júnior

competente, então ele faz parte da missão policial, e sua métrica passa
ser puramente qualitativa, de cumprimento ou não-cumprimento. Com
estes elementos, pode-se então expressar a definição operacional de
eficácia como a combinação da missão atribuída e dos seus resultados
da seguinte forma (Figura 5):

Eficácia = Missão (M) + [Agente de desobediência (R) +


Terreno (T) Tempo (T) + Agentes Policiais (P) + Cautelas (C)]

Figura 5. Eficácia policial

Isso admite a sua expressão pelo seguinte grafismo:

Eficácia = M+RT2PC

Esse grafismo serve como ponto de partida ilustrativo para uma


análise de sensibilidade das variáveis, e, portanto, do contorno de suas
métricas, sustentando a formulação de uma tipologia exaustiva de todas
as composições de eficácia possíveis em termos de resultados
desejados e associados. Esta tipologia produz composições de eficácia
que não são compatíveis com a atividade policial. Daí ser necessário
restringir o campo das composições de eficácia àquelas que são
pertinentes à realidade policial. Isto, a seu turno, corresponde à
priorização relativa de determinadas variáveis na composição de eficácia
(RT2PC); novamente, desde que não estejam presentes (quando então
seriam, por definição, explícitos) na missão policial (M).

Cada um dos resultados associados e colaterais pode, ou não,


ser prioritário na ação policial. Não se trata de maximizar ou minimizar
a relevância ou a presença de um determinado resultado associado ou
colateral em si mesmo, mas sim reconhecer que diferentes
preocupações políticas podem determinar a importância relativa de
um resultado sobre os demais. A definição operacional de eficácia
incorpora a importância relativa das variáveis, admitindo dois níveis
de priorização política para resultados associados ou colaterais: se
são prioritários, aparecem grafados em MAIÚSCULAS, ou se não
são prioritários, aparecem grafados em minúsculas, como indicado
na tabela a seguir.

257
Bases Conceituais de Métricas e Padrões de
Medida do Desempenho Policial

Prioridade Política
Resultados
( quanto a..) Priorizados Não priorizados
Recalcitrante R r
Terreno T t
Tempo T t
Agentes Policiais P p
Cautelas C c

É importante assinalar que a missão policial, por definição, é sempre


prioritária e, portanto, sempre grafada em maiúsculas e representada por
(M). Isto permite construir uma lista de todas as composições de eficácia,
ponderando as diferentes prioridades para cada uma das variáveis (RT2PC),
produzindo um universo de 32 tipos lógicos expresso na tabela a seguir.

Número de Resultados Priorizados


5 4 3 2 1 0
RTTPC RTTPc RTTpc RTtpc Rttpc rttpc
RTTpC RTtPc RtTpc rTtpc
RTtPC RTtpC RttPc rtTpc
RtTPC RtTPc RttpC rttPc
rTTPC RtTpC rTTpc rttpC
RttPC rTtPc
rTTPc rTtpC
rTtPC rtTPc
rTTpC rtTpC
rtTPC rttPC

Estas 32 composições de eficácia correspondem a todos os arranjos


possíveis de priorização de variáveis, mapeando todas as possibilidades de
resultados associados ou colaterais. Aplica-se, pois, a qualquer situação em
que o uso de força seja considerado, seja ele compatível ou não com o

258
Jacqueline de Oliveira Muniz e Domício Proença Júnior

mandato policial. Já as quatro composições assinaladas correspondem


àquelas que dizem respeito à realidade policial, cuja caracterização é
apresentada a seguir.

4.2.1. Composições de eficácia policial

Quando se considera a prioridade relativa das variáveis que descrevem


resultados associados e colaterais, constata-se que o universo de 32
composições de eficácia não se aplica de maneira integral às ações policiais.

Na composição de eficácia policial, as cautelas (C) são sempre


prioritárias e são, usualmente, parte das regras de enfrentamento policiais.
Como visto acima, regras de enfrentamento são as normas que exigem,
restringem, modificam ou proíbem determinadas alternativas na ação
policial, em função das provisões legais, juízos políticos, dinâmicas sociais,
considerações logísticas ou mesmo estratégicas. São estes elementos de
contorno que delimitam e contextualizam a ação de polícia, uma vez que
emprestam especificidade ao mandato policial em cada situação concreta.
Ao se reconhecer que as cautelas são sempre prioritárias, tem-se uma
redução das composições de eficácia potencialmente válidas para a realidade
policial, cujo escopo passa a corresponder aos 16 tipos lógicos onde (C)
aparece grafado em maiúsculo.

A preservação dos agentes Policiais (P) também é sempre prioritária


na ação policial. O sacrifício deliberado de policiais não é uma alternativa
política aberta aos planejadores e executores de ações policiais. Ao
contrário: não é nem lógico, nem razoável, nem tolerável que o cuidado
para com as vidas dos policiais seja excluído das formas como se planeja
ou executa uma ação policial. Não é lógico, porque a indiferença quanto à
vitimização policial contraria a própria razão de ser da polícia como
instrumento de proteção contra riscos e perigos que ameacem o público.
Não é razoável, porque uma dúvida quanto à prioridade da preservação
dos policiais sabota a coesão e compromete a qualidade do serviço policial,
ampliando níveis de incerteza, risco e perigo tanto para policiais quanto
para o público. Não é tolerável porque a vida e a saúde são direitos
inalienáveis de todos os cidadãos, entre estes os policiais. Assim, ainda
que policiais possam, eventualmente, estarem expostos a situações de
risco e perigo, só se pode admitir composições de eficácia policial que
saúde e segurança ocupacionais dos agentes policiais (P) sejam prioritárias.

259
Bases Conceituais de Métricas e Padrões de
Medida do Desempenho Policial

Com isso tem-se uma redução das composições de eficácia


potencialmente válidas para a realidade policial, cujo escopo passa a
corresponder a oito tipos lógicos onde as variáveis cautelas (C) e policiais
(P) aparecem grafados em maiúsculo.

O tempo (T) de duração numa ação policial é sempre prioritário.


A presteza é um atributo indispensável da ação policial. A natureza mesma
dos problemas nos quais a polícia é chamada a intervir demanda sempre
alguma medida de urgência em seu encaminhamento e solução por
envolverem níveis diferenciados, objetivos e subjetivos, de risco e
perigo. A temporalidade da polícia é marcada pelas expectativas sociais
de que ela esteja disponível, responda quando acionada e dê conta da
situação quando se fizer presente. Tais representações dizem respeito
à capacidade da polícia cumprir o seu mandato e, com isso, sustentar a
idéia de polícia. A ação policial, a seu turno, admite uma repartição quanto
à temporalidade de suas atividades, em termos da redução antecipada
de oportunidades, da frustração de oportunidades ou de ações que
desafiem a paz social, a vigência das leis ou que demandem o uso da
força como ferramenta da produção pacífica de obediência. São esses
elementos que fazem com que a polícia seja um recurso sempre
disponível e integralmente empenhado em cada momento.

Cada ação policial pode durar mais ou menos tempo. Mas cada
ação tem que ser resolvida satisfatoriamente com presteza, para que a
polícia possa se fazer disponível antes, durante ou depois de sua ação,
ou para que ela possa agir em outra parte. Por sua própria natureza, a
polícia é um recurso escasso já que os eventos sobre os quais pode vir
a ser chamada a atuar podem ser simultâneos, ou descontínuos e
dispersos tanto no espaço quanto no tempo. Em razão disso, qualquer
composição de eficácia policial tem que considerar o atendimento da
presteza da ação policial, priorizando a variável tempo (T). Com isso
tem-se uma redução das composições de eficácia potencialmente válidas
para a realidade policial, cujo escopo passa a corresponder a quatro
tipos lógicos onde as variáveis cautelas (C), policiais (P) e tempo (T)
aparecem grafados em maiúsculo.

A esta altura cabe relembrar o limite das métricas apresentadas


neste artigo. O conjunto das métricas aqui proposto reconhece as
diferentes temporalidades da polícia e seus efeitos. Contudo, seu alcance

260
Jacqueline de Oliveira Muniz e Domício Proença Júnior

atual está restrito àqueles resultados em que se pode estabelecer, de


forma mais rigorosa, uma relação de causalidade entre a presença ou
ação policial e a frustração de oportunidades ou ações recalcitrantes. Já
em relação à redução de oportunidades de ações recalcitrantes e indução
de auto-regulação social no tempo, os resultados produzidos pela
presença ou ação policial não podem ser facilmente isolados, uma vez
que estão dissolvidos nos ou mediados pelos efeitos produzidos pelas
ações de outros atores sociais que constituem as redes primárias de
controle e proteção social. Aqui os efeitos produzidos pela polícia se
combinam e, em boa medida, se confundem com as mais diversas práticas
de regulação social, o que exigiria trabalhos que considerassem como
os mais diferentes atores sociais contribuem para a sustentação da ordem
pública e sua interação com a polícia15. A apresentação teórica realizada
anteriormente identificou e relacionou estes fenômenos evidenciando o
potencial de se avançar rumo a constituição de novos conjuntos de
métricas que ultrapassam os limites deste artigo.

Não é possível realizar a mesma redução do escopo de


composições de eficácia feitas para as variáveis anteriores no caso da
priorização ou não do terreno (T) e do recalcitrante (R). O controle do
lugar em que se desenvolve a ação policial admite uma ampla variação
em termos de prioridade política. Isto vai desde a necessidade de
controle total do terreno como parte da missão policial, passando pelo
isolamento provisório exclusivamente durante uma ação policial, até uma
relativa indiferença quanto a situação e controle do lugar. A situação final
do recalcitrante também admite variação de prioridade: vai desde uma
situação em que a detenção de um recalcitrante é a missão policial,
passando por aquela em que o controle do recalcitrante é oportuno ou
temporário, até uma relativa indiferença quanto ao controle do
recalcitrante ao fim da ou mesmo durante a ação policial. Note-se que o
atendimento às normas de enfrentamento policial incluem as salvaguardas
relativas a incolumidade de todos os envolvidos na ação policial. A
situação final dos envolvidos é contemplada em termos de cautelas (C),
que são sempre prioritárias em ações policiais16.

Diante do exposto, chega-se aos quatro tipos de composição de


eficácia policial, que refletem diferentes prioridades relativas ao
recalcitrante (R ou r) e ao terreno (T ou t), grafadas em maiúscula e
minúscula, conforme se vê na tabela a seguir.

261
Bases Conceituais de Métricas e Padrões de
Medida do Desempenho Policial

Prioridade de Resultados
Tempo
Recalcitrante Terreno Policiais Detalhamento
Cautelas

Todas as variáveis são prioritárias para a


R T eficácia da ação policial.
A situação final de controle do recalcitrante é
prioritária, mas o controle do lugar onde se dá
R t a ação não é prioritário para a eficácia da ação
policial.
TPC
O controle do lugar onde se dá a ação é
r T
prioritário, mas a situação final de controle do
recalcitrante não é prioritária para a eficácia
da ação policial.

r t Nem a situação final de controle do


recalcitrante nem o controle do lugar são
prioritários para a eficácia da ação policial.

4.2.2. Padrões de medida de eficácia policial

A apreciação da métrica adequada para a missão policial permitiu


identificar um padrão de medida qualitativo, de sucesso ou fracasso,
correspondente ao cumprimento ou não cumprimento. A identificação
das composições de eficácia policial permitiu identificar os padrões de medida
pelos quais mensurar os resultados associados e colaterais da ação policial
em função das suas prioridades políticas. Tem-se com isso cinco
possibilidades de padrão de medida, que dão conta da mensuração da
eficácia de toda e qualquer ação policial relacionadas com a frustração da
oportunidade ou da ação recalcitrante.

Em sintonia com o que se encontra exposto nas bases conceituais


de desempenho, trata-se agora de apreciar as formas pelas quais se pode
estabelecer o que deve ser medido em termos da proficiência policial.

4.3. Métrica e padrões de medida de competência policial

Tal como já foi apresentado, a proficiência avalia a qualidade do


planejamento e execução de ações policiais, que se traduz no uso dos
recursos policiais disponíveis para a produção de eficácia. A métrica da

262
Jacqueline de Oliveira Muniz e Domício Proença Júnior

proficiência é um agregado, que tem tantos componentes quantos os tipos


de recursos policiais disponíveis para as ações de frustração da
oportunidade ou da ação recalcitrante. Os recursos policiais são também
multidimensionais e variados, sendo útil agrupá-los em conjuntos de
recursos afins, presentes em qualquer ação policial. Estes conjuntos
correspondem ao suporte e articulação organizacionais, aos equipamentos
e materiais, ao acervo de procedimentos, à capacitação de indivíduos e
equipes, à capacidade decisória e à competência policial orientados pela
busca de eficácia na ação.

Cada um destes conjuntos admite um breve descritivo. Por suporte


e articulação organizacionais se compreende tudo o que a organização
policial pode prover a indivíduos ou equipes policiais, incluindo aí a
distribuição do efetivo policial no espaço e no tempo. O conjunto de
equipamentos e materiais inclui desde o fardamento, armamento e munição
até o suprimento de ataduras no kit de primeiros socorros, passando
pelos instrumentos de comunicação, de proteção pessoal, ou o talonário
de multas. O acervo de procedimentos reporta-se ao conjunto de
condutas de ação, que inclui a aplicação das regras de enfrentamento em
diversas circunstâncias particulares, e espelha o saber policial construído
pela experiência coletiva no planejamento e execução da ação policial. A
capacitação de indivíduos e equipes refere-se ao resultado dos processos
educacionais que se expressa no preparo para a ação policial. A capacidade
decisória corresponde às habilidades discricionárias, de decidir cursos
de ação e comandar indivíduos ou equipes policiais. A competência policial
remete aos diferentes perfis dos profissionais de polícia envolvidos na
ação. Note-se que estes conjuntos de recursos não são nem equivalentes,
nem homogêneos em uma determinada organização policial. Eles são
descontínuos no que se refere à sua distribuição e usos no tempo e no
espaço. Isto significa que em uma mesma organização podem co-existir
diferente disponibilidades, e distintas qualidades de uso, de cada conjunto
de recursos. Por exemplo, é possível que todos os agentes policiais
tenham uma arma de fogo, mas nem todos estejam capacitados ou tenham
competência policial no seu uso.

Exatamente porque a proficiência busca mensurar a qualidade do


uso de recursos policiais disponíveis, a definição de suas métricas depende
de uma referência externa à própria ação policial, que pode ser a do estado-
das-práticas ou do estado-da-arte no uso de cada conjunto de recursos

263
Bases Conceituais de Métricas e Padrões de
Medida do Desempenho Policial

policiais. O estado-das-práticas consiste na best practice (melhor prática)


alcançada por uma determinada organização policial, ou por um
determinado grupo de organizações policiais. Já o estado-da-arte consiste
na best practice conhecida pelas organizações policiais, e tende a caminhar
na direção do que seja o limite máximo do que é possível fazer. Em qualquer
organização policial pode-se combinar componentes de proficiência cujos
padrões de medida são ora os do estado-das-práticas, ora os do estado-
da-arte. É possível que as armas de fogo disponíveis aos policiais se
aproximem ou coincidam com o estado-da-arte dos armamentos,
enquanto que a capacitação ou competência policial para o seu uso está
distante do estado-das-práticas, sendo um atributo de poucos. Vê-se que
os componentes da proficiência dependem dos graus de atualidade
profissional de uma organização policial em relação aos recursos de que
dispõe e da forma como os utiliza.

Isso admite a representação da proficiência policial pelo seguinte


esquema:

Figura 6. Competência policial

Uma vez que a proficiência policial é um meio para a produção da


eficácia, seja porque restringe, seja porque possibilita determinadas
alternativas de ação pela disponibilidade ou qualidade do uso de recursos,
torna-se possível circunscrever os termos da proficiência ótima como
referência geral para a conformação de métricas.Trata-se de um
desdobramento indispensável para o entendimento pleno dos resultados
produzidos pela presença policial, iluminando sobretudo aquelas situações
aparentemente paradoxais em que a polícia é eficaz sem agir. Tais situações,
tão cotidianas, costumam ser interpretadas como um desafio à mensuração,
uma vez que diriam respeito a uma espécie de não-fato, de não-
acontecimento, pela suposta ausência de uso de força.

264
Jacqueline de Oliveira Muniz e Domício Proença Júnior

4.3.1. A Proficiência policial ótima

O reconhecimento da existência e a apreciação do que seja a


proficiência ótima explica, e permite mensurar, o resultado das situações
em que a simples presença policial revela-se eficaz. Em outras palavras,
ela descreve um uso de recursos policiais capaz de produzir obediência,
frustrando oportunidades ou ações recalcitrantes, tão-somente pelo uso
potencial de força. Nos casos de proficiência ótima tem-se a alteração de
atitudes dos recalcitrantes em razão de suas expectativas quanto a própria
possibilidade de ação policial. Os recursos disponíveis indicam uma tal
ordem de assimetria que conduz ao abandono de qualquer forma de
resistência diante da polícia. Nestes eventos, o uso concreto de força não
teve lugar. Diante da perspectiva ou iminência do uso de força, o seu
potencial foi suficiente para produzir submissão.

É importante assinalar que a oportunidade de se obter uma


proficiência ótima depende tanto da disposição do recalcitrante em
reconhecer a assimetria com a qual se confronta, quanto da capacidade
da polícia de anunciá-la. A proficiência ótima explicita um jogo de
expectativas entrecruzadas que pode admitir alguma medida de
manipulação, sobretudo por parte da polícia. Há espaço para o blefe policial
pelo anúncio de recursos superiores aos disponíveis. Há espaço para a
teatralidade de seus recursos mais proficientes, buscando os benefícios
de um efeito-demonstração. Há ainda espaço para o impacto da fama ou
reputação de uma determinada equipe ou liderança. As possibilidades de
manipulação de expectativas de parte do recalcitrante são mais limitadas,
mas tendem ser mais concretas, girando ao redor do agravamento das
circunstâncias, ou de sua simulação. Há espaço para atos ou ameaças que
complexifiquem a ação policial, demandando mais proficiência de parte
da polícia para seguir sendo eficaz.

A incapacidade ou falta de disposição do recalcitrante em


reconhecer a assimetria com que se confronta pode frustrar a ocorrência
de um resultado que revelaria uma proficiência ótima. Se não se tratou de
um blefe ou de uma demonstração policial, então a assimetria em favor da
polícia irá quase certamente produzir um resultado eficaz. Mas a
proficiência deste resultado já não será ótima, porque ela falhou em
produzir resultado tão somente pelo seu potencial. Por outro lado, a
incapacidade ou recusa dos policiais em reconhecer as possibilidades do

265
Bases Conceituais de Métricas e Padrões de
Medida do Desempenho Policial

uso potencial de força pode levar ao seu uso concreto, com tudo que isso
se arrisca em termos de externalidades, quando ele é simplesmente
supérfluo. Isto se torna ainda mais grave quando a própria organização
policial tem dificuldades de compreender e avaliar os efeitos da presença
policial e do uso de força potencial, o que estimula o uso concreto de
força de forma equivocada, comprometendo a proficiência policial e, por
sua vez, a eficácia.

É com estas considerações em mente que se pode afirmar a


proficiência ótima como um extremo lógico que é substantivamente real,
e que pauta todas as demais medidas de proficiência. O fato de que parte
expressiva das oportunidades ou ações recalcitrantes são frustradas pelo
uso potencial de força clarifica e explica o que é de fato o efeito dissuasório
da presença policial, desmistificando-o e operacionalizando-o. Revela a
fragilidade do entendimento corrente da dissuasão policial como um
resultado não só independente do que sejam os recursos disponíveis e
das formas de seu uso, como também inferior, que corresponderia, nesta
leitura simplista, a uma resposta subalterna diante de uma falha das ações
de prevenção.

A proficiência ótima reforça a concreção e a viabilidade da presteza


policial. Quanto mais situações em que a polícia é chamada a se fazer
presente puderem ser resolvidas de forma eficaz tão-somente pelo uso
potencial da força, mais a polícia tende a se aproximar da meta desafiante
de manter-se sempre disponível e integralmente empenhada.

A proficiência ótima serve ainda de reforço ao entendimento


conceitual de que o desempenho policial só pode ser adequadamente
tratado quando considerado a partir de uma análise que leve em conta
tanto as métricas e padrões de medidas da eficácia quanto as da proficiência.
E é disso que se trata agora.

4.4. Rumo a avaliação do desempenho policial: análise conjunta da


eficácia e da competência

A avaliação do desempenho policial pela análise conjunta da eficácia


e da proficiência implica reconhecer que o estabelecimento de métricas
tem o potencial de redefinir as formas pelas quais se percebe e entende a
práxis policial17. Este é um tema particularmente oportuno porque métricas

266
Jacqueline de Oliveira Muniz e Domício Proença Júnior

policiais se aplicam a um campo em que pré-existem práticas estabelecidas


para a descrição, mensuração e avaliação. A instituição de métricas
concorre, desta forma, para o reenquadramento dos contornos pelos
quais se apreende o conteúdo e as formas de apreciação do fazer policial.
Possibilitam reinterpretar os resultados e as formas da ação policial em
termos de análise conjunta de desempenho, conforme o esquema abaixo
(figura 7).

Figura 7. Desempenho policial

Pela eficácia dá-se conta da capacidade da ação policial de


produzir o resultado desejado pela autoridade competente. A métrica
de eficácia da missão (em termos de cumprimento ou não
cumprimento) tem o potencial de reconfigurar o conteúdo e prática
do comando e controle policial, ao revelar a demanda de qualidade de
parte a parte. Explicita tanto como a autoridade formula, pode ou
deve formular, os termos do resultado desejado, quanto como a polícia
se aproxima, pode ou deve se aproximar, da tarefa de produzi-los. A
métrica dos resultados associados e colaterais remete diretamente à
especificidade policial da ação, explicitando o significado substantivo
dos termos do consentimento social sob o Império da Lei. A estabilidade
essencial das regras de enfrentamento e expectativas sociais quanto à
ação policial permitem reconhecer o caráter distintivo do agir policial.
Explica-se a prioridade intrínseca das variáveis cautelas (C), tempo
(T) e agentes policiais (P), desmistificando as variáveis terreno (T) e
recalcitrante (R), ao revelá-las passíveis de priorização ou não. Que
disso se possa extrair os elementos de contorno de uma tipologia dos
cinco tipos de ação policial, um resultado contra-intuitivo diante da

267
Bases Conceituais de Métricas e Padrões de
Medida do Desempenho Policial

diversidade de tarefas da polícia, é um benefício que exemplifica o ganho


do estabelecimento de métricas. Assim, se pode apontar como esta
compreensão da eficácia busca esgotar o significado dos elementos externos
à ação de indivíduos ou grupos policiais, seus contextos sociais e os
contornos particulares em uma dada situação.

Pela proficiência se busca esgotar o significado dos elementos


internos à ação de indivíduos e grupos policiais, permitindo o
enquadramento sistemático de sua habilidade no uso de recursos. O
que sejam os recursos disponíveis e as formas como se pode usá-los
são prévios e concorrentes,e essencialmente distintos da situação
em que a ação policial tem lugar. Pertencem à caracterização de um
determinado indivíduo ou grupo e são, neste sentido, atributos
orgânicos. O recorte adotado para a instituição de métricas dá conta
da qualidade do uso dos recursos disponíveis na ação policial,
estabelecendo um diálogo entre a forma de produção do resultado
da ação e as alternativas disponíveis. Que suas métricas identifiquem
como seus padrões de medida dependem do estado-das-práticas,
ou do estado-da-arte, reflete o rigor de uma abordagem que
reconhece a mutabilidade contingente dos recursos policiais e das
formas de seu uso. Que seja a própria métrica da proficiência que
leve à atualização, não apenas da proficiência, mas principalmente da
própria polícia diante de seu mister, é também um resultado contra-
intuitivo, que diverge da idéia de uma doutrina policial estática das
formas do fazer policial. Ao agrupar os recursos policiais em termos
do suporte e articulação organizacionais, dos equipamentos e
materiais, do acervo de procedimentos, da capacitação de indivíduos
e equipes, da capacidade decisória e da competência policial
estabelece-se o arcabouço da escolha consciente de focos para a
apreciação e aperfeiçoamento da capacidade da polícia de se fazer
eficaz. É exatamente a amplitude do seu escopo que explica o seu
potencial descritivo e analítico, tão estreito como um componente
dentre os conjuntos de recursos, tão amplo quanto a medida da
própria proficiência global de uma dada organização policial.
É na análise conjunta que se estabelece o diálogo entre a realidade
mensurada e a utilidade pretendida pela avaliação de desempenho. É
este diálogo que explica e delimita o significado dos dados utilizados,
sua pertinência e utilidade para um determinado propósito,
organizacional, político, social. Depende do significado, politicamente

268
Jacqueline de Oliveira Muniz e Domício Proença Júnior

determinado e tecnicamente consistente, que se atribui às unidades


de medida adotadas e às variações de cada medida aferida. Este
significado expressa termos particulares do que o consentimento social
e a vigência das leis permite, espera e aceita da polícia numa dada
comunidade política. Isto evidencia a fragilidade de qualquer proposta
universal de avaliação de desempenho policial. Isso porque o contexto
social da ação policial atravessa todos os aspectos de sua práxis. É
determinante do alcance e da resolução das medidas de eficácia (quando
considera diferentes prioridades de resultados associados e colaterais)
e de proficiência (quando subordina seus padrões de medida a estados-
da-prática ou estados-da-arte), e, ainda, das medidas de desempenho.
A análise conjunta tem lugar diante de um caso concreto e não
sobre uma abstração. Aqui a questão é distintiva, porque a análise
converte os dados de uma determinada ação em elementos empíricos
pela aplicação das métricas. Essa é precisamente a instância em que a
posse de métricas diferencia a análise conjunta de outras formas de
juízo, porque o seu recorte do que é pertinente e o seu enquadramento
de como isso se relaciona com os resultados da ação são
conceitualmente robustos. É o que lhe permite criar ou aproveitar
acervos de dados, indicadores, resultados de outras avaliações, etc.,
sem se furtar da crítica à composição ou conteúdo de tais acervos.
Note-se que isso não significa que a análise conjunta comece, ou tenha
que começar, do zero. Ao contrário, ela já tem seus termos gerais das
regras de enfrentamento em vigor e, mais amplamente, do que está
estabelecido como a melhor prática de uma determinada polícia. Isso
não exime que, na análise conjunta de eficácia e proficiência, tenha-se
um espaço de crítica à propriedade de tais regras ou práticas.
Nada disso resulta direta ou automaticamente da medida em si.
A análise conjunta, rumo da avaliação do desempenho, depende do
tratamento e da contextualização do que se mensura. Em termos
amplos, do como se mede tanto quanto do que para que se mede.
Como isso é externo às métricas, precisamente porque as usa para
determinados fins, então a questão pode então ser colocada em termos
sucintos. A partir das formas de que se dispõe para medir, e do que se
deseja ao considerar desempenho policial, o processo de análise
conjunta a avaliação do desempenho policial corresponde à identificação
dos insumos passíveis de coleção e adequados a determinados fins
avaliativos pretendidos.

269
Bases Conceituais de Métricas e Padrões de
Medida do Desempenho Policial

5. CONSIDERAÇÕES FINAIS

Não existe uma fórmula simples que permita mensurar o


desempenho policial em todas as suas atividades, em todos os lugares.
Tentativas de elaborar algum tipo de medidor universal a partir dos
resultados administrativos da atividade de cada polícia só tem utilidade
para os aspectos da organização policial em que ela é semelhante a qualquer
outra organização. Útil como isso possa ser, minimiza, quando não anula,
o que é o cerne distintivo do trabalho policial. Não serve, portanto, para
a elaboração dos termos da avaliação do desempenho policial. A polícia,
enquanto polícia, tem que ser avaliada em termos do que são os seus
resultados e formas de agir, ou se arrisca a ser considerada por
perspectivas que ignoram sua destinação, dificuldades e realizações.

O estabelecimento de métricas para a eficácia e para a proficiência


policiais responde a esta perspectiva, explicitando os termos do porque
se propõe medir o trabalho policial, e o que mensura deste trabalho, pela
identificação de padrões de medida. Assim, estabeleceram-se os termos
de mensuração da eficácia policial, definida como a apreciação dos
resultados explicitamente demandados pela autoridade competente (a
missão policial, (M)), e dos resultados associados e colaterais à luz dos termos
da autorização social do uso de força pela polícia numa comunidade política
(polity), sob o Império da Lei, agremiados na consideração das variáveis
recalcitrante (R), terreno (T), tempo (T), agentes policiais (P) e cautelas
(C) sob as regras de enfrentamento policiais. Assim, pode-se agora exprimir
o todo das considerações externas da ação policial em termos da
mensuração de seu resultado na forma sintética do grafismo E =
M+RT2PC. A apreciação da forma como os estado-das-práticas e estado-
da-arte referencia o uso dos recursos policiais disponíveis edificou o
entendimento de proficiência, que dá conta do todo das considerações
internas, neste sentido orgânicas a indivíduos ou equipes policiais, da ação
policial. A identificação de conjuntos afins de recursos em termos de
suporte e articulação organizacionais, aos equipamentos e materiais, ao
acervo de procedimentos, à capacitação de indivíduos e equipes, à
capacidade decisória e à competência policial orientados pela busca de
eficácia na ação pauta o processo diferencial de aferição da proficiência
numa organização policial.

Com esta perspectiva, pode-se recuperar, na consideração da


avaliação conjunta, os termos que explicam porque se tem tais métricas,

270
Jacqueline de Oliveira Muniz e Domício Proença Júnior

subordinando-os a uma destinação específica, o que venha a ser o


propósito de uma determinada avaliação de desempenho. É com isso em
mente que se podem reconhecer os benefícios e limites de tal avaliação.
A posse de métricas, e de um conjunto articulado de métricas e padrões
de medida construídos sobre o enquadramento teórico da polícia
corresponde a um recorte necessário e suficiente para a mensuração, e
daí portanto avaliação, do desempenho policial. Que cada uma destas
métricas seja transparente em sua construção e especificidade assegura
que seus termos e resultados permaneçam abertos à crítica, sujeitos aos
mecanismos corretivos do conhecimento científico. Com atenção portanto
ao limites atuais de seu alcance e à finitude de seus elementos, tem-se um
conjunto de métricas que dá conta de tudo que é relevante no exercício
autorizado do mandato do uso da força sob a lei, onde a presença, a ação
ou a perspectiva delas pode explicar o resultado da ação policial, da solução
policial.

Um ponto importante deste processo é o que corresponde ao


entendimento da natureza, conteúdo e alcance das regras de enfrentamento.
Quando se compreende que elas expressam de forma dinâmica os termos
do pacto social, da própria autorização que determina o mandato policial,
ganha-se uma perspectiva capaz de enfrentar a tendência de tomá-las como
expressando um tipo qualquer de tecnicalidade autônoma. Ao se perceber
o seu caráter conformante das escolhas policiais admissíveis, ganha-se a
liberdade pela qual compreender a forma como dialogam, interagem e
articulam a discricionariedade policial. Neste processo, percebe-se ainda
o caráter ilimitado de sua competência intrínseca, e o papel que tem no
processo de comunicação entre a polícia e a sociedade que ela policia, ao
emprestar os elementos de previsibilidade de termos pactuados que
maximizam a capacidade regulatória da própria polícia, ampliando seu papel
no suporte à ordem social.

É na articulação entre conteúdos qualificados de missão policial,


apoiados neste entendimento das regras de enfrentamento como expressão
do consentimento social, e na incidência de determinados aspectos da
proficiência que servem para produzir eficácia em uma dada polícia que se
pode reinterpretar o que sejam os descritivos da “modernização policial”.
Modernizar adquire o conteúdo de um incremento na eficácia ou na
proficiência, seja na qualificação dos termos da missão, seja na melhora da
forma de uso dos recursos policiais em prol da eficácia. Mais ainda, explica
como uma e outra são elementos de tomada de decisão política, à luz do

271
Bases Conceituais de Métricas e Padrões de
Medida do Desempenho Policial

que sejam o estado presente da Idéia de Polícia e os termos tecnicamente


consistentes de melhoria do desempenho policial de forma
crescentemente transparente. Isso confronta e expõe o fetichismo de
incremento de efetivos, de bens de capital, de alcance organizacional,
subordinando-os a finalidades explicitamente conexas ao lugar de política
e ao serviço policial para uma sociedade.

Com tudo isso, é forçoso reconhecer as dificuldades de aceitação


de mecanismos de avaliação de desempenho no âmbito das organizações
policiais, porque a vivência de praticantes é a principal fonte do
conhecimento sobre o tema. De fato, alguns dos principais autores de
estudos e trabalhos sintetizam trajetórias vividas mais do que elaborações
de ambição conceitual. Avaliações de desempenho neste ambiente de
conhecimento estão abertas à contestação pela vivência dos avaliados tanto
quanto vulneráveis aos vieses da vivência presente de uma sociedade.

Isso é relevante porque avaliações de desempenho se confundem


com o próprio processo de avaliação do sucesso ou fracasso, da
propriedade ou impropriedade de uma política de Segurança Pública,
quando deveriam servir como insumos para tal avaliação. Quão mais alta
a visibilidade de uma determinada ação, maior a sua conseqüência política,
e mais arriscado se torna avaliá-la sem o benefício de métricas e padrões
de medida estabelecidos, praticados e experimentos a priori. Esta
dualidade tem efeitos sobre qualquer proposta de avaliação de
desempenho, porque arrisca contaminar o processo de avaliação,
instrumentalizando-o politicamente e levando mesmo ao seu abandono.

Diante de um fracasso ou de um sucesso problemático, surgem


pressões para que a avaliação de desempenho sirva ao propósito imediato
de apoiar a justeza da ação, e, por extensão, a correção da política de
segurança. Isso corresponde a dinâmicas políticas e organizacionais
absolutamente corriqueiras, que não podem ser ignoradas, além de
expressar os fatores de risco e erro de qualquer organização orientada
pelo uso de força. Mas o risco desse uso político da avaliação de
desempenho traz consigo as sementes da destruição da possibilidade de
avaliação. Para que se possa conduzir a avaliação de desempenho, é
necessário enquadrá-la de tal maneira que esta instrumentalização seja
mantida sobre controle, sob pena que a avaliação de desempenho não
sobreviva muito tempo. Onde a avaliação de desempenho tem ou adquire

272
Jacqueline de Oliveira Muniz e Domício Proença Júnior

este caráter militante, de instrumento político de defesa inequívoca da


ação governamental ou policial, ela em breve acaba tão irrelevante que
deixa de ser um argumento, e deixando de ser um argumento acaba sendo
abandonada. O que quer se tenha estabelecido como avaliação de
desempenho se reduz a mais um discurso, e o abandono de métricas
infensas à politização é um passo lógico, quando então a questão pode
mesmo reverter a nomear como avaliação de desempenho juízos mais ou
menos militantes que alimentam os processos de construção de
legitimações. Esta consideração tem ainda um outro lado: quando tudo o
que se tem para a avaliação de desempenho são juízos de valor, não há
como se saber se, quando, e o quanto eles são militantes.

Esta situação justifica a perspectiva de que uma avaliação de


desempenho capaz de pronunciar-se sobre o conteúdo da ação, aferindo
mérito em uma análise pautada por métricas conceitualmente robustas e
transparentes. A avaliação de desempenho cresce em credibilidade quando
seus resultados são transparentes, pautados por critérios técnicos que
podem ser conhecidos não apenas pela organização policial, mas pela
sociedade. Exatamente por isso, a avaliação de desempenho necessita ser
salvaguardada de interferências, porque tende a ser alternadamente bem
recebida e valorada ou mal recebida e condenada pelos atores que são
objeto, ou sofrem as conseqüências da avaliação. Com isso, pode-se
elencar os seguintes elementos conclusivos.

Em primeiro lugar, estabelecem-se os parâmetros pelos quais aferir


a propriedade do desempenho de um caso determinado. Existem bases
objetivas, as métricas, para que se afirme a propriedade ou impropriedade
do processo de tomada de decisão das diversas instâncias organizacionais
envolvidas, seja em termos amplos, da política pública de Segurança
Pública, seja em termos do processo de tomada de decisão expressa
numa missão policial, seja em termos da tomada de decisão discricionária
de agentes policias numa situação particular.

Em segundo lugar, estabelecem-se as bases conceituais para o


acompanhamento do desempenho de uma determinada organização
policial, seja em termos do conjunto de seus agentes e equipes, seja em
termos individuais, ao longo do tempo. Isto permite orientar o processo
de preparo quanto aperfeiçoar o emprego, apoiando ainda o processo de
qualificação e especialização de unidades e capacitações, dando rumo e

273
Bases Conceituais de Métricas e Padrões de
Medida do Desempenho Policial

base a processos de auto-aperfeiçoamento em bases conceitualmente


claras: eficácia e proficiência policiais.

Em terceiro lugar, ao permitir medidas de eficácia ou proficiência,


permite estabelecer comparações significativas no desempenho em termos
de grupamentos úteis quanto a contextos, circunstâncias e situações de
contorno. Isto serve a uma variedade de processos organizacionais de
estruturação, priorização e alocação de unidades e recursos, e ainda aos
elementos motivacionais da emulação e do aprendizado mútuo.

É quando se consideram estes elementos que se pode apontar o


que é a contribuição de ruptura do estabelecimento de métricas: sua
capacidade de emprestar densidade técnica ao processo de
responsabilização policial. A questão mais ampla da responsabilização
policial ainda aguarda estudos, e só é possível apontar contornos [Muniz
& Proença Jr 2003]. Sem embargo de que o tratamento desta questão se
encontra além do alcance deste texto, é inescapável que se aponte como
o apresentado corresponde a um insumo crítico para o estabelecimento
de uma maior sintonia entre tomadores de decisão e avaliadores, entre
tomadores de decisão e operadores, e entre as organizações policiais e a
população [cf. Manning 1999b].

Assim, pode-se detalhar como métricas e padrões de medida


servem diretamente às prioridades políticas e às necessidades de controle
social sobre as polícias. A avaliação de desempenho permite a construção
de uma avaliação mérito substantivo da ação e da solução policiais, de
todo o espectro de considerações em que a polícia tem alguma relevância.
Subsidia a definição e a compreensão dos propósitos e limites do
desempenho. Serve para que se possa estabelecer de maneira
politicamente conseqüente e tecnicamente robusta as próprias condições
de execução do fazer policial.

Notas
1
Este texto se beneficia do trabalho de pesquisa desenvolvido em conjunto com Mauro Guedes
Mosqueira Gomes (DSc), Érico Esteves Duarte (MSc) e Tiago Cerqueira Campos (MSc), financiado
pelo prêmio do Concurso Nacional de Pesquisas Aplicadas da SENASP/MJ em 2005 (Proc. No.
08020.0001500/2003-93, ref. 170-C-6), cujo informe final se encontra disponível no site
www.mj.gov.br/senasp
2
Couper [1983], Whitaker [1996], Bayley [1998], Hoover [1998].
3
Para uma breve introdução ao caso brasileiro, ver Lima [1994], Garotinho et al. [1998], VVAA
[1998], Muniz [2001], Proença Jr & Muniz [2006a].

274
Jacqueline de Oliveira Muniz e Domício Proença Júnior

4
Ver Bayley [1994], Bayley & Shearing [1996, 2001], Feltes [2003].
5
Um panorama inicial incluiria Vizzard [1995], Cusson [1999], Manning [1999a], Fielding
[2002], Jones & Newburn [2002], Crank [2003], Feltes [2003], Manning [2004].
6
Esta apresentação expõe resultados baseados em Blumberg [2001], Halberstadt [1994], Heal
[2000], Hunt [1999], Manning [1999c], Mijares et al. [2000], Muniz [1999] e Muniz, Proença
Jr & Diniz[1999].
7
Todas as sociedades humanas, sejam tribais ou complexas, desenvolveram, de acordo com suas
características históricas e culturais, mecanismos de regulação coletiva do comportamento
dos indivíduos, de modo a garantir a coesão social na experimentação da diversidade humana,
e, com isso, a sua própria possibilidade de existência e reprodução simbólica e material. A
ordem social é uma expressão concreta da operação destes mecanismos de coesão. A ordem
social é, antes de tudo, o entrecruzamento das diversas expectativas de ordem construídas pelos
mais distintos grupos sociais que compõem uma sociedade. A ordem social é construída pela
diversidade de territórios simbólicos, morais, físicos, etc. Se apresenta como cenário do encontro
complexo da multiplicidade de fluxos sociais, dos eventos voláteis e das interações descontínuas.
Ela é a expressão de uma gramática ampliada e multicultural que possibilita a experimentação
de interesses divergentes e a emergência de concepções plurais, de percepções distintas e
demandas diversas de ordem e segurança públicas. Cf. Kappeler [2000a, b] e, mais amplamente,
Kappeler [1999], Bayley [1998b].
8
A escolha do termo “recalcitrante”, e por extensão “recalcitrância”, busca circunscrever a
oposição de vontades de indivíduos diante da paz social, da obediência à leis e o desafio ao
comandamento implícito ou explícito de agentes policiais. Por um lado, sua adoção busca dar
conta das diversas possibilidades, potenciais ou concretas, de conflitos, violações ou violências
nos quais a polícia pode vir a ter um papel. Por outro, restringe-se esta caracterização a atos ou
atitudes em um determinado contexto. Desse modo, recusa juízos estigmatizantes e
discriminatórios que incriminam trajetórias, estilos de vida ou comportamentos sociais.
9
Ainda que o rumo da apresentação seja original dos autores, prenunciado em Proença Jr &
Muniz [2006b], é oportuno contrastá-lo com Clarke [1992], que se limita ao crime; Chalon et
al [2001], que aponta, corretamente, para o horizonte da governança e Neocleous [2000a] que
situa corretamente o que é a questão central da prevenção.
10
Este texto reconsidera e avança sobre Gomes [2001], Gomes & Proença Jr [2001] e os termos
do relatório referenciado na nota 1. Dá sentido específico aos elementos de enquadramento
propostos (ainda que não especificamente ao desempenho) em Reynolds [1997] e Blanchard
[1998].
11
Esta apresentação se beneficia e atualiza trabalhos anteriores, especialmente Gomes [2001]
e Gomes & Proença Jr [2001], ainda que tome um rumo particular à luz da temática policial.
A discussão de métricas e indicadores no campo policial é bem mais fragmentária do que se
poderia imaginar à luz da visibilidade de experimentos como o Compstat, que pode ser apreendido
com mais detalhe e rigor do que em outras fontes em McDonald [2001, 2002]. Para métricas e
padrões de medida, veja-se Burge [1996], com a cautela de que o trajeto expositivo deste texto
remete às bases da possibilidade de mensurar de maneira significativa, e não a alguma forma de
medida pragmaticamente instituída.
12
Em todo processo de medida existem considerações prévias que dão conta da magnitude, da
resolução e da viabilidade de se mensurar o que se deseja medir, assim como do propósito da
medida, ou seja, a sua utilidade social. Os três primeiros aspectos relacionam-se com a questão
da escolha das unidades e escalas de medida, que resultam diretamente das métricas adotadas,
subordinando-se aos fins da medida em termos de significado, discriminando o que se pode

275
Bases Conceituais de Métricas e Padrões de
Medida do Desempenho Policial

medir num determinado momento em função das possibilidades técnicas de mensuração ou da


sua relevância. A questão da utilidade da medida, do para que medir varia em função dos
interesses e necessidades humanas e tem tratamento explícito nos itens conclusivos do texto.
13
De forma análoga, uma indústria química poderia formular unidades de medida que
enfatizassem não a ocorrência da falha, como foi o caso do hospital, mas a extensão do período
de falha. Assim, sua unidade de medida de confiabilidade poderia ser o downtime, o tempo pelo
qual a ocorrência da falha interrompe o funcionamento do software. Isso não altera nem a
métrica, nem o padrão de medida da confiabilidade, mas produz medidas e indicadores distintos
sobre a mesma realidade, precisamente porque o propósito da medida é outro.
14
Isto significa que, no conceito de eficácia adotado não admite fragmentação da medida de
obtenção do resultado desejado. Descartam-se, assim, quaisquer abordagens que queiram
expressar o sucesso no cumprimento da missão em termos parciais ou percentuais, com tudo que
isto tem de paliativo. Trata-se de afirmar de maneira inequívoca o caráter polar do sucesso da
missão em termos da produção, ou não, do resultado desejado. Esta postura implica, em si
mesma, numa demanda explícita por clareza no que seja a missão de parte dos tomadores de
decisão. Como seria de se esperar, uma definição conceitual expressa num conceito de eficácia
traz rigor tanto para o output da ação – o resultado desejado – como para o input: os termos
pelos quais se expressa a missão para uma determinada unidade numa determinada ação. É
importante marcar que esta é uma demanda conceitualmente derivada para qualquer ação e
não uma questão de dever-ser administrativo. Sem clareza dos termos da missão, do resultado
desejado, torna-se impossível qualquer perspectiva de avaliação de desempenho, entre outras
coisas.
15
Linhas de pesquisas que desenvolvam estudos sobre as representações sociais acerca das
polícias e etnografias sobre as dinâmicas formais e informais de resolução de conflitos em uma
dada sociedade ou comunidade, por exemplo, podem ser muito úteis para a elaboração de um
conjunto de métricas de eficácia capaz de lidar com as formas pelas quais uma determinada
ação policial contribui para a redução antecipada de oportunidades de ação recalcitrante, ou
induz à auto-regulação social.
16
É oportuno considerar, ao se tratar do controle do recalcitrante, o fato de que em algumas
circunstâncias a polícia pode usar de força potencialmente letal para produzir obediência.
Cada país tem dispositivos legais próprios para regulamentar e normatizar estas situações. No
caso brasileiro, excluindo ocasiões em que isso corresponde à defesa da vida do policial ou de
outrem, matar deliberadamente um recalcitrante caracteriza-se como assassinato.
17
Veja-se a distância que a consideração teórica, articulada à teoria de medida, estabelece
entre o que se expõe e o rumo de Copuper [1983], Cordner et al [1996] e o próprio Cordner
[1996].

Referências
Banton, Michael (1964), The policeman in the community. Basic Books.
Bayley, David H & Bittner, Egon (1989), ‘Learning the Skills of Policing’, Law and Contemporary
Problems, 47: 35—59. now in Roger G. Dunham and Geoffrey P. Alpert, eds., Critical Issues in
Policing – contemporary readings – 4th edition, 82—106. Prospect Heights, Ill.: Waveland Press.
Bayley, David H. (1985), Patterns of Policing: A Comparative International Perspective. New
Haven: Rutdgers University Press.
——— (1994), Police for the Future. New York and Oxford: Oxford University Press.
——— (1996). “Measuring Overall Effectiveness” In: Hoover, Larry H (1996): Quantifying
Quality in Policing (PERF): 37-54.

276
Jacqueline de Oliveira Muniz e Domício Proença Júnior

——— (1998a), What Works in Policing. New York and Oxford: Oxford University Press.
——— (1998b), ‘Patrol’, in David H. Bayley, ed., What Works in Policing, 26—30. New York
and Oxford: Oxford University Press.
Bayley, David H. and Shearing, C. (1996), ‘The Future of Policing’, Law and Society Review, 30/
3: 585-606.
——— (2001), The New Structure of Policing: description, conceptualization and research
agenda. Washington, DC: National Institute of Justice.
Bittner, Egon (1967), ‘The Police in Skid Row: a study in peacekeeping’, American Sociological
Review, 32/5: 699—715 now in Egon Bittner (1990), Aspects of Police Work, 131—156. Boston,
Mass: Northeastern University Press.
——— (1970), The Functions of the Police in Modern Society: a review of background factors,
current practices, and possible role models. Rockville, MD: Center for the Study of Crime and
Dellinquency. now in Egon Bittner (1990), Aspects of Police Work, 89—232. Boston, Mass:
Northeastern University Press.
——— (1974), ‘Florence Nightingale in pursuit of Willie Sutton: a theory of the police’, in
Herbert Jacobs, ed., The Potential for Reform of Criminal Justice, vol 3. Beverly Hills, CA: Sage.
now in Egon Bittner (1990), Aspects of Police Work, 233—268. Boston, Mass: Northeastern
University Press.
——— (1983), ‘Urban Police’, in Encyclopedia of Crime and Justice. New York: The Free Press.
now in Egon Bittner (1990), Aspects of Police Work, 19-29. Boston, Mass: Northeastern University
Press.
——— (1990a), Aspects of Police Work. Boston, Mass: Northeastern University Press.
——— (1990b), ‘Introduction’, in Egon Bittner, Aspects of Police Work, 3—18. Boston, Mass:
Northeastern University Press.
Blanchard, Benjamin S. (1998), System Engineering Management. New York: John Wyley &
Sons.
Blumberg, Mark (2001), “Controlling Police Use of Deadly Force – assessing two decades of
progress” in Dunham, Roger G & Alpert, Geoffrey P, ed (2001): Critical Issues in Policing –
contemporary readings. Waveland Press, 4th Edition: 559-582.
Brooks, Laure Weber (2001), “Police Discretionary Behavior – a study of style” in Dunham, Roger
G & Alpert, Geoffrey P, ed (2001): Critical Issues in Policing – contemporary readings (Waveland
Press, 4th Edition): 117-131.
Burge, Albert R. (1996). “Test and Evaluation Based on Metrics, Measures, Thresholds and
Indicators” (Publication and Documents (US DoD) <http://acq.osd.mil/te/pubdocs/bmmti.htm>,
11 January 2005.
Chalon, Maurice; Leónard, Lucie; Vanderschureren, Franz and Vézina, Claude (2001), Urban
Safety and Good Governance: the role of the police. Nairobi: International Centre for the Prevention
of Crime.
Clarke, Ronald V (1992), “Introduction” in CLARKE, Ronald V, ed (1992): Situational Crime
Prevention: Successful Case Studies. Harrow & Heston: 1-42
Cordner, Gary W. (1996), ‘Evaluating Tactical Patrol’, in Larry T. Hoover, ed., Quatifying Quality
in Policing, 185—206. Washington, D.C.: Police Executive Research Forum (PERF).
Cordner, Gary W.; Gaines, Larry K. and Kappeller, Victor E., eds. (1996), Police Operations:
analysis and evaluation. Cincinnati, OH: Anderson Publishing Co.
Couper, David C. (1983). How to Rate Your Local Police. Washington, PERF.
Crank, John P. (2003), ‘Institutional theory of the police: a review of the state of the art’, Policing:
an international journal of police strategies and management, 26/2: 186-207.

277
Bases Conceituais de Métricas e Padrões de
Medida do Desempenho Policial

Cusson, Maurice (1999), ‘Qu’est-ce que la securité intérieure?’ (What is internal security?),
electronic document, University of Montreal, [crim.umontreal.ca], 22 pages.
Dziedzic, Michael J. (1998), ‘Introduction’ in Robert B Oakley, Michael J Dziedzic and Eliot M
Goldberg, eds., Policing the New World Disorder: peace operations and public security, 3—18.
Washington: National Defense University Press.
Feltes, Thomas (2003), ‚Frischer Wind und Aufbruch zu neuen Ufern? Was gibt es Neues zum
Thema Polizeiforschung und Polizeiwissenschaft?’ (Fresh winds and a departure to new coasts?
What is new in police research and police science?), eletronic document, [www.thomasfeltes.de/
Literatur.htm], 9 pages.
Fielding, Nigel G. (2002), ‘Theorizing Community Policing’, British Journal of Criminology, 42:
147—163.
Fletcher, Connie (1990), What Cops Know. New York: Pocket Books.
Garotinho, Anthony et al (1998), Violência e Criminalidade no Estado do Rio de Janeiro. Rio de
Janeiro: Editora Hama.
Gomes, Mauro Guedes F. M. & Proença Jr., Domício (2001), “Tactical Performance Evaluation:
a conceptual framework” ITEA Journal September/October: 16-24.
Gomes, Mauro Guedes F. M. (2001), Método para a obtenção de Padrões de Medidas de
Desempenho de Unidades da Força Terrestre. Tese de Doutorado. Rio de Janeiro: GEE/PEP/
COPPE/UFRJ.
Halberstadt, Hans (1994), Swat Team: Police Special Weapons and Tactics. Motorbooks
International.
Hansen, A.S. (2002), From Congo to Kosovo: Civilian Police in Peace Operations. London: IISS /
Oxford University Press.
Heal, Charles “Sid” (2000). Sound Doctrine: a tactical primer. New York: Lantern Books.
Hoover, Larry T. (coord.) (1998). Police Program Evaluation. Washington DC: Police Executive
Research Forum and Sam Houston State University.
Hunt, Jennifer (1999) “Police Accounts of Normal Force” (in Kappeler, Victor E, ed (1999): The
Police and Society – touchstone readings. Prospect Heights, Ill.: Waveland Press, 2nd Edition:
306-324.
Jones, Trevor and Newburn, Tim (2002), “The transformation of policing? understanding current
trends in policing systems”, British Journal of Criminology, 42: 120-146.
Kappeler, Victor E et al (2000a) “The Social Construction of Crime Myths” in Kappeler, Victor E
et al (2000): The Mythology of Crime and Criminal Justice. Prospect Heights, Ill.: Waveland
Press: 1-26.
——— (2000b), “Merging Myths and Misconceptions of Crime and Justice” in KAPPELER,
Victor E et al (2000): The Mythology of Crime and Criminal Justice. Prospect Heights, Ill.:
Waveland Press: 297-310.
Kappeler, Victor E., ed. (1999), The Police and Society – touchstone readings, 2 nd Edition.
Prospect Heights, Ill.: Waveland Press.
Kelling, Geroge L (1996) “Defining the bottom line in policing – organizational philosophy and
accountability” in Hoover, Larry H (1996): Quantifying Quality in Policing. Wahsington DC,
PERF: 23-36.
Kelly, Michael J. (1998), ‘Legitimacy and the Public Security Function’ in Robert B Oakley,
Michael J Dziedzic and Eliot M Goldberg, eds., Policing the New World Disorder: peace operations
and public security, 399—432. Washington DC: National Defense University Press.
Klockars, Calr B (1985), The Idea of Police. London: Sage.
Lima, Roberto Kant (1994), A Polícia da Cidade do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Editora

278
Jacqueline de Oliveira Muniz e Domício Proença Júnior

Forense.
Manning, Peter K (1999a) “Mandate, Strategies and Appearances” in Kappeler, Victor E, ed
(1999): The Police and Society – touchstone readings. Prospect Heights, Ill.: Waveland Press, 2nd
Edition: 94-122.
——— (1999b) “Economic Rethoric and Policing Reform” in Kappeler, Victor E, ed (1999): The
Police and Society – touchstone readings. Prospect Heights, Ill.: Waveland Press, 2nd Edition:
446-462.
——— (1999c) “Violence and Symbolic Violence” in Kappeler, Victor E, ed (1999): The Police
and Society – touchstone readings. Prospect Heights, Ill.: Waveland Press, 2nd Edition: 395-401.
Manning, Peter K. (2004), ‘Some Observations Concerning a Theory of Democratic Policing’
(Draft), Conference on Police Violence, Bochom, Germany, April. 8 pp.
McDonald, Phyllis Parshall (2001), “COP, COMPSTAT, and the New Profissionalism – mutual
support or counterproductivity?” in Dunham, Roger G & Alpert, Geoffrey P, ed (2001): Critical
Issues in Policing – contemporary readings. Prospect Heights, Ill.: Waveland Press, 4th Edition:
255-277.
——— (2002), Managing Police Operations – implementing the New York Crime Control
Model – CompStat New York: Wadsworth.
Mijares, Tomas, McCarthy, Ronald M. & Perkins, David B. (2000). The Management of Police
Specialized Tactical Units. London: Charles C Thomas Pub Ltd.
Muir Jr, William Ker (1977). Police: Streetcorner politicians. Chicago: The University of Chicago
Press.
Muniz, Jacqueline (1999) “Ser policial é sobretudo uma razão de ser”. Tese de Doutorado. Rio de
Janeiro: IUPERJ.
——— (2001), ‘A Crise de identidade das polícias’ (The polices’ identity crisis), REDES 2001
Meeting, Washington, DC, electronic document, 42 pp.
Muniz, Jacqueline & Proença Jr, Domício (2003), “Police Use of Force: The Rule of Law and Full
Accountability”, Comparative Models of Accountability Seminar. INACIPE, Ciudad de Mexico,
29-30 October, 10 pp.
Muniz, Jacqueline; Proença Jr, Domício; Diniz, Eugenio (1999). Uso da força e ostensividade.
Boletim de Conjuntura Política. Belo Horizonte, Departamento de Ciência Política, Universidade
Federal de Minas Gerais.
Neocleous, Mark (2000a), ‘Social Police and the Mechanisms of Prevention’, British Journal of
Criminology, 40: 710—726.
——— (2000b), The Fabrication of Social Order: a critical theory of police power. London: Pluto
Press.
Proença Jr, Domício (2003a), “O enquadramento das Missões de Paz (PKO) nas teorias da
guerra e teoria de polícia”, in Esteves, Paulo Luiz (org.), 2003. Instituições Internacionais:
Comércio, Segurança e Integração. Belo Horizonte: Editora PUC Minas.
——— (2003b). “Some Considerations on the Theoretical Standing of Peacekeeping Operations”.
In: Low Intensity Conflict and Law Enforcement 9(3): 1-34. Frank Cass Co.
Proença Jr, Domício. & Muniz, Jacqueline (2006a), “Rumos para a Segurança Pública no Brasil
- o desafio do trabalho policial”, in Bartholo, R. e Porto, M.F. Sentidos do Trabalho Humano. Rio
de Janeiro: E-Papers: 257-268.
——— (2006b) “‘Stop or I’ll call the Police!’ The Idea of Police, or the effects of police encounters
over time”, British Journal of Criminology 46: 234-257.
Rahtz, Howard (2003), Understanding Police Use of Force. Monsey: Criminal Justice Press.
Reiner, Robert (1996) “Processo ou Produto? Problemas de avaliação do desempenho policial

279
Bases Conceituais de Métricas e Padrões de
Medida do Desempenho Policial

individual” in Brouder, Jean-Paul, ed (2002): Como reconhecer bom policiamento. São Paulo:
EdUSP: 83-102.
Reynolds, Matthew T. (1997). Test and Evaluation of Complex Systems. John Willey & Sons.
Robinson, Cyril D.; Scaglion, Richard and Olivero, J. Michael (1994), Police in Contradiction: the
evolution of the police function in society. Westport, Conn: Greenwood Press.
Sacco, Vincent F (1996) “Avaliando Satisfação” in BROUDER, Jean-Paul, ed (2002): Como
reconhecer bom policiamento. Rio de Janeiro: EdUSP: 157-174.
Schmidl, Erwin A. (1998), ‘Police Functions in Peace Operations’ in Robert B Oakley, Michael J
Dziedzic and Eliot M Goldberg, eds., Policing the New World Disorder: peace operations and
public security, 19—40. Washington: National Defense University Press.
Skolnick, Jerome H. (1994 [1966]). Justice Without Trial: Law Enforcement in Democratic
Society. New York: Macmillan College Publishing Company, 3rd ed.
Vizzard, William J. (1995), ‘Reassessing Bittner’s thesis: understanding coercion and the police
in light of Waco and the Los Angeles riots’, Police Studies: International Review of Police
Development, 18/3: 1—18.
VVAA (1998) Crime Organizado e Política de Segurança Pública no Rio de Janeiro, Arché no. 19.
Walker, Samuel (2004), ‘Science and Politics in Police Research: reflections on their tangled
relationship’, The Annals of the American Academy of Political and Social Science, 593/1: 137—
155.
Whitaker, Gordon P (1996) “What is Patrol Work?” in Cordner, Gary W et al, ed (1996): Police
Operations – analysis and evaluation. Prospect Heights, Ill.: Anderson Pub Co.: 55-70.

280
C O
É XI
M
Comunicação
EXPERIÊNCIAS DE INTERCÂMBIO POSITIVO
O PROCESSO DE CONSTRUÇÃO DE INDICADORES DE AVALIAÇÃO
DE DESEMPENHO COM A SECRETARIA DE SEGURANÇA CIDADÃ
DO ESTADO DE QUERÉTARO (SSC)
Ernesto López Portillo Vargas*
Ernesto Cárdenas Villarello**

ANTECEDENTES

Durante o ano de 2005, o Insyde concluiu o projeto denominado


Prestação de contas em um modelo de gerência policial com a Secretaria de
Segurança Cidadã do Estado de Querétaro1. O estudo buscou analisar os
processos da accountability a partir de uma perspectiva interna, isto é,
como uma ferramenta útil da gerência policial para empreender processos
de planejamento, controle e avaliação do desempenho policial.

A problemática e as recomendações derivadas desse estudo foram


analisadas conjuntamente com o titular2, os principais chefes na cadeia de
comando e as Coordenações da Secretaria, em princípios de 2006. O
resultado geral desse intercâmbio foi que se encontrou um bom nível de
coincidência entre os processos de reforma institucional iniciados pela
SSC antes, durante e depois da redação do relatório final, e as propostas
do projeto.

A interseção de critérios e opiniões em torno de pontos críticos da


problemática e as alternativas de solução propostas, não estiveram isentas
de críticas ou discordâncias, tampouco os acordos foram produto do
acaso. Do nosso ponto de vista, os resultados alcançados derivaram de
dois fatores-chave que foram se entrelaçando: por um lado, o enfoque
metodológico aplicado ao projeto e, por outro, a disposição para mudança
dos comandantes. Esses fatores, conjuntamente, permitiram abrir uma
nova janela de oportunidade para que um organismo externo à polícia
pudesse desenvolver um processo de acompanhamento institucional,
orientado para a construção de um modelo de prestação de contas policial.
Essa nova etapa apenas inicia e caracteriza o contexto em que se situa o
tema desse documento com relação à construção de indicadores de
avaliação do desempenho na SSC.

*
Ernesto López Portillo é vice-presidente e diretor executivo do Instituto para a Segurança e a
Democracia Insyde, e consultor internacional em reforma policial.
**
Ernesto Cárdenas Villarello é pesquisador da área de Prestação de Contas e Supervisão da
Polícia do Insyde. 281
Experiências de Intercâmbio Positivo

PROBLEMÁTICA

A SSC enfrenta atualmente um processo interno de transformação


em várias direções, sustentado em planejamentos estratégicos globais,
que derivam da necessidade de conectar, sob uma nova perspectiva, o
tema da reestruturação de um sistema interno de informação policial que
responda às novas demandas. Esse processo reflete uma das questões
centrais do projeto: a necessidade de assegurar um controle razoavelmente
eficiente, eficaz e válido que permita avaliar o que fazem e como o fazem,
os elementos e a cadeia de comando, no cumprimento de suas atribuições.

O problema de diagnosticar o que e o como do desempenho policial,


foi abordado pelo projeto por meio da análise dos processos de trabalho policial
chamados substantivos, ou seja, aqueles processos que estão diretamente
relacionados com os resultados da operação policial. São os seguintes:
a) os processos de supervisão através da cadeia de
comando;
b) os procedimentos de recepção e gestão da queixa (interna
e cidadã);
c) sistema disciplinar e órgãos internos de sua gestão e
controle (Assuntos internos e o Órgão Interno de Controle);
d) os procedimentos formais e informais de avaliação do
desempenho policial;
e) os sistemas e os fluxos de informação que os comportam.

A metodologia para a análise de cada processo partiu do critério de


privilegiar a problematizacão das relações fundamentais entre suas partes, os
efeitos e a exploração das causas que dão lugar a fatores críticos relevantes.
Esses fatores podem ser resumidos nos seguintes enunciados que foram
expostos em detalhes no relatório final do projeto, em fins de 2005:
a) a supervisão operacional que a SSC realiza através da
cadeia de comando carece de controles laterais que lhe
tragam informações seguras sobre o desempenho policial;
b) os procedimentos de recepção, controle e gestão de
queixas carecem de controles que, do ponto de vista
normativo, concedam exatidão ao processo;

282
Ernesto López Portillo Vargas e Ernesto Cárdenas Villarello

c) os órgãos internos responsáveis pelo controle,


investigação e sanção da conduta policial apresentam uma
estrutura organizacional e mecanismos operativos pouco
adequados para o desempenho de suas atribuições;
d) coexistem diferentes procedimentos e práticas formais
e informais de avaliação do desempenho policial, que atuam
adversamente no nível de profissionalização, aprendizagem
e crescimento do pessoal policial;
e) os procedimentos que sustentam o planejamento
operacional policial apresentam problemas de concepção
e se observa uma subutilização de informações úteis para
a análise estratégica e a avaliação de resultados;
f) os sistemas e fluxos de informação que dão suporte aos
chamados processos substantivos, não se encontram
devidamente articulados e são subutilizados, já que se
carece de um sistema integral de indicadores de medição
do desempenho.

Esse diagnóstico gerou diversas reações, embora, em meados de


2006, o reconhecimento e o avanço dos processos internos de reforma
na SSC conduzissem à confirmação, por parte da instituição, que as
propostas de melhoria sustentadas pelo Insyde guardavam uma grande
coincidência com os processos, critérios e visões gerais em
desenvolvimento na SSC.
Isto não significa que o Insyde é responsável direto pelo processo,
realmente existente, de transformação interna da polícia de Querétaro.
O que pode ser afirmado é que, sem dúvida, as iniciativas de mudança são
responsabilidade direta dos atores institucionais, e delas o Insyde apenas
tomou conhecimento ou observou durante os últimos meses. Por exemplo,
sobressai o desenho das “ordens gerais” como um instrumento relevante
nos processos de planejamento e controle operacional; a criação do
“escritório de planejamento policial” que vem a cobrir deficiências na
matéria; a colocação em operação de um “sistema de avaliação policial”
(modelo de avaliação desenhado com base em indicadores) elaborado
com alto nível técnico e metodológico pelo pessoal da SSC; a
reestruturação orgânica e funcional do Órgão Interno de Controle e da
Coordenação de Assuntos Internos, que tem como objetivo remediar

283
Experiências de Intercâmbio Positivo

deficiências nas tarefas de controle, investigação, sanção da conduta e


supervisão do desempenho policial, entre outras ações. São essas algumas
das iniciativas concretas mais importantes atualmente em curso na SSC, e
que transcenderão no desenvolvimento organizacional da instituição. Essa
experiência, vista no seu conjunto, decorre de sua extraordinária relevância
e será necessário considerá-la em um futuro próximo.

SITUAÇÃO ATUAL E PERSPECTIVAS


A conjuntura atual do projeto e sua relação com a instituição
enquadram-se na iniciativa da SSC de que o Insyde acompanhe o
desenvolvimento de um Sistema Interno de Informação Policial (SIIP).
Essa iniciativa deriva, por sua vez, de um processo de combinação
e análise entre ambas instituições e também coincide com uma das
propostas centrais do projeto: a de criar um sistema de informação e
monitoramento para o serviço interno da Secretaria3. Nesse sentido, a
participação do Insyde se coloca em sincronia e atualiza os processos
estratégicos que empreende atualmente a Secretaria.
O primeiro passo que, por sua vez, representa o primeiro problema
por resolver, é definir o objetivo do sistema de informação policial:
“O objetivo do SIIP tem como foco garantir que o processo
de tomada de decisões que realiza a instituição sobre
aspectos-chave de sua operação se realize com base em
procedimentos formais, eficientes, eficazes, visíveis e
adequadamente transmitidos, e garanta que as decisões
se enquadram nas normas que regem os direitos e
obrigações dos envolvidos.”
A partir dessa noção, preliminar e sujeita ainda a ser discutida com a
instituição, o projeto define o papel da informação e do processo de tomada
de decisões na construção de um sistema de prestação de contas policial.
O passo seguinte parte da identificação das funções e atribuições
que deve cumprir como sistema de informação policial, que se traduzirão
em objetivos específicos Paralelamente, se definem as tarefas imediatas
associadas a essas funções. O quadro abaixo mostra a correlação entre
ambos os processos:

284
Ernesto López Portillo Vargas e Ernesto Cárdenas Villarello

Ações concretas para o


Funções estratégicas que o
sustento e desenvolvimento
SIIP deve cumprir
das funções estratégicas
Desenvolver a base técnica para que Definir temas estratégicos
o processo de tomada de decisões e relacionados com a eficiência e a
suas conseqüências sejam levadas a efetividade no processo de tomada
cabo sob princípios de transparência, de decisões. Por exemplo:
validade e formalidade. incidência criminal, conduta e alerta
oportunos, recursos e logística,
supervisão, disciplina e controle
operacional, etc.
Garantir congruência e eficácia aos Analisar os processos e
mecanismos internos responsáveis microprocessos do trabalho policial
por gerar, captar, analisar e transmitir que possibilitem gerar as propostas
informação policial. de melhoria e permitam identificar
novas necessidades de informação
para a tomada de decisões.
Cumprir com o propósito operacional Analisar os fluxos de informação,
de ser fornecedor e facilitador de fortalecer e desenvolver as bases de
informação útil e segura para outras dados de cada processo de trabalho
áreas da SSC. policial e consolidar a plataforma
tecnológica.
Constituir-se na principal instância Ajustar, desenhar e controlar o
especializada na administração, sistema de saída de informações,
análise e controle de informação usuários e periodicidade, com base
policial. em formatos de planilhas
automatizadas, de fácil acesso e
interpretação.
Operar como um mecanismo Ajustar, redefinir ou desenvolver
estruturado, eficiente, confiável e permanentemente o catálogo de
passível de melhoria, em matéria de dados por cada processo de trabalho
informação policial. policial.
Desenvolver e operar uma Estruturar um sistema de indicadores
plataforma de indicadores de de medição do desempenho alinhado
medição do desempenho como com os objetivos e com a estratégia
garantia de funcionamento e da instituição.
princípio de qualidade.

285
Experiências de Intercâmbio Positivo

Na delimitação dessas tarefas, o modelo de um sistema de


indicadores para avaliar o desempenho constitui uma das peças-chave na
consolidação do SIIP em seu conjunto. O problema técnico a resolver
quanto à formulação de indicadores, nos remete a três aspectos a serem
solucionados: um relacionado com a consistência dos mecanismos de
captura de informação, isto é, o tipo e forma de registro; outro relacionado
com a técnica de medição das ações ou funções policiais; e outro de tipo
conceptual relacionado com a administração, controle e utilidade do
sistema de indicadores.

Geralmente se distinguem dois tipos de indicadores: os de processo


e os de resultados. Cada um deles pode ser quantitativo ou qualitativo e
deve estar associado a um objeto ou objetivo previamente definidos em
medidos; Esse objeto “a ser medido” pode incluir um amplo espectro,
desde as percepções cidadãs até a relação custo-benefício no desempenho
policial. O problema técnico é que não é fácil precisar a distinção entre
indicadores de “resultados” e de “processos”. Está muito relacionada com
as necessidades do usuário, a técnica de registro, a fonte provedora de
informação ou de dados, o uso ou interpretação, e, inclusive a composição
particular do seu formato. Na prática, para alguns usuários um indicador
de processo pode ser de fato de resultados e vice-versa. Sob esse ponto
de vista, o problema se resolve com definições.

Por exemplo, caso se pretenda medir a capacidade e o tempo de


resposta ante a demanda de serviços policiais em situações de emergência,
o tempo de resposta será, naturalmente, a variável a medir. Essa variável
estará relacionada ao tempo do ciclo do serviço policial que transcorre,
por exemplo, desde o momento em que o cidadão solicita por linha
telefônica (066) um serviço de emergência (localizado em uma estrada
de jurisdição estatal), passando pelo tempo em que essa solicitação se
transforma em uma ordem de intervenção ao comando de região, é
convertida em uma ordem direta de serviço de emergência para o oficial
mais próximo, até concretizar-se em um “serviço prestado” com a
presença ou intervenção do oficial de polícia no incidente. Nesse processo,
o ciclo do serviço policial pode consumar-se em segundos, minutos ou,
inclusive, em horas, dependendo do cenário e de fatos circunstanciais.

Os resultados, do ponto de vista do cidadão em situação de


emergência, podem ser excelentes ou péssimos, segundo o papel que ele

286
Ernesto López Portillo Vargas e Ernesto Cárdenas Villarello

desempenha na ocasião. Dessa forma, o desempenho do ciclo do serviço


policial pode refletir múltiplos “indicadores”. Por exemplo, o nível de
coordenação e eficiência que se dá ao longo desse processo de trabalho
policial é de interesse para a gerência policial e poderia ser interpretado
como um indicador de processo, e também de resultados. O tempo de
“entrega” de um serviço de emergência e o consumo de gasolina pode
ser de interesse para o administrador de recursos financeiros da polícia.
E a percepção do cidadão também pode estar influenciada por amplas
margens de variação, sob determinadas circunstâncias. Nesses termos, a
distinção entre processo e resultado pode ser convencional.

O exemplo anterior também amostra uma técnica possível para a


construção de modelos de avaliação do desempenho. A definição das
variáveis a serem medidas em determinado “cenário” é determinante na
composição do “indicador”. A construção de “modelos” de avaliação para
determinados cenários “de atuação policial”, desse ponto de vista, exige
um conhecimento profundo do problema. Em muitos casos, requer uma
exploração de informação estatística para reconhecer “padrões” e depois
encontrar a fórmula adequada para medi-lo e solucioná-lo, ou seja, para
aplicá-lo no processo de tomada de decisões correspondente.

Na SSC, o sistema de “ordens gerais” se enquadra nessa concepção,


onde certas funções e atuações policiais estão previstas e possibilitam sua
medição. Nesse sentido, a distinção mais ou menos forçada entre
indicadores de processo e de resultados pode ficar superada quando a
avaliação se realiza em cenários probabilísticos. O projeto considera que
é necessário explorar procedimentos de avaliação do desempenho com
base em cenários, sem descartar a priori a definição de um amplo catálogo
de indicadores de resultados e de processo, tal e como são conhecidos
na literatura sobre o tema.

A construção e aplicação de um sistema de indicadores de


desempenho uma base de cenários de atuação policial requer algumas
ferramentas. Uma delas é dispor de um mapa de indicadores de dois
tipos: básico e estratégico. A distinção entre básico e estratégico, também
é convencional e depende do nível em que o indicador contribui para
que sejam alcançados os objetivos estratégicos da instituição.

O problema é definir em que medida contribui um determinado


indicador no cumprimento dos objetivos. A maneira proposta é que sejam

287
Experiências de Intercâmbio Positivo

analisadas as causas e os efeitos que produz o indicador. Um princípio que


queremos discutir é a possibilidade de construirmos indicadores de
desempenho que relacionem de maneira contínua causas e efeitos, até
que se garanta que sejam alcançados determinados objetivos com base
em indicadores de “desempenho”.

A ilustração abaixo mostra o processo de alinhamento dos


indicadores de desempenho com os objetivos institucionais, no nível e na
profundidade desejada.

Police
planner

O diagrama mostra como determinadas áreas de ação se definem


pelos seus objetivos estratégicos, táticos, metas, etc, os quais devem ser
alcançados para cumprir com sua atribuição legal. Contudo, cada área de
ação apresenta determinadas áreas críticas, que se manifestam como causas
de ineficiência na busca dos objetivos estratégicos. Os indicadores de
desempenho têm como função medir precisamente as causas e os efeitos
das variáveis críticas que intervêm nos processos de trabalho policial.
Essa concepção alinha os indicadores de desempenho em função de
variáveis e áreas críticas, até alcançar, em um encadeamento sucessivo de
causas e efeitos, os objetivos estratégicos propostos pela gerência policial.

Se em curto prazo o Insyde conseguir chegar a construir


conjuntamente com a instituição um sistema de indicadores de
desempenho, a partir dessa perspectiva geral ou de alguma maneira similar,
teremos dado um passo modesto no processo de construção de
experiências para estabelecer um modelo de prestação de contas no
México.

288
Ernesto López Portillo Vargas e Ernesto Cárdenas Villarello

Notas
1
Na página www.insyde.org.mx se poderá obter uma cópia desse estudo com a autorização da
SSC.
2
Os resultados desse projeto contaram com a abertura do Ing. Edgar Mohar Kuri, secretário de
Segurança Cidadã do estado de Querétaro que nos permitiu entrar nas instalações da SSC com
absoluta liberdade e confiança.
3
Relatório sobre prestação de contas em código de gerência policial. Secretaria de Segurança
Cidadã do estado de Querétaro. Insyde. México. 2006. pp. 105 – 119 (inédito)

289
S IL
B RA
Relato Policial
SISTEMA INFORMATIZADO DE
ACOMPANHAMENTO CRIMINAL- SIAC
Marco Antônio Bicalho*

1. ANTECEDENTES

O caso apresentado diz respeito à implantação do Sistema


Informatizado de Acompanhamento Criminal - Siac na subárea da 128ª
Companhia da Polícia Militar do Estado de Minas Gerais, com
responsabilidade territorial em parte da região leste da capital mineira,
como ferramenta operacional na busca da redução das taxas de
criminalidade violenta, com foco principal nos crimes de homicídio (tentado
e consumado).

O Siac é um programa de computador desenvolvido empiricamente


na sede da Fração Policial Militar mencionada, durante a minha gestão
como comandante, que trouxe resultados palpáveis no que se refere às
estatísticas criminais, e que hoje passou a ser adotado pelo Comando de
Policiamento da Capital – CPC como política de comando para todas as
companhias com responsabilidade territorial de Belo Horizonte.

A 128ª Cia PM Especial, localizada à rua Caravelas, 811, bairro


Saudade, no município de Belo Horizonte, é responsável pela preservação
da ordem pública no espaço territorial ilustrado nos mapas constantes do
anexo “A”.

Para melhor entendimento do projeto desenvolvido, que gerou


mudança de comportamento dos policiais da Cia nas ações e operações de
polícia ostensiva tendentes a assegurar a incolumidade das pessoas que residem
ou transitam na região e do patrimônio público ou particular, é necessário
descrever as características da subárea atendida pela 128ª Cia PM:

1.1 - Características e aspectos particulares de bairros e aglomerados.

A subárea da 128ª Cia congrega os seguintes bairros: Novo São


Lucas, São Lucas, Santa Efigênia, Novo Santa Efigênia, Paraíso, Baleia,
Pompéia, Esplanada, Saudade, Jardim Pirineus, Jonas Veiga, Vera Cruz,

* Major da Policia militar do Estado de Minas Gerais; Comandante da 128ª Companhia.

290
Marco Antônio Bicalho

Alto Vera Cruz, Granja de Freitas, Taquaril e Castanheira.

Os 16 bairros abrigam diversos aglomerados urbanos, sendo os


principais deles: Novo São Lucas, União, Paraíso, Ponta do Navio, Pedreira,
Alto Vera Cruz, Vila da Área e Taquaril.

Abrigando uma população aproximada de 150 mil habitantes, sendo


que 60% deles reside em aglomerados, verifica-se na subárea uma
diversidade significativa de comportamentos da população, natureza de
delitos e demanda específica de policiamento, decorrentes da forma de
ocupação e utilização do espaço físico e imobiliário.

Nesse sentido, emergem necessidades específicas de áreas


residenciais construídas de forma horizontalizada, características dos
bairros Pompéia, Esplanada, Paraíso, Saudade, Vera Cruz, São Lucas, Jardim
Pirineus e Santa Efigênia.

Paralelamente, existem logradouros onde concentram-se a


exploração da atividade comercial e empresarial, tornando-os alvo de ações
criminosas visando a subtração de patrimônio, através das mais diversas
modalidades delituosas, com destaque para os roubos a mão armada em
desfavor de estabelecimento comerciais, furtos e roubos a pessoas que
transitam por essas vias, além do arrombamento a residências.

Nos aglomerados e vilas existentes na subárea, verifica-se que a


ocupação desordenada e a concentração de pessoas em espaços físicos
de intensa proximidade, criam as condições para que sejam afloradas as
desavenças, agressões físicas e verbais entre as pessoas, predominando
os delitos contra as pessoas ou em desfavor da tranqüilidade e da paz
pública.

Outra característica particular dos aglomerados é a infiltração de


marginais que vislumbram nessas áreas a possibilidade de desenvolver
suas atividades criminosas ou buscar refúgio seguro, devido a dificuldade
para o exercício de policiamento preventivo eficaz nos becos, em razão
da concentração de população e moradias, aliadas a uma topografia
acidentada e ocupação desordenada do espaço físico, situação que dificulta
o acesso e a locomoção do policiamento.

291
Sistema informatizado de Acompanhamento Crimilnal- SIAC

De igual sorte, o tráfico de drogas utiliza-se desses aglomerados


para estabelecer a sua rede de armazenamento e distribuição de drogas,
estabelecendo em pontos específicos e determinados as conhecidas “bocas
de fumo”, destinadas à comercialização ilegal de entorpecentes.

É importante destacar que embora a subárea da Cia tenha sob sua


responsabilidade, aproximadamente, a 24ª parte de toda a extensão
territorial de Belo Horizonte, possui dois dos cinco maiores aglomerados
da capital mineira, quais sejam: o Alto Vera Cruz e o Taquaril, cada um
com cerca de 35 mil habitantes. Ambos são alvos constantes de matérias
jornalísticas, principalmente no que diz respeito à violência urbana.

2. O SURGIMENTO DO SISTEMA

A partir do ano de 1999, quando se implementou no Comando de


Policiamento da Capital o projeto Polícia por Resultados, que tinha como
pilares de sustentação o emprego do geoprocessamento da criminalidade,
interação comunitária, descentralização das ações e avaliação dos
resultados, os esforços operacionais de polícia ostensiva deveriam ser
convergidos em maior intensidade nos locais de maior incidência criminal.

Em que pese a lógica da concentração dos esforços onde o crime


estava acontecendo ser adequada, percebia-se que ela apenas provocava o
deslocamento da atuação criminal para outros locais, considerando que a
saturação de policiamento onde já havia ocorrido o crime não prevenia a
sua ocorrência onde não havia a concentração de policiamento. Além disso,
o fato de policiar uma região onde a incidência criminal já havia despontado
dava a sensação de que a polícia estava sempre um passo atrás do criminoso,
o que causa o sentimento subjetivo de insegurança social.

A insuficiência da saturação dos hot spots através de ações e operações


policiais, conduziu o Comando da 128ª Cia PM à necessidade de estudar e
melhor conhecer o perfil dos criminosos atuantes na região e suas formas
de ação, bem como das vítimas e dos demais fatores que envolvem a prática
do crime.

O recrudescimento da violência aliado à necessidade cada vez mais


premente de se respeitar os direitos humanos e a dignidade das pessoas
que sofrem com a violência, principalmente dos moradores dos aglomerados

292
Marco Antônio Bicalho

que convivem sob constante ameaça dos marginais homiziados nessas


comunidades e da atuação contundente dos policiais, bem como dos próprios
agentes do crime, passaram a exigir dos organismos policiais ações mais
inteligentes de combate a essa violência, de forma a reprimir especificamente
o mal feitor, poupando os cidadãos de bem.

Essa atuação qualificada e pontual contra as pessoas que realmente


causavam instabilidade nesses locais, só seria possível a partir da formação
de um banco de dados confiável, sobre o qual seria dado tratamento
adequado para utilização pela Polícia Militar, pela Polícia Civil, pelo Ministério
Público e pelo próprio Poder Judiciário na formação da convicção no curso
do processo legal.

A busca por conhecimento teve início a partir do trabalho realizado


pelo policiamento velado da 128ª Cia PM, que idealizou um álbum de
fotografias de criminosos, contendo informações sobre suas vidas
pregressas criminais, endereços além de outros dados relevantes.

Esse álbum de fotografias foi aprimorado e ampliado por militares


do Grupo Tático da Companhia, que passaram a adotar o método de
fichas criminais digitadas em “Word” e anexadas às fotografias retiradas
de jornais e apreendidas quando da prisão de marginais. Em muitas
oportunidades, a atualização das fichas era feita de forma manuscrita, direto
nas fichas dos criminosos.

Em razão do álbum de fotografias ser bastante consistente e conter


um grande número de fichas, passou a ser utilizado inclusive por policiais
civis quando realizavam investigações na subárea de responsabilidade da
128ª Cia PM, bem como por militares de Unidades Especializadas da PM
como do Batalhão Rotam.

Já no ano de 2003, em função do elevado número de fichas do


álbum e do volume formado por elas, surgiu a necessidade de informatizá-
lo, qualificando o dado ali existente, aplicando-se a eles as análises estatísticas
criminais da Cia. Além disso, a análise das fichas permitiu o cruzamento
de informações e estruturação das gangues de tráfico de drogas existentes
na região.

O analista de geoprocessamento e criminalidade da Cia foi desafiado


a desenvolver um programa de computador que pudesse absorver a

293
Sistema informatizado de Acompanhamento Crimilnal- SIAC

informação contida no fichário e ser utilizada em formato digital por toda


a companhia na atuação contra o crime. Em seu auto-ditatismo e sem
realizar qualquer curso na área de informática, o militar desenvolveu o
programa em ambiente “Access”, com base em apenas uma tabela, que
passou a ser mais uma ferramenta de trabalho para a prisão de marginais
conhecidos da região.

Inicialmente, o programa conseguia reunir em cada cadastro de


indivíduo preso os dados de identificação pessoal, fotografia digitalizada,
endereço, características pessoais, Boletins de Ocorrências em que tivesse
sido envolvido, armas utilizadas, modus operandi, prontuários e processos
criminais, breve relato das ações e crimes praticados, entre outros dados.

Foi adotada uma nova estrutura de organização e funcionamento da


fração, além de uma nova rotina de trabalho direcionada às ocorrências
de crimes violentos, principalmente no que diz respeito aos homicídios
na forma tentada e consumada, assaltos a estabelecimentos comerciais, a
coletivos e a transeuntes, com o objetivo de potencializar a qualidade dos
serviços prestados pela 128ª Cia PM à comunidade.

3. O EMPREGO DO SIAC NA ATIVIDADE OPERACIONAL

Dentro desse conceito, destaca-se a eficiente utilização dos recursos


computacionais no combate à criminalidade, utilizados da forma abaixo
descrita:

Cada ocorrência de crime violento registrada na subárea é lida e


analisada pelo analista de inteligência da Cia. Quando o autor é conhecido
e já possui um cadastro no programa de gerenciamento de dados, as
informações referentes àquela ocorrência são acrescentadas ao cadastro
do marginal, além de ser retirada uma fotografia digitalizada e atual que vai
anexa ao mencionado cadastro.

Caso o autor seja desconhecido e foi preso, é aberta uma nova


ficha de cadastro e retirada uma fotografia digitalizada por uma câmera
digital que é colocada a disposição especificamente do pessoal do serviço
operacional. Esse cadastro é atualizado todas as vezes que o mesmo
indivíduo envolve-se em ocorrência policial.

294
Marco Antônio Bicalho

Quando o autor é desconhecido, os dados são registrados em ficha


sem autoria e analisadas informações que possam indicar a possibilidade
de ser algum marginal já cadastrado, e, a partir de então, o indivíduo passa
a ser alvo de abordagens policiais, na tentativa de esclarecimento do crime
praticado.

Essas informações são analisadas e cruzadas pelo agente que opera


o programa, o que lhe permite identificar o indivíduos que compõem as
gangues e suas áreas de atuação.

As gangues atuantes na região são estruturadas, sendo emitido um


relatório sobre os componentes, funções que exercem, fotografias,
mapeamento da área de atuação e histórico de suas ações.

Nos casos de homicídios tentados e consumados não esclarecidos


no ato do registro da ocorrência, após o lançamento das informações no
banco de dados, militares do Grupo Tático retornam ao local para
levantamento de novas informações sobre a motivação do crime, autoria
e informações sobre a vida pregressa das vítimas que permitam o seu
esclarecimento.

São emitidos relatórios mensais contendo dados relevantes sobre


os crimes, vítimas e possíveis autores.

Com o esclarecimento dos crimes e identificação das gangues, são


feitos contatos com a Polícia Civil, no sentido de solicitar empenho daquela
instituição junto ao Poder Judiciário na expedição de mandados de busca e
apreensão e mandados de prisão, acompanhados de informações
relevantes e consistentes, com o objetivo de sustentar os pleitos e formar
convicção das autoridades judiciárias.

Dado o ótimo relacionamento e o trabalho integrado entre os


policiais militares da 128ª Cia PM e os policiais civis da 6ª Delegacia Distrital,
com subárea de responsabilidade correspondente à fração PM, é muito
comum a solicitação de informações sobre marginais e fichas cadastrais
do Siac, por parte do Dr Elias Oscar de Oliveira, Delegado Titular da 6ª
DD, para instruir os Inquéritos Policiais realizados.

Além desses serviços, o Siac é utilizado como fonte de informação


por parte dos policiais que trabalham na atividade operacional (atendimento

295
Sistema informatizado de Acompanhamento Crimilnal- SIAC

às ocorrências), que imprimem fichas cadastrais de pessoas que estejam


sob a custódia desses e as anexam às ocorrências em que o autor é preso
em flagrante, a fim de suprir a autoridade de polícia judiciária de dados ao
receber a ocorrência policial.

Após a expedição dos respectivos mandados, são feitas operações


conjuntas, objetivando a retirada de agentes de crimes violentos da subárea
de atuação da 128ª Cia PM e 6ª DD.

A partir de junho de 2005, o banco de dados gerenciais sobre os


criminosos atuantes na área de responsabilidade da 128ª Cia PM e 6ª DD,
passou por um aperfeiçoamento tecnológico, a fim de potencializar a
ferramenta de uso operacional.

O trabalho desenvolvido pela 128ª Cia PM desde o início do ano de


2003, e com a participação da 6ª DD a partir de janeiro de 2005, tem
surtido bons resultados no que diz respeito ao crescimento do número
de mandados de busca e apreensão e prisão de marginais cumpridos
através de operações conjuntas, fornecimento de informações para Divisão
de Crimes Contra a Vida da Polícia Civil, desestruturação de gangues de
traficantes e homicidas dos aglomerados, identificação, cadastramento e
prisão dos principais marginais atuantes na área, através do banco de dados
conjunto 128ª Cia e 6ª DD.

Em função dos bons resultados, o trabalho foi apresentado ao Crisp/


UFMG em meados de 2004, durante um curso promovido pela Secretaria
Estadual de Defesa Social e coordenado pelo professor Cláudio Beato,
como treinamento de policiais civis da Delegacia de Homicídios e policiais
militares das Cias PM que tinham Grupamentos Especializados em
Policiamento de Áreas de Risco – Gepar para atuação junto ao programa
Fica Vivo, adotado como política de governo do atual Governador do
Estado de Minas Gerais.

4. OS PRIMEIROS RESULTADOS

O emprego do Siac aliado a outras ferramentas utilizadas pela


128ª Companhia no enfrentamento à criminalidade trouxe resultados
positivos como a redução considerável das taxas de criminalidade

296
Marco Antônio Bicalho

violenta da região, com destaque para os crimes de homicídio (tentado


e consumado).

Uma dessas boas ferramentas que se encaixaram ao Siac foi a


instituição do Grupamento Especializado em Policiamento de Áreas de
Risco – Gepar. Trata-se de um grupo de policiais treinados dentro da
doutrina de policiamento comunitário e dos direitos humanos, inclusive
com participação do Crisp/UFMG, especificamente para atuarem nos
aglomerados Alto Vera Cruz e Taquaril que se utilizaram do sistema para
realização das prisões qualificadas, direcionadas especificamente aos
criminosos, evitando-se os equívocos e os constrangimentos das pessoas
de bem dessas comunidades.

Esse tipo de atuação promoveu a melhoria das relações entre polícia


e comunidade, com conseqüente aumento da confiança nas instituições
de segurança pública, embora ainda não tenhamos atingido a situação ideal
nessa relação.

Seguem abaixo alguns dos dados estatísticos relativos aos anos de


2003 a 2006, que permitem avaliar os resultados obtidos a partir da
implantação do sistema, numa época em que a violência tende a crescer
nas grandes capitais do país, e no resto do mundo.

QUADRO DE INCIDÊNCIA DE
HOMICÍDIO TENTADO
NA SUBÁREA DA 128ª CIA PM
NOS ANOS DE 2003 A 2006

Fonte: 128ª Cia PM

297
Sistema informatizado de Acompanhamento Crimilnal- SIAC

QUADRO DE INCIDÊNCIA DE
HOMICÍDIO CONSUMADO
NA SUBÁREA DA 128ª CIA PM
NOS ANOS DE 2003 A 2006

Fonte: 128ª Cia PM

INCIDÊNCIA DE HOMICÍDIOS
MÉDIA MENSAL POR ANO

Fonte: 128ª Cia PM

Como se pode verificar nos gráficos acima, houve uma queda


gradual e constante dos crimes de homicídio a partir dos anos de 2003 e
2004, período em que o Siac passou a ser utilizado e posteriormente
aperfeiçoado, com a mudança de rotina e tratamento dado às informações
abstraídas dos Boletins de Ocorrências policiais.

298
Marco Antônio Bicalho

5. PERSPECTIVAS

Com a adoção do sistema pelo Comando de Policiamento da Capital


como política de comando para todas a companhias com responsabilidade
territorial de Belo Horizonte, o programa tende a ser aperfeiçoado e
utilizado em rede, para que todas as companhias da capital possam
compartilhar informações e nutrir o banco de dados. Dessa forma,
marginais de determinada área que procurem migrar para outra, ao se
sentirem acuados pelas forças policiais não poderão contar com o
anonimato para se homiziarem na nova área.

Outra possibilidade é a utilização das informações por parte do


Poder Judiciário para formação de convicção no decorrer dos processos
judiciais, o que já vem ocorrendo no que tange aos marginais atuantes na
subárea da 128ª Cia PM julgados.

299
I NA
NT
GE
Relato Policial AR
ANÁLISE DELITIVA E UTILIZAÇÃO DE
FERRAMENTAS PARA A PREVENÇÃO DO DELITO
Ruben Adrian Rodríguez*

Em primeiro lugar e para o desenvolvimento do tema, considero


interessante apresentam alguns fatores que sem dúvida vão nos localizar
no tempo e no lugar, para entender a problemática de delitos desta área
da província de Buenos Aires, na República Argentina, e como é o
funcionamento da Chefia do Departamento de Segurança de La Matanza,
dependente do Ministério de Segurança, lugar onde cumpro funções como
chefe de Operações há seis anos e como chefe do Centro de
Processamento e Análise da Informação Delitiva desde a sua criação, em
agosto do ano 2002.

No que se refere à Comarca de La Matanza, Área de


Responsabilidade da Chefia Departamental que se encontra localizada na
província de Buenos Aires, dentro do setor denominado genericamente
como Grande Buenos Aires, sendo o município mais extenso o urbano já
que conta com uma superfície territorial de 323 quilômetros quadrados,
e possui uma população que conforme a estimativas oficiais ronda os 2
milhôes de habitantes, pese a que segundo o último censo do ano 2001
realizado pelo Indec, La Matanza possui uma população de 1.255.288
habitantes, sendo que as apresentações e diferenças surgem diante do
conhecimento de que bairros inteiros não foram incluídos.

Com relação aos limites da comarca, a noroeste faz limite com a


cidade autônoma de Buenos Aires; a sudoeste com as comarcas de
Cañuelas e Marcos Paz; a sudeste com as comarcas de Lomas de Zamora
e Esteban Echeverría e a noroeste com Marcos Paz, Merlo, Morón e Tres
de Febrero.

No concernente à área de responsabilidade da Chefia


Departamental, desde março do ano de 2005 e dentro das políticas de
descentralização implementadas pelo Ministério de Segurança, foram
criadas cinco Chefias Distritais: Noroeste, Nordeste, Oeste, Leste e Sul.
Cada uma delas conta com entre três e seis dependências policiais
(delegacias e destacamentos) sob a sua órbita de responsabilidade, pelo
que as 22 Delegacias e cinco destacamentos policiais neste novo sistema
*
Capitão da Policia da Província de Buenos Aires - Chefia do Departamento de La Matanza.

300
Ruben Adrian Rodriguez

deixaram de depender de forma direta da Chefia Departamental, passando


a ocupar um cargo de coordenação e controle das Chefias de Distrito,
ostentando a Chefia de Delegado (antes Delegado Maior), dependendo
de forma direta de um grupo operativo denominado Grupo de Apoio
Departamental, que conta com 60 efetivos e oito unidades móveis policiais,
que é utilizada para efetuar diferentes operativos de saturação, em reforço
do pessoal de delegacias e em serviços especiais diagramados desde a
Chefia, conforme a problemática que se vá detectando.

O Chefe de Polícia Departamental, em seu caráter de Delegado


Chefe, tem entre outras funções a de coordenar as tarefas com as outras
polícias que convivem no município, Direção Departamental de
Investigações, Direção de Drogas Ilícitas, Direção de Polícia Científica,
Delegação de Custódias de Pessoas, Objetivos Fixos e Transferências de
Detidos, Departamento de Polícia Viária, Chefe do Centro de Despachos
de La Matanza, quem tem a seu cargo o sistema “Call Center 911”. Cada
uma delas tem uma dependência direta a uma Superintendência específica,
dependendo a Chefia Departamental da Superintendência de Coordenação
Operativa, sob a órbita da Subsecretaria de Segurança.

Com os Chefes dos organismos mencionados são realizadas reuniões


mensais sujeitas a um Protocolo de Avaliação, nas quais também participam
os chefes Distritais e os chefes de Dependência, que conforme as
avaliações que são realizadas antes da reunião pela Chefia Departamental,
devem explicar alguma questão em particular. Por exemplo, com relação
ao aumento de delitos. Ou de ocorrências de relevância pendentes de
esclarecimento, assim como em muitos casos para comentar o sucesso
de alguma investigação ou de algum dispositivo de segurança implementado
que lhe permitiu uma diminuição significativa de delitos, ou seja, são tratados
tanto os maus resultados obtidos, sendo procuradas alternativas no
planejamento de trabalho para melhorar o serviço de segurança, assim
como se resgata alguma experiência de sucesso para compartilhá-la e ver
a possibilidade de levá-la a efeito em outra jurisdição.

Cada um dos chefes dos elementos mencionados informa ao chefe


de Departamento sobre a tarefa desenvolvida e os resultados obtidos
durante o mês anterior, já que geralmente são registradas estatísticas
comparativas dos últimos dois meses, relacionando-as com o resto do
ano e igual período do ano anterior. Nas mencionadas reuniões, em muitas

301
Análise Delitiva e Utilização de
Ferramentas para a Prevenção do Delito

ocasiões, também participam os integrantes dos Foros Vicinais e Municipais


de Segurança, (cujo funcionamento é regido pela Lei 12.154), os quais
dão uma visão não tão estatística das questões de delitos de cada jurisdição,
mas, a partir da relação que têm com os vizinhos de cada região contribuem
também todas essas ocorrências que não são denunciadas e em muitos
casos os motivos disso, sendo tomadas ações neste sentido para reverter
as questões que podem ser apresentadas, além de outras questões de
mal funcionamento de alguma das dependências policiais, para que, neste
caso, tanto desde a Chefia de Distrito como, em última instância, a Chefia
Departamental, sejam tomadas as medidas condizentes para fazer cessar
ou reverter a problemática.

Em relação às cinco Chefias Distritais da Chefia Departamental, as


quais estão a cargo de um inspetor (delegado inspetor antes da nova
denominação de hierarquias) têm como área de responsabilidade as
seguintes dependências:

Chefia Distrital Noroeste: Delegacia Noroeste 1ª: San Justo


Delegacia Noroeste 2ª: Ramos Mejía
Delegacia Noroeste 3ª: Villa Luzuriaga
Delegacia Noroeste 4ª: Los Pinos
Delegacia Noroeste 5ª: Don Bosco
Delegacia Noroeste 6ª: Lomas de Millón
Delegacia da Mulher.

Chefia Distrital Noroeste: Delegacia Noroeste 1ª: Villa Madero


Delegacia Noroeste 2ª: Lomas del Mirador
Delegacia Noroeste 3ª: La Tablada
Delegacia Noroeste 4ª: Tapiales
Destacamento Policial Aldo Bonzi
Delegacia Noroeste 5ª: Mercado Central
Delegacia Noroeste 6ª: Villa Celina

Chefia Distrital Oeste: Delegacia Oeste 1ª: Isidro Casanova


Delegacia Oeste 2ª: San Carlos
Delegacia Oeste 3ª: Rafael Castillo

302
Ruben Adrian Rodriguez

Destacamento Feminino
Delegacia Oeste 4ª: San Alberto

Chefia Distrital Leste: Delegacia Leste 1ª: Laferrere


Delegacia Leste 2ª: Altos de Laferrere
Delegacia Leste 3ª: Ciudad Evita

Chefia Distrital Sul: Delegacia Sul 1ª: González Catan


Destacamento 20 de junho
Delegacia Sul 2ª: Virrey del Pino
Destacamento Oro Verde
Destacamento Laborato
Delegacia Sul 3ª: Villa Dorrego

No concernente a fatores de risco real ou potencial, pode-se dizer


que cada distrito apresenta situações diferentes. Como exemplo é citado
o caso da Chefia Distrital Noroeste, cuja característica mais importante é
que se trata de uma região de elevado poder aquisitivo e a de maior
concentração de entidades bancárias, centros comerciais, estações férreas,
etc. Por tanto, existe um movimento maior de dinheiro e dentro do
contexto da comarca de La Matanza, este distrito soma a quantidade de
47 entidades bancárias, sobre um total de 63 e várias entidades financeiras;
estes pontos mencionados seriam os de maior importância entre outros,
já que estamos falando do movimento de grandes volumes de dinheiro.

Ao mencionado soma-se o fato de a jurisdição da Seção Distrital


Noroeste 1º San Justo resulta ser o Centro Cívico da Comarca, por tanto é
onde se concentram instituições como o Palácio Municipal e suas
Dependências como, por exemplo, a Direção de Trânsito, Direção de Ação
Social, a Policlínica Central, também está localizado o Prédio do Poder
Judicial, clínicas privadas, sedes de sindicatos, etc., tudo o que gera o
aumento de pessoas em trânsito veicular e a pé, o que serve de cobertura
para aquelas pessoas com condutas mal intencionadas e/ou delitivas.

O fato de ser cabeça de comarca e com todas as repartições


mencionadas implica a concentração assídua de organizações políticas e

303
Análise Delitiva e Utilização de
Ferramentas para a Prevenção do Delito

outras não políticas que geralmente, por questões sociais e reclamações,


geram mobilizações no centro da comarca para se manifestar. Este conflito
social em si repercute no pertinente às diagramações sobre o serviço de
segurança para a prevenção que é planejado, já que tudo isso demanda
diariamente a utilização de grandes quantidades de pessoal que, respeitando
as garantias constitucionais, deve zelar pela paz e pela segurança social,
empregando-se um grande dispêndio de meios humanos e logísticos em
tarefas que não têm muito a ver com a prevenção de delitos.

Do mesmo modo, em escala de importância e com quase as


mesmas características mencionadas, segue a Seção Distrital Noroeste
2º Ramos Mejía, sendo estas duas jurisdições policiais onde se concentram
a maior quantidade de delitos, o que se observa só ao considerar que
sobre um total de 284 veículos subtraídos no mês de setembro do ano
em curso em todo o âmbito departamental, 169 ocorreram em jurisdição
da Chefia Distrital de tratamento, ou seja, quase 60% das ocorrências.

No distrito mencionado, o índice de pobreza desde San Justo ao


Leste é de 20%, enquanto que o índice de indigência é de 9%, valores
que são refletidos em quase todas as jurisdições policiais que o compõem,
enquanto que de Caminho de Cintura ou Rota Provincial Nº 4 ao Oeste
do território ocupado pelas outras quatro distritais a pobreza chega a
75%, enquanto que a indigência chega a 50%, dados estes obtidos na
apresentação do planejamento estratégico para a descentralização de La
Matanza em sete mini-municípios;

Diante do exposto, novamente menciono que se destinam recursos


humanos e meios logísticos para a contenção de diferentes reclamações
sociais, de trabalho, educação, etc., e estes acontecimentos poderiam
ser, em algumas ocasiões, detectados e planejados com antecedência e,
em outras, resolvidos com respostas imediatas.

Para não me estender mais nesta questão de ordem organizativa


interna, La Matanza, conforme o “Plano Diretor de Segurança”, em vigência
há mais de dois anos, encontra-se dividida em 80 quadrículas,
correspondendo a cada delegacia entre três e seis quadrículas, o que, à
luz dos resultados que se vêm obtendo em algumas regiões, resultam
demasiado extensas, o que se observa somente levando em consideração
que conforme a análise de delitos e o perfil que se realizou oportunamente

304
Ruben Adrian Rodriguez

em cada região, estas foram diagramadas, ficando 75 delas com superfícies


que vão de um a três quilômetros quadrados e as cinco restantes de 10 a
30 quilômetros quadrados, correspondendo estas últimas às localidades
de González Catan e Virrey del Pino, as quais possuem áreas suburbanas.

Sem dúvida, para a conformação das mencionadas quadrículas


também foi necessário levar em consideração a disposição de pessoal e
meios, já que o Plano consiste em que cada uma delas se encontre coberta
durante as 24 horas. Minimamente, com uma unidade móvel policial, de
acordo com a problemática existente, o que significa em números contar
com 80 unidades móveis policiais e 160 efetivos por turno, se é
considerado que a dotação de cada patrulha é de dois efetivos.

A Chefia Departamental conta na data com 1820 efetivos. Na


mencionada quantidade estão incluídos aqueles que se encontram gozando
de licença anual por gratificação, licenças médicas, cursos de re-
treinamentos, desviados de serviço com tarefas administrativas, e outras
questões que fazem diminuir consideravelmente o número de efetivos que
cumprem exclusivas tarefas de prevenção. Não obstante, levando em
consideração a totalidade de pessoal a RELAÇÃO POLÍCIA PARA CADA
1000 HABITANTES é de 0.91 e levando em consideração a superfície
territorial de 5.63 EFETIVOS POR QUILÔMETRO QUADRADO.

No referente a unidades de patrulha, conta-se com 240 veículos,


dos quais em condições de uso e funcionamento 190, o resto devido ao
desgaste próprio do uso se encontram radiados de serviço e em
reparação.

Todos estes fatores condicionaram a possibilidade de aumentar a


quantidade de quadrículas e conseguir criar setores de jurisdições em
superfícies menores. Entretanto, o mencionado não significa que as
quadrículas mais extensas sejam aquelas onde se cometem maior
quantidade de delitos, pelo contrário, nas quadrículas menores,
coincidentes estas com grandes centros comerciais, grande quantidade
de entidades bancárias e financeiras, áreas de maior poder aquisitivo, etc.,
são as mais castigadas quando se fala de delitos denunciados.

Na valoração estatística se trabalha sobre delitos denunciados, que


são divididos em dois grupos, por um lado os DELITOS QUE PODEM

305
Análise Delitiva e Utilização de
Ferramentas para a Prevenção do Delito

SER PREVENIDOS (homicídios, assaltos, roubos, furtos, violações, piratas


do asfalto, subtração de automóveis e de animais quadrúpedes) e pelo
outro, os DELITOS NÃO PASSÍVEIS DE PREVENÇÃO, onde é envolvido
todo o resto dos delitos que de alguma forma a polícia não tem mediante
tarefas preventivas forma de contra-arrestar as ocorrências (ameaças,
lesões culposas, usurpação de propriedade, fugas de lar, acidentes de
trânsito com feridos, etc.), tudo isso sem deixar de considerar a grande
quantidade de ocorrências que conformam o que se denomina comumente
a cifra negra do delito, fatos que são cometidos diariamente e que por
diferentes questões, que neste momento não são motivo de análise, não
são denunciadas, mas são tomadas como parâmetros das ocorrências de
HOMICÍDIO, onde sem dúvida a polícia toma conhecimento e intervenção,
e a SUBTRAÇÃO DE AUTOMÓVEIS, nas modalidades de FURTO
AUTOMOTOR (os delinqüentes subtraem o veículo estacionado sem
ocupantes na via pública) e ROUBO AUTOMOTOR (é considerado dentro
deste tipo, no qual mediante o uso da força física ou ameaça com armas
brancas ou de fogo subtraem a unidade), neste caso ou tipo de delito
tem-se a certeza da denúncia por questões que vão desde a cobrança do
seguro até a recuperação do automóvel. A respeito do HOMICÍDIO faz-
se um desdobramento na análise, levando em consideração principalmente
o HOMICÍDIO EM OCASIÃO DE ROUBO, já que de uma média durante
o ano de 2006 de oito homicídios mensais, um ou dois são em ocasião de
roubo, o resto são o resultado de confrontações familiares, disputas entre
amigos ou vizinhos, e os denominados acertos de conta entre grupos
antagônicos, ocorrendo o mesmo com o delito de VIOLAÇÃO, onde é
feita uma análise diferenciando aqueles que ocorrem no seio familiar ou de
amizades e aqueles que ocorrem em via pública, onde a vítima geralmente
caminha cedo em direção de algum ponto de ônibus para ir ao trabalho
ou para estudar, ou regressa tarde da noite e aproveitando o isolamento
reinante, é atacada por algum indivíduo, já que nesses momentos aumentam
os riscos, sendo destacado que varia o número de denúncias mês a mês,
já que por exemplo no mês de março do ano em curso foram denunciados
três fatos, cinco em abril, 18 em julho, 10 em agosto. Das quantidades
mencionadas mais de 50% se dá no seio familiar, tendo a ver isso
seguramente com questões sociais, culturais e econômicas e a grande
quantidade (há mais de 100 bairros carentes e assentamentos).

O caso que vou expor durante o curso indica justamente, diante da

306
Ruben Adrian Rodriguez

realidade que se vive nesta parte da província de Buenos Aires, mediante


o uso de ferramentas tecnológicas, que tipo de análises são realizadas
com a elaboração de mapas temáticos, que irão determinar um ponto no
espaço, o que geo-referencia um delito, o que tem a ver com pontos
“quentes” (agrupamento de vários delitos no mesmo lugar), zonas quentes
(agrupamento de vários pontos ou delitos), delitos por quadra, por faixas
de horários, por dias da semana, etc. e no que se refere a uma
problemática que afeta em grande parte ao departametno de La Matanza,
que é a subtração de veículos, diferentes experiências vêm sendo aplicadas.
E apresentação de um trabalho de análise e operacional colocado em
prática durante o ano de 2003, onde nos primeiros meses do ano e até a
efetivação do operação se estava cometendo a subtração de quase 800
veículos mensalmente e, mediante o planejamento e colocação em
funcionamento de um operativo de prevenção em dois meses se conseguiu
reduzir os mencionados índices para 420 veículos, em julho do ano
mencionado, ocorrendo isto em um dos momentos mais críticos de
insegurança na província de Buenos Aires, já que acompanhado da subtração
dos veículos em muitos casos de produzia a morte de alguma pessoa.
Inclusive em muitas das ocorrências a pessoa falecida resultava ser
integrante de alguma força de segurança que estando livre de serviço e
vestindo roupas de civil era abordada por delinqüentes para lhe subtraírem
o veículo e diante da resistência do efetivo ou quando os delinqüentes se
davam conta de sua qualidade de tal sem mediar palavra eram agredidos
com disparos de arma de fogo que em várias ocasiões lhe ocasionavam a
morte, só resta mencionar que durante esse ano foram quase 40 efetivos
policiais da província de Buenos Aires mortos em enfrentamentos armados,
muitos acompanhando a baixa de delitos de subtração de veículos. Também
se produziu uma forte diminuição dos delitos de homicídios em ocasião
de roubo, sendo observado também como a partir da saturação policial
em determinada área, o delito se transferia a outras áreas que antes eram
menos afetadas, o que refletia que só com maior quantidade de policiais
nas ruas não se garante a segurança, já que ,como se sabe, existem outros
fatores que influenciam nesta problemática em que nos corresponde nos
desenvolvermos.

A partir do mês de agosto desse mesmo ano foi sancionada a Lei


13.081 que regula o comércio de peças de automóveis usadas, agências
de venda de automóveis novos e usados, oficinas mecânicas, agências de
vans, tapeçaria de automóveis, estacionamentos, e qualquer outro

307
Análise Delitiva e Utilização de
Ferramentas para a Prevenção do Delito

comércio que se vincule aos automóveis, os quais deveram ser registrados


perante a delegacia da jurisdição e habilitar um livro, no qual se registram
os controles que em um prazo que não supere os 20 dias devem ser
inspecionados. Ou seja, têm minimamente um controle mensal e a falta de
habilitação ou perante irregularidades constatadas, a polícia se encontra
facultada para a prisão, sendo a autoridade de aplicação o Ministério de
Segurança da Província de Buenos Aires, onde foi gerada uma dependência
denominada Direção Provincial Fiscalizadora do Registro de Controle e
Comércio Vinculados à Atividade de Automóvel.

A modo de ilustração deixa-se constância de que na data se


encontram registrados perante a polícia 1.100 estabelecimentos
comerciais nesta comarca. A mencionada situação permitiu que fosse
fechada uma grande quantidade de desmanches, oficinas mecânicas, e
outros comércios nos quais se desenvolviam atividades ilícitas, o que gerou
uma diminuição significativa em toda a província de Buenos Aires, na qual
não esteve alheia a Chefia Departamental, que dos quase 800 veículos
mensais que se subtraíam, no mês de fevereiro do ano em curso se chegou
ao número de 213, esclarecendo que no momento invocado nas
jurisdições de San Justo e Ramos Mejía se tinha uma média de 180 veículos
em cada jurisdição, o que a partir de um trabalho de análise, com um
diagnóstico apropriado e uma boa administração dos recursos humanos
e logísticos, se conseguiu reduzir.

As mesmas ferramentas a partir de estudos de padrões e


comportamentos extraídos da base de dados onde se colocam a totalidade
de delitos do âmbito jurisdicional nos permitiu trabalhar em função de
outro tipo de fatos, e realizar uma melhor administração dos recursos no
momento da tomada de decisão, e como exemplo se apresentam em
PowerPoint trabalhos realizados sobre a subtração de automóveis,
violações, drogas, etc. que, por razões técnicas, não são anexados.

308
I NA
E NT
G
Relato Policial AR
PLANEJAMENTO OPERACIONAL: A EXPERIÊNCIA
NEUQUINA
Rubens Fabian Rebuffo*

SITUAÇÃO DA PROVÍNCIA DE NEUQUÉN

Em primeiro lugar nos localizaremos espacialmente. A experiência


à qual me referirei se desenvolve na província de neuquén, que está
geograficamente localizada a Noroeste da Patagônia Argentina. A cidade
onde pontualmente é realizada esta experiência é a de Neuquén, capital
da província de mesmo nome.

A província tem uma população aproximada de 600 mil habitantes,


dos quais um pouco mais de 200 mil residem na capital, sendo esta a
cidade com maior densidade populacional da província.

A realidade socioeconômica é variada, tanto dentro da província


como na própria capital. Tem uma economia dominada pela extração de
petróleo, gás e com a grande quantidade de atividades satélites que se
movem entorno desta exploração. Possui áreas de produção de frutas
em crescimento, do mesmo modo que alguns empreendimentos
turísticos com grandes expectativas em um futuro próximo.

Esta diversidade de atividades econômicas traz uma diversidade


similar na trama social, interagindo nesta estão desde profissionais
ocupando altos cargos em empresas multinacionais até trabalhadores
subempregados com remunerações somente por cima da linha de
pobreza. Não devemos deixar de considerar que na província há quase
7 % de desocupação.

Esta província, em especial a sua capital, é a receptora de uma


grande migração interna, proveniente de províncias argentinas,
principalmente as fronteiriças, somando-se, além disso, a República do
Chile. Pessoas estas que se vêem atraídas pelas altas remunerações que
em ocasiões oferece a atividade petroleira, e migram em sua maioria
para a cidade de Neuquén em busca de um novo e melhor horizonte
que o que vislumbravam em seus lugares de origem. Estas expectativas
em muitos casos não são alcançadas e, por isso, estas famílias terminam
*
Oficial Principal da Polícia de Neuquén; Formado em Sistema de Segurança em Telecomunicação
(I.U.P.F.A); Pós-graduação em Metodologia de Investigação (U.N.C.)
309
Planejamento Operacional: a Experiência Neuquina

vivendo amontoadas em um assentamento ilegal, comumente conhecido


como toma, na periferia da cidade, e recebendo ajuda social para poder
subsistir.

Em muitas ocasiões, o panorama descrito no parágrafo anterior é


determinante e funciona como uma situação propícia para que se
desenvolvam diversas atividades delituosas, principalmente as que causam
danos à propriedade.

PANORAMA DE DELITOS DA PROVÍNCIA

Ainda que tenhamos descrito que a situação socioeconômica tem,


em muitos casos, incidência no desenvolvimento do delito na cidade de
Neuquén, este não é o único fator causal para que se desdobrem atividades
delituosas na cidade.

Outro dos fatores que agiu como propulsores da ocorrência dos


delitos contra a propriedade é o que outorga o bom nível econômico de
muitos dos habitantes da capital, o que seduz delinqüentes forasteiros e
os incentiva a realizarem as suas atividades dentro da jurisdição de Neuquén.
Podemos citar aqui o caso da província vizinha de Río Negro, com uma
situação econômica muito mais precária que a de Neuquén. Não é raro
ver que parte da migração interprovincial a que nos referíamos no item
anterior, desembarque na província de Neuquén com o único objetivo de
cometer atos ilícitos. Para uma melhor compreensão esclarecemos que a
Província de Rio Negro e a de Neuquén estão unidas por uma ponte para
trânsito de veículos1, pela qual com somente andar uns poucos quilômetros
cruzamos de uma província à outra.

Referindo-nos às modalidades delitivas que mais observamos na


cidade de Neuquén, podemos dizer que os Delitos Contra a Propriedade
são os que com maior freqüência são suscitados, segundo a estatística de
delitos denunciados no ano de 2005, 79,5%: corresponde aos delitos
contra a propriedade, ficando 19,5% para o resto das modalidades.

Dentro do tipo de delito majoritário mencionado anteriormente,


45% corresponde a furto, 40% a roubo, 12% a dano contra a
propriedade particular, e o resto dividido entre outras tipificações dos
delitos contra a propriedade.

310
Rubens Fabian Rebuffo

Se transferirmos a porcentagem para a quantidade numérica de fatos


denunciados no ano de 2005, no âmbito da Direção de Segurança de
Neuquén2, temos que 45% correspondem a furto, o que significa um total
de 7.381 ocorrências denunciadas, 40% a 6.560 ocorrências e 12% a 1.948
ocorrências, formando um total de 15.889 fatos contra a propriedade na
D.S.N.

Mantendo-nos sempre na modalidade do delito contra a propriedade,


nos últimos anos, foi aumentando o desenvolvimento deste tipo de
ocorrência, mas com maior violência e ódio, situação esta que se dá nos
roubos. Para dar um exemplo, em moradias onde se perpetrara o ilícito na
ausência de seus moradores, além de subtrair os elementos escolhidos,
eram produzidos danos nos elementos que não eram levados, ou na própria
moradia, chegando, em alguns casos, inclusive a incendiá-la.

Este tipo de comportamento, na maioria dos casos só é atribuível a


uma pessoa que se encontra sob os efeitos de drogas ou com as faculdades
mentais alteradas pelo consumo de álcool.

Poderíamos atribuir como fator desencadeador da situação antes


apresentada, que a cidade de Neuquén deixou de ser uma cidade de trânsito
para ser na atualidade um ponto de consumo e comércio de drogas proibidas,
tendo um grande número de viciados em drogas, especialmente na faixa
etária integrada por jovens que vão dos 15 aos 25 anos.

Esta violência, desmesurada em alguns fatos, se vê agravada pelo uso


de armas de fogo. Aqui o panorama se complica, já que um jovem
inexperiente, sob o efeito estimulante de alguma droga, com uma arma de
fogo e cometendo um roubo, pode terminar como já ocorreu com algum
dos atores no ocorrido: morto.

Realmente, não ajuda a esta situação, a facilidade com que se pode


conseguir uma arma na rua. Além disso, se somamos a isso a falta de
uma política de controle de armas de fogo no âmbito provincial, o
panorama piora.

Tudo que foi anteriormente mencionado contribui para que a


modalidade do roubo agravado pelo uso de armas de fogo, comumente
denominado roubo com arma, tenha ganho um grande protagonismo dentro
da realidade social atual.

311
Planejamento Operacional: a Experiência Neuquina

Este tipo de delitos violentos contra a propriedade são os que geram


uma crescente sensação de insegurança na população, já que os alvos
preferidos deste flagelo, pela rápida disponibilidade de dinheiro em espécie,
são os comerciantes. Por esta particularidade, a ocorrência do fato
delituoso se transmite entre os vizinhos do lugar, gerando uma psicose na
vizinhança, que em ocasiões é aumentada pela influência dos meios de
comunicação de massas. Isto ocorre, principalmente, quando o fato
envolve personagens ou comércios de renome dentro da realidade social
de Neuquén3.

APRESENTAÇÃO DA PROBLEMÁTICA
No ano de 2005, foram denunciados na jurisdição da Direção de
Segurança de Neuquén um total de 850 roubos com arma, isto nos dá
uma média de mais de duas ocorrências por dia.

Agora consideremos dentro da realidade de Neuquén uma situação


pontual, ocorrida dentro do âmbito da Direção de Segurança de Neuquén.
No mesmo ano da jurisdição correspondente à Delegacia 1ª foram
denunciados 3.736 delitos contra a propriedade em suas diferentes
modalidades.

No início de 2006 , mudou a chefia desta Unidade de Ordem


Pública, chegando a ela um novo chefe departamental proveniente de
outra unidade com características diferentes, o delegado certamente não
desconhecia a realidade desta jurisdição.

Uma vez que se encontrava exercendo a sua nova chefia, e tendo


acesso às estatísticas de delitos do que ali sucedia, tomou conhecimento
de uma realidade mais detalhada de sua nova jurisdição.

Agora, o fato de conhecer as cifras do delito lhe daria uma visão


global do problema que enfrentava, mas isto não é suficiente para realizar
um planejamento estratégico de seu plano de ação. Restavam as seguintes
perguntas: onde estavam as áreas quentes4 da jurisdição? As áreas eram
fixas ou experimentavam uma mudança? Em quais horários e dias da semana
era mais comum que se desenvolvesse a atividade delitiva? Em resumo,
como instrumentaria a prevenção?

312
Rubens Fabian Rebuffo

Estas perguntas sem resposta não são propriedade exclusiva da


Jurisdição da Delegacia 1ª, mas eram apresentadas por todos os Chefes
de Unidades de capitais. As realidades das diferentes Unidades de Ordem
Pública podem ser diferentes, mas a falta de informação sobre os
pormenores da atividade delituosa é uma constante em todas as jurisdições.

Justamente esta falta de informação detalhada é o problema, não se


pode pilotar um barco se não se enxerga para onde se está indo. Nenhuma
política de segurança terá bons resultados se não se sabe como evolui e
muito menos se não pode ser avaliada, mas para isto é necessária a
informação diária e detalhada do que está ocorrendo na rua.

REDE INTERNA DE DEPARTAMENTOS


Ainda que o problema apresentado no ponto anterior não fosse
desconhecido para as unidades de Investigações, o projeto ao qual nos
referiremos não nasceu para dar solução a esta situação.

A experiência nasceu no âmbito da Superintendência de Investigação5,


para cobrir uma necessidade interna.

Sob a chefia do comissário inspetor juan carlos lepen, nesse


momento diretor de Delitos (atualmente delegado geral Superintendente
de Investigações), se começou a trabalhar em um mapeamento de delitos,
e se buscava, principalmente, consignar a localização, o horário, e o tipo
de ocorrências para poder compensar justamente a falta de informação
atualizada e sistematizada que padeciam os cinco departamentos
dependentes de sua direção: o Departamento Subtração de Automotores,
o Departamento de Toxicomanias, o Departamento de Delitos contra a
Propriedade e Leis Especiais, o Departamento de Delitos Econômicos e
o Departamento de Segurança Pessoal; todas as unidades operativas de
investigações, cada uma delas especializada em um tipo de delito específico.

Neste ponto, podemos fazer um paralelo entre a problemática, com


relação à falta de informação atualizada e sistematizada, que tinha uma
Unidade de linha (Delegacia) e um dos Departamentos de Investigações.

Este problema gera, não obstante, um desperdício maior de recursos

313
Planejamento Operacional: a Experiência Neuquina

para um Departamento de Investigações que para uma delegacia, agora


trataremos de entender esta situação.

Para seguir com o mesmo exemplo, o da Delegacia 1ª, esta tem uma
jurisdição claramente delimitada, dentro da qual essa unidade é a responsável
pelo que ali acontece, e nenhuma outra unidade jurisdicional, por exemplo,
a Delegacia 2ª vai operar dentro da Jurisdição da 1ª. Esta situação territorial
nos assegura que não vai haver duplicação de tarefas, ou falta de coordenação
em alguma ação que se desenvolva na Jurisdição.

No entanto, com os Departamentos de Investigação esta situação


de superposição de tarefas ou falta de organização poderia ocorrer e,
de fato, em muitos casos ocorre. Explicaremos isso com um simples
exemplo para que a situação apresentada seja mais bem entendida; não
é algo desconhecido que as modalidades de delitos se cruzam entre si,
que um carro roubado seja pago a seu “levantador”6 com drogas; isso
não é nada novo ou raro de encontrar. Neste caso interviriam os
Departamentos de Roubo de Automóveis e de Toxicomanias.

Esta situação é gerada, pois, diferentemente de uma delegacia,


um Departamento de Investigações não tem jurisdição, trabalha em todo
o âmbito territorial da província.

Pois bem, continuemos com o mesmo caso hipotético; o


Departamento de Automotores investiga o ladrão e o comprador, já
que lhe compete a repressão desta atividade delitiva relacionada ao roubo
e ao desmanche ilegal de automóveis. A investigação montada em torno
de estes dois delinqüentes necessita de meios humanos e técnicos,
recursos que todos sabemos que são escassos.

Ocorre que o Departamento de Toxicomanias também está


investigando estes dois indivíduos, já que em diferentes escalas ambos
estão comercializando e distribuindo entorpecentes. Os meios humanos
e materiais requeridos para esta investigação são agora disponibilizados
pelo Departamento de Toxicomanias.

Aqui é onde são duplicados os esforços e são desperdiçados


recursos, com o agravante de que, em muitos casos, esta falta de
coordenação delata uma ou ambas as investigações, jogando fora talvez
meses de trabalho.

314
Rubens Fabian Rebuffo

A solução que foi pensada para terminar com esta falta de processo
na informação, foi a de interligar os cinco departamentos por meio de
uma rede informática, que contaria com um servidor onde se classificaria
e armazenaria a informação. A implementação técnica desta ferramenta
não era demasiado complicada, já que quatro dos cinco departamentos
se encontravam dentro de um mesmo quarteirão postal, e o quinto
departamento seria vinculado através de uma conexão sem fio. Seriam
necessários cinco computadores que cumpririam a função de terminal e
o servidor central de dados que antes mencionamos. Como vemos, a
implementação não requereria grandes investimentos econômicos.

Quanto ao software, foi utilizada uma plataforma G.I.S.7, dado que


esta solução nos permitia não só armazenar a informação em bases de
dados, mas também geo-referenciá-la em um ponto do mapa, ou seja,
dar ao roubo uma coordenada espacial.

Como já sabemos, para que se desenvolva a ocorrência de um


delito, os delinqüentes e seus objetivos, já sejam as vítimas ou as suas
propriedades, devem coexistir por um período na mesma localização.

Este componente temporal-espacial é essencialmente informação


e neste caso a mais importante, o quando e onde ocorreu o fato. A este
dado deveremos acrescentar toda outra informação periférica que
podamos coletar, tudo isto nos ajudará mais tarde a realizar uma análise
indispensável para que a investigação tenha sucesso.

Como vemos, ter esta ferramenta sem contar com a informação


para processar e analisar resultaria inútil, já que não teríamos a matéria
prima, e sem ela nunca conseguiríamos um produto final.

O inconveniente nos é apresentado nesta etapa, na captura da


informação para o seu processo. Em uma primeira instância, é realizada
a carga de dados de forma manual, conseguindo a informação dos fatos
ocorridos na semana, e desta forma a informação estava atrasada quase
uma semana.

Este sistema começou a ser utilizado nos diferentes


Departamentos de Investigações, não só pelo componente gráfico que
dava o mapeamento para a análise, mas também pela contribuição de
informação em si, que, ao ser colocada no sistema, era selecionada e por

315
Planejamento Operacional: a Experiência Neuquina

tanto processada. Deste modo, a informação é muito mais útil e operacional


para a sua utilização.

Este sistema começou a ter transcendência dentro da Força, pelo que


muitos oficiais, chefes e superiores começaram a se interessar por ele.

Apesar de seu atraso de quase uma semana, alguns chefes de unidade


começaram a solicitar, em forma de colaboração, que lhes fosse realizado um
“diagnóstico” de sua jurisdição, e em muitos casos isso lhes ajudou a fazer
uma reintegração de seu sistema de prevenção. Recordemos que as delegacias
estão sob a chefia de uma superintendência diferente da de Investigações, a
de Segurança, e que esta ferramenta de análise tinha sido criada para ser
utilizada em unidades dependentes da Superintendência de Investigações.

Como alternativa, e para erradicar a carga manual de dados, se começou


a trabalhar no desenvolvimento de um sistema para poder capturar a
informação do fato delituoso, diretamente desde a unidade Policial. Em um
primeiro momento se pensou nos cinco departamentos, depois se começou
a considerar a inclusão das delegacias.

O sistema consistia em capturar o registro da denúncia da ocorrência


que vinha a radicar o cidadão para a delegacia de sua jurisdição, da qual se
extrairiam os campos com os dados mais importantes para realizar uma
investigação, como horários, armas, meios de mobilidade, características físicas
dos delinqüentes, etc.

Esta denúncia seria feita on-line e lhe facilitaria ao oficial de Serviço o


trabalho já que estaria utilizando um sistema padronizado, que lhe diria passo
a passo quais são as perguntas mais importantes a apresentar à vítima, segundo
o fato delituoso que viesse denunciar.

Assim foi como a notícia sobre a existência desta ferramenta chegou


ao âmbito governamental, e o então Ministro de Segurança se interessou pela
mesma.

Uma vez que se observou o seu funcionamento, decidiu-se que


o desenvolvimento se estendia não só às Unidades de Investigações,
mas a todas as Unidades Policiais da área da capital em uma primeira
etapa, para logo estendê-lo a toda a província.

316
Rubens Fabian Rebuffo

Foi a partir de então que se começou a trabalhar no


desenvolvimento do sistema para aperfeiçoar o registro da denúncia
on-line, com a conseguinte captura de informação indispensável para a
investigação.

Aqui o novo inconveniente se apresentava na necessidade de


comunicar mediante algum sistema os 22 pontos dispersos na geografia
da capital, correspondentes às diferentes Unidades de Ordem Pública.

Tempos depois, a polícia de Neuquén adquiriu um novo sistema


de comunicações baseado no Trunking Digital, e começou a instalação
e implementação deste sistema na capital de Neuquén. Este novo
sistema nos ofereceria a solução para obter a comunicação necessária
de todas as Unidades Policiais, conseguindo assim o funcionamento
em paralelo do mapeamento de delitos e a denúncia on-line.

Atualmente, o desenvolvimento informático já está muito


avançado e se está realizando uma prova operativa com a Delegacia
1ª, graças a uma situação geográfica, dada pela proximidade da mesma
à localização da Superintendência de Investigações, foi realizada uma
vinculação física entre ambas as Unidades através de cabo de rede.

Mesmo que esta vinculação seja muito recente para avaliar


resultados, se espera que estes sejam positivos, situação que
seguramente melhorará quando termine de ser implementado na capital
o sistema Trunking, o qual possibilitará com a interconexão das Unidades
a coleta da totalidade da informação acerca dos fatos ocorridos em
Neuquén Capital, sendo projetado em um futuro estender esta situação
a toda a província.

Notas
1
Neuquén-Cipolletti, ambas as cidades conformam a primeira área metropolitana da Patagônia,
separadas pelo rio Neuquén, mas unidas por uma ponte viária e outra ferroviária. Cipolletti,
pertenecente à província de Río Negro, tem agroindústrias e usinas frigoríficas. Neuquén possui
indústrias diversificadas e é um importante centro comercial. Ambas estão ligadas pela estrada
nacional 22 e pelo corredor ferroviário de Ferrosur Roca S.A
2
Divisão Jurisdicional realizada pela Polícia de Neuquén, integrada pela totalidade da cidade
de Neuquén Capital, juntamente com as cidades de Centenario, Plottier e El Chañar, que se
encontram geograficamente próximas da Capital. Por suas siglas D.S.N.
3
Podemos citar como exemplo, para ilustrar esta situação, o desaparecimento do comerciante
Julio Venegas em 06/10/2006, um fato que teve uma grande difusão jornalística desde o segundo

317
Planejamento Operacional: a Experiência Neuquina

dia de ocorrência da mesma, suspeitando-se que seu desaparecimento foi desencadeado a partir
de um roubo, já que desapareceu juntamente com seu veículo. Na data, nem Venegas nem o
veículo utilitário no qual se deslocava foram encontrados.
4
Área geográfica que apresenta um nível de delitos ou desordem mais elevado que a média da
Jurisdição.
5
A Superintendência de Investigações é uma das três superintendências que conformam o
organograma da polícia de Neuquén, as outras duas são a Superintendência de Segurança e a
Superintendência de Apoio e Serviços.
6
Nome com o qual é conhecido no ambiente delituoso a pessoa que se dedica especificamente
a roubar o veículo. Geralmente são jovens, e o único que fazem é roubá-lo e conduzi-lo até o
comprador, que paga um preço insignificante em comparação ao valor do veículo.
7
Por suas siglas em inglês Sistemas de Informação Geográfica

318
L A
UE
N EZ
Relato Policial VE

A APLICAÇÃO DE ESTRATÉGIAS SIMILARES DE


SEGURANÇA EM DUAS ÁREAS COM RESULTADOS
DIFERENTES
Luis Alberto Pacheco*

Gostaria de tratar, neste trabalho, da utilização de táticas preventivas


implementadas em duas áreas policiais diferentes, mas no mesmo estado,
que geraram resultados diferentes. Trata-se das comunidades de La Morita
e Tejerías do Estado de Aragua.

De um modo geral, ao começar a dirigir uma delegacia policial, o


oficial que a administra deve conhecer a problemática de delitos da área,
as características da população e a geografia que a configura, a fim de criar
planos e estratégias de segurança de acordo com as necessidades requeridas
pela comunidade, sempre sujeitas ao cumprimento do marco legal e
respeitando os princípios que regem os direitos humanos.

La Morita é uma comunidade localizada ao leste da cidade de Maracay,


dentro do município de Francisco Linares Alcántara, com 32.321 habitantes,
segundo o último censo do ano de 1991, e com uma superfície de 9,8
Quilômetro quadrados. Com o tempo, esta comunidade se converteu e
uma área urbana, ainda que persistam alguns assentamentos agrícolas de
plantações de mandioca e banana. Passa, pelo povoado, uma importante
artéria viária, a auto-estrada Regional do Centro, uma das principais vias do
país para o transporte de matéria prima de muitas empresas.

Existem várias agências bancárias, centros comerciais e grandes


lojas de departamentos. Na região também nasceram alguns bairros por
invasões de terrenos baldios. A produção desta área está distribuída em
todos os níveis (primário, secundário e terciário), a economia existente é
formal e informal, o que denota diariamente constante mobilização de
dinheiro em todos os níveis. As pessoas foram muito participativas e
estiveram dispostas a desenvolver programas e atividades comunitárias
que favoreciam o bem comum. Os políticos não utilizaram a polícia como
um instrumento de poder, pelo contrário, deixavam-se assessorar e era a
polícia que orientava as políticas de segurança pública.

*
Subcomissário do Corpo de Segurança e Ordem Pública do estado de Aragua, chefe da Comisaria
policial de Magdaleno.
319
Aplicação de estratégias similares de Segurança em
duas áreas com diferentes resultados

Tejerías, por sua vez, está localizada na área oeste do estado de


Aragua. Tem uma população de 34.084 habitantes e uma superfície de
112 Quilômetros quadrados. Faz limite com o estado de Miranda ao norte,
com El Concejo ao sul, com a auto-estrada Regional do Centro ao leste e,
ao oeste, com o estado de Miranda. Tejerías é considerada uma cidade
industrial já que ali se encontra uma grande parte das usinas de
processamento de matéria prima e seu relevo é montanhoso. Está mais
distante da capital e é uma ponte de acesso entre os estados de Aragua e
Miranda, o que permite que os delinqüentes escapem facilmente das
autoridades estatais. Mesmo sendo Tejerías uma região agroindustrial, não
denota muita mobilização de dinheiro como em La Morita, pois só há
três agências bancárias que são somente sucursais. As pessoas não tiveram
muita disposição para participar dos assuntos que a todos correspondem
e os políticos utilizaram a polícia como um instrumento de poder.

Os problemas mais graves tanto em La Morita quanto em Tejerías


eram a escassa presença policial naqueles setores não asfaltados e poucos
serviços públicos, além do patrulhamento nulo nas comunidades com becos
e calçadas, bem como nas áreas comerciais. A maior quantidade de delitos
ocorria nos colégios, dentro das instalações e em torno das mesmas,
entre os quais podem ser citados: a) roubos (com armas de fogo, armas
brancas), b) venda e distribuição de substâncias entorpecentes e
psicotrópicas, c) lesões, d) enfrentamentos entre facções, e) furto de
veículos, f) violência familiar, g) porte ilícito de armas e distribuição ilegal.
As pessoas tinham medo de fazer denúncias junto às instituições policiais
por temor de que a informação vazasse e também pelo alto índice de
maus-tratos por parte de alguns funcionários aos moradores da região.
As áreas montanhosas de Tejerías eram usadas, freqüentemente, como
local de liberação de cadáveres.

Quando fui designado como chefe da delegacia policial tanto de La


Morita como de Tejerías, comecei fazendo: 1) um estudo sobre a jurisdição
da área, 2) uma pesquisa, tipo sondagem sobre as solicitações das
comunidades na área de segurança e 3) uma revisão das denúncias efetuadas
pelos particulares na delegacia para medir: a) os tipos mais freqüentes de
delitos, b) a recorrência das denúncias, c) os lugares de maior auge delitivo
e d) os níveis de confiabilidade das pessoas com relação à polícia. Os
resultados produzem oito denúncias por mês e somente duas haviam sido
solucionadas mediante atos conciliatórios. O resto das denúncias não refletia

320
Luis Alberto Pacheco

nenhuma medida tomada. A informação fornecida pelas pessoas, na pesquisa,


refletia uma cifra de aproximadamente 80% de vitimização. Era evidente
que as pessoas não confiavam na polícia e portanto não denunciava.

Os propósitos em ambos os casos foram:


1. alcançar a diminuição de pelo menos 30% dos delitos
cometidos na área policial entre os quais podemos
mencionar: a organização de facções armadas, a venda
e distribuição de drogas, especialmente nos grupos
educativos, o seqüestro de veículos e o roubo de
estabelecimentos comerciais;
2. aumentar a confiança da população na polícia para
diminuir o nível de vitimização;
3. promover os valores institucionais da polícia como
a honestidade, a responsabilidade, o respeito pelos
direitos humanos.

As estratégias implementadas em ambos os casos se concentraram


nas exigências da comunidade em matéria de segurança pública. Algumas
estratégias estiveram orientadas para a polícia para melhorar a eficiência
no serviço e outras para a comunidade, para garantir segurança e aumentar
os níveis de confiança.

As estratégias internas em ambos os casos foram as seguintes:


- reconstruir a memória institucional da polícia para
resgatar o espírito corporativo;
- reconhecer os méritos dos funcionários e funcionárias
segundo as boas práticas policiais no mês;
- desenhar um plano educativo para melhorar as práticas
policiais e o tratamento com o público, levando em
consideração os princípios de atuação policial e o
código de conduta para funcionários encarregados de
cumprir e fazer cumprir a lei;
- organização da seção de operações e criação de
estatísticas para o planejamento de dispositivos de
segurança.

321
Aplicação de estratégias similares de Segurança em
duas áreas com diferentes resultados

As estratégias externas em ambos os casos foram as seguintes:


- setorização da região para o patrulhamento contínuo;
- coordenar conjuntamente com os líderes da
comunidade, um plano de ação para o patrulhamento
segundo as necessidades indicadas por estes;
- criação do patrulhamento motorizado na área
comercial com mecanismos de supervisão, onde os
comerciantes participam;
- fazer um censo das motocicletas que circulavam na
área policial;
- a criação da brigada ciclística para patrulhar os
caminhos estreitos;
- a criação da brigada juvenil integrada por crianças e
adolescentes da região policial, com o fim de orientá-
los no exercício da cidadania;
- reuniões periódicas com os mais diversos setores da
vida local e com os Conselhos Comunitários para
detectar as necessidades sobre segurança pública e
desenhar as estratégias conjuntamente;
- a organização de eventos esportivos e culturais com
os jovens de diferentes escolas da região educativa para
diminuir os níveis de violência juvenil; maratonas,
futebol, concursos de cartazes, exposições com temas
históricos, desfiles;
- desenho de operações conjuntas com outras
instituições do Estado e do sistema de administração
de justiça para a supervisão de centros de reparação
mecânica, estacionamentos, lojas de bebidas e espaços
para o ócio;
- oficinas de formação cidadã, luta contra as drogas,
violência familiar, direitos humanos;
- visitas às comunidades para conhecer os problemas
mais freqüentes referentes à violência familiar;
- ações cívicas em centros hospitalares e instituições

322
Luis Alberto Pacheco

para crianças especiais;


- limpeza do mato nos lugares públicos;
- no caso de Tejerías, foi implementada uma estratégia
adicional referida à criação de uma rede de informação
via telefônica, direta e confidencial, para a formulação
de denúncias.

As metas alcançadas:

No caso de La Morita conseguimos:


1. diminuir o índice de delinqüência em até 30% em
comparação com o ano anterior, em especial a violência
familiar;
2. houve um aumento de até 75% das denúncias,
realizadas perante a polícia por diferentes motivos. De
fato, como aumentou a confiança das pessoas na polícia,
conseguimos descobrir uma mulher jovem que
permaneceu amarrada a uma cama por mais de 15 anos
contra a sua vontade;
3. a comercialização ilegal de armas foi minimizada, já
que graças às denúncias se conseguiu desmantelar um
grupo de fabricantes de carregadores para FAL;
4. as denúncias por violações dos direitos humanos
foram minimizadas a “zero”, de acordo com a
informação do escritório da Defensoria Pública;
5. conseguiu-se estabelecer contato direto com os
estudantes dos níveis de educação básica e secundária;
6. em la Morita, conseguiu-se a assistência massiva de
cidadãos às reuniões para o planejamento da segurança
pública.

No caso de Tejerías logramos:


1. em comparação ao ano anterior, o índice de delitos
diminuiu somente 5%, especificamente nos casos de

323
Aplicação de estratégias similares de Segurança em
duas áreas com diferentes resultados

furtos e roubos a estabelecimentos comerciais;


2. foi possível instalar a rede de informação com a
participação de somente 35 pessoas;
3. semelhantemente ao ano anterior, só foram
apreendidas oito armas de fogo.

Por que em situações similares, implementando estratégias


equivalentes, os resultados são diferentes?

Pensei em vários assuntos:


1. talvez, a participação das pessoas seja um assunto
chave para garantir a segurança pública. Em uma região
policial as pessoas participaram mais que na outra.;
2. talvez a ingerência dos partidos políticos e dos
governantes da vez também influa. Se o governante se
deixa assessorar e não se imiscui diretamente nos níveis
de comando (como costumava ocorrer em La Morita)
é mais fácil alcançar o objetivo da segurança. O
exemplo mais claro é que detínhamos pessoas com
objetos provenientes do delito e com poucos minutos
recebíamos chamadas telefônicas de pessoas influentes,
em sua maioria do meio político, solicitando a liberdade
imediata;
3. talvez a disposição geográfica de Tejería não
favorecesse a efetividade do patrulhamento policial por
ser uma área montanhosa, onde as casas estavam
localizadas em áreas muito estreitas, vias que, em sua
maioria, impediam a passagem dos veículos para realizar
o trabalho;
4. talvez não poder superar os vícios do passado
perpetrados pela polícia impediu que em Tejerías os
comerciantes não deixassem de exigir que a polícia se
dedicasse exclusivamente à proteção dos negócios;
5. talvez o trabalho preventivo com os jovens (eventos
esportivos, oficinas de formação, encontros entre

324
Luis Alberto Pacheco

escolas com mais de 90% da população estudantil da


região) facilitou que em La Morita diminuísse o índice
de delitos no entorno dos colégios;
6. talvez a relação com os estudantes lograda em La
Morita e não em Tejerías tenha facilitado uma rede de
informação a respeito dos problemas juvenis que
depois de processada se convertia em novos
procedimentos policiais;
7. talvez a resistência das pessoas com o novo Código
Orgânico Processual Penal também teria influenciado.
Antes a pessoa era mantida detida até demonstrar a
sua inocência e agora não é possível fazê-lo e, além
disso, foram incorporados princípios de direitos
humanos na atuação policial;
8. talvez seja a falta de legislação especial para a sanção
de faltas menores.

Vocês dirão: por que, em contextos semelhantes, aplicando


estratégias comuns, os resultados foram diferentes?

325
R U
PE
Relato Policial
A COMISARÍA DE CRUZ BLANCA: UMA
EXPERIÊNCIA DE GESTÃO POLICIAL
Julio Diaz Zulueta*

A província de Cruz Blanca está localizada 150 km ao Norte de


Lima. É composta dos distritos Santa María e Hualmay Província de
Huaura, aproximadamente com uma população de 40 mil moradores por
distrito. Quem subscreve foi incorporado na comisaría de Cruz Blanca
no dia 07 de Fevereiro de 2002.

ANOS 2002-2003

I. Primeira parte

A. Que qualidade de serviço prestava-se ao cidadão

A situação era muito difícil. A população não aceitava a Polícia. O


primeiro a ser feito foi um DIAGNÓSTICO do problema. Encontrou-se
o seguinte:
· mals-tratos ao público desde a porta de entrada;
· demora na entrega de cópias autenticadas do
endereço, sobrevivência e outros;
· não havia resposta imediata aos chamados de auxílio
da população;
· diante de uma denúncia de qualquer ilícito, insinuava-
se que não havia gasolina, papel e outros;
· não eram aceitas denúncias fora do horário de
expediente;
· além disso, no dia 8 de maio de 2001, o cidadão
Jenard Lee Rivera morreu na cela da Comisaría.
Centenas de moradores rodearam e jogaram pedras
na dependência policial. Quase chegaram a destruí-la.
Esse foi o pior momento, que antecedeu ao início da
gestão;
*
Major da Polícia Nacional do Peru - PNP. Participante do VI Mestrado em Administração da
Escola Superior de Polícia - Esupol
326
Julio Diaz Zulueta

· concluiu-se que o serviço prestado na mencionada


comisaría era de má qualidade e que a população não queria
denunciar porque não obtinha nenhum resultado positivo.

B. Diagnóstico criminal
· havia gangues de jovens que causavam, diariamente,
danos materiais à propriedade pública e privada nos
distritos de Hualmay e Santa Maria, da província de
Huacho;
· cometiam-se arrombamentos da propriedade pública
e privada utilizando diversas armas de fogo, o que era
feito em bandos;
· as pessoas eram assaltadas na saída de suas residências
ou na via pública. Eram bandos conhecidos na jurisdição;
· drogas eram comercializadas no varejo em diversos
setores.

C. Infra-estrutura, logística e pessoal da Comisaría de Cruz Blanca


· como conseqüência da morte do cidadão Jenard Lee
Rivera, milhares de moradores provocaram danos
materiais à Comisaría de Cruz Blanca, quebrando 25
luminárias e ocasionando destruições no interior;
· havia máquinas de escrever em mal estado e um
computador avariado. Inclusive algumas máquinas de
escrever eram de propriedade dos policiais;
· havia algumas portas destruídas, especialmente
aquela que conduzia aos banheiros do dormitório do
pessoal de praças, sendo que dois deles estavam
doentes com sinusite;
· quanto aos meios de transporte, havia duas viaturas e
duas motos em estado regular;
· o pessoal policial designado era apenas de 23
efetivos. Não havia pessoal suficiente para efetuar o
serviço de rua.

327
A Comisaría de Cruz Blanca: uma Experiência de Gestão Policial

D. Organização da população

A população não havia sido organizada, embora existissem, em


outros distritos, os programas de “Juntas de Vizinhos”, “Vizinho Vigilante”
e “Policiamento Juvenil”.

Solução ao ponto “A”


MUDANÇAS PARA RECAPTURAR A CONFIANÇA DA
POPULAÇÃO
MUDANÇA DE ATITUDE DO POLICIAL E SERVIÇO DE
QUALIDADE AO CIDADÃO.
· BOM ATENDIMENTO AO MORADOR DESDE O
INGRESSO NA COMISARÍA. Ofereceram-se palestras
permanentes todos os dias, meia hora antes da ordem unida,
a fim de sensibilizar o pessoal, motivá-lo e capacitá-lo.
· ENTREGA IMEDIATA E DOMICÍLIO DE CÓPIAS
AUTENTICADAS (MUDANÇAS INTERNAS DE PESSOAL).
Foi aproveitado, por exemplo, o policiamento em viaturas
para entregar esses documentos, especialmente para os
aposentados.
· RESPOSTA OPORTUNA AO CHAMADO DE AUXÍLIO
DA POPULAÇÃO. Toda chamada de auxílio da população
tinha resposta imediata e eficaz.
· CUMPRIU-SE COM A OBRIGAÇÃO DE QUE TODO
TRÂMITE FOSSE GRATUITO. A honestidade era cbrada com
o exemplo dado pelo comisário, administrando bem os
poucos recursos. Mesmo os policiais em geral e a população
participavam como fiscalizadores.
· ATENDIMENTO DURANTE AS 24 HORAS. Como sempre
deveria ter sido.

Solução ao ponto “B”


· Trabalhou-se profissionalmente, apreendendo os criminosos
mais perigosos da área com ajuda e informação da população.

328
Julio Diaz Zulueta

· As gangues foram reduzidas a zero, ao conseguir organizar


a população onde estavam envolvidos os pais e vizinhos do
mesmo, recebendo palestras e mais controle sobre os filhos.
· Foram colocadas guaritas e viaturas diante dos pontos de
droga e a população foi organizada e capacitada no programa
“Vizinho Vigilante”; com estas ações não se permitia a
expansão do varejo de drogas.

Solução ao ponto “C”

INFRA-ESTRUTURA

Os governos locais, empresários e a população em geral


colaboraram para obter a infra-estrutura geral da comisaría de Cruz Blanca,
por um total de s/ 180 mil, cento oitenta mil soles1 ($ 60 mil sessenta mil
dólares). Isso aconteceu ao ser comprovada a verdadeira mudança de
atitude e profissionalismo que demonstraram os policiais nos anos 2002 e
2003.

LOGÍSTICA

· No dia 26 de julho de 2002, por conta da mudança de atitude e


profissionalismo dos efetivos policiais, foi designada uma outra viatura e
duas motos Honda 700cc.; foi implementada tecnologia de ponta com
quatro computadores Pentium IV e outros artefatos.

· Foi adquirida uma central de rádio, a fim de estar interconectada


com a população que adquiriu walkies talkies. A comunicação se tornou
mais fluida entre população e polícia.

PESSOAL

Foram designados mais oito efetivos, totalizando 31.

Solução ao ponto “D”


· O comisário, uma vez que mudou atitude do pessoal policial,
o que demorou três semanas, começou a visitar bairro a
bairro, caminhou casa a casa, conversando com os vizinhos
e lhes pedindo colaboração na nova gestão policial.

329
A Comisaría de Cruz Blanca: uma Experiência de Gestão Policial

· A população, ao se convencer da verdadeira mudança da


polícia de sua jurisdição, não duvidou em aceitar a
capacitação e composição dos Programas de “Juntas de
Vizinhos” e “Vizinho Vigilante” e em apoiar a polícia na
prevenção, informação e apoio social. No total, foram
formadas 748 Juntas de Vizinhos nos anos 2002 e 2003,
uma das mais numerosas e reais do Peru, que perduram
até hoje.

II. Segunda parte

A. Criação e imaginação

· O “VIZINHO VIGILANTE” CONTROLA SUAS


VIATURAS DURANTE AS RONDA S NOTURNAS
(CADERNO DE CONTROLE). Esta atitude outorgou muita
confiança à população para participar na prevenção e ajudar
à polícia, vigiando e informando sobre fatos criminosos de
sua jurisdição e fiscalizando e/ou controlando as viaturas.

· O TELEFONE DO COMISARIO FICA DISPONÍVEL


PARA A POPULAÇÃO TODA. As pessoas não acreditavam
que o Comisario lhes desse o número do seu telefone
pessoal e, ainda mais, que atendesse a qualquer hora e que
suas chamadas fossem resolvidas com prontidão e
eficiência. Isto deu muita mais confiança e estes tornaram-
se os melhores aliados da polícia.

· VIATURAS QUE CONDUZEM PACIENTES AO


HOSPITAL. É suficiente ligar para a Comisaría pedindo
auxílio sobre algum acidente ou doente grave. A viatura
dirigia-se ao local e conduzia o paciente ao hospital mais
próximo. Estávamos unidos, o passado não estava nem na
lembrança.

· CÓPIAS AUTENTICADAS ENTREGUES A DOMICÍLIO.


Não era difícil levar os atestados de endereço ao domicílio
dos aposentados e, para aqueles que iam à comisaría, lhe
era entregue na hora.

330
Julio Diaz Zulueta

B. Aliados da Comisaría
· Prefeitos
· Empresários
· O clero
· A população em geral

C. Êxitos mais relevantes

Essas medidas restabeleceram a confiança e cimentaram o contato


com a população. A partir disso, a gestão acumulou vários êxitos. Entre eles:
· apreensão de bandos de assaltantes, recuperação de
armamentos e de dinheiro (30 mil novos soles), conseguidas
graças a chamadas telefônicas dos vizinhos;
· criação de 748 Juntas de Vizinhos;
· redução a 95% de faltas e crimes;
· controle por parte da população do trabalho diário da Polícia;
· rondas mistas de cidadãos e policiais, desde as 18h até as
2h, incluindo os feriados;
· transparência total na administração de recursos designados
à Comisaría;
· constante fortalecimento das Juntas de Vizinho;
· os prefeitos distritais de Santa María e Hualmay se integraram
ao comitê cívico;
· conseguiu-se a entrega de casacos impermeáveis, lanternas,
apitos, alarmas elétricas e outros, por parte dos prefeitos;

· orçamento participativo:

Santa Maria s/. 60.000.

Hualmay s/. 40.000.

331
A Comisaría de Cruz Blanca: uma Experiência de Gestão Policial

· doação de terreno para juntas de vizinhos:

Santa Maria 500 m2

Hualmay 700 m2

· entrega de 16 módulos rolantes para jovens em risco, doados


pela Igreja Luterana da Suécia;

· 300 fontes de emprego.

CONCLUSÕES

O conjunto de esforços significou que a comisaría de Cruz Blanca,


em Huacho, fosse premiada como a melhor comisaría do ano. A lição
fundamental de sua experiência foi compreender a importância do labor
do Comissário como liderança local da polícia. O Comissário deve obter,
cultivar e manter o apóio ativo da cidadania. Para que isso aconteça, a
polícia deve ter vontade de mudança e converter o conceito de polícia
comunitária na ferramenta e no meio de conseguir uma eficaz estratégia
de segurança cidadã.

Nota
1
O sol é a moeda nacional do Peru. (N.T.)

332
A
MAL
E
UAT
Relato Policial G

A APLICAÇÃO DE PLANO DE PREVENÇÃO DE


DELITOS EM TRÊS MUNICÍPIOS GUATEMALTECOS
Edwin Chipix *

IDENTIFICAÇÃO GERAL

O plano ficou a cargo da Divisão Multicultural da Subdireção Geral


de Prevenção do Delito da Polícia Nacional Civil de Guatemala, e foi
executado simultaneamente em três municípios localizados em diferentes
regiões de Guatemala: San Juan Olintepeque, Quetzaltenango, Santa Cruz
Verapaz, Alta Verapaz e San Gaspar Chajul, Quiche, durante o ano de
2006, com participação de atores federais, estaduais, municipais e locais,
tanto do setor governamental quanto do não governamental.

Os municípios abordados foram escolhidos após um diagnóstico


baseado em critérios tais como: índice de criminalidade e violência,
vontade dos governos locais para apoiar os processos, nível de
organização cidadã. As fontes de informação, metodologias e estratégias
utilizadas para o diagnóstico foram diversas com o fim de ter um foco
multidisciplinar e multisetorial.

JUSTIFICATIVA

A criminalidade e a violência que afetam atualmente a sociedade na


Guatemala criaram em sua população uma grave percepção de insegurança,
promovida pelo aumento dos atos violentos que afetam o mais sagrado
dos direitos da pessoa humana, o direito à vida. Nos registros da Polícia
Nacional Civil, os homicídios, a partir do início do atual século,
apresentaram uma flutuação ascendente, em 2000 o registro de mortes
causadas por armas brancas e de fogo era de 2664, enquanto que em
2005 o registro aumentou para 10.578.

Embora seja certo que a maioria dos atos violentos são registrados
no perímetro da metrópole, talvez pelas dificuldades socioeconômicas, em
nível nacional cada vez mais estados são atingidos pelo surgimento de grupos
juvenis que se dedicam a cometer assaltos, extorsões e tráfico de drogas.
*
Subcomissário da Polícia Nacional Civil.

333
A aplicação de Plano de Prevenção de Delitos
em três municípios guatemaltecos

Diante deste fenômeno, diversos setores da sociedade, em geral,


demandam das forças públicas de segurança ações imediatas para
combater o clima de insegurança e vulnerabilidade, que afeta o
desenvolvimento econômico, social e político das diversas comunidades.

OBJETIVOS

O objetivo geral do plano era formular, desenvolver e promover


políticas e ações institucionais preventivas e inclusivas dirigidas para a
diminuição dos fatores que propiciam o delito, sobre a base do
conhecimento, reconhecimento e respeito ao caráter plural da sociedade
na Guatemala. Para isso definimos três objetivos específicos: 1) Fortalecer
funcional e profissionalmente o pessoal policial destinado às subestações
policiais localizadas nos municípios abordados, 2) Facilitar o diálogo,
aproximação e confiança entre os diferentes atores locais, entre eles a
própria Polícia Nacional Civil, para a ação conjunta em favor da prevenção
do delito como parte de sua segurança cidadã e 3) Desenvolver atividades
de sensibilização e orientação para promover a participação e organização
comunitária.

Em outras palavras, o que pretendíamos como Polícia Nacional Civil,


de acordo a nossas capacidades humanas e logísticas, era atender as
demandas de segurança dos moradores dos municípios escolhidos, mas
sob um novo modelo de segurança, a segurança pública cidadã.

Neste caso, se entende como segurança pública cidadã a


participação ativa da cidadania na prevenção do delito, a partir do respeito
de sua cultura, seu território, seus costumes, com planos não impostos,
mas desenhados pela própria comunidade.

EXECUÇÃO

Uma vez escolhidos os municípios, teve início a socialização do


plano entre os atores estratégicos locais, entre eles: o prefeito municipal,
o chefe da subestação policial, representantes de organizações não
governamentais e líderes comunitários, com o fim de chegar a um acordo
de entendimento e vontade entre os atores para apoiar e participar
ativamente do desenvolvimento do plano. Entre os compromissos

334
Edwin Chipix

assumidos pelos atores institucionais estratégicos estava o


desenvolvimento de ações e estratégias tanto em nível interno como
externo.

Manifestado o interesse dos atores, atendendo às especificidades


sócio-culturais de cada região, foi acordada uma data para a inauguração
pública do plano em nível municipal, a qual foi realizada conforme o
programado.

Embora houvesse presença de diversos atores, sua participação e


envolvimento não eram equilibrados, alguns esperavam que os demais
começassem a trabalhar para só depois se envolver, do contrário preferiam
esperar, então as atividades começaram a sobrecarregar a divisão policial
a cargo.

Houve acordos condicionantes, um deles, adquirido por parte da


Polícia Nacional Civil, era a troca e aumento do pessoal policial no município,
o que, embora tenha sido prometido pelo chefe policial regional, não foi
cumprido por questões burocráticas, que na realidade, consideramos, se
deve à falta de vontade política e desvalorização da participação cidadã na
prevenção do delito.

Pelo lado do prefeito municipal estava a promessa de melhorar as


instalações da subestação policial e facilitar os recursos logísticos
necessários para o desenvolvimento das atividades de capacitação,
sensibilização e orientação que, sobre a participação e organização cidadã
em favor da prevenção do delito, se desenvolveriam com os diferentes
atores e setores da jurisdição municipal.

Por seu lado, os atores não governamentais incluíram dentro de


seus programas processos de diálogo, capacitação, sensibilização e
orientação sobre temas dirigidos à prevenção do delito.

No decorrer do tempo, o plano ia dando resultados, embora não


de acordo aos objetivos programados, o pessoal policial, embora não
contasse com pessoal suficiente, estava sendo capacitado para oferecer
um serviço mais profissional e social, os professores, alunos e líderes
comunitários receberam sensibilização e orientação para a participação e
organização comunitária, até finalizar o período de execução.

335
A aplicação de Plano de Prevenção de Delitos
em três municípios guatemaltecos

RESULTADOS OBTIDOS

Com a implementação do plano o nível de confiança entre a polícia


e a comunidade melhorou consideravelmente, as denúncias de atos delitivos
aumentaram e os casos de violência e criminalidade diminuíram levemente.

Em geral, os objetivos não foram alcançados conforme o planificado,


mas não por isso deixou de ser um sucesso para a equipe de trabalho que
ficou a cargo do plano.

LIÇÕES APRENDIDAS

O entendimento de que a diminuição dos níveis de criminalidade e


violência que atualmente afetam as sociedades latino-americanas somente
pode ser resultado do esforço conjunto entre as instituições de polícia e
as comunidades, mas para isso é indispensável que as instituições que têm
a seu cargo o uso legítimo da força pública adotem sistemas de segurança
mais inclusivos e comunicativos, superando toda atitude de autoritarismo
e repressão, próprias das épocas sociais históricas de controle social
exclusivo.

A execução do plano também permitiu à equipe de trabalho


compreender as complexidades, obstáculos e desafios para a
implementação de programas dirigidos ao fortalecimento da segurança
pública cidadã, entre elas as que a seguir são brevemente descritas:

· é necessário unificar critérios entre os atores


estratégicos sobre os alcances conceptuais da
segurança pública cidadã e da prevenção do delito;
· os planos e estratégias devem ser elaborados pelos
atores locais, segundo suas necessidades e
características sócio-culturais;
· um plano, mesmo que municipal, deve deter
compromissos em nível estadual, regional e federal;
· as instituições, especialmente as de serviço publico,
devem obedecer políticas públicas claras para que a

336
Edwin Chipix

participação de seus delegados seja institucional e


pouco individualizada;
· o desconhecimento sobre segurança pública cidadã e
a desvalorização das ações para a prevenção do delito,
em nível de comandos superiores, fragilizam a
legitimidade e o reconhecimento social da polícia;
· existem espaços legais para a participação cidadã;
· os problemas de insegurança são multicausais, por
isso devem ser abordados de forma multidisciplinar.

337
RU
PE
Relato Policial
CHEFIA E LIDERANÇA POLICIAL: O CASO DA
PROVÍNCIA CONSTITUCIONAL DE CALLAO-LIMA
Eduardo Guillermo Arteta Izarnótegui*

1 INTRODUÇÃO

Antes do ano de 2003, perpetuava-se na chefia de Segurança


Cidadã da Polícia Nacional do Callao uma visão da função policial
condicionada aos recursos existentes, que se distanciava das
inovações e dos enfoques estratégicos. Muitos chefes de polícia
consideravam que suas gestões no âmbito policial da província do
Callao teriam sido frutíferas, apesar da ausência de propostas novas
sobre segurança cidadã.

O que pretendemos explicar, é que a experiência nos


demonstrou que, graças à globalização, modernidade e tecnologia,
ou seja, à aplicação do marketing da Polícia Nacional do Peru (PNP)
no Callao, foram alcançadas mudanças significativas, como veremos
mais adiante. Nesse sentido, entendemos o marketing da PNP como
as atividades de criação e promoção de serviços ao cidadão, graças
aos quais se pôde estabelecer uma melhor visão sobre a cidadania e,
dessa forma, satisfazer seus desejos e necessidades da melhor
maneira.

Nosso único intento é transmitir as experiências de nosso


Comando, assinalando a interessante implementação, durante o
período 2003–2004, do modelo de gestão da Chefia de Polícia do
Callao, quando foi posto em prática o “Conceito Global Marketing
de Relações”, cujos resultados se refletem em haver conseguido
estabelecer relações de longo prazo com o Governo Regional do
Callao e com as Municipalidades, os quais impulsionaram um agressivo
plano estratégico de luta contra a delinqüência, com resultados de
melhoria da imagem institucional, os quais serão apresentados no
decorrer do presente trabalho.

*
Coronel da Polícia Nacional do Peru - PNP, mestre em Administração, diretor da Central de
Operações Policiais da Direção Geral.
338
Eduardo Guillermo Arteta Izarnótegui

2 DIAGNÓSTICO DO PROBLEMA DE INSEGURANÇA CIDADÃ NA


PROVÍNCIA CONSTITUCIONAL DO CALLAO

2.1 Antecedentes

O problema da Segurança Cidadã é um tema de interesse nacional,


portanto, de natureza regional e local. É, desta forma, preocupação do
Governo Central, dos Governos Regionais e dos Governos Locais. Todos
esses atores deveriam fazer parte de um sistema nacional de segurança
cidadã que permitisse oferecer um nível adequado de segurança e amparo
à população.

A segurança cidadã, especialmente nas principais cidades do país,


se transformou no aspecto de principal preocupação da cidadania. A
percepção de insegurança não só se relaciona com o aumento da violência
e da delinqüência, mas tem a ver com a pouca confiança que tem o cidadão
na capacidade das entidades do Estado encarregadas de garantir sua
segurança.

Com o objetivo de enfrentar essa situação, as autoridades nacionais


iniciaram processos de consulta, dirigidos à reforma das instituições
públicas encarregadas da segurança cidadã e ao planejamento de uma
operação orientada ao apoio de iniciativas locais de prevenção. Nessa
tarefa, inclui-se também a busca pelo fortalecimento da capacidade
institucional para a elaboração e implantação de políticas eficientes e eficazes
de segurança cidadã, que tenham uma resultante voltada para a redução
da violência e da criminalidade que vêm afetando o país.

O tema da Segurança Cidadã é uma política de Estado, onde se


destaca expressamente a erradicação da violência e o fortalecimento
do civismo e da segurança cidadã. A Polícia Nacional do Peru é parte
fundamental na corrente do Estado para controlar e prevenir a violência e
criminalidade. No entanto, nossa instituição tem uma série de limitações.
Segundo a análise realizada pela Comissão Especial de Reestruturação
da Polícia Nacional, entre essas limitações se encontram o inadequado
uso dos recursos, altos níveis de corrupção, mecanismos de prestação
de contas pouco eficientes, falta de abertura com a comunidade, más
relações com os Governos Regionais e uma marcada desconfiança do
cidadão em relação à polícia.

339
Chefia e Liderança Policial: O caso da província constitucional de Callao-Lima

No caso do Governo Regional do Callao, depois de reiteradas


reuniões de coordenação, por iniciativa da chefia de Segurança Cidadã do
Callao, foi instaurado, no dia 13 de Fevereiro de 2004, o Conselho
Regional de Segurança Cidadã da Província Constitucional do
Callao, constituído pelas principais autoridades da província.

Nesse contexto, a Chefia de Segurança Cidadã da Polícia Nacional do


Callao tem como primordial objetivo apoiar o desenvolvimento regional
integral sustentável, colaborando na promoção dos investimentos públicos
e privados, bem como na geração de empregos, além de garantir o exercício
pleno dos direitos e da igualdade de oportunidades de seus habitantes.

2.2 Percepção da insegurança e ações

Por tais considerações, e nos termos da lei N°. 27933, que regula
o sistema nacional de segurança cidadã, foi programado um conjunto de
ações a favor da Instituição Policial, uma vez que a província do Callao
tornara-se a quarta cidade de maior índice delitivo em nível nacional.

Os níveis de violência na província vinham lesando o ordenamento


jurídico, a convivência pacífica e as liberdades cidadãs, fazendo com que a
vizinhança chalaca1, e especialmente a imprensa, com suas publicações
jornalísticas, reclamassem às autoridades, face à falta de segurança nas ruas.

A sociedade civil e as organizações sociais, culturais e políticas


exigiram das autoridades uma ação contundente contra a delinqüência,
ante a gravidade da insegurança cidadã motivada pela falta de emprego,
pobreza extrema, aglomeração populacional, crises de valores, condutas
obscenas, o desapego do cidadão por temas de interesse comum e a
corrupção, cenário esse no qual as manifestações mais nefastas são a
delinqüência comum, o crime organizado e o clima de violência latente.

Essa situação motivou o Comando da Polícia Nacional do Callao,


após prévio diagnostico da situação da delinqüência, a buscar conseguir o
apoio necessário para enfrentar a luta contra a insegurança cidadã. E foi o
Governo Regional do Callao quem estabeleceu as primeiras bases de
apoio à Instituição Policial e evidenciou a necessidade de contribuir para a
diminuição dos níveis de insegurança, mediante o desenvolvimento de
ações de prevenção à criminalidade e à violência.

340
Eduardo Guillermo Arteta Izarnótegui

3 PROBLEMÁTICA DO SERVIÇO PRESTADO PELA PNP (2002)

3.1 Quanto à segurança e à tranqüilidade cidadã:

a) falta de uma adequada racionalização do pessoal;

b) necessidade e repotencialização dos Planos de


Patrulhamento;

c) falta de coordenação com os Governos Locais e Regionais;

d) falta de uma adequada participação da população civil


organizada;

e) falta de avaliação nas delegacias do Callao;

f) necessidade de remodelar as análises estatísticas e de


inteligência.

3.2 Quanto à problemática do pessoal policial:

a) insuficiente número de policiais para enfrentar o problema


da delinqüência;

b) dispersão de esforços no tratamento do problema da


insegurança cidadã;

c) necessidade de aplicar rotatividade ao pessoal.

3.3 Quanto à problemática do aspecto logístico da polícia do Callao:

a) necessidade de contar com maiores meios de transporte;

b) necessidade de contar com equipamentos (rádio


transmissor-receptor e outros).

3.4 Quanto à problemática da infra-estrutura:

Apresentação dos projetos a serem considerados, para


aprovação de parte do Governo Regional do Callao.

341
Chefia e Liderança Policial: O caso da província constitucional de Callao-Lima

4. APROXIMAÇÃO COM A COMUNIDADE


(ANO 2003)

A Chefia da Polícia Nacional do Callao, durante a gestão realizada


entre os anos 2003 e 2004, ao observar o alto índice de delinqüência e
não encontrar alternativas viáveis para fazer frente ao quadro que
atravessava, realizou um diagnóstico da situação de insegurança. Constatou-
se que, dos fatos delituosos contra entidades comerciais, empresas
públicas e privadas, turistas, comerciantes e transeuntes em geral, ocorriam
em maior volume delitos e faltas contra o patrimônio, nas suas diversas
modalidades (assalto e roubo, roubo qualificado, furto, seqüestros-
relâmpagos2, escape3, e cogote4, maquinazo5, entre outros), e que os
delinqüentes atuam em bandas organizadas, portando armas de fogo e/ou
armas brancas. Verificou-se, ainda, que a maior incidência dessas
ocorrências encontrava-se na jurisdição do distrito do Callao, de acordo
com as estatísticas assinaladas pela Polícia Nacional do Peru.

O problema do tráfico e consumo de drogas no distrito do Callao,


possui índices alarmantes pela sua complicada forma de negociação,
especialmente na modalidade do micro-comercialização de pasta base,
cloridrato de cocaína e maconha, para o qual os delinqüentes utilizam a
via pública, interior de domicílios e centros de diversões. Tal aspecto
torna cada vez mais complexa a intervenção policial, situação essa agravada
pelo fato desses elementos utilizarem menores de idade, mulheres em
extrema pobreza e, em menor número, maus elementos das instituições
encarregadas de sua repressão, que lhes facilitam a ilícita atividade. Quanto
ao transporte, constata-se que os traficantes utilizam veículos maiores e
menores para a transferência e/ou comercialização da droga.

Observa-se, de forma alarmante, o aumento do número de gangues


no distrito do Callao, formadas por jovens de ambos os sexos, que atuam
em grupos e se dedicam a cometer delitos e faltas contra o patrimônio.
Ocasionalmente, essas gangues se enfrentam em via pública com objetos
contundentes e perfuro-cortantes, causando inquietude e aflição na
população, com o subseqüente dano à propriedade.

A primeira estratégia de aproximação com a comunidade foi o


acordo firmado com a municipalidade provincial do Callao, onde, depois
de reuniões de coordenação, foram estabelecidas as condições necessárias

342
Eduardo Guillermo Arteta Izarnótegui

para a instauração da ordem e da segurança. Tomou-se como plano piloto


um quadrante compreendido entre os quarteirões que têm como vias
principais Apurímac, Marco Polo, Sáenz Peña e Contralmirante Villar,
executando operações de segurança comunitária, erradicação de delitos
e faltas de maior incidência (assaltos, roubos, arrebatos 6, micro-
comercialização de drogas), realizando um intenso patrulhamento,
motorizado em apoio à área de vigilância do policial comunitário e
utilizando veículos policiais, e/ou municipais, proporcionando, dessa forma,
segurança total na área considerada de alto risco.

As atividades realizadas foram direcionadas visando pôr em prática:


a) o Plano Piloto de Segurança Cidadã, no quadrante
acima referido;
b) a divisão do quadrante em áreas de vigilância,
composta por doze (12) quadras, designando pessoal
policial e municipal de forma permanente;
c) a destinação de um veículo e de meios de
comunicação às áreas de vigilância;

As áreas de vigilância foram estabelecidas nas seguintes quadras:


a) Marco Polo - Buenos Aires – Guisse – Apurímac;
b) Marco Polo – Colón – Guisse - Buenos Aires;
c) Marco Polo – Sáenz Peña – Guisse – Colón;
d) Guisse - Buenos Aires – Saloom – Apurímac;
e) Guisse – Colón – Saloom – Buenos Aires;
f) Guisse – Sáenz Peña – Saloom – Colón;
g) Saloom – Buenos Aires – Cocrhane – Apurímac;
h) Saloom – Colón – Cocrhane – Buenos Aires;
i) Saloom – Sáenz Peña – Cocrhane – Colón;
j) Cocrhane – Buenos Aires – R. Villar – Apurímac;
l) Cocrhane – Colón – R. Villar – Buenos Aires;
m) Cocrhane – Sáenz Peña – R. Villar – Colón.

343
Chefia e Liderança Policial: O caso da província constitucional de Callao-Lima

Foram efetuados levantamentos de dados reais sobre todos os


elementos de segurança e integrantes da comunidade, que vivem ou
trabalham em cada área, assim como dos veículos que nelas permanecem.
Realizaram-se visitas policiais, devidamente registradas, aos vizinhos de
cada área de vigilância, para perguntar sobre seus anseios em matéria de
segurança. Da mesma forma, promoveu-se a organização de juntas de
vizinhos e clubes infanto-juvenis para participação sistematizada em
atividades esportivas, culturais e comunitárias, organizadas pela Polícia
Nacional e pela Municipalidade.

A Organização do Plano Piloto compreendeu:


a) quadrante: 12 quadras
b) áreas de vigilância: 12
c) unidade motorizada: 01 veículo de patrulha
d) pessoal policial: 02 por turno
e) telefonia celular: 12 equipamentos
Foram divulgados, pelos meios de comunicação, materiais de
propaganda relacionados às normas legais que se encontram vigentes,
com relação à ordem pública e ao bom uso das ruas.
Foram realizadas instruções sobre a forma de agir em relação às
pessoas que cometam atos anti-sociais, conduzindo-as às delegacias para
o registro da ocorrência, por intermédio dos policiais designados para
cada área de vigilância.
Emitiram-se, também, orientações para erradicar das ruas as
pessoas que se encontrem ingerindo bebidas alcoólicas em via pública,
exercendo o meretrício, a mendicância, o comércio informal, etc.
Dotaram-se com telefonia celular todas as áreas de vigilância e grupos
especiais de prevenção e repressão ao delito.
Foram planejadas operações de filtro policial que permitiam a
identificação de pessoas à margem da lei, verificando por telefone os
antecedentes e a existência de mandatos de prisão.

Todas as pessoas que cumpriram tarefas de apoio ao sistema de


segurança foram preparadas e capacitadas.

344
Eduardo Guillermo Arteta Izarnótegui

Outros aspectos:
a) atribuiu-se uma credencial emitida pela Polícia
Nacional às pessoas que colaboraram nessas tarefas,
estabelecendo programas de estímulo à participação
da vizinhança;
b) estimulou-se, por intermédio dos policiais
comunitários, em sua respectiva área de vigilância, a
participação de jovens em atividades comunitárias,
esportivas, culturais e de prevenção do consumo
indevido de drogas, organizados da seguinte forma,
- cada área de vigilância possuía núcleos de dez
(10) jovens.
- doze (12) núcleos formavam uma equipe de
trabalho, cuja assessoria esteve a cargo de um
oficial de polícia; as reuniões destes grupos eram
realizadas nos sábados e domingos, entre as 10h
e 14hs.

Obrigações assumidas pela Polícia Nacional do Callao:


a) nomeação de pessoal policial de acordo com a
disponibilidade de seus efetivos no quadrante onde foi
posto em execução o Plano Piloto de Segurança Cidadã;
b) designação de um veículo policial de forma
permanente ao quadrante compreendido por doze (12)
áreas de vigilância, nas doze (12) quadras selecionadas;
c) centralização e processamento de um banco de
dados sobre os elementos de segurança e integrantes
da comunidade que trabalham e moram nas áreas de
vigilância;
d) supervisão e estabelecimento dos procedimentos a
serem empregados nas visitas realizadas aos vizinhos
de cada área de vigilância para verificar os anseios em
matéria de segurança cidadã;
e) total colaboração na organização de juntas de vizinhos
e clubes infanto-juvenis;

345
Chefia e Liderança Policial: O caso da província constitucional de Callao-Lima

f) emprego do Escritório de Inteligência e do


“Esquadrão Verde”, para que executem as apreciações
e intervenções nas áreas críticas assinaladas;
g) programação de operações policiais dentro do
quadrante selecionado;
h) entrega das credenciais às pessoas reconhecidas
como integrantes das juntas de vizinhos;
i) incentivo à participação dos jovens em atividades
comunitárias, esportivas, culturais e de prevenção ao
consumo indevido de drogas;
j). coordenação com a municipalidade do Callao para o
intercâmbio de informação e o apoio tecnológico e
logístico necessário para o sucesso do Plano Piloto de
Segurança Cidadã.

Obrigações assumidas pela municipalidade do Callao:


a) divulgação do Plano Piloto de Segurança Cidadã à
população do distrito do Callao.
b) apoio com pessoal do município nos assuntos
próprios de sua competência.
c) apoio à Divisão Provincial da Polícia do Callao, com
meios tecnológicos, logísticos e econômicos para o
sucesso da operação.
d) colaboração com pessoal capacitado para a
organização de juntas de vizinhos e clubes infanto-
juvenis.

Nota
1
Designa-se chalaca àquele que é natural da Província do Callao
2
Esta modalidade é denominada no Peru de secuestro al paso
3
Vulgarmente conhecida no Brasil como “saidinha bancária”
4
Modalidade de roubo no qual o infrator golpeia ou ameaça com objeto perfurante o pescoço da
vítima
5
Modalidade de roubo no qual o infrator golpeia a vítima com a coronha do revólver, ou, por
extensão, com qualquer objeto contundente.
6
Entende-se o arrebato no Peru como sendo o roubo rápido de relógio, carteira, telefone, celular,
e outros bens similares, conduzidos pela vítima durante um deslocamento.

346
S IL
B RA
Relato Policial
A VIOLÊNCIA CONTRA OS POLICIAIS: PERCEBER,
PROBLEMATIZAR E ATUAR (?)
Martim Cabeleira de Moraes Júnior*

INTRODUÇÃO

A relevância do tema está principalmente em dois pontos: 1º A


discrepância entre as conseqüências das violências sofridas pelos policiais
e a ausência da discussão de tais atos na comunidade acadêmica brasileira.
2º A necessidade de se construir políticas de segurança pública que
abranjam todos os aspectos que envolvem o tema “polícia”.

No que se refere à importância para a proposta do curso entende-


se que o caso apresentado é gerador de reflexão sobre os desafios (ainda
não enfrentados na sua plenitude) de melhorias reais nos órgãos de
segurança pública. O assunto proposto traz: desafio, inovação, atualidade,
total convergência aos princípios democráticos e dos Direitos Humanos,
bem como está desenvolvido no “eixo temático polícia e polícia”, uma
vez que trata de mecanismos de percepção, controle e melhorias internas
nos órgãos policiais.

CONTEXTUALIZAÇÃO DO TEMA

Sempre que se trata de violência, se faz necessária a delimitação do


conceito, muito embora se reconheça que a questão do conceito de violência
ainda não tenha sido enfrentada de maneira considerada satisfatória.

Neste sentido, por todas as dificuldades de conceituação, para tratar


de tal tema se escolheu a definição apresentada por YVES MICHAUD como
a mais adequada à discussão proposta.

Segundo MICHAUD (1989, p. 10) ocorre violência quando: “[...]


numa situação de interação, um ou vários atores agem de maneira direta ou
indireta, maciça ou esparsa, causando danos a uma ou várias pessoas em
graus variáveis, seja em sua integridade física, seja em sua integridade
moral[...]”.
Oficial da Brigada Militar do Estado do Rio Grande do Sul. Licenciado em Direito, especialista
em segurança cidadã e mestre em Sociologia.
347
A violência contra os policiais: perceber, problematizar e atuar(?)

Definida a violência, resta compreender-se que existem formas


específicas de violência que, contidas no conceito geral apresentado,
possuem características que as distinguem em subtipos ou espécies a
serem analisadas isoladamente para fins de percepção no cenário de
atuação das polícias.

Para abordagem inicial do tema serão apresentados três tipos


de violência, com indicadores e exemplos, para caracterizar as formas
de violência contra policiais que não estão nas pautas de discussões
em geral, sejam acadêmicas ou de outros círculos sociais.

Como primeiro tipo específico de violência e sua aplicação ao


tema apresenta-se NILO ODÁLIA (1991), quando trata da violência
original. A violência original, concebida como “Agressão física que atinge
diretamente o homem tanto naquilo que possui, seu corpo, seus bens,
quanto naquilo que mais ama, seus amigos, sua família” (ODALIA, 1991,
p. 9), atinge os policiais de várias maneiras, pois nos trabalhos de
policiamento ou investigação criminal, a agressão física é um risco
iminente, quando não acontece, está para acontecer, contra o policial,
contra os seus bens, ou contra aqueles que lhe são caros (familiares,
amigos e colegas). Esta violência, embora esteja no ambiente de atuação
dos policiais, é percebida geralmente como “violência policial” e quase
nunca se evidencia os danos físicos e emocionais sofridos pelos policiais.

Como indicadores da violência do ambiente de atuação policial


tem-se: registros de mortes e ferimentos de policiais em serviço ou
em razão da função;doenças físicas ou psíquicas adquiridas em
conseqüência do sofrimento da presença ou do sofrimento de violências
(alcoolismo, doenças mentais, etc.).

Como exemplo de tal violência veja-se a publicação: “Sujeitos e


instituições: modos de cuidar e tratar” (2002, p. 36):

Em levantamento realizado pelo Departamento de


Desenvolvimento de Recursos Humanos da Secretaria da Justiça e da
Segurança do Estado do Rio Grande do Sul, em 2000, observou-se
um quadro preocupante, indicando números expressivos relacionados
ao adoecimento psíquico dos trabalhadores de segurança pública do

348
Martim Cabeleira de Moraes Júnior

estado. Dentre as formas de sofrimento mais citadas, estão os casos


de drogadição e alcoolismo, violência familiar e nas ruas, casos de
insônia, úlcera, depressão grave, levando, em algumas situações, ao
suicídio ou tentativas.

Em segundo lugar vem o tipo específico de violência chamada


violência simbólica, assim designada por BORDIEU e PASSERON (1975),
significando a aquela que se mostra nas relações de poder, ou seja, a
violência que, embora ocorra abertamente, encontra mecanismos que
tornam sua problematização camuflada por uma falsa conclusão que está
tudo em ordem. A violência simbólica, no contexto policial está muito
ligada ao que a imprensa divulga sobre ações da polícia.

Neste caso a principal agressão vem dos meios de comunicação


social (jornais, telejornais, reportagens em geral), que tratam resultados
de ações policiais de maneira sensacionalista, inclusive pré-julgando
fatos, quando descrevem como culpados alguns policiais sem nem
sequer haver investigação ou processo criminal.

São indicadores da violência dos meios de comunicação:


publicações sensacionalistas de fotos e divulgação de fatos sem citação
de hipóteses diversas sobre o caso; ausência de ações judiciais pelas
instituições policiais por danos sofridos por agentes, decorrente de
notícias sobre suas ações.

Em terceiro lugar cita-se o caso da violência institucional, que,


embora não esteja caracterizada por autores consagrados, da maneira
como se faz neste artigo, está promovida pelo Estado ou pela própria
instituição policial, no momento em que os policiais sofrem uma
enorme pressão para ter sucesso em todas as suas ações, punindo-se
a menor margem de erro. Pelos demais policiais, que hostilizam aquele
que cometeu algum erro, mesmo antes de saber se realmente houve
um erro, ou se foi praticado intencionalmente. Havendo neste sentido,
uma pressão muito grande sobre as ações policiais, sem, contudo, se
estabelecer contrapartidas quaisquer para compensar estes fatores.

São indicadores deste tipo de violência: sinais de hostilização


dos colegas por ações de outros policiais; transferências de policiais
por ações consideradas legítimas.

349
A violência contra os policiais: perceber, problematizar e atuar(?)

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Apesar de existirem outros tipos de violência a que estão sujeitos


os policiais, para fins de apresentação inicial do tema a concentração será
nas três espécies apontadas.

No Brasil são raros os estudos sobre vitimização policial, como o


realizado por Jaqueline Muniz (1998).

Os poucos trabalhos que abordam o tema o fazem considerando a


violência física tão somente.

Tanto as instituições policiais quanto seus componentes, encontram-


se, de certa maneira maltratadas, uma vez que pouco se discute sobre as
formas mais sutis de violência que causam o sofrimento no trabalho
(tomando emprestado o termo de Dejours).

Também se pretende que o tema “violência policial” sempre seja


tratado de forma contextualizada, levando-se em consideração tanto o
contexto teórico, quanto o metodológico e o de suporte fático, para que
não se construa um discurso fragmentado para um fenômeno com
profundas raízes sociais.

A busca aqui é por uma progressão dialética, onde cada tese possa
originar novas antíteses e sínteses, as quais servirão como novas teses,
seguindo um ciclo evolutivo de pensamentos e práticas em prol do bem
estar social, conforme já descrito no artigo anterior sobre o tema.

Referências Bibliográficas
ASSEMBLÉIA LEGISLATIVA DO ESTADO DO RIO GRANDE DO SUL. Relatório Final da Comissão
Especial de Segurança Pública, 2003.
BORDIEU, P.; PASSERON, J.C. A reprodução. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1975.
DORNELLES, O que é crime (Coleção primeiros passos). São Paulo: Brsiliense, 2ª Edição, 1992.
DÜRKHEIM, Emile. As regras do método sociológico. Martin Claret. São Paulo. 2002.
GOVERNO DO ESTADO DO RIO GRANDE DO SUL – SECRETARIA DA JUSTIÇA E DA SEGURANÇA.
Sujeitos e instituições: modos de cuidar e tratar. Programa de saúde mental para os trabalhadores
da segurança púbica – uma visão cartográfica. Gráfica da UFRGS. 2002
MICHAUD, Yves. A violência. São Paulo. Ática, 1989.
MUNIZ, Jaqueline. Mapeamento da vitimização de policiais no Rio de Janeiro. Ministério da
Justiça. 1998.

350
Martim Cabeleira de Moraes Júnior

_______________. Ser policial é, sobretudo uma razão de ser - Cultura e Cotidiano


da Polícia Militar do Estado do Rio de Janeiro. Tese de Doutorado. Rio de Janeiro. IUPERJ, 1999.
ODALIA, Nilo. O que é violência (Coleção primeiros passos). São Paulo: Brsiliense, 6ª Edição,
1991.
SILVA, Jorge da. O controle da criminalidade e segurança pública na nova ordem constitucional.
Rio de Janeiro: Editora Forense, 2ª edição, 2ª Tiragem. 1999.
SKOLNICK, Jerome H. “Nova polícia: Inovações na polícia de seis cidades norte-americanas /
Jerome H. Skolnick, David H. Bayley; tradução de Geraldo Gerson de Souza. – São Paulo, 2001.
– (Série Polícia e Sociedade; n. 2)
SOUZA, Herbert José de. Como se faz análise de conjuntura. 21ª edição. Rio de Janeiro: Editora
Vozes. 2000.
WEBER, Max, Ensaios de Sociologia.2ª ed. Rio de Janeiro: Zahar,1971.

351
L A
UE
N EZ
Relato Policial VE

A FORMAÇÃO POLICIAL: UM DESAFIO


DEMOCRÁTICO
Comissária Aimara Aguilar*

A Constituição da República estabelece que todos os órgãos de


segurança cidadã são de caráter civil e outorga ao poder público estatal e
municipal a faculdade de criar corporações policiais e encarregar-se de
sua formação. Na atualidade existem na Venezuela 126 corporações de
polícia, segundo o levantamento de informação da Comissão Nacional
para a Reforma Policial.

Soraya El Achkar e Humberto Gonzalez (2007) fizeram um estudo


sobre a formação policial: perspectiva histórica e realidade atual, resenhado
nos trabalhos da Comissão Nacional para a Reforma Policial. Este estudo
apresenta a seguinte caracterização geral:

No país temos cinco modelos diferentes de formação policial:


1. Modelo Universitário PM, representado basicamente
pela Polícia Metropolitana, porque tem tido uma ênfase
especial no desenvolvimento de um sistema de
formação universitária para oficiais com endereços de
extensão em 10 estados do país, oferecendo tanto a
Licenciatura em Ciências Policiais, como o Técnico
Superior em Polícia Preventiva.
2. Modelo de Educação Regional, o qual representa as
seis Escolas Regionais de Polícia que dependem do
Ministério do Interior e da Justiça, encarregadas de
formar agentes e oficiais das diferentes regiões do país.
3. Modelo dos estados, o qual representa os centros e
programas de formação policial de dependência
estadual e cuja missão social é basicamente formar,
essencialmente, agentes das polícias do estado
correspondente.
4. Modelo Municipal, o qual representa os centros e
programas de formação policial de dependência
* Comissária do Corpo de Segurança e Ordem Pública do Estado Aragua – CSOPEA, chefe de
operações da região policial Maraca e Este.
352
Comissária Aimara Aguilar

estadual e cuja missão social é basicamente formar aos


agentes das polícias do município correspondente.
5. Modelo Privado, o qual representa as organizações
privadas que desenvolveram iniciativas de formação de
agentes.

Cada modelo e sistema tem: a) requisitos de ingresso e mecanismo


de seleção próprios (alguns atentam contra os direitos civis como o direito
a pertencer a agrupações políticas); b) uma escala hierárquicas em rankings
que vão de dois a 19; c) um regime interno determinado (interno, semi
interno e externo); d) uma lógica organizativa que estabelece o nível de
autonomia (a dependência pode ser do governo estadual, da polícia, pode
ser autônoma ou completamente alheia às instancias políticas, como é o
caso das iniciativas do setor privado); e) uma concepção sobre a educação
policial (militarizada, civil, instrumental, fragmentada, inconsistente); f) um
orçamento que dá ou não estabilidade (discricionariedade); g) uma
capacidade instalada específica para gerar processos de formação (algumas
com sedes próprias, outras sem sede próprias) e h) com conteúdos
curriculares próprios (muitas não têm um desenho curricular como tal).

O estudo assinala que no país temos 113 instituições policiais que


formam a seus aspirantes e 13 que não têm processo de formação. No
entanto, os requisitos de ingresso exigem que estejam formados em outras
instituições policiais.

El Achkar e González (2007) assinalam que destas 113 polícias que


formam a seus funcionários, as modalidades são múltiplas:

1. Com centros próprios: 41 polícias têm centros próprios


e estáveis com uma série de assinaturas e um regime de estudo
determinado que mais adiante detalharemos. Esta cifra
representa 33,3% das polícias do país. Nesta modalidade, a
porcentagem do total de instituições policiais que forma a
seus funcionários é de 36,28%. Quer dizer que 63,7% das
instituições policiais não contam com centros próprios, nem
com capacidade suficiente para a formação de seus
funcionários.

2. Sem centros próprios, mas com características variadas:

353
A formação policial: um desafio democrático

a) 35 instituições preparam cursos segundo as


necessidades e requerimentos de ingresso do novo
pessoal policial. Esta cifra equivale a 28,45% do total
das instituições policiais do país. Nesta modalidade a
porcentagem do total de Polícias que formam seus
funcionários é de 30,97%.
b) 13 instituições preparam cursos próprios, mas,
além disso, enviam os aspirantes a outros centros, seja
para complementar a formação, seja para aumentar a
capacidade de ingresso (misto). Esta cifra equivale a
10,56% do total de instituições policiais do país. Nesta
modalidade a porcentagem do total de polícias que
formam seus funcionários é de 11,50%.
c) 9 instituições preparam cursos próprios, mas, além
disso, recebem aspirantes de outros centros que
estejam preparados em assuntos policiais (Misto). Esta
cifra equivale a 7,31% do total de instituições policiais
do país. Nesta modalidade, a porcentagem do total de
polícias que formam a seus funcionários é de 7,96%.
d) 37 instituições policiais enviam todos os seus
aspirantes a outros centros ou programas de formação
policial por que não têm cursos próprios. Isso equivale
a 30,74% do total de polícias do país: 30,08%. Nesta
modalidade o percentual do total de polícias que
formam a seus funcionários é de 32,74%.

Nesta lógica, onde cada governador pode decidir sobre sua polícia,
fui designada desde 1997 para me dedicar à área da formação de polícias
e gostaria de apresentar minha experiência para que possamos pensar
juntos qual é a concepção mais correta para a formação de um policial
para a democracia.

Eu tinha o mandato de graduar os estudantes em seis meses, os


quais recebiam as aulas no Comando Geral numa modalidade teórico-
prática e em um regime semi-interno. Aos dois meses, o governador
decide ingressar a um grupo adicional com a ordem expressa de graduá-
los em quatro meses. Mais adiante, as promoções III, IV, V e VI se

354
Comissária Aimara Aguilar

graduaram com a mesma dinâmica. Estes grupos engrossaram as cifras


de funcionários e funcionárias policiais. De 1.200 policiais no estado Aragua,
em 1997, passaram a dois mil homens e mulheres com autoridade de
polícia em 1998. Este processo foi interrompido e se retomou no ano
2001 por várias razões: 1) a sociedade estava reclamando mais policiais,
maior eficiência; 2) a pirâmide organizacional estava invertida. Havia mais
oficiais que pessoal de base.

A decisão foi pôr em marcha um plano de formação policial


acelerado em convênio com: 1) A Escola de Formação Policial, vinculada
ao Ministério do Interior e da Justiça, com sedes próprias; 2) A Escola de
Segurança e Ordem Pública da Guarda Nacional e com algumas comisarias
em particular. Estes cursos conseguiram aumentar em 120% o pessoal
policial no estado Aragua.

Todos os cursos foram improvisados e nunca se fez um desenho


único, pensando na função policial e o perfil da polícia. Em todos se
apresentavam os mesmos problemas, a saber:
1. O ingresso: Os requisitos e procedimentos são
discricionais. Algumas vezes aplicam provas
psicotécnicas, prova de rendimento físico, exame
médico. Outras provas são realizadas pelo aspirante
fora da instituição e que se desconhece sua veracidade
(exames de rotina, exame psicológico, odontológico).
Os documentos que se exigem para o ingresso não
são verificados por nenhuma dependência da polícia
(título educacional, comprovante de residência,
certificado de antecedentes, entre outras). Não se
realizam provas de conhecimento geral. Nem a altura,
nem a idade são elementos considerados na hora de
fazer a seleção. Muitos ingressam apadrinhados por
funcionários e funcionárias oficiais ou por contato
político.
2. Número de aspirantes/nível acadêmico. Em
ocasiões, tem se realizado cursos com 450
participantes com diferentes níveis acadêmicos,
inclusive alguns não alcançam o mínimo exigido

355
A formação policial: um desafio democrático

(bacharelado);
3. Continuidade: A falta de continuidade na formação
é um sério problema por que não há exigências
acadêmicas para que o funcionário possa ascender
dentro da instituição.
4. Espaço físico: A formação se realiza em espaços
não adequados para o treinamento requerido, pois em
alguns lugares nem sequer existem áreas desportivas
nem espaços para o treinamento de tiro e em ocasiões
estão amontoados nos dormitórios, salas de aula,
refeitórios, entre outros.
5. Perfil dos professores. Os professores não têm
nível acadêmico, não têm componente pedagógico,
muitos não têm domínio do tema sobre os direitos
humanos e muito menos das áreas vinculadas com a
ação policial.
6. Transversalidade dos direitos humanos: até
agora os direitos humanos são uma disciplina, mas não
foram transversalizados em todas as outras disciplinas
nas quais podem ser tratados.
7. Crescimento pessoal. Nem sempre se agrega nos
programas de formação o aspecto do crescimento
pessoal, porém é muito importante para que ele crie
sentido de pertencimento e seja coerente entre o que
diz, o que sente e suas ações.
8. Recursos. Um dos maiores problemas que enfrenta
a formação é a falta de recursos para a) o salário digno
para professores, b) a aquisição de equipamentos
didáticos e telemáticos, c) a atualização de tecnologia,
d) bibliotecas, e) salões ou locais de simulação (abertos
ou fechados) que façam mais vivencial e prática a
formação baseada em experiências, f) a destinação de
equipamento policial.
9. Estágios. Os estágios se realizam em comisarias,

356
Comissária Aimara Aguilar

mas quando os aspirantes começam a trabalhar se dão


conta que tudo o que aprenderam na escola não serve
de nada, por que há códigos de comportamento que
devem ser respeitados porque, do contrário, serão
expulsos do grupo. Os aspirantes vêem um modelo
de polícia que não é precisamente exemplar. Nas
comisarias não há vocação de formação com os
aspirantes.
10. A militarização. Existem diversos regimes de
permanência, mas em geral fazem um regime interno,
com saídas nos fins de semana. Herdamos das
corporações militares uma disciplina vista desde a
ridicularização, a tortura e os vexames. A militarização
do enfoque pedagógico só ensina a obedecer e acatar
ordens e não dialogar, discutir, deliberar, resolver
conflitos por via da negociação.

Muitos destes problemas devem ser resolvidos, como asseguram


El Achkar e González (2007), por via da padronização nacional com uma
lei que unifique critérios em torno de uma matriz curricular (a qual deve
ajustar-se ao novo modelo policial): fundamentos, propósitos, conteúdos,
enfoque pedagógico, plano de estudo, carga horária, modalidade, sistema
de avaliação, corpo docente, materiais educativos, centros de formação,
regime e modalidade educativa. Padronização também dos requisitos de
ingresso e dos mecanismos e processos de seleção do pessoal policial.

Assinalam nossos autores de referência que a polícia é uma instituição


pública e civil, orientada pelos princípios de permanência, eficiência,
universalismo, democracia e participação, controle de desempenho e
avaliação de acordo com processos e padrões definidos e submetida a
um processo de planificação e desenvolvimento em função das
necessidades nacionais, estaduais e municipais, dentro do marco da
Constituição Nacional e dos Tratados e Princípios Internacionais sobre a
proteção dos direitos humanos. Nesse sentido, a formação deve apontar
a formação de um policial que assuma estes princípios institucionais desde
sua própria prática. Em conseqüência, a escola policial há de refletir a
nova cultura policial, tanto em sua filosofia e regulamentos, como na relação
cotidiana e nas regras informais (2007).

357
A formação policial: um desafio democrático

Para concluir, quero reformular a pergunta com vocês para pensar


um pouco na formação policial. Qual é o melhor sistema de formação de
um policial para o exercício da função pública de segurança cidadã em
uma democracia?

Referências bibliográficas
GABADÓN Luis Gerardo y Antillano Andrés. Comisión Nacional para la Reforma Policial
(2007) La policía venezolana. Desarrollo institucional y perspectivas de reforma al inicio del
tercer milenio. Ministerio de Interior y Justicia en Venezuela.
EL ACHKAR Soraya e GONZALEZ Humberto Comisión Nacional para la Reforma Policial
(2007). La formación policial: perspectiva histórica y realidad actual. Ministerio de Interior y
Justicia en Venezuela.

358
U A
ÁG
C AR
Relato Policial NI
O ENFOQUE DE GÊNERO NA FORMAÇÃO DA
POLÍCIA NACIONAL DA NICARÁGUA
Elizabeth Rodriguez Obando*

I. INTRODUÇÃO

O enfoque de gênero na Polícia Nacional tem sido uma ferramenta de


análise das diversas formas de discriminação e desigualdade de gênero,
permitindo tomar decisões na gestão institucional, nos orientado em direção
a uma mudança, a transformação profunda nas relações de homens e mulheres
no interior da nossa instituição policial e na prestação de serviços policiais. É
uma mudança de atitude diante da vida, em nível pessoal e trabalhista.

O enfoque de gênero na Polícia Nacional de Nicarágua está


orientado pra potencializar as capacidades de seus recursos humanos,
em função de garantir sua plena participação em igualdade de condições e
oportunidades entre homens e mulheres no âmbito interno e, ao mesmo
tempo, continuar transformando condutas, atitudes e práticas no trabalho
policial em relação aos serviços prestados à sociedade nicaragüense.

Por isso, o propósito principal de expor o caso de eqüdade de


gênero no sistema de formação policial é que sirva de experiência a outras
instituições policiais da área centro-americana para aumentar o contingente
feminino na polícia. Esta é a experiência que a Polícia Nacional de Nicarágua
denominou EXPERIÊNCIA DEMONSTRATIVA.

II. RESENHA DO ENFOQUE DE GÊNERO NA POLÍCIA NACIONAL

A Polícia Nacional decidiu incorporar o enfoque de gênero por estar


convencida de sua justiça e reconhecer os benefícios para a modernização
institucional. O papel da mulher, em condições de igualdade em relação
ao homem, é um elemento vital para a modernização da instituição, neste
processo identificamos fatores que o facilitaram:
· Abertura e decisão do Estado-Maior Nacional
· Abertura de chefes (as), que se comprometeram e
participaram das mudanças propostas.
*
Inspetora de Polícia, diretora da Academia de Polícia.

359
O Enfoque de Gênero na Formação da Policia Nacional da Nicarágua

· Vontade institucional e pessoal de estar sempre


abertos à auto-reflexão e à mudança, a fim de avançar
no fortalecimento institucional
· Iniciativa e envolvimento das mulheres da Polícia
Nacional.
· Desenvolvimento alcançado pelo movimento de
mulheres na Nicarágua.

III. ANTECEDENTES DO CASO:

Em 1990 se iniciam os primeiros passos a partir de inquietudes na


polícia Nacional e atendendo as demandas particulares de segurança humana
das mulheres no país.

Entre 1990 e 1993, as mulheres policiais se tornaram promotoras


de iniciativas e propuseram ao Estado-Maior Nacional que o problema da
violência intra-familiar fosse abordada na Instituição, com métodos de
prevenção e atenção direta. Surgem, assim, em 1993. as Delegacias da
Mulher e da Criança (DMC) como resultado dos esforços conjuntos entre
o Instituto Nicaragüense da Mulher (INIM), a Rede de Mulheres contra a
Violência e a Polícia Nacional, atendendo a necessidade de enfrentar os
riscos específicos que para sua segurança implica ser mulher e atender de
forma diferenciada suas demandas de segurança cidadã.

O processo de incorporação do enfoque de gênero na prestação


dos serviços policiais tem início com a Lei 228 da Polícia Nacional em seu
Artigo 21 que estabelece um contexto jurídico e legal à atuação policial na
atenção à violência intra-familiar e sexual mediante a institucionalização
das Delegacias da Mulher e da Criança.

Mas é somente em 1996 que se assume formalmente o enfoque de


gênero como uma perspectiva de desenvolvimento e mudança de
consciência de gênero em nossa Instituição Policial

IV. CASO ¨EXPERIÊNCIA DEMONSTRATIVA:

O sistema de formação policial que contribui para o


fortalecimento da Segurança Cidadã do país, formando as e os aspirantes

360
Elizabeth Rodriguez Obando

com base em competências que garantam sua clara vocação como


servidores públicos. De fato, a Academia de Polícia ¨Walter Mendoza
Martínez, Instituto de Estudos Superiores da Polícia Nacional de Nicarágua
foi uma das primeiras instâncias envolvidas no país no trabalho institucional
de gênero.

4.1. Causas da diminuição da entrada feminina

Em 2000, 11.3% do total de forças que entraram na Academia


eram mulheres. Em 2001, mediante a implementação de uma ação
afirmativa (curso básico exclusivo para mulheres), alcançou-se 26.7%.
Em 2002, caiu 20.3% e em 2003 caiu novamente mais 17.4%. Esta
tendência implicou uma diminuição do pessoal policial feminino nos
seguintes anos.

Causas da diminuição: Primeiro: o aumento do nível acadêmico


requerido para entrar, embora não tenha afetado no número de aspirantes
com um nível acadêmico superior, afetou a entrada das mulheres, não porque
as mulheres não tivessem o nível acadêmico requerido, mas porque este
nível representa uma oportunidade para as mulheres de procurar outras
carreiras mais ¨adequadas¨ para as mulheres e com menos risco. Segundo:
a vigência de esquemas de gênero enraizados na sociedade nicaragüense.

4.2. Necessidade de mudança:

A Polícia Nacional da Nicarágua assumiu o enfoque de gênero não


apenas por ser um direito humano, mas porque o considera uma estratégia
para a construção de uma sociedade mais justa e desenvolvida.

4.3. Fases da experiência demonstrativa:

As fases que foram desenvolvidas nesta experiência:


1. Fase de Diagnóstico: identificação de brechas de gênero
no processo convocatório, seleção e verificação de pessoal.
2. Fase de Sensibilização e Capacitação dos recursos
humanos envolvidos no processo. Capacitação para os
recursos humanos em temas relativos à equidade de gênero.
3. Fase Técnica para a melhora dos processos de entrada na
Academia de Polícia.

361
O Enfoque de Gênero na Formação da Policia Nacional da Nicarágua

3.1. Campanha publicitária que transmitisse a idéia que


o trabalho policial pode ser exercido por homens e
mulheres, e que, além disso, também é uma carreira
profissional como outras.
3.2. Incorporação de novos instrumentos psicológicos
que permitam conhecer melhor o perfil dos e das
aspirantes, e poder avaliar se coincide com o perfil
requerido para ser polícia.
3.3. Realização do processo de verificação sem
preconceitos de gênero, o qual requer capacitação de
recursos humanos e de gênero.

4. Fase no processo de formação:


4.1. Formação de equipe multidisciplinar
4.2. Acompanhamento psicosocial aos/às estudantes
do curso básico na Academia de Polícia.
4.3. Realização de dinâmicas de grupos para facilitar
sua adaptação.
4.4. Realização de oficinas sobre auto-estima e
liderança.

4.4. Breve explicação da experiência

Produto da diminuição da entrada do pessoal feminino na


Instituição Policial, identificado na etapa de diagnóstico, observou-se
que um dos aspectos-chave era o pessoal envolvido no processo de
seleção, que com freqüência reproduzia inconscientemente esquemas
sociais de gênero que incidiam nas decisões institucionais.

Um caso claro é o que acontecia na etapa de verificação, onde


se apresentavam situações desvantajosas para as mulheres. Por
exemplo, se o oficial verificador perguntava pelo comportamento de
uma aspirante na comunidade e as pessoas diziam que era mãe solteira
e/ou tinha um trabalho informal como, por exemplo, vendedora de
loteria, o oficial anotava em sua ficha que esta pessoa não era uma boa

362
Elizabeth Rodriguez Obando

mãe por que deixava seu filho (a) sob o cuidado de outras pessoas,
que não tinha boa reputação por não ter uma relação estável, portanto
não era recomendável para entrar na polícia. No entanto, no caso dos
homens nunca se registrou um caso parecido.

4.5. Estratégias chave para o sucesso


4.5.1. Liderança do Estado–Maior Nacional da Polícia
4.5.2. Envolvimento das principais autoridades nas
áreas envolvidas, Divisão de Pessoal, Academia de
Polícia, Relações Publicas, GTZ.
4.5.3. Liderança e compromisso das mulheres
policiais.

4.6. Situação atual:

Com esta experiência se estabeleceram mudanças nos


procedimentos e na meta de recrutamento de mulheres para 2004,
estabelecendo uma meta de recrutamento para a entrada na Academia
de Polícia de 30 %. Nos últimos três anos, após colocar em prática
esta experiência, os resultados para a entrada na Academia de Polícia
Walter Mendoza Martínez Instituto de Estudos Superiores da Polícia
Nacional de Nicarágua tem sido a seguinte: em 2004, 33%, em 2005,
31% e, em 2006, 26%. Como é possível observar no ultimo ano houve
um variante de 4%, mesmo assim, nos três anos foi possível manter a
meta proposta de 30% na entrada no curso básico da Academia de
Polícia.

É importante mencionar que 2006 foi o ultimo ano do curso


básico de Polícia realizado, e, nesse mesmo, ano se empreendeu uma
nova etapa dos processos de formação policial, no qual se implementou
o Curso Técnico Médio Policial, que traz mudanças positivas em termos
de conteúdo, metodologia e tempo de realização. O curso para entrada
na Polícia Nacional eleva seu nível em função da prestação de um serviço
cada vez melhor à comunidade.

Atualmente, em relação ao Curso Técnico Policial, que tem uma duração


de um ano letivo, a entrada de mulheres no curso se mantém em 25%.

363
O Enfoque de Gênero na Formação da Policia Nacional da Nicarágua

V. LIÇÕES APRENDIDAS

· O sucesso desta experiência e a liderança do Estado-Maior provam


que se há vontade política no primeiro nível hierárquico da instituição é
possível realizar mudanças com sucesso.

· A eficiência de trabalhar em equipes interdisciplinares trouxe


consigo experiências, aprendizagem e resultou em decisões importantes
no processo.

· É imprescindível sempre trabalhar a parte educativa que sensibiliza


os seres humanos de que somos capazes de realizar mudanças e melhoras.

· Este tipo de experiência não pode ser de curto prazo ou pontual,


e deve ser sustentável.

· A Instituição não é uma ilha, somos parte de uma sociedade onde


persistem os preconceitos de gênero e se queremos incidir no interior
da mesma temos que levar em conta como a nossa sociedade se coloca
no tema.

364
C O
É XI
M
Artigo
CONTROLES INTERNOS POLICIAIS OU COMO A
POLÍCIA VIGIA A POLÍCIA.
Ernesto López Portillo Vargas*
e Verónica Martínez Solares**

“… in this respect, police brutality is like police corruption – there


may be some rotten apples, but usually the barrel itself is rotten.”1
“…creating effective disciplinary systems within the police should be
a first- order priority.”2

Durante a segunda metade do século XX o controle do


comportamento policial foi considerado um dos temas fundamentais
para garantir um desempenho profissional e respeitoso dos direitos
humanos por parte dos oficiais. Recentes perspectivas teóricas
sugerem que os controles efetivos somente são possíveis dentro de
sistemas complementares, internos e externos, que devem propiciar
a aprendizagem, dentro de um esquema institucional onde o princípio
de accountability tem um papel operativo e organizador amplo.3
Hoje é possível encontrar esquemas complexos a respeito das
modalidades e categorias do controle policial, embora a teoria
coincida em designar-lhes de forma direta um valor essencial para a
contenção de abusos, e indireta para o desenvolvimento e o
crescimento institucional. Uma vez que as atribuições da polícia a
tornam um instrumento do exercício do monopólio legítimo da força
do Estado, os controles sobre ela para evitar desvios adquirem um
valor crítico em um regime democrático e de direito.

I. INTRODUÇÃO4

Cada vez mais a literatura relacionada à polícia enfoca as áreas


problemáticas da conduta policial, especialmente a corrupção e o abuso
de poder. Tal aproximação não é uma casualidade. Embora seja verdade
que grande parte da literatura da primeira metade do século passado teve
como interesse primordial uma aproximação histórica para logo avançar
*
Presidente fundador do Instituto para a Segurança e a Democracia –www.insyde.org.mx- e
consultor internacional em reforma policial
**
candidata a doutora em direito pelo Instituto de Investigações Jurídicas da Universidade
Nacional Autônoma do México
365
Controles internos policiais ou como a polícia vigia a polícia.

sobre o âmbito normativo, pouco a pouco, um maior número de pesquisas


começou a focar não só o papel e as funções da polícia, vistas a partir de
estruturas formais, mas também a cultura, as estratégias, os desvios, a
ética e o controle policial (tanto da polícia como instituição, como da
conduta de seus elementos) e, como conseqüência, sua reforma
institucional com uma perspectiva invariavelmente democrática (Bayley,
2001, Okudzeto, 2005).

Esse processo, de acordo com Kelling e More (Newburn, 2005:88-


108) atravessa três etapas: a era política, a era da reforma e a era da
solução comunitária de conflitos. No entanto, apesar dos avanços
democráticos na etapa de reforma e inclusive na última, dois elementos
não perdem sua validade e, pelo contrário, ganham cada vez maior
importância: o entendimento e a análise da má conduta policial, seja por
corrupção ou abuso de poder e, de maneira mais recente e crescente, as
formas de controlá-la (Okudzeto, 2005; Varenik, 2005; Neild, s/a).

A resposta às denúncias e queixas por má conduta policial teve, até


a segunda metade do século passado, um retorno informal. O relatório
da Royal Commission on the Police, produto do debate realizado entre
1959 e 1964 (Marshall em Newburn, 2005: 624), no Reino Unido, colocou
sobre a mesa a pergunta fundamental sobre "… como e para quem a
polícia deve prestar contas de sua atividade?", o que derivou numa
"estrutura tripartida" de prestação de contas (Chief Constable, the Home
Office, and the Police Authority, modificado pelo Police Reforms Act 2002
que criou a Independent Police Compalints Commission). E do outro lado,
a McCone Commission -1965- (Neild, s/a) em Los Angeles, Estados
Unidos, após os distúrbios dos anos 60 "…propôs a criação de um
mecanismo interno de verificação".

O surgimento de mecanismos de controle é uma reação natural


diante dos abusos policiais e da corrupção. É produto, assim, da
democratização de todas as estruturas da autoridade estatal, incluindo o
lado mais exposto dos regimes autoritários: a polícia.

A preocupação pelo controle da atividade policial teve seu reflexo


jurídico internacional no Código de Conduta para Funcionários
encarregados de Fazer Cumprir a Lei de 1979 (artigo 8 c), para ser
ratificada posteriormente nos Princípios Básicos Sobre o Uso da Força e

366
Ernesto López Portillo Vargas e Verónica Martínez Solares

de Armas de Fogo pelos Funcionários Encarregados de Fazer Cumprir a


Lei (1990, especial atenção ao número 25).

Como podemos observar, as idéias do controle (accountability


policial) e de sua implementação efetiva são novas. Como todo processo,
está marcado por sucessos e fracassos, sobretudo no que se refere a sua
implementação nas diversas estruturas, sistemas e estratégias de operação.

Latu sensu, os controles policiais estão divididos em externos e


internos –sobre o qual falaremos mais adiante - (Gareth, 2005; Neild, s/
a; Varenik, 2005; Cano, s/a) e esses, por sua vez, em formais e informais
(ver figura 1).

De qualquer maneira, há quase meio século da idéia do controle e


da prestação de contas, a maquinaria policial e a dos órgãos encarregados
de fazer cumprir a lei apresentam problemas para a construção de uma
teoria de accountability democrática, em grande parte devido à diversidade
das instituições, mecanismos, processos e procedimentos; mas também
devido aos múltiplos desafios que devem enfrentar na prática e que, apesar
de bases legais sólidas, as impedem de funcionar adequadamente (Punch,
2003; Skolnick e Fyfe em Newburn, 2005;) tanto no que se refere ao
desempenho quanto à conduta policial, especialmente em países sob
transição democrática ou em situação de pós-conflito (Gareth, 2005:2,
Cano, s/a; Caparini, 2003; Call, 2003, O’neill, 2005).

A história dos esforços em desenvolver a noção de accountability


na polícia tem dois capítulos: a primeira e a segunda metade do século
XX. Na primeira metade tais esforços se caracterizaram por ser
conjunturais e, geralmente, como conseqüência de comissões temporárias
formadas para enfrentar um escândalo. As recomendações que surgiam
não eram acompanhadas de mecanismos que forçassem sua aplicação,
que revisassem ou que guiassem sua implementação. O impacto era
portanto limitado. Constituía um ciclo: escândalo, criação de uma comissão,
implementação inadequada das mudanças propostas, ressurgimento do
problema, novo escândalo e assim sucessivamente.

“This pattern persists today: Rodney King’s public beating led to


careful findings by the Christopher Commission,5 followed by the LAPD’s
questionable effort to fix the problems, and ten years later, the massive

367
Controles internos policiais ou como a polícia vigia a polícia.

Ramparts scandal which in many ways was more harmful to the police
and the criminal justice in Los Angeles1 (Varenik 2006).

No entanto, no final da década de 60, segundo o autor, começaram


os esforços para a criação de mecanismos permanentes de accountability,
primeiro através de controles externos, focados no recebimento e, em
alguns casos, na investigação de queixas cidadãs contra a polícia. Ao longo
do tempo, os limites dos controles externos se tornaram evidentes nas
cadeias internas do comando policial, mas a lição ficou clara: era necessário
criar mecanismos permanentes de accountability para garantir a atenção
necessária aos problemas associados ao controle policial. Há um acúmulo
de aprendizagem importante, em particular durante os últimos 30 anos.
Varenik apresenta um conjunto de lições, entre elas:

Para alcançar modelos sustentáveis de accountability, a polícia deve


ser sujeito e objeto dos processos de reforma. Devemos conseguir que a
polícia assuma um papel que garanta o sucesso das reformas por meio de
sistemas apropriados de controle e prestação de contas.

Focar exclusivamente casos é um meio ineficiente para acabar com


a má conduta policial ou promover boas práticas. O argumento é simples:
as más condutas da polícia têm por trás aspectos institucionais fundamentais
(a seleção, o treinamento, os incentivos, a cultura policial, a supervisão,
etc.), que devem ser abordados mediante estratégias de maior impacto.

Na prática, accountability requer múltiplos mecanismos, internos e


externos, relacionados por meio de sistemas que permitam sua
complementação.

A relevância de tal complementação é extraordinária, porque um


sistema desequilibrado de controles internos e externos pode, em vez de
fortalecer, debilitar alguns deles ou ambos.

“Although we have emphasized here the importance of developing


internal mechanisms it’s also necessary to underline that these mechanisms
will function better if they’re subject to a constructive regimen of review,
audit, analysis and constructive input. Sadly, it’s probable in any force
that cases will arise in which the internal system does not function as we
would like and where it will be necessary to have the external capacity to

368
Ernesto López Portillo Vargas e Verónica Martínez Solares

ensure investigation, resolution and communication to the public and the


police. If there is one indisputable truth arising from long experience in
this area, it’s that we need to strike a healthy balance between ultimately
ensuring the primary role of internal mechanisms in controlling police
conduct and maintaining vibrant external mechanisms whose scrutiny and
pressure will act as a spur on the police to keep the house in order”
(Varenik 2006).

As implicações de accountability incluem percepção, investigação,


vigilância e análise da conduta, seja boa ou má, e a imposição das
conseqüências necessárias para que o oficial e a instituição como um todo
assimilem na prática as lições de sua experiência. Isso implica, por um
lado, o sistema disciplinar –punição e prêmios- porém, muito mais
importante é a construção de sistemas sólidos de fluxo de informação e
análise, de comunicação e gestão estratégica, de maneira que as políticas,
o treinamento, os valores e os comandos das instituições policiais se
reflitam na prática de todo o pessoal. Essa perspectiva centraliza o princípio
de accountability, como uma plataforma que garante o controle, o
escrutínio e a responsabilidade da polícia pelas ações que realiza. Mas vai
além e abrange o valor da aprendizagem como um processo para a melhora
contínua e a manutenção de um diálogo que seja transparente, informado
e mutuamente respeitoso entre a polícia e os promotores de instituições
policiais que respeitam os direitos (Varenik 2006).

Trata-se de transcender a idéia que considera apenas um treinamento


eficiente e um bom pessoal como os melhores instrumentos para minimizar
os riscos associados à função policial, para pensar em instituições que
revisam e analisam suas práticas, comunicam seus resultados e somam
conseqüências a suas conclusões, e assim garantem boas práticas nas ruas.
Trata-se de uma combinação: normas e políticas claras com processos de
revisão e decisão que permitam à instituição orientar melhor a seus oficiais.
Os indicadores que podem ser derivados desse processo de revisão e
análise fortalecem a estrutura de accountability porque permitem uma
melhor avaliação sobre como os indivíduos, as unidades e a instituição em
seu conjunto se comportam. (Varenik 2006).

A seguir faremos uma descrição e breve análise dos denominados


controles internos policiais (CIP), também conhecidos como accountability
ou supervisão interna, não sem antes ressaltar que qualquer mecanismo

369
Controles internos policiais ou como a polícia vigia a polícia.

eficaz de vigilância reforça uma atividade policial efetiva e respeitosa, já


que favorece a cooperação com a cidadania e diminui a violação dos direitos

fundamentais.

II. DEFINIÇÃO E CARACTERÍSTICAS DOS CONTROLES INTERNOS


DA POLÍCIA (CIP).

De acordo com Bayley (em Varenik, 2005: 31-sigs.), as modalidades


de controle podem ser vistas da seguinte maneira:

Figura 1.

A amplitude estrutural fica reduzida à definição proporcionada por


diversos autores dos CIP. Neild (s/a) os define como aqueles que "em
linhas gerais, regulam e orientam as atividades cotidianas da instituição,
tratam casos particulares de abuso, e podem colaborar na análise e
transformação de procedimentos e sistemas administrativos e reguladores

370
Ernesto López Portillo Vargas e Verónica Martínez Solares

para refinar a capacidade policial, melhorar seu desempenho e eficiência,


e elevar sua conduta ética."

Varenik (2005:32) assinala que "accountability interna é a


capacidade de uma corporação de polícia de investigar a má conduta de
seus próprios agentes, e sua capacidade para examinar e controlar seu
uso da força, atributo que o diferencia de outras entidades civis."

Para Caparini (2003:5), a forma de controle interno, o autocontrole


policial, "refere-se à socialização dos oficiais de polícia e à interiorização
das normas e da ética policial democrática através do treinamento,
educação, “níveis de profissionalização”, o exemplo dado pelos oficiais
mais antigos, e a cultura dentro da organização policial, mais
amplamente."

Call (2003:9), por seu lado, afirma que os mecanismos internos


de vigilância "incluem qualquer unidade interna que investiga ou relata as
infrações cometidas pelo pessoal de polícia (por exemplo, “Unidades
Disciplinares”, “Assuntos Internos”, etc)."

Para a International Advisory Commission of the Commonwealth


Human Rights Initiative (Okudzeto, 2005:60, no mesmo sentido Gareth,
2005), dois mecanismos definem a accountability interna:
o ambiente disciplinar, construído em base ao aparato
formal para reprimir e censurar a má conduta policial
e pela cultura informal que prevalece na instituição e
a relativamente nova técnica do controle gerencial do
desempenho policial, através da configuração dos
objetivos e da análise estatística (indicadores de gestão
e qualidade).

A informação que deriva dos indicadores de disciplina policial


(information managment systems ou sistemas de “early warning”) são
de grande importância na medida que proporcionam elementos para a
prevenção da má conduta, o desenho de políticas de seleção,
capacitação, atualização, premiação e promoção de agentes, assim como
de punições; e, claro, a melhora institucional, tanto na resposta às
demandas cidadãs quanto nos procedimentos internos de controle.

371
Controles internos policiais ou como a polícia vigia a polícia.

Características

De acordo com Neild (s/a), as características gerais são as seguintes:


· são mecanismos administrativos (Caparini, 2003)
· estão estabelecidos nas leis orgânicas da polícia,
regulamentos disciplinares, regulamentos operativos ou
códigos de ética (nesse sentido, Alemika e Chukwuma,
2003)
· são regidos por leis nacionais e internacionais, inclusive
a jurisprudência (princípio básico da legalidade, rule of
law ou due process, ver Okudzeto, 2005:53)
· regulam processos disciplinares (Neild, s/a; Varenik,
2005:32; Caparini 2003:5, Call, 2003:9; Okudzeto,
2005:60; Gareth, 2005)
· as regras não são consistentes: infrações menores/
infrações graves; centralizada/descentralizada (Neild,
s/a)
· podem ser verticais (disciplina exercida por linha de
comando) ou horizontais (mecanismos internos
especializados em disciplina –ouvidorias gerais,
unidades disciplinares ou de controle e departamentos
de responsabilidade profissional); centralizados,
descentralizados ou de criação discricionária.

No entanto, existem elementos chave para seu bom funcionamento:


· vontade política (Neild, s/a; Alemika e Chukwuma,
2003: 52)
· liderança (Neild, s/a; Bayley, 2001:206; US Department
of Justice, 2001:11; Okudzeto, 2005:63, 65)
· independência (Neild, s/a; O’neill, 2005:7)
· confiabilidade (Neild, s/a; Varenik, 2005:41)
· transparência (Cano, s/a, Neild, s/a, Varenik, 2005;
Okudzeto, 2005:65, 66)

372
Ernesto López Portillo Vargas e Verónica Martínez Solares

· objetivos imparciais (US Department, 2001:8, Varenik,


2005: 41; Okudzeto, 2005:66)
· eficiência (O’neill, 2005:7)
· baseados no princípio de segurança jurídica (Neild, s/
a, Varenik: 2005:41)
· conta com pessoal idôneo e bem capacitado,
profissional (Neild, s/a, Okudzeto, 2005:66)
· baseados num sistema gerencial idôneo (Okudzeto,
2005:66)

Alguns elementos que dificultam o bom funcionamento dos CIP

Varenik (2005) identifica um ponto central no registro da


informação: qualidade, constância e sistematização. Neild (s/a), por sua
vez, aponta o alto hermetismo e confidencialidade nos processos como
duas barreiras relacionadas à informação (especialmente pela fragilidade
do controle devido ao número de casos, sobre os tipos de denúncia,
nome e cargo do oficial, estado da investigação ou julgamento, coesão e
proporção da punição. A qualidade da informação é necessária na prevenção
de abusos: análise de dados para identificar padrões, qualidade da gestão
policial e a administração da força e práticas operativas nocivas.)

Por sua vez, Okudzeto (2005:53-56), identifica os seguintes pontos


fracos na prática:

· estruturas hierárquicas rígidas

· problemas na implementação, especialmente os


relativos à cultura institucional particular (falta de
vontade, processos obscuros, manipulação da evidência)

· liderança

· regulamentação imprecisa sobre a gravidade das faltas

· secrecy ou código do silêncio

· os problemas da investigação e uso da informação

373
Controles internos policiais ou como a polícia vigia a polícia.

Os cinco valores básicos são (Okudzeto, 2005:66):


· clareza nos objetivos da organização
· transparência
· visibilidade e respeito aos limites da atividade policial
· responsabilidade. Cada membro é pessoalmente
fiscalizável em relação a suas ações
· empoderamento. A tomada de decisões deve ser
baseada na prática.

"O abuso policial pode ser corrigido eficazmente com uma


dupla estratégia: por um lado, a punição dos indivíduos responsáveis
por abusos e, por outro, a correção das fraquezas institucionais ou
de uma prática policial nociva. O primeiro requer que as autoridades
judiciais e policiais estejam dispostas a investigar e punir o crime. O
segundo pode ser alcançado através de uma ampla gama de
medidas, como uma boa capacitação ou a reforma de regulamentos
e a adoção de novos modelos policiais como aqueles chamados
“community policing” (polícia comunitária)."

III. MODELOS DE CIP

Os CIP são convencionalmente vistos como uma medida contra a


corrupção e os abusos policiais, e como sistema de aperfeiçoamento
profissional, conceito dominante a respeito de todo mecanismo de
accountability.

"A responsabilidade de todo governo é manter uma polícia


sob accountability. Mas é responsabilidade dos policiais
assegurarem que os sistemas internos garantam disciplina, bom
desempenho e um bom ambiente na atividade policial.
Convencionalmente, os sistemas internos dependem quase
exclusivamente da investigação policial de outros policiais. Sua
eficiência reflete o grau de compromisso da polícia em manter
os mais altos níveis de desempenho de suas funções." (Okudzeto,
2005:60).

374
Ernesto López Portillo Vargas e Verónica Martínez Solares

Varenik (2005:55-60) proporciona um modelo genérico muito


didático:
· admissão
· processamento
· disposição
· revisão

Para Okudzeto (2005:52) o sistema interno, ao lidar com a má


conduta séria, se divide em quatro partes:
· queixa
· investigação
· audiência
· apelação

Ambos os autores coincidem no conteúdo do processo (Okudzeto,


2005; Varenik, 2005; Neild, s/a).

acesso

Figura 2.

375
Controles internos policiais ou como a polícia vigia a polícia.

Existem duas formas de lidar com as queixas (Neild, s/a):

· ofensas menores. Investigadas pelo imediato superior


hierárquico

· ofensas sérias. Geralmente são investigadas por


agências fora da cadeia de comando tais como uma
unidade de investigação interna dentro da organização
policial, comitês disciplinares ad-hoc, compostos por
oficiais policiais mais antigos; ou por agências externas.

Todos seguem as regras do devido processo.

Relação entre os CIP e os Controles Externos

Os CIP e os controles externos não são excludentes nem


contraditórios, pelo contrário, ambos são importantes, necessários e
complementares (Bayley, 1985: 158, Call, 2003:9, O’neill, 2005:7; Alemita
e Chukwuma, 2003:56). A experiência demonstra que sem mecanismos
externos é muito provável que os internos tenham absoluta
discricionariedade para determinar quais assuntos são suscetíveis de
investigação e quais não, o que pode ser complicado, especialmente
quando se trata da violação dos direitos humanos, como casos de tortura
ou execuções extrajudiciais.

Para Bayley (1985:177-178, também Neild, s/a), em princípio os


controles internos são preferíveis por três razões:

· estão mais bem informados que os externos;

· podem ser mais minuciosos, completos e extensivos;

· podem ser mais variados, sutis e diferenciados.

A questão sobre a dificuldade da confiança reside em que nesse


tipo de controle é a polícia que se investiga a si própria (Alemita e
Chukwuma, 2003:55; ), o que pode acarretar numa investigação simplista
e incompleta; em muitos aspectos, reascende o velho conflito sobre "quem
vigia o vigilante", basicamente por três motivos (Neild, s/a): falta de vontade
política, liderança fraca e uma longa tradição repressora (militar e política),
especialmente na América Latina.

376
Ernesto López Portillo Vargas e Verónica Martínez Solares

Os sistemas de controle externos são complementares aos CIP


(Gareth, 2005: 3,8, Call, 2003:9; Newham, 2000.). Em todo caso, parece
que estes são os que contam com os melhores instrumentos para lidar
efetiva e rapidamente com os problemas de má conduta e tomar ações
para emendá-las. Por sua vez, os controles externos são outra fonte
receptora de queixas e denúncias e supervisionam não apenas a ação
policial, mas também a própria ação dos CIP (Neild, s/a).

O sucesso ou fracasso da relação entre ambos reside nas dinâmicas de


comunicação de ambos os tipos de controle, ou seja, entre os departamentos
de polícia, a sociedade civil e as instituições de segurança em si.

Em muitos sentidos, as deficiências dos CIP foram compensadas pelos


controles externos (Cano s/a), como as agências de Direitos Humanos,
mas esses não poderiam funcionar sem a cooperação dos CIP, em grande
medida porque colaboram proporcionando, basicamente, informação.

De qualquer forma, o inegável é que a informação que geram ambos


os meios de controle contribue para a melhora da conduta, tanto
institucional como a dos oficiais: políticas de mudança e recomendações,
ações corretivas e de reforma, em qualquer etapa do recrutamento ou
seleção para a promoção ou punição.

CIP e democracia

"O policiamento democrático está baseado na idéia de uma


polícia protetora dos direitos dos cidadãos e vigilante da lei, enquanto
garante a segurança de todos por igual."7

Dentro das teorias constitucionalistas, alcançar um Estado Social e


Democrático de Direito (Díaz, 1979:29; Croswell e Baltasar, 1996:137)
significa concretizar fundamentalmente, embora não de forma exclusiva,
os seguintes princípios:
· império da lei: lei como expressão da vontade geral.
· divisão de poderes: legislativo, executivo e judicial.
· legalidade da administração: atuação segundo a lei e
controle judicial suficiente.

377
Controles internos policiais ou como a polícia vigia a polícia.

· direitos e liberdades fundamentais: garantia jurídico-


formal e efetiva realização material

Tais princípios ganham uma importância maior ainda quando se trata


do uso do monopólio da coerção legítima, monopólio que a polícia ostenta
diante da sociedade. Como conseqüência, os Estados têm a obrigação de
implementar medidas especiais no uso da mesma, devido ao fato de que
sua ação deve estar baseada nos interesses da sociedade que protegem e
não nos interesses dos políticos ou dos próprios da instituição.

Os CIP se tornam assim um dos instrumentos fundamentais na


consolidação democrática das instituições toda vez que incidem a vontade
policial do autocontrole. É uma das características de uma atividade policial
democrática (são uma base no sistema de pesos e contrapesos que
caracteriza todo sistema democrático de governabilidade), uma das
maneiras que permite lidar com a má conduta institucional e que, portanto,
gera resultados (Okudzeto, 2005: 27).

"Todo sistema de accountability que funcione bem está


baseado, sobretudo, em mecanismos, processos e procedimentos
de controle interno. Os sistemas de disciplina confiáveis, assim como
os apropriados níveis de treinamento e supervisão, e sistemas de
monitoramento, avaliação e histórico de desempenho, assim como
registro de informação criminal, criam o aparato necessário que
mantém o nível da atividade policial no alto."

"É possível identificar elementos-chave numa estrutura legal sólida


para uma atividade policial democrática e para a accountability da polícia.
Estes são:
· o irrestrito respeito aos direitos humanos na definição
dos deveres policiais
· procedimentos claros de supervisão e controles
democráticos
· sistemas disciplinares internos fortes, adequados e
justos
· cooperação entre os mecanismos internos e externos
de accountability policial

378
Ernesto López Portillo Vargas e Verónica Martínez Solares

· pelo menos uma unidade independente que receba as


queixas a respeito da conduta policial
· supervisão multipartidária sobre a polícia através dos
órgãos colegiados, como parlamentos, legislaturas ou
conselhos locais
· interação obrigatória entre a polícia e a cidadania"

IV. CONCLUSÕES

Mais do que conclusões, nessa reflexão final queremos lançar um


conjunto de questionamentos que atendem a uma preocupação central:
alcançar a eficiência e legitimidade dos controles policiais, internos e
externos, em instituições policiais cronicamente fracas, como é o caso
freqüentemente na América Latina, parece um desafio extraordinariamente
complexo; e mais ainda, na medida que a debilidade institucional da polícia
tem sido um fator funcional a seu caráter autoritário intrínseco, estabelecer
controles pode supor processos enormes de reconstrução na polícia,
que incluem desde sua base doutrinária até seus instrumentos operativos
mais específicos. Por isso, perguntamos para o debate:

· Como direcionar os policiais a uma autêntica apropriação da idéia


de que os controles os fortalecem, não os debilitam, quando operam
num contexto institucional que propicia, explora e tolera o abuso?

· Como propiciar um alinhamento de expectativas entre a polícia e


os cidadãos, de forma que os controles funcionem como instrumentos
reguladores capazes de resultar em benefícios recíprocos?

· Como introduzir o instrumental técnico necessário para o


desenvolvimento institucional dos controles internos na polícia, quando
não há experiência nem conhecimento a respeito?

· Que método ou métodos seguir para incentivar dinâmicas de


aprendizagem no interior da polícia, em prol do controle de desempenho?

· É possível impulsionar a reforma institucional para construir


controles eficientes sem precisar desenvolver uma leitura aprofundada e
informada da cultura policial?

379
Controles internos policiais ou como a polícia vigia a polícia.

· Como induzir na sociedade civil organizada os incentivos


necessários para habilitá-la como contrapeso e controle externo da polícia
quando a sociedade muitas vezes propicia o abuso policial?

· Como induzir nos órgãos do Estado (legislativo, poder judicial,


ombudsman) um processo de construção de ferramentas para o controle
externo da polícia?

· No terreno policial operativo, como operar a mudança de


esquemas estratégicos e táticos historicamente intuitivos e governados
principalmente por controles informais a esquemas técnicos controlados
por plataformas formais de controle?

Notas
1
Este texto foi elaborado para discussão no curso Questões Contemporâneas da Ação Policial:
Desafios para a América Latina. Curso de Liderança para o Desenvolvimento Institucional
Policial, realizado entre 6 e 10 de novembro de 2006 na sede da ONG Viva Rio, Rio de Janeiro,
Brasil. É uma plataforma básica e descritiva sobre os controles internos da polícia no fórum
internacional. Está previsto discutir a validade da teoria frente à experiência policial concreta
por meio de debates com os policiais que participem do curso, oriundos de cinco países (Argentina,
Brasil, Colômbia, Chile e México.
2
Bayley, 2001:40. Neste Sentido Neild (s/a) destaca que as CIP devem ser criados e entrar em
operação na primeira etapa no processo da reforma policial.
3
O Instituto para a Segurança e a Democracia mantém uma ampla discussão interna sobre o
conceito e os alcances do termo accountabilty, assim como sobre sua melhor tradução para o
espanhol, no contexto temático da reforma policial democrática.
4
Este texto foi elaborado para discussão no curso Questões Contemporâneas da Ação Policial:
Desafios para a América Latina. Curso de Liderança para o Desenvolvimento Institucional
Policial, realizado entre 6 e 10 de novembro de 2006 na sede da ONG Viva Rio, Rio de Janeiro,
Brasil. É uma plataforma básica e descritiva sobre os controles internos da polícia no fórum
internacional. Está previsto discutir a validade da teoria frente à experiência policial concreta
por meio de debates com os policiais que participem do curso, oriundos de cinco países (Argentina,
Brasil, Colômbia, Chile e México).
5
O relatório está disponível em http://www.parc.info/reports/pdf/chistophercommision.pdf
6
O papel do diretor de polícia é considerado como "… the key to changing any aspect of
policing."
7
Okudzeto, 2005:24

Referência Bibliográfica
Alemika, E.E.O., Chukwuma, I.C., ed. (2003). Civilian Oversight and Accountability of Police in
Nigeria. Lagos: Centre for Law Enforcement Education (CLEEN).
Bayley, David H. (1985). Patterns of Policing. New Brunswick, N.J: Rutgers University Press.
Bayley, David H. (2001). Democratizing the police abroad: what to do and how to do it.

380
Ernesto López Portillo Vargas e Verónica Martínez Solares

Washington: U.S. Department of Justice, National Institute of Justice.


Call, Charles T. (2003). Challenges in Police Reform: promoting effectiveness and accountability.
NY: International Peace Academy.
Cano, Ignacio (s/a), Police Oversight in Brazil.
Caparini, Marina (2002). Police reform: issues and experiences. Fifth International Security
Forum, Zurich, 14-16 October.
Crosswell Arenas, Mario, Baltasar Samayoa, Salomón (1996). “Estado de Derecho y Procuración
de Justicia”, em Crónica Legislativa, ano V, Nueva Época, no. 8, abril-maio, México.
Díaz, Elías (1979). Estado de derecho y sociedad contemporánea. Madrid: Editorial Cuadernos
para el Diálogo.
Naval, Claire, Salgado Juan (2006). Irregularidades, abusos de poder y maltrato en el Distrito
Federal. La relación de los agentes policiales y del Ministerio Público con la población. México:
Fundar, centro de análisis e investigación.
Neild, Rachel. (s/a). Controles internos y órganos disciplinarios policiales. Serie Temas y Debates
en la Reforma de la Seguridad Pública. Una guía para la sociedad civil. Washington, DC: WOLA.
Newburn, Tim, ed. (2003). The handbook of Policing. UK: Willian Publishing.
Newburn, Tim, ed. (2005). Policing key readings. UK: Willian Publishing.
Newham, Gareth (2000). Towards Understanding and Combating Police Corruption, en Crime
and Conflict. No. 19, pp. 21-25, outono, 2000. Africa do Sul: Centre for the Study of Violence and
reconciliation.
Newham, Gareth (2002). Tackling Police Corruption in South Africa. Africa do Sul: Centre for
the Study of Violence and reconciliation.
Newham, Gareth (2005). Internal Police Systems for Officer Control: A strategic focus area for
improving civilian oversight and police accountability in South Africa. Africa do Sul: Centre for
the Study of Violence and reconciliation.
O’neill, William G (2005). Police reform in port-conflicts societies: what we know and what we
still need to know. NY: International Peace Academy
Okudzeto, Sam, chair (2005). CHIR’s relatório 2005. Police accountability: too important to
neglect, to urgent to delay. India: International Advisory Commission of the Commonwealth
Human Rights Initiative.
Punch, Maurice (2003). Rotten Orchards: “Pestilence”, Police Misconduct and System Failure.
UK. Routledge, Policing and Society, 2003, Vol. 13, No. 2. pp. 171-196.
Samual e Alpert (2000). Police Accountability: Establishing an Early Warning System.
International City/County Management Association (ICMA) inquiry Sernice. Vol. 32, no. 8.
Agosto 2000.
Us. Department of Justice (2001). Principles for promoting police integrity. Examples of promising
police practices and policies.
Varenik, Robert O. coord. (2005) Accountability. Sistemas policiales de rendición de cuentas.
Estudio internacional comparado. México: Centro de Investigación y Docencia Económicas e
Instituto para la Seguridad y la Democracia.
Varenik, Robert O. (2006) Toward the best possible police: basic ideas in accountability. Inédito.

381
I NA
E NT
G
Comunicação AR
MECANISMOS E PROCEDIMENTOS DE CONTROLE
INTERNO
UM OLHAR DA ARGENTINA
Santiago Veiga* e Ignacio Romano**

INTRODUÇÃO

Nos últimos anos, devido à explosão do fenômeno da criminalidade,


têm surgido muitas críticas às forças policiais e de segurança na Argentina
e na região; vinculadas em sua maioria à corrupção, pouco profissionalismo,
limitações na sua capacidade operativa, e manipulação política das mesmas.
Uma situação como essa gerou uma forte demanda social sobre as
autoridades públicas para que façam as reformas necessárias para elevar
os níveis de qualidade do serviço policial; demanda que em alguns casos
foi recebida e transformada em ações –não sempre mantidas ao longo do
tempo- e em outros motivou simples mudanças externas nos gabinetes
ministeriais ou na gestão das instituições policiais.

De alguma forma, pela primeira vez em muito tempo, surgiu na


Argentina a consciência da necessidade de trabalhar com as instituições
envolvidas em favor de uma melhora no rendimento policial diante da
evidência de que os modelos de gestão vigentes das polícias não geravam
resultados capazes de combater o problema da insegurança.

Enquanto a gama de fatores associados ao aumento da criminalidade


–do tipo socioeconômico, demográfico-cultural e institucional, mais o
efeito acelerador da violência das drogas e as armas de fogo - operavam
sobre a realidade, as atividades criminosas –em alguns casos com a ajuda
da tecnologia- adotaram um comportamento mais dinâmico para maximizar
seus lucros e minimizar os riscos. As instituições policiais, enquanto isso,
procuraram livrar-se de um esquema rígido, burocrático e vertical para
acompanhar de perto as mutações do crime, o que em alguns casos
puderam cumprir. Novas modalidades criminosas demandam soluções
complexas e integrais, que vão além da questão policial e que de jeito
nenhum podem ser reduzidas a botar mais polícias nas ruas ou comprar
mais viaturas. No que se refere estritamente à questão policial, a solução
*
Lic. em Ciências Políticas, Mestre em Políticas Públicas e Diretor Executivo Fundação FUNDAR
**
Lic. em Ciências Políticas e Advogado

382
Santiago Veiga e Ignacio Romano

inclui uma gestão mais eficaz e eficiente por parte dos operadores do
sistema, o que supõe –imediatamente- contar com os meios humanos e
materiais necessários para esse fim.

Nos parágrafos seguintes se procurará apresentar diversas


ferramentas de controle de gestão policial, incluindo o controle interno.
Posteriormente serão apresentados os desafios impostos a esse tipo de
mecanismos e, por último, se procurará apresentar as razões pelas quais
dificilmente será possível melhorar o rendimento policial sem a vontade
política dos tomadores de decisão para pôr à disposição das instituições
policiais e de segurança as condições materiais, mecanismos e incentivos
para desempenhar eficazmente sua função.

MECANISMOS DE CONTROLE INTERNO

Assuntos Internos

Todo mecanismo de controle interno nas forças de segurança tem


por objetivo verificar se o pessoal, em todo os níveis, cumpre com as
obrigações gerais em sua posição de policial, e mais especificamente se
trabalha com eficiência para cumprir com os objetivos impostos pela sua
função, da vigilância fixa numa esquina até a direção de uma
Superintendência.

Talvez o método de controle mais tradicional nas polícias seja o


trabalho de investigação realizado pelas áreas de Assuntos Internos. Estas
trabalham normalmente com base na investigação de denúncias sobre
desempenho ruim, corrupção, descumprimento dos deveres como
funcionário público, abusos de autoridade etc., mas, surpreendentemente,
em poucos casos são analisadas estatísticas de procedimentos ou resultados
obtidos sobre os objetivos assinalados. Em geral, não é realizada uma
avaliação de rendimento ou produtividade para premiar os bons policiais,
mas somente se procura caçar os culpados. Ou seja, o trabalho de Assuntos
Internos procura gerar dissuasão e castigo, mas não incentiva o bom
desempenho.

Qualquer polícia que já tenha trabalhado nas ruas e próximo aos


problemas sabe que, para esse sistema de controle quem se esforça por
combater o crime e consegue controlá-lo em sua jurisdição provavelmente

383
Mecanismos e procedimentos de controle interno
Um olhar da Argentina

terá que enfrentar diversas acusações 1 por abuso de autoridade,


confiscações ilegais etc. Esse tipo de acusações, quando injustas,
constituem, no esquema tradicional, manchas na carreira pessoal que põem
em dúvida a integridade e capacidade do efetivo, como também sua
possibilidade de ascensão dentro da organização; incentivando ao mesmo
tempo uma política da “omissão” e pouca intervenção nos conflitos para
os quais supostamente a polícia foi designada. Os mecanismos tradicionais
de investigação de assuntos internos sobre o pessoal policial normalmente
não são capazes de distinguir nesses casos quem efetivamente abusa de
sua autoridade e quem atua profissionalmente, chegando inclusive a arriscar
sua própria vida para proteger a comunidade.

O que foi exposto não implica negar a existência da corrupção policial


e a participação de alguns policias em atividades criminais –sendo o
narcotráfico uma das preferidas- por ação ou omissão. No entanto,
Assuntos Internos também não funciona bem nesses casos, já que as cúpulas
das instituições geralmente só permitem que se investigue superficialmente
para cumprir formalidades, às vezes por conivência e outras para evitar
escândalos que afetem a instituição. Vide as experiências de policiais
honestos que investigam a corrupção interna e terminam sendo ameaçados,
com suas carreiras relegadas e, inclusive, perdem a vida por represálias
ou suas famílias são ameaçadas.

O Desafio de um sistema de alerta precoce para Controle Interno

Seguindo algumas recomendações, as instituições policiais da região


deveriam avançar em sistemas de alerta precoce – combinados com os
mecanismos de assuntos internos - que ajudem a identificar
antecipadamente aqueles policiais com problemas de conduta no
desempenho de suas funções; desenhar mecanismos de intervenção com
esses policiais para conseguir mudanças de conduta positivas; reduzir os
casos graves de atuação de assuntos internos; elevar os níveis de controle
e prestação de contas da instituição policial; e melhorar a imagem policial
com a comunidade a partir de uma queda nas reclamações e denúncias
por desempenho ruim.

Um mecanismo de alerta precoce como o proposto deveria servir


como uma grande base de dados para ser consultada pelos supervisores
e comandos hierárquicos da força policial para identificar aqueles policiais

384
Santiago Veiga e Ignacio Romano

cuja conduta é problemática e, se seguirem nessa linha, possivelmente se


envolverão em casos mais graves manchando ainda mais a já desprestigiada
imagem policial. Esse sistema de procedimento administrativo, além de
permitir identificar os agentes cuja performance ou desempenho resulte
em possíveis problemas, deveria permitir também uma intervenção
apropriada –na forma de conselhos ou treinamento- para reverter esse
tipo de falhas. Desse modo, o sistema de alerta precoce funcionaria como
um alarme que possibilita à mesma força policial intervir antecipadamente
e evitar que o policial se coloque numa situação na qual deva receber
sanções disciplinares formais ou se envolva em processos penais.

Esse sistema deveria contar também, no mínimo, com três fases


de ação, de acordo à seguinte ordem:

Em primeiro lugar, um processo de seleção de agentes policiais


para participar do programa. De acordo com os indicadores de
desempenho que forem determinados serão identificados agentes policiais
com problemas de conduta leves. A quantidade de reclamações e denúncias
que recebe um agente policial por parte dos cidadãos num determinado
período de tempo deve ser um indicador prioritário. No entanto, deverá
ser utilizada uma combinação de indicadores de desempenho e não
unicamente as reclamações dos cidadãos.

Em segunda instância, um processo de intervenção com o agente.


Uma vez identificado o agente policial cuja conduta seja problemática,
será efetuada a intervenção com o agente para que este possa corrigir seu
comportamento. A intervenção deverá consistir sempre numa medida
não disciplinari. A estratégia básica de intervenção deverá combinar
dissuasão, educação e do treinamento. Por meio da dissuasão, os agentes
que forem sujeitos da intervenção modificarão seu comportamento ao
perceber a possibilidade de ser castigados. Por meio da educação e o
treinamento, se ajudará os a gentes que participem do programa a melhorar
seu desempenho profissional. A primeira intervenção pode consistir numa
avaliação de desempenho pelo oficial imediatamente superior. Além disso,
devem ser implementados cursos de treinamento para quem participe
do programa, os quais devem incluir temas como atitudes de comunicação,
importância do respeito no tratamento com o público, técnicas verbais e
alternativas ao uso da força, respeito pela diversidade cultural e integridade
e ética. Um treinamento baseado nos diversos cenários possíveis é uma

385
Mecanismos e procedimentos de controle interno
Um olhar da Argentina

forma efetiva de comunicar e internalizar os temas que devem ser


transmitidos. No caso de considerar conveniente, pode aplicar--se
assistência psicológica.

Por último, a terceira etapa supõe o monitoramento posterior dos


agentes que participaram do programa. Esse monitoramento deverá ser
feito pelo oficial imediatamente superior (supervisor) ao agente que
participou do programa. A performance do agente deverá ser monitorada
por um período de 36 meses após a conclusão do programa.

Entre as variáveis que devem ser consideradas como indicadores


de desempenho desses sistemas de alerta precoce podem ser incluídas
as reclamações e denúncias dos cidadãos; históricos de uso de arma de
fogo, históricos de uso de força, demandas civis, demandas penais,
perseguições em alta velocidade, danos causados às viaturas, quantidade
de infrações de trânsito, suspensões (medidas disciplinares recebidas),
prêmios e ascensões recentes, etc. Tais indicadores devem ser medidos
por um determinado período de tempo e com relativa periodicidade. Os
agentes policiais cujos registros estiverem fora dos parâmetros normais
determinados estarão suscetíveis a ingressar na fase de intervenção do
programa de alerta precoce.

O fato de um agente policial ter um número determinado de


entradas nesses indicadores no sistema não deverá significar, por si só,
que esse agente esteja tendo problemas de conduta. São alertas, e o
supervisor imediato deverá analisar o caso em questão para determinar
se o agente deve participar do programa ou não.

Outro ponto relevante para que sistemas como o proposto sejam


eficientes é que a base de dados do sistema sirva apenas para tais fins. O
acesso ao sistema deve ser protegido e restringido unicamente aos
responsáveis pelo mesmo. Além disso, deve-se facilitar aos civis registrar
reclamações e denúncias de condutas problemáticas por parte do pessoal
policial, o que supõe a possibilidade de realizar as mesmas por todos os
meios disponíveis, inclusive a denúncia pessoal, por correio, telefone, fax
ou e-mail, garantindo também a possibilidade de fazê-lo mantendo o direito
ao anonimato. Também deverá ser disponibilizado um formulário de
reclamação sem que a apresentação do mesmo seja excludente, para dar
início ao trâmite.

386
Santiago Veiga e Ignacio Romano

A implementação de sistemas como o exposto evidencia o interesse


de uma determinada instituição policial em prevenir comportamentos
inadequados de seus membros, aumentar a transparência de sua gestão e
melhorar as relações com a comunidade.

POLÍCIA ORIENTADA A RESULTADOS

Produtividade e Mesuração de Resultados

Desde meados dos anos 90 e com um forte incentivo a partir da


experiência do COMSTAT implementada na Cidade de Nova York,
começaram a surgir em algumas instituições policiais experiências de
introdução de ferramentas de gestão moderna que permitem medir e
analisar os resultados obtidos. O ponto inicial consiste em definir quais
serão os indicadores a ser considerados; logo como será obtida a
informação de forma regular (desenho de um sistema de captura padrão
de informação) e, finalmente, como os resultados serão analisados e
interpretados. Isso deu início a desenhos de redes integradas de dados,
conectando unidades policiais (via Internet, microondas, trunking digital,
etc), gerando aplicativos de recolhimento de informação estandardizados,
e a formação de áreas ou equipes de análise e processamento da
informação.

As primeiras experiências de sistematizar e processar a informação


na Argentina têm origem nas áreas de investigação policial, para trabalhar
na inteligência criminal. Logo, a utilização das redes foi expandida às chefias
regionais de operações, para planificação dos serviços de segurança
jurisdicionais, e finalmente estão começando a ser utilizadas em algumas
dependências administrativas, tanto nas províncias como no Governo
Federal. Da informação especializada disponível, apenas nesses últimos
casos -particularmente no Governo Nacional (Ministério do Interior) e
no da província de Buenos Aires (Ministério de Segurança)- a informação
recolhida através das redes é utilizada para controle de resultados sobre
as forças de segurança. É lamentável que ainda existam dúvidas sobre
quais devam ser os indicadores de gestão policial, e principalmente, quais
resultados são bons e quais são ruins. O problema ao analisar a informação
é sempre deixar de fazê-lo em combinação com uma série de fatores
associados. Por exemplo, não tem sentido castigar um Chefe Regional

387
Mecanismos e procedimentos de controle interno
Um olhar da Argentina

porque aumentou a quantidade de delitos denunciados em sua jurisdição


(como indicador isolado), já que pode ser conseqüência de uma melhora
no trabalho, através da aproximação com a comunidade e geração de
resultados concretos, que resulte num aumento da confiança dos cidadãos
e, em conseqüência, num aumento da denúncia de delitos. Esse tipo de
indicadores deve ser contrastado por uma pesquisa de vitimização, por
exemplo, como forma de dimensionar a representatividade das estatísticas
criminais.

Outro erro ao analisar a informação é a alocação de cada vez mais


recursos em determinadas zonas problemáticas, utilizando como único
indicador um mapa de delitos denunciados. A quantidade de delitos
denunciados em uma área não necessariamente indica uma gravidade maior
da situação que justifique desviar recursos escassos na mesma. Zonas
com menor quantidade de delitos em números absolutos podem
apresentar delitos muito mais violentos e graves, que demandam fortalecer
a capacidade de resposta na jurisdição.

Por último, é importante mencionar que a análise de informação


pelas polícias argentinas é realizada através de uma variedade de
plataformas (software) entre as quais algumas de origem internacional
convivem com as desenvolvidas dentro das forças policiais. Os aplicativos
incluem programas específicos para inteligência criminal, mapeamento do
delito, bases de dados específicas, grades de comando e sistemas de
identificação de impressões digitais (AFIS). Nessa etapa, os avanços se
concentram em dependências centrais ou regionais, embora seja possível
detectar as primeiras tentativas de aproximar essas ferramentas às unidades
jurisdicionais menores para que os chefes das delegacias, por exemplo,
possam planejar seus serviços com melhor informação em favor de uma
maior produtividade, aplicando seu conhecimento do terreno, diferente
dos informes que chegam prontos das dependências centrais.

RESULTADOS E MARCO DE INCENTIVOS

Esse trabalho não pode ser concluído sem refletir sobre um fator
freqüentemente ignorado na Argentina, e certamente em toda a região.
Quando se analisam os mecanismos de avaliação de resultados, geralmente
se faz referência a sistemas desenhados para impor sanções a quem não

388
Santiago Veiga e Ignacio Romano

cumpre as determinações ideais, que geralmente não são muito claras.


No entanto, aqui se esquece de mencionar o que, em qualquer organização
privada, resulta numa variável relacionada de maneira iniludível: os recursos
humanos da organização.

Dificilmente pode-se sancionar um policial por não cumprir uma


função para a qual não está preparado e nem sequer tem os meios materiais.
A cadeia de problemas observados na Argentina é a seguinte: baixa
remuneração, profissão sem prestígio e de risco, que não é atrativa para
os jovens argentinos, o que faz com que as forças policiais diminuam os
requisitos de ingresso para poder ter candidatos. As deficiências de
formação inicial não são corrigidas pela capacitação pobre recebida na
hora de entrada e ao longo da carreira, seguido da falta de vocação, já que
com os altos índices de desemprego, muitos jovens argentinos ingressam
nas forças policiais por ser a única oportunidade de trabalho. Esses novos
policiais são colocados nas ruas com poucos meses de treinamento, devem
comprar até o uniforme devido aos poucos recursos materiais em suas
unidades ou a um estado deficiente, salários próximos à linha de pobreza
que os obrigam a trabalhar até 16 horas por dia em serviços de polícia
adicional, que não respeitam o descanso nem a vida familiar, nem oferecem
oportunidades de formação profissional adicional.

Diante dessa realidade se contrapõem as expectativas dos


argentinos, de comparar nossos policiais com os dos EUA, França ou
Espanha, e o choque de realidades é evidente. Sempre se comenta com
indignação que um policial feriu inocentes num confronto, ou atropelou
uma pessoa durante uma perseguição, ou simplesmente que os policiais
“não fazem nada”. Não se ignora nem se pretende justificar os maus policiais
–que existem em toda organização-, mas agir bem nas condições descritas,
resulta claramente um desafio adicional.

Como conclusão, me parece oportuno reproduzir uma conversa


recente com um policial, que apesar de se colocar sobre a média e de ter
recebido treinamento em diversos lugares do mundo, me disse: “Há alguns
anos, resolvemos um caso de tomada de reféns sem vítimas inocentes, embora
dois dos nossos tinham sido feridos. Após receber uma medalha, fui enviado a
minha casa durante seis meses para me recuperar, durante os quais, como
não pude fazer serviços adicionais, meu salário ficou reduzido à metade. Só
quatro anos depois me pagaram o seguro por uma quantia irrisória (menos de

389
Mecanismos e procedimentos de controle interno
Um olhar da Argentina

80 dólares), e se tivesse morrido era pouco mais de dois salários básicos.


Depois disso, antes de fazer alguma coisa na rua, penso duas vezes, porque
se alguma coisa acontece, minha família ficará abandonada e a instituição
não fará nada por ela.”

Nota
1
É prática comum na Argentina que os detidos denunciem os policiais que os detiveram com a
esperança de que o processo seja anulado e as causas anuladas por supostas falhas e abusos dos
policiais no procedimento. Por outro lado, o policial que trabalha nos escritórios, em funções
administrativas, não é afetado por esse problema e pode cumprir seu trabalho sem medo de
denúncias. Assim, quando se comparam históricos profissionais sempre é beneficiado quem
exerce uma função administrativa, afastado da tarefa propriamente policial.

390
C O
É XI
M
Relato Policial
“ORDENS GERAIS” PARA O CONTROLE INTERNO
NO ESTADO DE QUERÉTARO
Luis Gabriel Salazar Vázquez *

INTRODUÇÃO

Na polícia, existem diversos sistemas ou mecanismos de controle,


sendo que, em geral, dentre destes sistemas predominam aqueles coercitivos,
seja por meio da norma legal que vige e regula todo servidor público, seja de
caráter interno da própria corporação. Estes, em algumas ocasiões, mais que
mecanismos de regulação e controle, são instrumentos de manipulação para
a repressão, abuso de poder e até corrupção interna , e muitas poucas vezes
são utilizados para benefício da própria polícia, seja por desconhecimento ou
por não ser conveniente apelar a eles por represálias posteriores.

Até hoje, ao menos no Estado de Querétaro, desconheço se tem


existido dentro das legislaturas encarregadas de fazer as leis pessoas com os
conhecimentos necessários do fazer policial, o que traz como conseqüência
a criação de ordenamentos que não só desamparam o próprio policial dos
benefícios sociais mais elementares, mas que também são incongruentes com
a tarefa e as situações que enfrenta a polícia na rua, o que repercute no abuso
de autoridade e violação dos direitos humanos, entre outros fatores. Assim,
depois do erro, busca-se sua reparação com o remédio original, ou seja, a
criação de outra lei ou ordenamento, convertendo a função policial em um
jogo vicioso entre a criação de leis e a “imaginação policial” para realizar seu
trabalho, seja em benefício de sua comunidade ou para seu prejuízo.

Durante os 10 anos em serviço ativo como policial, esta é a primeira


ocasião em que se trata de implementar uma série de políticas internas, com
as quais se pretende regular, homologar e estabelecer critérios de operação.
Estas ditas políticas têm sido chamadas de “Ordens Gerais”, começaram a
valer no 17 de julho do presente ano e ainda não tem projetado o objetivo
previsto; longe disso, vive-se em um estado de confusão e descontrole na
operação. No entanto, são o primeiro mecanismo de controle que tenta a
regulação da atuação policial com uma visão de rua, para o benefício e proteção
do cidadão e do próprio policial.

*
Criminólogo, Comandante da Polícia Turística do Estado de Querétaro.

391
“Ordens Gerais” para o controle interno no Estado de Querétaro

DESENVOLVIMENTO

Durante o segundo semestre de 2005, foram dadas a conhecer


por meio de um curso-oficina, as “Ordens Gerais”. O curso-oficina teve
uma duração de dois dias, com uma carga horária de 16 horas e foi
ministrado por um grupo de advogados contratados pela Secretaria de
Segurança Cidadã de Querétaro.

As primeiras novas ordens gerais foram as seguintes:


1.- disposições gerais;
2.- protocolos de comunicação;
3.- operação do veículo policial (crp);
4.- patrulhamento;
5.- apreensão de veículos por infração de trânsito;
6.- translado e depósito de veículos;
7.- motoristas sob a influência de drogas ou álcool;
8.- operação do veículo policial (crp) emergência;
9.- perseguições.

Contudo, durante o desenvolvimento do curso-oficina foram


vertidas diversas opiniões por parte de maioria dos colegas da corporação,
ressaltando seu descontentamento com a aplicação das mesmas por
considerá-las inoperantes.

Essa reação é comum na polícia quando se trata de mudar a forma


de operar ou de implementar novos procedimentos. Algumas declarações
de desaprovação carecem de fundamentos lógicos e têm uma forte
conotação de rebeldia por quebrarem o que se “vinha fazendo” que, em
ocasiões, tem um viés para a corrupção. No entanto, muitas opiniões e
críticas vertidas são justificáveis e dignas de atenção, já que têm um
fundamento baseado na experiência do serviço. Lamentavelmente, nesta
ocasião, essas opiniões pertinentes não foram levadas em conta para o
enriquecimento e viabilidade destas Ordens Gerais, que aplicará o policial
em seu serviço diário.

392
Luis Gabriel Salazar Vázquez

O que foi exposto anteriormente até hoje ficou de manifesto, ao se


continuar operando com uma combinação do que anteriormente se vinha
fazendo e o que está se pretendendo implementar e que, a consideração
própria e com base na minha experiência, se não for corrigido em breve,
perderá o objetivo proposto, ou bem começarão práticas discrecionais
conforme a situação apresentada na rua.

Atualmente, continua-se trabalhando na criação e formação de novas


“Ordens Gerais”, sendo que, nesta segunda fase, tenho tido a honra de
participar na equipe que trabalha nelas, o que me permitiu ter uma idéia
mais ampla das mesmas e do seu objetivo. No entanto, considero que se
tem descuidado como estas ditas ordens devem impactar no pessoal para
gerar sua motivação, credibilidade e sua correta aplicação de forma
voluntária, sob uma disciplina positiva e com a aceitação e visão de um
novo modelo de operação e não de forma forçada, além de criar um
mecanismo de avaliação quanto à viabilidade da aplicação das primeiras
ordens e as subseqüentes.

Uma possível solução, à guisa de proposta, é a de criar um comitê


interno, formado por representantes do pessoal operativo no nível de
comando, bem como diretivo, na criação de projetos inerentes ao
desenvolvimento da função policial, o que gerará a credibilidade e
compromisso com o projeto a ser desenvolvido, além de confiança e
pertença com a instituição, para conseguir uma melhor qualidade no serviço
e, sobretudo, a incorporação da visão e missão institucional que se
materializa no serviço diário com o qual a polícia brinda o cidadão; mas,
sobretudo, a aceitação nos procedimentos empregados não só para o
combate profissional à criminalidade, mas na atuação e atendimento do
policial com sua comunidade e com ele mesmo.

É por isso que se pretende criar um novo modelo de atuação


operacional, como é o caso aqui exposto, devendo-se trabalhar de maneira
interdisciplinar, envolvendo a maioria dos atores inerentes à matéria.

CONCLUSÃO

Plasmar uma série de políticas para a operação não é um trabalho


fácil, que não depende de um elemento só para sua integração, como
poderia ser a experiência na rua do próprio policial, pois cada caso é

393
“Ordens Gerais” para o controle interno no Estado de Querétaro

particular e único e é vivido de modo pessoal. É sabido por todo policial


que nem sempre os problemas se vão manifestar em iguais circunstâncias
àquelas que um colega viveu. Da mesma forma, deixar a criação de leis e
políticas nas mãos de pessoas alheias à realidade operacional pode convertê-
las em instrumentos inaplicáveis e alheios a qualquer realidade.

A criação de políticas de atuação operacional, congruentes e


enriquecidas no teórico e no prático, pode se converter em um mecanismo
idôneo de controle operacional que propicie o respeito à legalidade em
seus procedimentos, bem como dotar o policial de um respaldo institucional
que lhe garanta uma maior segurança no exercício de suas funções.

A própria polícia tem sido parte importante na quebra das redes


que ligam a ela mesma à sua comunidade, pelos métodos ilegais e que
violam os direitos humanos elementares do cidadão; por sua vez, a própria
comunidade não quer e não acredita que valha a pena depositar a confiança
e credibilidade que algum dia já depositou nela. Criar novas redes que
aproximem a polícia de sua comunidade tem sido um dos objetivos da
atual administração; no entanto, não se pode pedir à sociedade que mude
a visão que atualmente tem de sua polícia sem antes iniciar uma mudança
integral da própria polícia e dos métodos empregados até agora.

394
A
MAL
E
UAT
Relato Policial G

ASSÉDIO SEXUAL NA POLÍCIA NACIONAL CIVIL


DA GUATEMALA
Rosa María Juárez Aristondo*

No dia 05 de janeiro de 2005, a agente da PNC (Polícia Nacional


Civil) Estela María Salomé Pérez (nomes fictícios, para guardar a identidade
da vítima) denunciou no Setor de Direitos Humanos da Inspetoria Geral
da Polícia Nacional Civil da Guatemala que há um ano vem sofrendo
problemas no trabalho com o delegado da PNC Leopoldo Hurtado
Buenafé (nome fictício), chefe de uma Unidade Operativa da PNC da
Guatemala, e que é vítima de assédio sexual por parte deste Delegado,
que pede para que ela vá a sua sala e para que não use meias, pois gosta
das suas pernas e quer beijar-lhe o corpo e constantemente a convida
para sair para comer e a outros lugares. Quando esta não aceitou, tomou
represálias contra a vítima até o ponto de transferi-la para o Departamento
de Mazatenango, a 200 quilômetros da capital, afetando-a econômica,
moral e familiarmente. O Regulamento disciplinar da Polícia Nacional Civil,
contido no Acordo Governativo 420-2003 de 18 de julho de 2003
estabelece: Artigo 20. São infrações graves as seguintes: 18) Insinuar ou
assediar de forma freqüente com propostas de natureza sexual pessoal
subordinado ou que esteja sob custodia. O Artigo 22 regula: “São infrações
muito graves as seguintes: 16) A reincidência em insinuar ou assediar em
forma freqüente com propostas de natureza sexual o pessoal subalterno
ou que esteja sob custodia”.

Hurtado Buenafé, delegado da Polícia Nacional Civil, foi destituído


pelo tribunal disciplinar de Quetzaltenango por ter cometido uma falta
muito grave: assédio sexual contra uma subalterna. A agente María Salomé
Pérez neste processo, como vítima, conseguiu através dos órgãos
controladores da polícia (Inspetoria Geral) que se fizesse justiça em seu
caso. As conseqüências mencionadas as conseqüencias mencionadas fazem
com que os demais agentes policiais considerem que diante deste tipo de
falta grave e muito grave (assédio), não haverá impunidade institucional
embora se trate de um alto chefe policial.

76% dos agentes da Polícia Nacional Civil reconhecem que dentro


da instituição é habitual o assédio sexual. Só 10% dos policiais são
*
Subcomissária de Polícia, Bacharel em Ciências Jurídicas e Sociais, Chefe da Divisão de Direitos
Humanos da Policia Nacional Civil.

395
Assédio sexual na Polícia Nacional Civil da Guatemala

mulheres, o que faz com que sejam mais vulneráveis ao assédio de seus
companheiros. Mas nenhum agente considerou nunca que isto podia ser
motivo de destituição.

A destituição se produziu em 24 de agosto deste ano. Hurtado Buenafé,


comissário destinado ao Gabinete da Polícia, deixou seu cargo na Polícia Nacional
Civil por ordem do tribunal disciplinar. “Quando leram a sentença condenatória,
não podia acreditar. Nunca pensou que uma simples agente ganharia o caso”,
afirmou Verónica Godoy, que serviu como testemunha de honra para verificar
a correta aplicação do regulamento interno da Polícia Nacional Civil.

A vítima levava vários meses tolerando os contínuos abusos do delegado.


Segundo a própria sentença, Hurtado Buenafé lhe pedia que fosse sem meias
ao trabalho para ver suas pernas, a retinha em seu gabinete, elogiava suas
qualidades físicas e lhe pedia que mantivesse relações íntimas. Como Salome
Pérez nunca aceitou suas propostas, o assediador promoveu sua transferência
de delegacia. Uma vez que a agente sempre tinha realizado trabalho
administrativo, a mudança para uma unidade operativa supunha um grande
prejuízo para ela, por isso a mesma decidiu apresentar a denúncia. Só um
policial a ajudou em seu esforço, seu marido.

Várias de suas colegas de trabalho declararam diante do tribunal a seu


favor, mas nenhum colega homem. Tanto a vítima como suas colegas sofreram
forte pressão por parte de vários delegados durante o tempo que durou o
processo.

“Para nós, o mais importante é a mensagem que foi transmitida aos


outros policiais, pois o assédio sexual para eles é parte do cotidiano”, comenta
Godoy. No ano passado, a Unidade de Gênero da Polícia Nacional Civil só
recebeu oito denúncias por assédio sexual e nenhuma delas teve resultado.
“O que ajudou muito neste caso foi a decisão do investigador da P.N.C. e a da
vítima. Nunca deu um passo atrás apesar das ameaças”, afirmou Godoy.

Em novembro de 2003, grupos da sociedade civil e organizações


internacionais acordaram com o Ministério de Governo o novo regulamento
disciplinar da Polícia Nacional Civil. Nele se incluiu pela primeira vez como
falta grave o acosso sexual, apesar do ato não ser tipificado como delito na
guatemala.

“Este foi o ponto mais polêmico que tivemos que discutir com os
delegados; a negociação quase ficou paralisada por isso”, comentou

396
Rosa María Juárez Aristondo

Eleonora Muralles, de familiares e amigos contra o delito e o seqüestro.


No final de 2004, se constituíram os três tribunais disciplinares que até o
momento vêm promovendo a destituição de vários policiais. No entanto,
nunca, até agosto de 2005, tinha afetado um delegado.1

Visão policial sobre eqüidade de gênero

O Ministério de Governo, implementou o projeto de fortalecimento


institucional da Polícia Nacional Civil que inclui o projeto de investigação
multiétnica e de gênero.

Neste sentido, no Acordo sobre Fortalecimento do Poder Civil o


Governo da República se compromete a “tomar medidas correspondentes
a fim de propiciar que as organizações de caráter político e social adotem
políticas específicas tendentes a alentar e favorecer a participação da mulher
como parte do processo de fortalecimento do poder civil.” (AFPC número
59, inciso b). A Polícia Nacional Civil adotou o enfoque de gênero em sua
organização para propiciar condições de igualdade e eqüidade entre
homens e mulheres na instituição, já que as mulheres têm convivido
historicamente em condições de ineqüidade em relação aos homens.

A incorporação do enfoque de gênero dentro de uma instituição


tem três dimensões: 1) no âmbito interno, para garantir a igualdade de
oportunidades para homens e mulheres, 2) no âmbito externo, na
prestação de serviços a todos os setores da população, e 3) na prevenção
do delito especialmente em casos de violência intra-familiar e sexual.2

O enfoque de gênero na Polícia Nacional Civil é um conceito que


promove a igualdade nas condições trabalhistas e na prestação de serviços
com o pessoal feminino e masculino que integra a instituição. Este enfoque
estabelece as formas de relações que devem se dar entre o pessoal policial,
que devem fundamentar-se no respeito mútuo, tanto profissional como
humano. Isso é uma condição indispensável para o desempenho
institucional normal e o cumprimento eficiente das funções que deve
desempenhar a polícia para o bem-estar e segurança da sociedade.3

Sem a participação das mulheres conscientes de seus direitos e


capacidades nos diferentes níveis da instituição policial, a segurança seguirá
sendo concebida de forma parcial, a partir da problemática e perspectiva
dos homens, e em função dela se priorizaram determinados problemas

397
Assédio sexual na Polícia Nacional Civil da Guatemala

que afetam nossa sociedade, ignorando-se os problemas urgentes que


enfrenta a população feminina cotidianamente.4

Os Acordos de Paz valorizam a função das mulheres na sociedade


ao reconhecer as importantes contribuições que historicamente têm dado
para o desenvolvimento do país: “O Governo se compromete a
impulsionar campanhas de difusão e programas educativos no âmbito
nacional encaminhados a conscientizar a população sobre o direito das
mulheres a participar ativa e decididamente no processo de fortalecimento
do poder civil, sem nenhuma discriminação e com plena igualdade, tanto
das mulheres do campo como das mulheres da cidade”.5 Os Acordos de
Paz obrigam o Estado a promover a eliminação de toda forma de
discriminação contra as mulheres. Estabelecem também a responsabilidade
do Estado de velar para que os direitos e as necessidades das mulheres
sejam satisfeitas num contexto de eqüidade, que se fomente sua
participação social, política e cidadã, seu acesso ao trabalho e a propriedade
da terra, assim como todo tipo de serviços básicos; redefinam a função e
as responsabilidades do Estado em relação às mulheres, se
comprometendo a propiciar a eqüidade de gênero.

Na Polícia Nacional Civil, as estatísticas de 2001, revelam que as


mulheres policiais constituíam apenas 10%, mantendo esta porcentagem
até 2005, do total da força policial; mas sua participação nos comandos
médios e nas escalas superiores se reduz a 0.28%, estando a maioria
vinculada à escala básica da carreira policial. A designação de tarefas a
mulheres policiais responde a padrões socioculturais que seguem
remetendo a mulher a um papel tradicional de tarefas subalternas ou
administrativas em detrimento da possibilidade de que participem dos
níveis diretivos e da tomada de decisões.6

Notas
1
Publicação de Prensa Libre de 24 de outubro de 2005.
2
Projeto equidade de gênero, pág. 6.
3
Gabinete de Equidade de Gênero da PNC/MINUGUA, A discriminação e o assédio atentam
contra a dignidade da mulher, pág. 45.
4
Relatório de Verificação, Ob, Cit; pág. 7.
5
MINUGUA, Processo de negociação da paz na Guatemala, pág. 347.
6
Relatório de Verificação, Ob. Cit; pág. 20.

398
PARTE III - POLÍCIA E SOCIEDADE

• Refere-se às finalidades da polícia, expressas nos arranjos


e interações com a sociedade. Compreende os processos
de pacto social para produção da coerção autorizada,
explorando as bases e dinâmicas de consentimento social e
suas formas de legitimação.
• Enfatiza os expedientes e mecanismos de controle e
participação social como instrumentos de sustentação do
mandato policial.
• Empresta os contornos para a definição política dos
termos da responsabilização policial, informando os limites
exteriores da pertinência, propriedade, adequação,
oportunidade e suficiência da ação policial.

399
400
I LE
CH
Artigo
PARTICIPAÇÃO COMUNITÁRIA NA PREVENÇÃO
DO CRIME NA AMÉRICA LATINA
DE QUE PARTICIPAÇÃO FALAMOS? 1
Lucía Dammert *

1. INTRODUÇÃO

A participação comunitária na prevenção do crime ocupou um lugar


central nas políticas públicas de segurança na América Latina. Esta situação
configurou-se, principalmente, pela forte tendência de crescimento dos
crimes denunciados, da violência neles utilizada, do medo do cidadão, e
da aparente dificuldade governamental para enfrentar tais problemáticas.
Neste sentido, as políticas de participação buscam estimular o apoio do
cidadão e aumentar a legitimidade das instituições encarregadas do controle
e da prevenção da criminalidade.

Neste contexto, reformularam-se os pilares das políticas públicas


dirigidas a reduzir o crime, os quais certamente incluem a relação entre a
polícia e a comunidade. Assim sendo, a comunidade adquiriu um papel
mais relevante nas políticas voltadas a diminuir a violência e a criminalidade.
Como conseqüência disso, apresentou-se no plano discursivo uma
mudança do paradigma da segurança pública, para a segurança democrática
ou segurança cidadã, o que na prática se traduziu na busca de uma maior
participação comunitária nas políticas de segurança e de uma melhor relação
com a polícia. Naturalmente, a seriedade destes esforços apresenta
diversos matizes nacionais. Em alguns casos, a importância da participação
ficou na retórica de políticos e administradores públicos, enquanto que
em outros casos formularam-se estratégias de participação que
efetivamente buscam envolver a população. Um exemplo recente é o
Plano Nacional de Prevenção do Crime, da Argentina, que conseguiu
estabelecer uma estratégia de participação da comunidade local nas áreas
onde foi implementado.

Assim, partimos da hipótese que as políticas de participação cidadã


possuem três objetivos específicos: em primeiro lugar, melhorar a
normalmente desgastada relação entre a comunidade e a polícia, com a
esperança de consolidar um vínculo de trabalho comum, onde a
comunidade participe da prevenção da criminalidade e respalde a ação
*
Diretora do Programa Segurança e Cidadania - FLACSO Chile

401
Participação comunitária na prevenção do crime na América Latina

policial. Em segundo lugar, se pretende fortalecer as redes sociais


existentes sob a presunção de que isto permitirá o desenvolvimento e
a consolidação do capital social. Embora existam diversas
interpretações do conceito de capital social, neste artigo tomamos a
definição emitida por Putnam (1993), quando estabelece o que é capital
social 2 local, o que se transformaria em uma estratégia central de
prevenção da violência. Finalmente, essas políticas de participação
tendem a consolidar um processo de descentralização que atribui aos
municípios um papel cada vez mais ativo na formulação e implementação
das ditas estratégias.

O objetivo deste artigo é analisar as políticas públicas de


prevenção comunitária do crime, ou seja, aquelas experiências de
participação comunitária que são geradas pelo governo. Enfocamos,
principalmente, os desafios e problemas que interferem no seu
desenvolvimento para a obtenção dos objetivos específicos
anteriormente mencionados. Especificamente, procura-se delinear a
estreita relação existente entre as políticas de participação comunitária
e as instituições policiais, bem como a potencialidade de tais políticas
na consolidação e, inclusive, na criação de capital social. Desta maneira,
analisa-se o papel do poder público na definição de novas estratégias
frente à insegurança, baseadas na participação comunitária.3

O presente artigo divide-se em três seções. Em primeiro lugar


são apresentados os principais conceitos, temas e problemas da
participação comunitária na prevenção do crime. Dessa análise se
depreendem os questionamentos e os desafios principais a este tipo
de iniciativa. A segunda seção apresenta uma análise comparativa de
três casos, nos quais se procura dar resposta à problemática local da
falta de segurança. No primeiro caso, em Córdoba, na Argentina, o
governo estadual aprovou uma importante reforma policial que foi unida
à estratégia de organização de JUNTAS DE VIZINHOS. Por outro
lado, em São Paulo, a Polícia Militar adotou a filosofia da polícia
comunitária e, paralelamente, impulsionou a organização de
CONSELHOS DE SEGURANÇA municipais ou de bairro. No terceiro
caso, aborda-se a experiência do Chile, onde o governo encontra-se
implementando uma política de organização de CONSELHOS
COMUNAIS DE SEGURANÇA, sendo a participação da polícia ainda
limitada. Finalmente, a última parte deste artigo apresenta algumas

402
Lucía Dammert

conclusões, fruto das experiências analisadas.


2. CONCEITOS, TEMAS E PROBLEMAS DA PARTICIPAÇÃO
COMUNITÁRIA

Nas últimas décadas se evidenciou uma notável mudança na forma


como se aborda a prevenção do crime no mundo. Atualmente o controle
do crime não é mais visto como uma tarefa única e exclusiva das instituições
públicas, transformando-se em mais uma tarefa difusa e fragmentada em
mãos de diversas instituições públicas, de organizações não-
governamentais e da comunidade em geral. Desta maneira, a
responsabilidade pelo problema do crime transladou-se da esfera
governamental para a pública.

No centro desta mudança de paradigma, Crawford (1997) vislumbra


três conceitos sobre os quais as principais políticas públicas foram
construídas: prevenção, comunidade e parceria (partnerships). Estes
conceitos são também centrais na definição das políticas de segurança na
América Latina e, apesar de sua importância, carecem de uma definição
conceitual clara que permita sua utilização em estratégias que envolvam
perspectivas sociais e ideológicas diferentes. A seguir, será apresentado
um breve debate sobre as características principais destes conceitos em
políticas públicas de prevenção do crime.

Em primeiro lugar, a prevenção, definida como “as políticas, medidas


e técnicas, fora dos limites de sistema de justiça penal, dirigidas à redução
das diversas classes de danos produzidos por atos definidos pelo Estado”
(Van Dijk, 1990), se consolidou como uma estratégia eficaz e eficiente na
diminuição do crime. O reconhecimento da importância da prevenção foi
concomitante ao desenvolvimento de interpretações da criminalidade que
enfatizam os fatores de risco (Dammert 2001; De Roux, 1994; Crawford,
1997). Desta maneira, as medidas que buscam prevenir o aumento de
tais fatores (por exemplo, o consumo de álcool e o porte de armas) são
consideradas centrais na diminuição não só dos delitos, mas também da
sensação de insegurança do cidadão.

Por sua vez, o conceito de comunidade transformou-se em um dos


mais utilizados em política pública. Especialmente na área da prevenção
do crime, o interesse pela comunidade pode ser explicado a partir das
diversas posturas que explicam a relação entre crime e comunidade. Assim,
por exemplo, a consolidação da comunidade é vista como um processo

403
Participação comunitária na prevenção do crime na América Latina

ligado à diminuição do crime e das oportunidades para cometer delitos, à


defesa frente a outros grupos ou à formação de um espaço social
homogêneo e, portanto, seguro. Apesar da amplitude de sua
conceitualização, é impossível desprezar sua importância e centralidade
nas políticas públicas, assim como sua profunda vinculação com a prevenção
do crime.

Finalmente, a parceria apresenta-se como uma estratégia de ação


necessária para enfrentar o crime. A bibliografia põe ênfase na formação
de associações entre diversas agências estatais (Crawford, 1997) e as
funções que esta parceria pode ter, assim como suas conseqüências sobre
o crime. Além disso, é também relevante analisar a parceria entre a
comunidade e os organismos públicos na busca de melhorias para o
problema criminal, pois, desta forma, a comunidade é envolvida diretamente
na concepção e desenvolvimento das iniciativas preventivas.

Este chamado à participação da comunidade em tarefas de


prevenção e na formação de parcerias evidenciou-se, particularmente,
em duas estratégias governamentais: reforma policial e consolidação de
espaços de participação comunitária.

Reforma policial e polícia comunitária: características de um


processo complexo

A polícia comunitária é uma das estratégias de mudança policial que


foi implementada majoritariamente no mundo com o claro objetivo de
“responder aos abusos de poder, à falta de efetividade, à baixa confiança
da população e às dúvidas sobre a legitimidade da polícia” (Crawford,
1997). Os programas de polícia comunitária distinguem-se por três
características principais: vigilância a pé e a definição de pessoal dedicado
a determinadas áreas geográficas, o estabelecimento de parcerias na
prevenção do crime e o desenvolvimento de mecanismos de consulta
cidadã sobre os problemas locais mais importantes (Trojanowicz e
Bucqueroux, 1998; Goldstein, 1998).

Esta ampla caracterização da polícia comunitária ocasionou a


implementação de programas de diversas índoles, sob o mesmo rótulo.
Desta maneira, nos encontramos com experiências que ficam em um
extremo caracterizado pela geração de uma mudança brusca e rápida,
como a reforma da polícia de Buenos Aires, que gerou controvérsias e

404
Lucía Dammert

resistências internas às transformações propostas. No outro extremo


estão os casos onde, por diversos motivos, entre os quais se destacam a
inércia, a falta de compreensão de seus princípios básicos e a reação
institucional frente às mudanças, se adota a retórica da polícia comunitária,
sem gerar nenhuma mudança significativa (Trojanowicz e Bucqueroux,
1998). Desta forma, é evidente que o termo polícia comunitária perdeu
seu conteúdo inicial e transformou-se em uma categoria de um valor
principalmente simbólico.

Na América Latina, a partir da década de 1980, teve início um debate


geral sobre o papel da polícia e da comunidade na prevenção da
criminalidade. O retorno à democracia em países como Argentina, Brasil
e Chile, fez transparecer a necessidade das polícias experimentarem
transformações que lhes inserissem nesse regime político (Frühling, 2001a;
González, 1998; Oliveira e Tiscornia, 1998). A necessidade de reforma
se fez mais evidente devido à constatação de uma atuação corrupta e
violenta de membros da instituição policial, especialmente na Argentina e
no Brasil, que não apenas envolvia cobranças indevidas por parte dos
agentes policiais, mas também o envolvimento com outros delitos. Além
disso, o aumento da criminalidade e da sensação de insegurança gerou
uma reflexão sobre a necessidade de aumentar a eficácia policial.

Perante as demandas dos cidadãos, as instituições policiais colocaram


como principal tema a carência de infra-estrutura e do pessoal necessário
para controlar a delinqüência. No entanto, a última década demonstra um
aumento no investimento público em infra-estrutura policial em
praticamente todos os países da região. Assim, por exemplo, no período
1990-96 os recursos destinados aos Carabineiros e à Polícia de
Investigações do Chile cresceram 93.3% (Oviedo, 2000). Da mesma
forma, a despesa total da Polícia Federal da Argentina passou de 488 milhões
de dólares em 1993 para 734 milhões em 20004 .

Essa situação demonstrou claramente a necessidade de processos


de reforma da polícia, os quais, em alguns casos, recebem a denominação
de polícia comunitária. Nesses processos, identifica-se a incidência das
três características principais da polícia comunitária, analisadas
anteriormente. Verifica-se a presença de um claro discurso dirigido para
a consolidação da prevenção como estratégia central da atuação policial.
Da mesma forma, é ressaltada a relevância da intensificação da participação
comunitária, destacando a centralidade de seu papel na diminuição do

405
Participação comunitária na prevenção do crime na América Latina

crime e da sensação de insegurança. Por sua vez, observa-se também o enfoque


dado ao estabelecimento de parcerias entre a polícia e a comunidade.

Participação comunitária em prevenção

A participação comunitária em temas de segurança está ligada a dois


tipos de iniciativas. A primeira refere-se às que nascem por iniciativa do governo
e da instituição policial, que se aproximam da população como estratégia para
melhorar sua imagem, bem como para estabelecer esferas de cooperação na
prevenção do crime. Um exemplo deste tipo de organização são os Comitês
de Proteção Cidadã do Chile, que se desenvolvem a partir de uma política
expressa de criação de espaços comunitários de avaliação, proposta e
implementação de programas de prevenção (Araya Moya, 1999; Paz Cidadã).

Por outro lado, há associações comunitárias que nascem da preocupação


dos próprios cidadãos que, carentes de resposta dos organismos públicos,
decidem se organizar de forma independente. Exemplo deste tipo de
organização é o Plano Vizinhos Unidos do bairro de Saavedra, em Buenos
Aires (Smulovitz, 2001). Embora estes tipos ideais sirvam para explicar o
fenômeno da participação comunitária, raramente se apresentam na sua versão
pura, configurando-se, normalmente, em casos intermédios, onde as duas
formas de iniciativas aparecem mescladas.

Sobretudo na América Latina, as iniciativas governamentais para


intensificar a participação comunitária na prevenção do crime estiveram ligadas
a mudanças nas instituições policiais e à criação de organismos dedicados à
sua organização. Neste sentido, a análise dos casos propostos permite
identificar as características centrais das políticas de participação comunitária
na América Latina, assim como suas limitações e desafios.

3. ANÁLISE COMPARATIVA

Esta análise comparativa pretende ressaltar as contribuições destas


experiências e a relação destas com as políticas de participação comunitária
na prevenção do crime na América Latina.

Retomando o debate conceitual exposto na segunda seção, os casos


estudados apresentam variações na forma como se encaram os três
conceitos centrais: prevenção, parceria e comunidade. Uma primeira

406
Lucía Dammert

característica comum aos casos analisados é o interesse dos funcionários


governamentais e da direção das instituições policiais por uma mudança
na forma tradicional de aplicação das políticas de segurança. Como
observamos, esta preocupação tem suas raízes no aumento do crime e
da sensação de insegurança em todos os contextos, apesar da significativa
variação entre eles.

Desta maneira, o conceito prevenção é posto no primeiro plano da


discussão política, como uma forma de enfrentar estas problemáticas e,
sobretudo, de diminuir a constante cobrança do cidadão por medidas
efetivas contra o crime. Neste sentido, a prevenção aparece como uma
forma de envolver a comunidade nos problemas de segurança, aos quais
se confere uma multiplicidade de causas.

Esta situação torna-se evidente nos casos estudados, já que todas


as instituições policiais estabelecem como objetivo central a prevenção
do crime e a relação com a comunidade, mesmo quando a capacitação
relacionada a estes temas é escassa (ver tabela 1). As instituições policiais
dos três casos compartilham características comuns. A partir da década
de 1990, enfrentaram a problemática da segurança do cidadão com um
discurso que, por um lado, põe ênfase na prevenção e na participação
comunitária, e , por outro, no aumento de pessoal e na aquisição de
tecnologia. Outro aspecto a ser considerado, nos casos de São Paulo e
Córdoba, é a grande desconfiança do cidadão em relação aos policiais,
assim como seu passado repressor e autoritário, que inclui um ingrediente
importante à análise desta preocupação com a relação com a comunidade,
o que se configura diferente no Chile, onde os Carabineiros contam com
um maior apoio e confiança da população.

Por outro lado, observa-se que em todos os casos diversas


estratégias de comunicação foram iniciadas para transmitir a mensagem
de uma polícia mais próxima da comunidade. No caso de São Paulo, isto é
evidente até mesmo no nome proposto para a reforma policial. Por sua
vez, em Córdoba e no Chile, embora não se tenha adotado uma política
de Polícia Comunitária, foram propostas no primeiro caso mudanças
institucionais relacionadas a este tipo de estratégia, e desenvolveu-se, no
segundo uma intensa campanha na mídia sobre novas estratégias
operacionais, que estabelecem um vínculo maior entre Carabineiros e a
comunidade (ver tabela 2).

407
Participação comunitária na prevenção do crime na América Latina

Esta mudança no discurso público das polícias, que incorpora a


participação do cidadão, tem como causa principal a necessidade de
repensar estratégias preventivas que respondam à demanda cidadã e lhe
outorguem legitimidade institucional (no caso de Brasil e Argentina). No
entanto, a definição do vínculo da polícia com os grupos de vizinhos ainda
não está clara, o que apresenta um grave risco: as expectativas criadas na
comunidade podem exceder os objetivos policiais e, portanto, aumentar
a lacuna entre ambos os grupos.

Nos três casos analisados se introduz um discurso público próximo


ao da polícia comunitária. Mas Córdoba5 é a única experiência onde se
evidencia uma mudança estrutural da instituição. Os outros dois casos
mantêm instituições militarizadas, hierárquicas e com altos níveis de
autonomia em relação a outros atores institucionais e sociais. Cabe fazer
a ressalva que em São Paulo o plano de polícia comunitária envolve
treinamento e capacitação específicos para toda a instituição.

Paralelamente à colocação em prática de mudanças institucionais


ou operacionais que buscam vincular a polícia à comunidade, foram
impulsionadas políticas que têm como principal objetivo estabelecer
relações entre a comunidade e as instituições governamentais de controle.
Desta forma, as políticas de participação comunitária na prevenção do
crime tomaram especial relevância na última década na área das
organizações sociais. No entanto, coincidimos com Crawford (1997),
quando coloca em dúvida as possibilidades de longo prazo deste tipo de
estratégia, ao explicitar que “o crime por si mesmo pode não ser o foco
mais apropriado sobre o qual organizar comunidades abertas, tolerantes
e inclusivas. Pelo contrário, é mais provável que gere maior resistência e
exclusão. A configuração de comunidades tolerantes, de suas instituições
e de suas estruturas deve ser conduzida sob discussões e focos que sejam
realmente integradores” (Crawford, 1997).

Apesar do reconhecimento das limitações da organização


comunitária na prevenção do crime, é preciso ressaltar alguns dos seus
aspectos positivos. Em primeiro lugar, nas experiências analisadas
apresenta-se uma clara presença do cidadão nas reuniões dos conselhos
propostos, embora tal participação tenda a diminuir, o que não exclui o
interesse e o envolvimento de um setor da população nestas iniciativas.
Da mesma forma, ainda que no caso de São Paulo a participação direcione-

408
Lucía Dammert

se quase que exclusivamente para temas de segurança, em Córdoba as


reuniões dos conselhos permitiram o desenvolvimento de campanhas de
educação sobre violência familiar, consumo de álcool etc. No Chile, ainda
não é possível avaliar os resultados, já que o processo encontra-se em
fase de desenvolvimento dos diagnósticos locais.

Neste sentido, talvez um dos principais achados desta análise seja a


definição de participação comunitária que se evidencia nas políticas
implementadas. Todas envolvem um ator (polícia ou governo) que organiza,
convoca e constitui um núcleo cidadão de participação. No caso de São
Paulo e Chile, os membros dos CONSEG e dos Conselhos Comunais são
convidados a participarem de acordo com a “representatividade” e
“interesse” que possuem na comunidade, constituindo um board ou
diretório de vizinhos, que se reúne periodicamente para avaliar a
problemática do bairro ou do município, o que é apresentado como uma
política de verdadeira participação. Trata-se de uma participação cidadã
com tarefas definidas (destacar os principais problemas, apoiar as ações
policiais), que deixa um espaço pequeno para as iniciativas que poderiam
ser apresentadas pelos vizinhos.

Tais medidas mostram, então, que a participação cidadã é


compreendida como a administração de projetos de investimento (no
caso do Chile), a geração de diagnósticos e a avaliação de ações públicas,
não incluindo um papel ativo do cidadão na proposta, na concepção e na
colocação em prática de políticas, programas e projetos comunitários.
Mesmo que em todos os casos esteja presente a vontade política de ouvir
a voz do cidadão, os mecanismos pelos quais esta demanda popular é
canalizada não estão claramente definidos.

Face ao exposto, argumentamos que é necessário refletir sobre a


necessidade de dar um novo significado à participação e de ampliar o
papel do cidadão. Quando este se vê restringido e as propostas e
reclamações do público não são canalizadas adequadamente, a presença
comunitária diminui e, portanto, limitam-se as possibilidades de sucesso
das políticas de prevenção. Por isso, a etapa de concepção destas políticas
é fundamental para não “desgastar” o interesse do cidadão. Neste sentido,
o fortalecimento do conceito de parceria é indispensável na redefinição
destas políticas. Isto é, reconsiderar o processo de participação comunitária
na prevenção do crime, outorgando um papel central às necessidades

409
Participação comunitária na prevenção do crime na América Latina

comunitárias e entender que a preocupação pelo tema criminal deve ser


um tema importante na agenda de trabalho, mas não excludente, para
desta maneira não transformar a participação em formas de conseguir
segurança privada e melhorar o espaço local, mas sim como espaço para
que sejam abordadas questões mais amplas e igualmente relacionadas com
as problemáticas sociais, como a violência na família e a toxicomania, entre
outras.

Finalmente, é preciso ressaltar que o desenvolvimento destas


políticas marca um momento importante na definição das políticas de
segurança e do papel da comunidade neste processo. Por isso, é preciso
manter uma postura de constante revisão das estratégias de ação, com o
fim de gerar uma experiência bem-sucedida de participação comunitária
na prevenção do crime, que colabore em consolidar a construção da
cidadania nos países do Cone Sul.

Tabela 1. Caracterização da instituição policial


São Paulo Santiago Córdoba
Divisão entre oficiais e tropa Sim Sim Não
Existência de polícia Sim Não Sim
comunitária
Prevenção e
Tarefas que desempenha Prevenção Prevenção
investigação
Existência de centro de análise Sim Sim Não
de informação
Dependência governamental Governador Ministério Ministério
do Estado da Defesa de Governo

Números de membros 80.000 35.000 11.000


(aprox.)
Área de atuação Nacional Nacional Provincial

Capacitação em trabalho com a Sim Pouca Mínima


comunidade
Existência de um centro de Sim Sim Não
análise sobre o tema

Fonte: Elaboração própria, 2001.

410
Lucía Dammert

Tabela 2. Caracterização dos


processos de mudança
institucional policial

São Paulo Santiago(a) Córdoba

Ano de início 1995 2000 1999


Inclui participação Sim Não Sim
comunitária
Modificação da estrutura Não Não Sim
policial
Inclui polícia comunitária Sim Não Sim
Melhoria da base de Sim Sim Não
informação estatística
Autor do programa Polícia Polícia Polícia/Governo
Patrulha a pé Sim Não Sim
Coordenação com políticas Sim Sim Não
de participação comunitária
Existência de controle Sim Em Não
externo processo
Avaliações desenvolvidas Sim Não Não

(a)
Faz referência ao plano quadrante
Fonte: Elaboração própria, 2001.

411
Participação comunitária na prevenção do crime na América Latina

Tabela 3. Caracterização de políticas de participação comunitária

São Paulo Santiago Córdoba


Organismo encarregado Polícia Ministério do Ministério
Militar Interior de Governo
Organismo encarregado do Polícia
Prefeitura e
Ministério
setor Ministério do
Militar Interior de Governo
Coordenação com a polícia Sim Sim Pouca
Área de influência Estadual Nacional Provincial
Formação de associações de Sim Sim Sim
vizinhos
Avaliações desenvolvidas Sim Sim Sim
Desenvolvimento de Sim Sim Sim
campanhas educativas
Desenvolvimento de suporte Sim Sim Não
técnico para as políticas
Desenvolvimento de Não Sim Não
indicadores para o
monitoramento das políticas
Convocatória aberta à Não Não Sim
comunidade
Existe avaliação Sim Não Não

Fonte: Elaboração própria, 2001.

4. CONCLUSÕES

O objetivo central deste artigo foi apresentar e analisar três políticas


de prevenção comunitária do crime na Argentina, no Brasil e no Chile.
Nestes países, o crescimento das taxas de crimes registrados e a sensação
de insegurança, assim como as limitações dos atores estatais para
solucionar o problema, colocou em primeiro plano a estratégia de
participação comunitária como resposta alternativa a esta situação. Em
todos os casos, as políticas são destinadas, principalmente, a melhorar a

412
Lucía Dammert

relação entre a polícia e a comunidade, a consolidar ou criar redes sociais


e a diminuir a sensação pública de insegurança.

É necessário ressaltar que as políticas analisadas fazem parte de


uma primeira geração de políticas sociais relacionadas com a segurança,
cujo ator principal não é a polícia. Neste sentido, sua importância central
é evidente no dimensionamento do papel da comunidade em temas como
a segurança, o crime e a prevenção. Apesar desta notável característica,
estas políticas apresentam também uma série de limitações e desafios
que superam suas realidades locais. Portanto, sua análise e debate são de
grande utilidade na hora de formular e avaliar o que ocorre em outros
países da região e o que pode ser realizado futuramente.

As políticas de prevenção comunitária do crime são imprescindíveis


para gerar um rompimento com a tendência crítica atual. No entanto,
diversas mudanças devem ser previamente efetivadas para que seja
alcançado sucesso nesse caminho. Em linhas gerais, há quatro grandes
temáticas que devem ser consideradas. Em primeiro lugar, uma mudança
na estrutura policial que acompanhe o crescente papel da comunidade na
prevenção. Depois, a necessidade de uma maior integração e coordenação
entre os organismos públicos dedicados ao tema, assim como com aqueles
que estão envolvidos em questões afins. Em terceiro lugar, é imperativo
ampliar o papel da comunidade, convertendo-a em parte central das ações
preventivas locais e, portanto, atribuindo-lhe poder para propor
alternativas de solução a temáticas específicas. Finalmente, os pontos
anteriores só poderão ser alcançados caso se consolide o papel ativo do
governo local.

Participação e estrutura policial

A probabilidade de sucesso das políticas de participação para a


prevenção tem uma estreita relação com o papel da polícia em tais
estratégias. A realização de mudanças institucionais é central para alcançar
uma maior independência na tomada de decisões dos comandos locais:
independência que pode incentivar os chefes de delegacias a implementar
propostas locais, já que evita trâmites burocráticos lentos e complicados.
Em uma instituição hierárquica, muitas vezes autoritária, como a polícia, a
mudança costuma ser um processo de longo prazo, onde se requer um
bom planejamento das áreas envolvidas, assim como dos objetivos que se
deseja alcançar.

413
Participação comunitária na prevenção do crime na América Latina

A mudança da cultura institucional deve estar entre as primeiras


prioridades, já que a bibliografia analisada em países desenvolvidos conclui
que a resistência da polícia à mudança e que a cultura institucional
(hierárquica, militarizada e autônoma) são os principais obstáculos para
alcançar políticas bem-sucedidas de prevenção e participação. Além disso,
é necessário implementar um currículo de capacitação dos membros da
polícia que inclua trabalho com a comunidade, solução de problemas,
mediação de conflitos e desenvolvimento de projetos, para dar resposta
a um maior número de situações críticas.

Além disso, é necessário definir a relação que a polícia estabelece


com as organizações comunitárias. A implementação de estratégias policiais
com ênfase na participação comunitária colocou em evidência a carência
de um padrão de ação entre os membros do binômio polícia-comunidade.

Integração e coordenação interinstitucional

Um dos maiores riscos que estas políticas enfrentam é o desânimo


e a desconfiança da população, que pode não estar disposta a participar
em um esforço sem ver uma pronta solução de seus problemas
comunitários. Igualmente, a falta de compromisso real das instituições
públicas para apoiar estas estratégias gera uma diminuição da participação
e desconfiança quanto às iniciativas do setor público. Neste sentido, é
prioritário gerar uma rede interinstitucional de coordenação destas
políticas, que diminua a duplicação de atividades e coordene as ações de
diversos organismos públicos no tema. Caso não seja realizada uma
verdadeira transformação dos serviços por parte do Estado, o que neste
caso significa uma melhora palpável na atenção ao cidadão nas delegacias,
tribunais e demais organismos relacionados com a segurança, será muito
difícil alcançar o compromisso da comunidade, freqüentemente debilitado
por deficientes experiências de participação.

Ampliação do papel do cidadão

As iniciativas analisadas são um excelente ponto de partida para


impulsionar a participação do cidadão em uma variedade de temas que
envolvem a segurança: o uso dos espaços públicos, as redes de contenção
para jovens, a gestão de projetos e a formulação de políticas públicas. É
necessário aprofundar a participação nestas, permitindo a somatória de
atores e líderes comunitários de diversos âmbitos e a comunidade em

414
Lucía Dammert

geral. Esta abertura deve estar ligada a uma flexibilização dos regulamentos
estabelecidos para cada uma das experiências de participação.
Evidentemente, a busca de financiamento próprio soma um notável
problema naquelas comunidades empobrecidas nas quais seus habitantes
colaboram com seu tempo como recurso principal. Desta maneira, o
Estado deve garantir os fundos necessários para que estas iniciativas
tenham assegurado seu desenvolvimento no tempo. Finalmente, é preciso
desestimular a estigmatização do “outro”, do “delinqüente”, do “esquisito”,
já que o problema da segurança cidadã é um tema que envolve a todos e
onde não é possível estimular a divisão e a estigmatização social. Desta
maneira, é importante encorajar a participação do cidadão considerado
diferente, cuja visão das necessidades e problemas da comunidade é
essencial para a definição de políticas públicas bem-sucedidas.

Em resumo, as associações comunitárias necessitam assegurar sua


representatividade ao incorporar organizações e indivíduos interessados
na temática. Neste sentido, transforma-se em ação central o
desenvolvimento de estruturas e processos que assegurem a participação
total da comunidade.

Gestão local e prevenção comunitária

A particularidade da temática da segurança cidadã permite e requer


uma ênfase local na formulação e implementação de políticas comunitárias.
Embora os contextos de aumento da criminalidade e de sensação de
insegurança sejam similares em diversos países, é evidente que os motivos
desta situação são diversos e multidimensionais em cada cidade ou bairro.
Desta maneira, os governos locais devem assumir um papel de protagonista,
não só nas políticas nacionais ou estaduais de prevenção, mas também na
própria formulação de políticas locais. Esta estratégia tem o potencial para
influir diretamente sobre os problemas locais, assim como para captar maior
atenção da comunidade, que se sente parte do problema e de suas soluções.

Referências Bibliográficas
Araya Moya, J. (1999), “Experiencias de participación ciudadana en la prevención local del
delito. Exitos y dificultades”. Cadernos CED, N. 30, CED, Santiago.
Crawford, A. (1997), The Local Governance of Crime: Appeals to Community and Partnerships,
Clarendon Press, Oxford.
Dammert, L. (2001), La geografía del crimen en las principales ciudades argentinas: diagnóstico
y perspectivas. Artigo apresentado no VI Seminario Internacional de la Red Iberoamericana de

415
Participação comunitária na prevenção do crime na América Latina

Investigadores sobre Globalización y Territorio. Rosario, Argentina.


Dammert, L e Malone, M. (2001), “Inseguridad y temor en Argentina: El impacto de la confianza
en la policía y la corrupción sobre la percepción ciudadana del crimen. Desarrollo Económico.
Buenos Aires, Argentina.
Dammert, L. (2000) “Violencia Criminal y Seguridad Pública en América Latina: La Situación en
Argentina.” Serie Políticas Sociales N.43. CEPAL, Santiago de Chile
De Roux, G. (1994), “ Ciudad y violencia en América Latina” Em: Ciudad y violencias en América
Latina. Programa de Gestión Urbana, Quito.
Durston, J. (2000), ¿Qué es capital social comunitario? Serie Políticas Sociales N. 38. CEPAL,
Santiago.
Fajnzylber, P. (1997), What causes crime and violence? Banco Mundial, Washington, DC.
Frühling, H. (2001a), Police and Society in transitional countries: the case of Latin America. Artigo
apresentado no Workshop Internacional organizado pelo Danish Centre for Human Rights. (mimeo)
Goldstein, H. (1998) Problem Oriented Policing. Ac Graw Hill, Nueva York.
Moser, C. e Holland R. (1997), Urban poverty and violence in Jamaica. BID. Washington DC.
Olivera A. e Tiscornia S. (1998), “Estructuras y Prácticas de las policías en la Argentina. Las redes
de la ilegalidad”. Em: Frühling H. (edit), Control Democrático del Mantenimiento de la Seguridad.
Centro de Estudios para el Desarrollo, Santiago.
Oviedo, E. (2000), “Santiago, violencia, delitos e inseguridad”. SUR, (mimeo)
Paz Ciudadana (2000a), “Plan Comuna Segura”. Em: Hechos. Fundación Paz Ciudadana, Santiago.
Putnam, R. (1993), Making democracy work: Civic traditions in Modern Italy. Princeton University
Press, Princeton.
Smulovitz, C. (2001), “Policiamiento Comunitario en Argentina, Brasil y Chile: Lecciones de una
Experiencia Incipiente”.Apresentado ao Grupo de Trabajo sobre Seguridad Ciudadana do Woodrow
Wilson International Center for Scholars.
Trojanowicz, R. e Bucqueroux, B. (1998), Community Policing: How to get Started. Anderson, Ohio.
Van Dijk, J. (1999), “Crime Prevention Policy: current state and prospects” Em: Kaiser, G y Albrecht
H. Crime and criminal policy in Europe. Criminological research report, vol. 43. Freiburg.

Notas
1
O presente artigo é uma versão resumida do texto de mesmo título, publicado pelo Centro de
Estudos do Desenvolvimento, Santiago (2003). www.policiaysociedad.org
2
São as instituições, relações e normas que dão corpo à qualidade e à quantidade de interações
sociais. Diversos estudos enfatizaram este conceito e sua relação com o crime. Assim, por
exemplo, um recente estudo concluiu que “as comunidades com pouco ou deficiente capital
social deveriam ser mais suscetíveis à violência” (BID, 1999). Para maiores detalhes, ver:
Durston, 2000; Fajnzylber, 1997.
3
É importante mencionar a existência de experiências de participação em prevenção do crime
que foram impulsionadas pela comunidade, sem participação governamental. Para maiores
detalhes, ver: Smulovitz, 2001.
4
Informação da Secretaria de Justiça e Segurança Cidadã, Cidade de Buenos Aires, Argentina.
5
As mudanças institucionais aprovadas em janeiro de 2001 ainda não foram implementadas na
sua totalidade, motivo pelo qual não é possível avaliar o sucesso desta política.

416
S IL
B RA
Artigo
A BUSCA POR DIREITOS: POSSIBILIDADES E
LIMITES DA PARTICIPAÇÃO SOCIAL NA
DEMOCRATIZAÇÃO DO ESTADO
Ana Paula Mendes de Miranda*

Trata-se de uma discussão sobre a participação da sociedade


civil na busca por direitos e sua relação com a democratização
estatal, processo que é sempre marcado por conflitos. Inicialmente,
tomou-se por referência a conjuntura sócio-histórica de construção
da cidadania no Brasil, em comparação com outros países da América
Latina, ressaltando as tradições políticas autoritárias e
patrimonialistas, que representam obstáculos à delimitação do
espaço público como um campo de relações fora do contexto privado.
Por fim, discutem-se as características dos Conselhos Comunitários
de Segurança como um instrumento de ampliação da participação
social, para problematizar seus limites e possibilidades, tomando
por base a experiência do Rio de Janeiro, e sua contribuição na
construção de políticas públicas.

INTRODUÇÃO

Uma sociedade pode ser analisada a partir de dois aspectos


aparentemente opostos, os fatores de manutenção da ordem social,
relacionados às tradições, e suas forças de transformação, relacionadas à
mudança social. Seja qual for a abordagem, é preciso reconhecer que os
conflitos são inerentes e necessários às sociedades, já que são sistemas
abertos de interações individuais, organizacionais e institucionais.

Atualmente, tem sido comum críticas e cobranças relativas à falta


de mobilização e participação da sociedade em contextos variados. Mas
o que isso realmente significa? Será que vivemos um momento de total
individualização destruidora, cuja prioridade é a busca de dinheiro a
qualquer preço, ou estamos diante de modelos diferenciados sobre o
que é participar da vida social? Que temas mobilizam hoje os indivíduos?

Pretendo levantar algumas questões sobre a participação da


sociedade na busca por direitos e sua relação com a democratização estatal,
*
Diretora-Presidente do Instituto de Segurança Pública, professora da Universidade
Candido Mendes e doutora em Antropologia (USP) 417
A Busca por Direitos: Possibilidades e Limites da
Participação Social na Democratização do Estado

processo que tanto pode ser influenciado por conflitos provocados pelas
mudanças, quanto por conflitos advindos da manutenção de modelos e
práticas sociais. Não se trata, portanto, de uma reflexão sobre a história
dos movimentos sociais1, mas sim sobre as possibilidades e limites da
mobilização social na construção do Estado Democrático de Direito.

Parte-se do pressuposto de que o Estado pode ter a pretensão


tanto de coordenar, quanto de comandar as relações entre os diferentes
grupos (Velho, 1995). Portanto, a democracia não deve ser compreendida
como um processo evolutivo, posto que não se realiza unicamente na
existência de um conjunto de garantias institucionais e formais, mas como
uma forma para administrar os conflitos entre sujeitos, em face de lógicas
distintas vigentes nos sistemas sociais.

Nesse sentido, a democracia deveria propiciar o reconhecimento


de que cada experiência de classe/grupo/categoria produz uma visão de
mundo, e que essas visões constituem a riqueza das sociedades. Somente
assim, pode-se pensar que a democracia deve garantir o respeito às
diferenças individuais e à pluralidade, como um estímulo à criação de
espaços para a participação de sujeitos cada vez mais receptivos.

É necessário esclarecer que a idéia de sujeito não representa aqui o


sinônimo de indivíduo, mas sim a vontade de uma pessoa ou grupo de
atuar e modificar seu meio social mais do que ser determinado por ele.
Inspirada em Alain Touraine (apud Gadea & Scherer-Warren, 2005),
considero que o conceito de sujeito social2 é mais adequado para pensar
o contexto da América Latina, do que o conceito de classe social3, que
apresenta escassa verificação empírica e pouca utilidade para compreender
essa diversidade de cenários.

A CONSTRUÇÃO DE SUJEITOS DE DIREITOS E A BUSCA POR


DEMOCRATIZAÇÃO

Para melhor compreender como o sujeito interfere na sua realidade


é importante ressaltar algumas experiências sócio-políticas recentes que
influenciaram o debate sobre a democratização no mundo:
· as lutas políticas contra o socialismo autoritário que
marcaram a Europa Oriental, a partir de meados da
década de 1970;

418
Ana Paula Mendes de Miranda

· a crise do Estado de Bem-estar Social dos países


capitalistas desenvolvidos, a partir da década de 1980;
· as transições latino-americanas de ditaduras militares para
governos democráticos, a partir do fim da década de 1970.

Vários autores consideram que os anos 70 representaram o


ressurgimento da sociedade civil4 em oposição ao Estado autoritário, porém
é preciso compreender como esses processos foram distintos nos países
da América Latina. Naquela época, o debate foi marcado por estudos que
compreendiam a América Latina como uma realidade dual, dividida em uma
face moderna e outra atrasada, cuja ótica era o estudo das elites e dos
processos de desenvolvimento. Por outro lado, havia uma visão anti-estado
nos movimentos sociais, devido à oposição ao regime militar.

É somente na década de 80 que começa a se intensificar a produção


acadêmica sobre os movimentos sociais, o que coincide com o que Ruth
Cardoso (2004) chama de período da institucionalização dos movimentos.
Assim, o contexto político da “redemocratização” possibilitou o
estabelecimento de novas formas de relação entre os movimentos, as
agências públicas e os partidos políticos. Um outro fator importante para
a compreensão dos movimentos sociais, no Brasil5, está relacionado com
a influência da Teologia da Libertação6, que mobilizou e engajou camadas
pobres da população na busca por justiça social.

Avzriter & Costa (2004) afirmam que, nos últimos anos, o debate
sobre a participação da sociedade civil se processou em consonância
com o debate mundial sobre o tema, de modo que a construção de uma
“teoria da sociedade civil latino-americana” e seus usos analíticos
ocorreram num contexto de uma interpretação sociológica da
democratização e das novas democracias7.

Já Aldo Panfichi e Paula Valeria Muñoz Chirinos defendem que a


sociedade civil deve ser entendida como uma esfera social autônoma do
Estado, sendo uma construção social relativamente nova na América Latina.
Propõem uma definição flexível de sociedade civil, como “uma esfera de
ação intermediária, situada entre o Estado e as famílias, em que grupos e
associações de indivíduos se organizam de maneira autônoma e voluntária
com o objetivo de defender e ampliar a vigência de seus direitos, valores
e identidades, bem como para exercer controle e fiscalizar a ação das
autoridades políticas” (2002: 305).

419
A Busca por Direitos: Possibilidades e Limites da
Participação Social na Democratização do Estado

Entretanto, Alberto Olvera considera problemático falar de uma


sociedade civil, pois na realidade temos um conjunto diverso, heterogêneo
e plural de atores sociais, instituições e práticas. Para ele, a sociedade civil
seria a correlação de “um sistema legal e institucional que estabelece,
protege e atualiza os direitos cidadãos; um conjunto de movimentos sociais
e de associações civis que são social, política e ideologicamente
heterogêneos; uma cultura política ancorada numa diversidade de espaços
públicos, favorável à tolerância e ao respeito mútuo e inclinada a uma
relação crítica com o Estado e o mercado” (2002:352).

O que há de consenso neste debate é que não se pode idealizar a


sociedade civil, já que ela é resultado de um processo histórico. E, no
caso da América Latina, observa-se o predomínio do impacto de reformas
econômicas neoliberais 8, de experiências autoritárias, de uma frágil
democratização e da ausência de separação entre o interesse público e o
privado no exercício do poder.

Considero mais adequada a proposta analítica de Panfichi e Chirinos


(op. cit.), pois permite contemplar de modo mais amplo a diversidade de
grupos em conflito, possibilitando a pesquisa sobre a participação de grupos
conservadores, muitas vezes esquecidos nas investigações9.

Segundo José Murilo de Carvalho (2003), alguns fatos foram


relevantes no cenário político brasileiro no processo de redemocratização,
a saber: a aprovação da Constituição “mais liberal e democrática” que o
país já teve, em 1988, que adotou o princípio geral da democracia
participativa; o restabelecimento de vários procedimentos democráticos
formais e abertura a novas forças políticas; e a primeira eleição direta para
presidente desde 1960, em 1989, provocando uma ampliação dos direitos
políticos numa escala inédita no país. Destaca, também, o Movimento dos
Sem-Terra (MST) como um avanço que resultou da redemocratização do
país, pois representou a incorporação à vida política de uma parcela da
população tradicionalmente excluída pela força do latifúndio. Embora
reconheça que os métodos utilizados podem tangenciar a ilegalidade (invasão
de terras públicas ou não cultivadas), José Murilo de Carvalho acha que os
mesmos devem ser considerados legítimos em função da lentidão histórica
dos governos em resolver o problema agrário no país.

Outro indicador do processo de democratização das relações entre


sociedade e Estado seria o surgimento de organizações não-

420
Ana Paula Mendes de Miranda

governamentais, porque provocam a ampliação da participação social no


diagnóstico, encaminhamento e solução de problemas sociais. Neste
processo é possível se observar o desenvolvimento de estratégias de
“empoderamento” que levam os atores da sociedade civil organizada a se
perceberam como sujeitos sociais, ou seja, é a busca por direitos que
possibilita que a cidadania se enraíze nas práticas sociais.

No entanto, a democratização da esfera política não contribuiu para


a resolução de problemas econômicos (desigualdade e desemprego), bem
como de problemas sociais (educação, saúde e saneamento), observando-
se também um agravamento da situação que ameaça aos direitos civis
(segurança individual e pública) com o crescimento das violências e da
criminalidade em todo o país.

No caso do Brasil, a luta contra o autoritarismo e a transição para a


democracia, mesmo reunindo diversos setores, contribuiu para uma visão
homogeneizada da sociedade civil, deixando marcas no debate teórico e
político. Uma das conseqüências deste processo é a existência de uma
tradição cultural ambígua em relação à democracia, já que o autoritarismo
influenciou práticas da vida cotidiana e das relações do poder estatal com
a população, em especial, as que se referem ao tipo de industrialização e
urbanização, ou seja, aos processos de remoção e reassentamento das
populações, marcados por práticas excludentes.

Deste modo, o retorno às instituições formais democráticas não


produziu o encaminhamento adequado pelo Estado dos problemas da
exclusão e desigualdade social, suscitando a necessidade de constituição
de práticas sociais mais democráticas, que demarcassem melhor a
separação entre a sociedade civil e o Estado, visando à ampliação e ao
aprofundamento do controle do Estado pela sociedade.

A década de 1980 foi marcada pela redefinição da noção de cidadania,


empreendida pelos movimentos sociais e por outros setores, na busca
por uma sociedade mais igualitária, baseada no reconhecimento dos
membros como sujeitos portadores de direitos. Para Evelina Dagnino
(2004), a radicalização da noção de cidadania representa a reavaliação do
conceito 10, que tem como dimensão positiva sua relação com uma
concepção de justiça redistributiva. A cidadania radical é entendida como
uma identidade política, e não apenas um estatuto legal que se refere a um
ser passivo de direitos, que goza da proteção da lei (Mouffe,1992). Esta

421
A Busca por Direitos: Possibilidades e Limites da
Participação Social na Democratização do Estado

concepção de cidadania rejeita a idéia do universalismo do público em


oposição ao domínio privado. Sendo assim, não é mais possível se dizer
“aqui terminam os meus deveres como cidadão e começa minha liberdade
como indivíduo!”, já que essas identidades existem em permanente tensão.
Portanto, a criação da identidade coletiva do cidadão democrata depende
das formas pelas quais cada sociedade vivencia esta experiência. Para
entender a cidadania radical é preciso responder à seguinte pergunta: o
que é ser cidadão na minha sociedade?

A década de 1990 se iniciou regida pela adoção de ajustes estruturais


provocados por políticas neoliberais, que implicaram em dificuldades
significativas no ritmo da democratização, cujos efeitos foram o agravamento
das desigualdades sociais e econômicas, bem como as influências sobre a
capacidade de mobilização e organização política da sociedade civil.

A dimensão positiva deste contexto foi a transformação nas relações


entre Estado e sociedade civil que, segundo Evelina Dagnino (2002),
deixaram de ser de antagonismo, confronto e oposição declarada, para
assumir uma postura de negociação, de atuação conjunta.

Outras duas conseqüências desse processo seriam a “revitalização”


da sociedade civil, ou seja, o aumento do associativismo, a emergência de
movimentos sociais organizados, a reorganização partidária, e a
democratização do Estado, desenhando o seguinte cenário político:
· a redução do papel do Estado como fonte de direitos
e de participação;
· o deslocamento da idéia de nação como fonte da
identidade coletiva;
· o surgimento de organismos políticos e burocráticos
supranacionais;
· o cidadão se torna cada vez mais um “consumidor”,
afastado de preocupações políticas e dos problemas
coletivos;
· o surgimento de organizações não-governamentais11
que estão voltadas para o interesse público;
· a formulação e execução de políticas publicas
alternativas e democráticas, que tentam romper os
vícios do paternalismo e clientelismo.

422
Ana Paula Mendes de Miranda

A isso se soma um progressivo enfraquecimento e transformação


das formas tradicionais de organização de interesses, de representação
política e solidariedades vigentes durante o século XX. Na Argentina, no
Chile, na Colômbia e no Peru este processo tem sido observado pela
crise dos sindicatos, pelo enfraquecimento dos partidos políticos, pela
transformação das formas de filantropia e a mudança dos projetos políticos
que enfatizavam a classe operária como ator principal da construção da
cidadania. Em contrapartida, observa-se o surgimento de novas formas
de associação e organização da sociedade civil como reação a novas formas
de dominação, tais como, a superexploração dos recursos naturais e
destruição do meio ambiente12, os movimentos contra o autoritarismo, o
racismo e a discriminação de gênero13, que buscam a constituição de uma
política de direitos humanos14 (Alvarez et al, 2000; Dagnino, 2002).

No México, observa-se uma agenda diferenciada de demandas da


sociedade civil em busca da governabilidade democrática, que foi
fortemente determinada por outros fatores, em especial, a centralidade
das disputas pela democracia eleitoral, a resistência do regime autoritário
às iniciativas civis de reforma nas áreas trabalhista, agrária, social e direitos
indígenas, com baixa participação da Igreja Católica no debate, e a
implantação de uma política econômica neoliberal (Olvera, 2002).

De modo geral, observa-se que o associativismo predominante dos


anos 90 não deriva de mobilização de massas, tradicionalmente composta
a partir de núcleos de militantes que se dedicam a uma causa, mas sim de
processos de mobilizações pontuais, realizados a partir do atendimento a
um apelo feito por alguma entidade, fundamentado em objetivos
humanitários.

Assim, o novo associativismo, também chamado de participação


cidadã, é mais propositivo e menos reivindicativo, sendo baseado numa
concepção ampla de cidadania, que não se restringe ao direito ao voto,
mas reconhece o direito à vida. Baseia-se, portanto, numa concepção de
cultura cidadã, fundada em valores éticos universais e impessoais, em uma
concepção democrática radical, e em ações e regras mínimas
compartilhadas que geram sentido de pertencimento, facilitam a
convivência urbana e asseguram o respeito à diversidade. Envolve também
o reconhecimento de direitos e os deveres do cidadão, onde os deveres
se articulam à idéia de civilidade, diferentemente da concepção neoliberal
de cidadania que exclui a valorização dos direitos.

423
A Busca por Direitos: Possibilidades e Limites da
Participação Social na Democratização do Estado

CIDADÃO X ESTADO: OS DESAFIOS DA CONSTRUÇÃO DE


ESPAÇOS PÚBLICOS

A ênfase atual na radicalização da cidadania ressalta a necessidade


de se pensar as condições básicas da existência da sociedade civil, ou seja,
a vigência de conjunto de direitos, e suas conseqüências no que se refere
à construção de espaços públicos.

O conceito de espaço público tem sido utilizado com múltiplos


sentidos, sendo a base da teoria crítica15. Em função do escopo deste
trabalho, não será possível traçar a trajetória do conceito, cabe apenas
ressaltar sua relação com o processo de democratização.

Para Habermas (1984), a esfera pública é um espaço de mediação


legal entre os poderes públicos, a sociedade política, a sociedade civil e a
mídia, que gera um espaço de discussão livre e racional do exercício da
autoridade política. Esta visão do espaço público, separado da esfera
privada e do Estado, tem sido fortemente criticada por reduzir as relações
sociais a uma mera troca de argumentos racionais.

Daniel Cefaï (2002) questiona o caráter estático do conceito de


espaço público, que não daria conta da dramaticidade dos conflitos. Sugere
a retomada do conceito de arena pública pelo duplo sentido da palavra,
ou seja, a arena significa um lugar de combate e um lugar de performances.
O autor enfatiza a necessidade de análise das práticas para que o significado
de “público” deixe de ser pensado como um organismo social ou político,
e passe a ser concebido como uma forma estranha de vida coletiva que
emerge em torno de um problema ao mesmo tempo em que o constitui.

Assim, os atores individuais, organizacionais e institucionais se


engajam em um esforço coletivo de definição e de controle da situação
percebida como problemática. Eles exprimem, discutem e julgam opiniões;
identificam os problemas; entram nas disputas; configuram os jogos de
conflito, resolvem crises e realizam compromissos. Os atores se apropriam
da coisa pública de modo que ela deixe de ser monopólio do Estado, sem
que se torne um bem particular.

Tanto os conceitos de espaço público quanto o de arena pública


apresentam limitações para pensar a sociedade brasileira, tendo em vista
que ambos tomam como referência sociedades em que a cidadania e o

424
Ana Paula Mendes de Miranda

respeito aos direitos do cidadão foram contemplados não apenas no plano


das normas, leis e regras, mas também está presente em diferentes
dimensões da vida social.

Tal cenário não pode ser observado no Brasil, já que há uma


desarticulação entre a esfera pública16 e o espaço público17 (Cardoso de
Oliveira, 2002), revelada pela ausência efetiva de espaços democráticos,
muito embora exista hoje uma clara hegemonia da idéia/princípio da
igualdade como um valor no plano dos discursos. Em outras palavras, a
desarticulação entre a esfera e o espaço públicos opõe o discurso jurídico-
político em favor da igualdade às interações cotidianas, que priorizam
uma perspectiva hierárquica, caracterizando o que Roberto Kant de Lima
chama de o “paradoxo legal brasileiro” (1995).

Como conseqüência desse processo, pode-se observar a


prevalência, no Brasil, de uma discriminação cívica, entendida como um
padrão abrangente de desrespeito a direitos e de agressão à cidadania
(Cardoso de Oliveira, 2004).

Uma outra conseqüência é a dificuldade de se pensar o domínio


público como o espaço universal “de interação social de indivíduos
diferentes mas iguais” (Kant de Lima, 2001:109). Ao contrário, o domínio
público é entendido como aquele que é controlado pelo Estado, de acordo
com “suas” regras, e que pode ser apropriado particularizadamente. A
sociedade é concebida como uma estrutura de segmentos desiguais e
complementares, representando uma idéia de igualdade substantiva,
associada à semelhança e não à diferença entre as pessoas. O cidadão é
quase um intruso, que normalmente não conhece o “seu” lugar, que é
longe do Estado. Assim, o cidadão está sempre em oposição ao Estado e
vice-versa.

Neste modelo, a idéia de conflito aparece como uma desarrumação


da ordem, que põe em risco a estrutura social, em conseqüência, a
resolução de conflitos não representa a solução das desigualdades que
incomodam, mas a sua manutenção de forma ordenada.

O conflito como um obstáculo é o oposto à idéia vigente nos


movimentos sociais contemporâneos, segundo o qual o conflito é o
pressuposto da ordem social e sua resolução representa a construção de
uma nova ordem, que, ao eliminar as desigualdades, mantém as diferenças.

425
A Busca por Direitos: Possibilidades e Limites da
Participação Social na Democratização do Estado

“A diferença, aqui, é associada à idéia de igualdade formal18, ao direito de


ser diferente” (Kant de Lima, 2001:117). Nesta ótica, os direitos não
correspondem às garantias inscritas nas leis e nas instituições, e sim ao
modo pelo quais as relações sociais se estruturam19.

Constitui-se, então, num grande desafio pensar os espaços públicos,


nos termos propostos por Evelina Dagnino, ou seja, como instâncias que
“visam promover o debate amplo no interior da sociedade civil sobre
temas/interesses até então excluídos de uma agenda pública” (2002: 10),
e que podem se constituir em espaços de ampliação e democratização da
gestão estatal, na medida em que se observa a implantação de conselhos,
fóruns, câmaras setoriais, orçamentos participativos, etc. Estas
experiências poderiam constituir espaços de construção de uma dimensão
pública na sociedade brasileira, distinta da regulação estrita do Estado ou
do mercado, que poderiam fortalecer a consolidação de uma cultura de
direitos, por meio do exercício efetivo da democracia.

Estes “encontros” entre a sociedade civil e o governo podem


contribuir para a democratização dos espaços públicos se funcionarem
“como esforços de controle social do Estado, visando à maior transparência
e publicização das políticas públicas20, assim como à participação efetiva na
sua formulação de setores da sociedade civil desprovidos de outras formas
de acesso a espaços de decisão” (Dagnino, 2002: 11).

O desafio não é pequeno, tendo em vista que, no Brasil, há diversos


obstáculos a serem superados, dos quais destaco:
· a superação da perspectiva de que direitos sejam
apenas garantias inscritas na lei e nas instituições;
· a reestruturação do Estado brasileiro, com a
transformação de sua tradição de patrimonialismo e
clientelismo;
· a revisão do papel do cidadão, que cada vez mais se
torna um mero consumidor, afastado de preocupações
políticas e dos problemas coletivos;
· a inadequação dos órgãos encarregados da segurança
pública e da justiça para o cumprimento de sua função,
numa perspectiva democrática;

426
Ana Paula Mendes de Miranda

· o fim da divisão em classes no que se refere à garantia


dos direitos civis: os de primeira classe (doutores); os
de segunda classe (os cidadãos simples) – que estão
sujeitos aos rigores e aos benefícios da lei; e os de
terceira classe (os “elementos”), ou ignoram seus
direitos ou os têm sistematicamente desrespeitados
por outros cidadãos, pelos governos e pela polícia.

Há que se considerar que se não há a garantia da igualdade jurídica


dos cidadãos, não há como se pensar em direitos civis no Brasil enquanto
vigorar a idéia de que uns são mais iguais que outros. Do mesmo modo,
não será possível se pensar na construção de um espaço público
democrático, que seja fundado na representação plural dos interesses.

Nesse sentido, acredito que o desafio pode ser pesando sob


três perspectivas.
1. As demandas por direitos ocorrem num cenário
complexo, onde as diferentes tradições políticas têm
gerado modos peculiares de combinar elementos
participativos e autoritários. Assim, pode ser possível
compreender como as políticas populistas foram
capazes de impulsionar grandes mobilizações
populares, abrir espaço para as classes trabalhadoras
e implantar alguns direitos sociais, ao mesmo tempo
em que proporcionava a subordinação da classe
trabalhadora, de modo clientelista, às elites políticas.
2. Como o retorno à democracia, e seus efeitos,
podem conviver com um universo de violências
extremas (Peralva, 2000)? A esta questão não se pode
apresentar respostas simplistas (pobreza,
desorganização familiar, etc.). Somente será possível
avançar neste debate se reconhecermos a confluência
de dois problemas: a formação de uma confitualidade
urbana, marcada por uma busca dos sujeitos por um
lugar no mundo, e a inabilidade das instituições diante
das exigências da democracia.
3. Se a mobilização da sociedade civil organizada pode
significar a conquista de direitos, e não de privilégios,

427
A Busca por Direitos: Possibilidades e Limites da
Participação Social na Democratização do Estado

representando a ressignificação das relações público-


privado, que levarão à superação do padrão
oligárquico, autoritário e patrimonialista, que têm
marcado a sociedade brasileira.

FAZENDO A DEMOCRACIA COM AS PRÓPRIAS MÃOS?

A utilização de conselhos como instrumento de ampliação da


participação social não é um fenômeno novo e está associada a diferentes
discursos. Nos chamados grupos políticos “de esquerda”, os conselhos
são apresentados como ferramentas que possibilitam a transformação social,
voltada para a democratização das relações de poder. Como exemplo,
podemos relembrar as comissões internas de fábricas, defendidas por
Antonio Gramsci ([1919]1981) como a base da auto-organização operária.

Já os discursos políticos ditos “liberais” apresentam os conselhos


como mecanismos de colaboração entre os diferentes setores da sociedade,
já que estimulariam o ativismo associativo, como um espaço societário de
deliberação e decisão. A democracia estaria diretamente relacionada à
participação política e ao desenvolvimento de uma cultura cívica 21,
proporcionando a neutralização do privatismo e ampliação da visibilidade
da esfera pública, favorecendo a transparência e a inteligibilidade. Deste
modo, uma sociedade civil formada por associações que respeitem esses
princípios funcionaria como um “amortecedor” para as pressões e
cooptações de setores não organizados da sociedade, cujos resultados
seriam a redução das desigualdades civis e da vulnerabilidade dos grupos
sociais excluídos.

Para Hannah Arendt (1999), o sistema de conselhos seria um


resultado espontâneo de todas as revoluções e pós-guerras do mundo
ocidental, fruto da própria experiência da ação política. Já para Habermas
(1997), os conselhos exemplificariam a esfera pública como uma rede de
comunicação de conteúdos, tomadas de posições e opiniões. Para tanto,
seria necessário o desenvolvimento de uma cultura cívica, que fosse
representativa dos princípios de reciprocidade da sociedade e que
estimulasse a construção de dispositivos de participação social. Ressalta-
se que essas visões são limitadas, pois possuem implícita a idéia de que o
indivíduo somente ligado à vida associativa seria capaz de tomar decisões
e assumir responsabilidades.

428
Ana Paula Mendes de Miranda

Por sua vez, a abordagem das Ciências Sociais acerca dos conselhos,
a partir dos anos 90, tem enfatizado a noção de governança democrática
como a possibilidade de interação entre instituições governamentais,
agentes do mercado e atores sociais visando a ampliação da participação
social nos processos decisórios das políticas públicas22. A preocupação
de cientistas sociais está não apenas na capacidade de governar, mas na
possibilidade de inclusão e participação social como elementos básicos
do exercício da cidadania.

Assim, os conselhos são considerados como uma possível forma


de governo horizontal, ou seja, de um sistema onde o poder não vem de
cima ou de baixo, onde as relações de poder são resultado de interações
e controles múltiplos e recíprocos.

Considerando que o fenômeno associativo é multidimensional, é


necessário privilegiar sua dimensão microssocial para observar como são
construídas as formas de intervenção capazes de desenvolver dimensões
cívicas e democráticas, colocando em cheque posturas clientelistas ou
corporativas.

Os dados que embasam esta reflexão são provenientes do trabalho


de (re) organização dos Conselhos Comunitários de Segurança (CCS)23,
criados formalmente pelo artigo 182, § 2o, da Constituição Estadual do
Rio de Janeiro, de 05 de outubro de 1989. Os CCS são canais de
participação popular de caráter consultivo, organizados por uma diretoria
eleita, que discute e cobra soluções para os problemas relativos à segurança
da sua área. Aos policiais cabe o papel de prestar contas e responder às
demandas. Caracteriza-se por ser um encontro com relações formalizadas,
ou seja, é regulado por uma legislação específica, com objetivos, funções
e procedimentos razoavelmente definidos, além de possuir um caráter
permanente ou estável.

A sua implantação se deu a partir de 1999 por meio de uma


resolução da Secretaria de Estado de Segurança Pública, tendo sido
reestruturado em 200524, como parte de uma política de aproximação
entre sociedade civil e Estado para a melhoria da segurança pública 25.
Além da democracia participativa, o programa abrange uma perspectiva
da abordagem gerencial, que se baseia, teoricamente, na premissa da
descentralização, no controle de resultados e não de procedimentos, na
competição administrada e no controle social direto.

429
A Busca por Direitos: Possibilidades e Limites da
Participação Social na Democratização do Estado

Do ponto de vista teórico, o discurso da participação popular no


desenho de políticas públicas tem servido para questionar o padrão
centralizador, autoritário e excludente que historicamente tem marcado as
relações entre as agências estatais e seus beneficiários, buscando articular a
“democratização do processo com a eficácia dos resultados” (Dagnino,
2002: 47). Assim, a sociedade poderia exercer um papel mais efetivo na
fiscalização da qualidade dos serviços públicos e poderia imprimir uma lógica
mais democrática na definição de prioridades de alocação de recursos.

Para Boaventura de Sousa Santos (2006), a luta pelo controle


democrático do Estado é hoje uma das mais decisivas na crítica aos
modelos vigentes de regulação social. Ele denomina “novíssimo movimento
social” o processo de reinvenção democrática do Estado, que deve
estimular novas formas de cidadania, coletiva e não apenas individual;
incentivar a autonomia e combater a dependência burocrática; personalizar
e localizar as competições interpessoais e coletivas, ao invés de sujeitá-
las. Esta abordagem implica em que o Estado deve considerar legítimas
não só as reivindicações que visam ao atendimento às necessidades básicas,
mas também aquelas que visam à transformação social emancipatória,
que permita alterar as relações de poder desigual em relações de
autoridade partilhada (Santos, 2005).

No Brasil, desde 1996, a legislação em vigor, preconiza que o


recebimento de recursos pelos municípios para as áreas sociais está
condicionado à existência de conselhos gestores (Gohn, 2000). No que
diz respeito à segurança, o condicionamento de liberação de verbas
somente começou em 2003, com a criação do Sistema único de Segurança
Pública (Susp), que cobra a implantação de Conselhos Comunitários de
Segurança. Tal exigência pode comprometer a perspectiva de reinvenção
democrática, na medida em que a obrigatoriedade seja reinterpretada
como uma formalidade burocrática.

Este enfoque delimita os Conselhos Comunitários de Segurança


como uma variação de conselhos gestores de políticas públicas, peças
essenciais no processo de democratização, universalização e
descentralização das políticas sociais. Geralmente, são ligados às políticas
públicas estruturadas em sistemas nacionais. Embora, nem sempre tenham
caráter obrigatório, funcionam como fóruns públicos de captação de
demandas e negociação de interesses específicos dos diversos grupos e

430
Ana Paula Mendes de Miranda

como forma de ampliar a participação dos segmentos com menos acesso


ao aparelho de Estado.

A dimensão comunitária representa que o objetivo dos Conselhos


é “servir de espaços de apresentação de demandas da comunidade junto
às elites políticas locais, numa relação que renova a tradicional relação
clientelista entre Estado e sociedade” (Tatagiba, 2002: 53-54). Assim, a
principal característica do conselho comunitário seria o poder de
mobilização e pressão sem, no entanto, ter um caráter deliberativo.

Os conselhos gestores de políticas públicas devem funcionar como


espaços públicos com composição plural e paritária, cujos instrumentos
privilegiados de resolução de conflitos são o diálogo e a publicidade, que
os diferencia de instâncias políticas onde imperam as trocas de favores e
a cooptação pelo poder público.

Em muitos casos, os conselhos gestores funcionam como instâncias


deliberativas com competência legal para formular políticas e fiscalizar a
sua implementação. No Brasil, quando um conselho tem funções
deliberativas com respeito às políticas públicas, suas decisões devem ter
forma de resolução e devem ser publicadas em diário oficial para ter
validade.

Salienta-se que a discussão sobre a função deliberativa dos conselhos


deve levar em consideração alguns fatos que complexificam esta função, a
saber: o baixíssimo grau de participação social e representatividade dos
movimentos sociais; as concepções oportunistas, que encaram os
conselhos como instrumentos para realização de objetivos particulares
(lícitos ou ilícitos); a (não) capacitação dos conselheiros; a publicidade e
fiscalização das ações dos conselhos.

De qualquer modo, as reuniões de um conselho devem ser abertas


à comunidade, mesmo que não tenha direito a voto. É necessário ainda
que cada conselho elabore seu regimento interno que, depois de aprovado,
deve ser submetido ao Poder Executivo para aprovação26.

No caso específico dos Conselhos Comunitários de Segurança há


dois obstáculos que merecem ser ressaltados antes de discutir os limites
e alcances desta experiência. O primeiro corresponde ao fato de que
estes conselhos têm sido criados, no Brasil, por força de instrumentos

431
A Busca por Direitos: Possibilidades e Limites da
Participação Social na Democratização do Estado

legais relacionados à distribuição de recursos públicos, e não por uma


demanda de movimentos sociais27. E o segundo tem a ver com a dimensão
de que o que é público não é entendido como algo da coletividade, mas
algo que não tem dono, algo que é apropriado particularizadamente e
controlado pelo Estado (Kant de Lima 1997; Miranda 2000 e 2005).

Por outro lado, a implantação de Conselhos Comunitários de


Segurança é uma experiência que deve ser desenvolvida e analisada, porque
ele pode constituir um espaço público de debate entre interesses
diferenciados, levando à construção de consensos e à formulação de
agendas que venham a se tornar públicas e objeto de consideração por
parte do Estado. Embora o vínculo com o Estado permaneça, observa-se
uma dimensão que enfatiza a organização e o fortalecimento dos próprios
atores da sociedade civil e de sua articulação, e a democratização das
instituições de segurança, tradicionalmente mais refratárias à interação
com a população.

PORTAS ABERTAS PARA A COMUNIDADE: ENCONTROS E


DESENCONTROS DOS CONSELHOS DE SEGURANÇA PÚBLICA

Ao pensar o Conselho Comunitário de Segurança como um mecanismo


de participação da sociedade civil, pretendeu-se discutir se os princípios
inovadores dos conselhos gestores podem se tornar práticas políticas
inovadoras. Embora haja poucos estudos voltados ao tema28 , é possível se
delinear uma análise comparativa sobre os limites e as possibilidades deste
espaço público. Esta avaliação não permite verificar os resultados desta ação,
apenas possibilita a discussão sobre a validade do CCS como um fórum de
debates entre atores diferentes, que se vêem como desiguais.

A falta de pesquisas empíricas sobre os CCS não permite verificar


qual tem sido sua capacidade de redução das desigualdades políticas, ou
seja, se de fato tem provocado um avanço qualitativo para a democracia
(Kerstenetzky, 2003). Por outro lado, as pesquisas sobre a participação
da sociedade civil brasileira em outros espaços públicos têm demonstrado
que o processo de construção democrática não é linear, e sim contraditório,
setorial e fragmentado (Dagnino, 2002).

Reconhecer essas limitações é uma das condições necessárias para


tornar o conselho eficaz. É preciso também compreender que a sua

432
Ana Paula Mendes de Miranda

composição deve ser heterogênea, deve estimular o respeito à diferença


e à capacidade de construir adesões em torno de projetos específicos.

Quadro: Limites e possibilidades dos Conselhos como espaço público


democrático

Limites Possibilidades
Dificuldade de reverter a centralidade A existência do Conselho já é uma
e o protagonismo do Estado na importante vitória na luta pela
definição de políticas e prioridades democratização dos processos de
sociais. decisão. Desempenha uma função
pedagógica, a reinvenção de padrões de
sociabilidade democrática.
A obrigatoriedade da paridade: a A busca pelo equilíbrio deve ser
igualdade numérica entre os construída no cotidiano das práticas e
representantes da sociedade e do das articulações dos conselhos, já que a
governo não é suficiente para garantir diversidade possibilita várias interações
o equilíbrio das decisões e deliberações.
Há resistência das organizações sociais A criação de redes de solidariedade e
em reconhecer as demais como mobilização social em torno de temas
representações legítimas. específicos deve intensificar os canais de
comunicação entre as organizações.
Existência de vínculo frágil entre os Necessidade de publicidade das ações
representantes governamentais e os por parte do Estado, bem como da
órgãos de origem. Geralmente incorporação do princípio da
defendem suas opiniões pessoais, e não descentralização.
as posições discutidas com as suas
instituições.
Falta de capacidade dos conselheiros, É preciso qualificar os movimentos e as
governamentais e não-governamentais, entidades, combinando conteúdos
para uma atuação mais ativa no diálogo técnicos com políticos, visando o
deliberativo. enfrentamento da dificuldade cultural de
assumir uma negociação com o Estado,
que também precisa se capacitar e rever
suas práticas.
Dificuldade de explicitação de A presença de câmaras técnicas cumpre
interesses, do reconhecimento da a função de estudar/aprofundar temas
existência e legitimidade dos conflitos que vão legitimar as intervenções e
e das trocas de idéias como instrumento posições assumidas no Conselho.
de tomada de decisão.

433
A Busca por Direitos: Possibilidades e Limites da
Participação Social na Democratização do Estado

As ações estão mais voltadas para sua Formular políticas públicas significa
própria estruturação do que para a estabelecer as diretrizes norteadoras e
definição de diretrizes e a discussão de definir as prioridades a partir das
políticas. necessidades da população.
Há grande recusa do Estado em A autonomia dos conselhos está
partilhar as decisões. vinculada à sua capacidade de
mobilização.
Baixa capacidade de articulação, É preciso criar uma correlação de forças
pressão e mobilização dos setores favorável no âmbito da sociedade civil.
organizados da sociedade civil.
Tendência de “burocratização” e de se A pauta deve ser construída
transformar em instâncias de projeção coletivamente. As atas de reunião não
de propostas particulares. são meros procedimentos burocráticos,
mas um instrumento importante no
acompanhamento das decisões e de
reconhecimento dos conselheiros a
respeito de suas ações.
Dificuldade de alcançar a capacidade O sucesso do conselho pode se dar no
deliberativa dos conselhos. controle social do Estado ou na eficiente
vocalização das demandas aos órgãos
públicos.

O quadro acima apresenta uma série de situações comuns ao


funcionamento de um Conselho Comunitário de Segurança, que tanto
podem ser interpretadas como um sinal de insucesso, quanto como
características do processo de interação democrática entre agentes do
Estado e representantes da sociedade civil, numa situação de correlação
de forças desigual.

Reconhecer este fato é fundamental apara compreender que uma


das maiores dificuldades das experiências participativas é construir
mecanismos capazes de minorar os efeitos das desigualdades. Nos CCS a
intolerância à diferença é uma questão freqüente, seja como uma intolerância
observada nos diferentes grupos da sociedade civil, seja nas representações
recíprocas das relações entre a sociedade civil e as organizações policiais,
ou mesmo das relações entre as diferentes organizações estatais.

No primeiro caso, observa-se que, em áreas cuja presença


predominante é de representantes das classes média e/ou alta, são comuns

434
Ana Paula Mendes de Miranda

os comportamentos e discursos que visam ao isolamento e à exclusão dos


grupos mais pobres, com uma clara estigmatização dos moradores de favela.
É comum a demanda de que o policiamento seja direcionado a locais específicos
para atender a interesses particulares (“meu prédio”, “meu negócio”, “minha
casa”, “minha rua”). É comum também o discurso: “eu pago os meus impostos,
portanto o Estado tem a obrigação...”. Essa postura revela uma representação
da cidadania não como processo de direitos e deveres, mas como uma via de
mão única, na qual o “cidadão” ao pagar os impostos teria todos os direitos
ilimitados, legitimando assim pedidos ilegais 29. Nas áreas onde há o
predomínio de moradores de favelas o problema é outro: teme-se o abuso
de autoridade, o “pé na porta”, discute-se também o fato de que o morador
que participa de um CCS pode ser considerado um informante da polícia,
um X-9, o que põe a sua vida em risco. Neste caso, há uma enorme
dificuldade em se perceber este espaço como um local de demandas por
serviços ou de reivindicações de direitos.

No segundo caso, observa-se por parte dos representantes da


sociedade civil (independente da classe social) um discurso ambíguo: ao mesmo
tempo em que se reclama que a polícia é violenta e corrupta, é solicitado que
os policiais ajam “com pulso”, que resolvam “rapidamente” os problemas,
pois este seria o único serviço disponível para a solução dos crimes e da
delinqüência. Por sua vez, a ambigüidade também se faz presente no discurso
policial. Há um grupo de policiais que realiza as reuniões, mas desqualifica o
Conselho como um espaço para resolução de problemas, considerando-o
como mera fonte de contatos, um evento necessário para ampliar o seu
conjunto de informantes, bem como para “conhecer” pessoas que poderão
ajudar numa futura troca de favores. Um outro grupo simplesmente não
concorda com a idéia e não realiza os encontros, ou só aceita fazer reuniões
com grupos de representantes de prestígio político e/ou financeiro, explicitando
a idéia de que esses espaços seriam uma estratégia de relações públicas para
a polícia. Uma pequena minoria compreende plenamente o significado do
Conselho, mas se vê amarrada sem saber ao certo como implementá-lo,
face aos diversos obstáculos.

E, no terceiro caso, há a explicitação das rivalidades entre as forças


policiais estaduais (Polícia Militar e Polícia Civil), com o “jogo de empurra”
das atribuições. Quando por alguma razão (pessoal ou institucional), não
há este problema, é comum que as hostilidades se voltem para as guardas
municipais, onde existem, ou ainda para o Judiciário, sendo comum também

435
A Busca por Direitos: Possibilidades e Limites da
Participação Social na Democratização do Estado

que outros órgãos públicos se tornem o bode expiatório na disputa pela


culpa de não resolver os problemas. Salienta-se que não se discute as
responsabilidades das instituições, o que seria absolutamente legítimo num
regime democrático, mas a culpa, ou seja, a intencionalidade da não atuação
dos funcionários. Por isso, é muito comum o recurso aos argumentos da
falência ou falta de recursos materiais do Estado, que ameniza a omissão
dos funcionários.
Reconhecer que as relações que se estabelecem entre os diferentes
grupos participantes dos conselhos são sempre tensas, permeadas por
conflitos, que crescem ou reduzem na medida em que as decisões são
compartilhadas entre as partes envolvidas, é fundamental para a construção
da democracia.
Esta constatação não é uma obviedade porque é comum as
representações que concebem a sociedade civil como um “pólo de virtude”
e os agentes do Estado como “encarnação do mal”. Esquece-se que ambos
podem oferecer resistências ao processo de democratização.
Os agentes do Estado podem manifestar concepções políticas
resistentes à democratização, pois podem defender posições tecno-
burocráticas; podem temer a instabilidade dos projetos e a falta de recursos;
podem agir sem transparência, com lentidão, ineficiência e “burocratização”.
Já os representantes da sociedade civil podem ter dificuldade de
conviver com uma multiplicidade de atores e de reconhecê-los como
interlocutores legítimos; podem apresentar práticas autoritárias e
conservadoras; podem não ter qualificação (técnica e política); podem
reproduzir o acesso privilegiado aos recursos do Estado; podem
prejudicar a rotatividade das representações; podem prejudicar o trabalho
de mobilização da população; podem não ser representativos.
A constituição do CCS como um espaço público pressupõe que
estas contradições sejam confrontadas, para que a partilha efetiva do poder
represente a construção de uma cultura mais democrática.
É preciso entender, ainda, que os conflitos a serem enfrentados na
área de segurança são de diversas ordens e que a explicitação dos mesmos
é necessária para que não prevaleçam soluções simplistas e genéricas.
Em toda e qualquer sociedade há coisas proibidas, portanto sempre
haverá indivíduos que romperão os padrões estabelecidos. É preciso que a

436
Ana Paula Mendes de Miranda

ação do Estado não esteja voltada apenas para este fato, mas sim que busque
administrar e reduzir o impacto das transgressões na vida social, que pode:
· levar à autodestruição daqueles que as cometem;
· gerar violência física, seja quem for o agente e o alvo;
· afetar a ordem social e política.

É certo que os Conselhos Comunitários de Segurança não


resolverão todos estes problemas. Então, será possível pensá-los como
um espaço que pode ajudar a reduzir a vulnerabilidade dos grupos que
dele participam? Para isso é fundamental aumentar a sua capilaridade social,
sem a qual os conselhos são levados ao isolamento e à debilidade.

A composição plural e heterogênea, com representação da


sociedade civil e do governo em diferentes formatos, pode transformar
os conselhos em instâncias de negociação de conflitos entre diferentes
grupos e interesses, ou seja, como um campo de disputas políticas, de
conceitos e processos, de significados e resultantes políticos. Os conselhos
podem funcionar como canais importantes de participação coletiva, se
possibilitarem a criação de uma cultura política de inclusão, de relações
políticas entre agentes do Estado e cidadãos, que introduzem lógicas
distintas de racionalidade coletiva e de garantia de direitos na formulação
e gestão das políticas públicas.

Muitas dessas limitações dos CCS estão relacionadas ao contexto


adverso em que diversos conselhos foram implantados no Brasil - de
esvaziamento das responsabilidades públicas do Estado, de desqualificação
das instâncias de representação coletivas, de fragmentação do espaço
público e de despolitização da política - processos que fragilizam a
capacidade de a sociedade civil exercer pressão direta sobre os rumos da
ação estatal. Outras dificuldades decorrem da própria lógica de
estruturação das políticas públicas na sociedade e da natureza da
intervenção estatal nesse campo.

A questão da fragmentação das políticas sociais tem sido um tema


recorrente, tanto nas análises dos estudiosos quanto na prática dos seus
operadores. As políticas sociais obedecem à lógica da setorização, que
recorta o social em partes estanques sem comunicação e articulação, torna
os problemas sociais autônomos em relação às causas estruturais que os

437
A Busca por Direitos: Possibilidades e Limites da
Participação Social na Democratização do Estado

produzem, segmentando o atendimento das necessidades sociais. Em


conseqüência, traz sérias dificuldades para a ação pública dirigida à
implementação de políticas redistributivas que tenham impacto na qualidade
de vida e no alargamento dos direitos de cidadania.

Todos esses elementos colocam em xeque a efetividade das políticas


públicas e seus impactos na melhoria das condições de vida da população.
Trata-se, no entanto, de um tema complexo que envolve, de um lado, os
determinantes políticos relacionados à lógica de intervenção do Estado
em uma dada ordenação societária com base em conjunturas específicas
e, por outro lado, o aparato institucional organizado para enfrentá-las.

Como conclusão, o que importa é considerar que os conselhos


criados no âmbito das políticas de segurança acompanham a lógica que
rege essas instituições, voltadas para ações específicas no seu campo de
intervenção. E que, a maioria dos conselhos tem de enfrentar resistências
do aparato governamental, para se instalar e obter reconhecimento como
espaço institucional legítimo, e resistências da sociedade civil, que não
compreende o significado do que é ser cidadão.

Contudo, a multiplicação acelerada dos conselhos, a dinâmica própria


de funcionamento de cada um e o envolvimento com pautas específicas
contribuem, mesmo que involuntariamente, para manter a fragmentação
e a segmentação das políticas públicas, dificultando, em última instância, o
enfrentamento da lógica que estrutura a ação estatal e a capacidade de
produzir respostas satisfatórias. É nesse contexto que se impõe a tarefa
de discutir como os CCS podem funcionar como mecanismos de
articulação entre os agentes públicos e a sociedade no planejamento e
gestão das políticas, que assim, poderão ser chamadas de políticas públicas
de segurança.

Notas
1
Os movimentos sociais são ações sociais de caráter sócio-político e cultural, cujos processos
sociais criam identidades, revelando formas distintas de indivíduos e grupos se organizar e
expressar suas demandas. Assim, indivíduos que antes estavam dispersos e desorganizados ao se
integrarem a grupos para manifestar seus pleitos, passam a compartilhar um sentimento de
pertencimento social. Na prática, observam-se diferentes estratégias que variam da denúncia,
passando pela pressão direta (mobilizações, marchas, concentrações, etc.) até às pressões
indiretas (lobby, promoção de ações judiciais, etc.). Na atualidade, observa-se a composição de
redes sociais, que podem ser locais, regionais, nacionais e internacionais, sendo comum a
utilização dos meios de comunicação (Gohn, 2003).

438
Ana Paula Mendes de Miranda

2
O sujeito social é entendido como o processo de disputas no espaço político e social para
proteger a memória, a liberdade e a identidade cultural, que caracterizam os movimentos
sociais.
3
O conceito de classe social foi a base de múltiplas correntes e expressões da esquerda para
explicar os problemas e defender a organização da classe operária na América Latina. Olvera
(2006) destaca o modo pelo qual esta abordagem contribuiu para criar uma cultura política
autoritária, em função do que considera uma idéia leninista da centralidade dos partidos como
instâncias dirigentes das organizações sociais, bem como a transformação de algumas pautas
reivindicatórias em assuntos sem importância, em especial, a demanda por direitos civis de
grupos minoritários.
4
A sociedade civil pode ser representada por vários tipos de movimentos sociais, setores da
sociedade com níveis de organização mais frágeis (usuários de serviços públicos), partidos políticos,
universidades, ONG, igrejas, etc.
5
No Brasil, o final da década de 70 e parte dos anos 80 foram marcados por movimentos sociais
contra o regime militar, dos quais destaco os comitês de anistia, as entidades de familiares dos
desaparecidos na ditadura, as Comissões de Justiça e Paz, a Ordem dos Advogados do Brasil e a
Associação Brasileira de Imprensa. A partir de 1990, começaram a surgir outras formas de
organização popular institucionalizadas, como fóruns de luta pela moradia, pela reforma urbana.
Outros movimentos que surgiram foram os de mulheres, homossexuais, afro-brasileiros, jovens,
indígenas, funcionários públicos e ecologistas. Sobre a história dos movimentos sociais, ver Gohn
(2004).
6
A influência da Teologia da Libertação também foi observada no Peru, em El Salvador, na
Guatemala e na Nicarágua.
7
Ver, entre outros, Alvarez et al (2000) Avritzer (1996); Dagnino, (2002); Olvera (1999) e
(2003).
8
O neoliberalismo econômico propaga a idéia da mundialização das trocas, reforçando a
supremacia do mercado, o que deixa o Estado em segundo plano. A globalização dos mercados
de consumo traz várias conseqüências: o fim de barreiras alfandegárias beneficia as grandes
potencias econômicas; a desregulamentação da legislação impõe limites à exploração capitalista,
coloca os trabalhadores numa situação de vulnerabilidade frente ao capital; a privatização de
empresas estatais e a perda de mecanismos de controle da economia pelos estados nacionais; a
concentração crescente de capital nas grandes multinacionais e a redução do número de
trabalhadores regulamentados; a distribuição cada vez mais desigual e injusta das riquezas; o
avanço crescente da tecnologia representa um aumento do desemprego e uma redução dos
salários (Santana & Ramalho, 2003).
9
Evelina Dagnino (2002) tem demonstrado em suas pesquisas que a sociedade civil está formada
por uma diversidade de atores, o que inclui os conservadores, com formatos distintos (sindicatos,
associações, redes, etc.), e uma pluralidade de práticas e projetos políticos, com várias formas de
relação com o Estado. Um bom exemplo de pesquisa sobre grupos conservadores pode ser visto em
Crapanzano (1985), retratando as representações da minoria branca na África do Sul.
10
Um marco para análise do conceito de cidadania é Marshall (1967), cujo significado está
vinculado diretamente ao estabelecimento de direitos, em especial, aos direitos civis, que
representavam a sua base formal. Sua abordagem rompeu com a noção clássica de cidadania
política, que dava destaque ao voto como elemento fundamental da participação dos indivíduos
nos processos de poder. Posteriormente, Marshall foi criticado por Giddens (1982) por sua
abordagem evolutiva e homogeneizadora dos direitos. Tal crítica também foi feita por Evelina
Dagnino (2004), que ressalta como fato negativo a idéia de um processo civilizatório implícito ao

439
A Busca por Direitos: Possibilidades e Limites da
Participação Social na Democratização do Estado

conceito de cidadania. Para superar este problema, a autora defende a necessidade de que
sejam contextualizadas as noções de direitos, da relação público/privado, de representação e de
sociedade civil. Isso é necessário para enfatizar a dimensão histórica e cultural da cidadania,
que é definida por conflitos reais. Ver também Appadurai (1994).
11
Uma visão homogênea e amorfa do terceiro setor contribui para difundir a idéia dicotômica de
que este se constitui num pólo de virtude, em oposição ao Estado, que é um inimigo a ser
enfrentado. Para uma discussão sobre o papel do terceiro setor, ver Santos (2006).
12
Com relação ao meio ambiente, observa-se a maior diferença de abordagens entre os países.
13
No caso dos feminismos, observa-se conflitos num campo plural que buscava transformar a
situação das mulheres na sociedade, relegadas ao espaço familiar e excluídas da vida pública,
que tem sido marcada por um dilema, manter sua autonomia ou articular-se com o Estado. Ver
Bonacchi & Groppi (1995).
14
Em geral, as primeiras organizações foram formadas por familiares e amigos de vítimas, como
algumas tinham vinculação com partidos políticos de esquerda e foram acusadas de subversão,
porque se opunham ao regime militar.
15
A teoria crítica representa um conjunto de teorias reflexivas que visam a emancipação e o
esclarecimento para enfrentar a ciência positivista. A teoria crítica estava preocupada com a
reforma social e política. Ver Lallement (2004).
16
A esfera pública é tomada como “o universo discursivo onde normas, projetos e concepções de
mundo são publicizadas e estão sujeitas ao debate público” à la Habermas (Cardoso de Oliveira,
2002: 12).
17
O espaço público pode ser entendido como “o campo de relações situadas fora do contexto
doméstico ou da intimidade onde as interações sociais efetivamente têm lugar” (Cardoso de
Oliveira, 2002, p. 12), ou ainda como “o espaço físico de propriedade do Estado a ser utilizado
pela coletividade” (Kant de Lima, 2001:106).
18
Sobre o conceito jurídico de igualdade ver também Amorim et al (2005).
19
No caso brasileiro, as relações sociais expressam uma grande confusão entre direitos e privilégios.
Ver Kant de Lima (2004).
20
A análise de políticas públicas deve buscar explicar quando e porque elas se modificam, bem
como compreender como uma decisão política modifica o ambiente. Ver Santos (1994).
21
Alexis de Tocqueville e Robert Putnam, apud Kerstenetzky (2003).
22
Santos Junior, Ribeiro & Azevedo (2004); Silva (2005).
23
Assumi a direção do Instituto de Segurança Pública em 2004, quando começou este projeto,
que contou com a participação de policiais (tenente coronel da Polícia Militar Robson Silva;
tenente coronel da Polícia Militar Paulo Augusto de Souza Teixeira; major da Polícia Militar
Alexandre Campos), de cientistas sociais (Marcella Beraldo de Oliveira, Mestre em Antropologia;
Fábio Reis Motta, Mestre em Antropologia) e de bacharel em direito (Marcus Vinicius da Paixão
Veloso), além de estagiárias de direito, ciências sociais, história e comunicação social (Marianne
Ximenes Apoliano, Isabella Trindade Menezes, Juliana Lopes Latini, Marina Schneider, Marcelle
Rodrigues Ribas, Marcella de Mello Morais de Souza, Bianca Soares Carl).
24
A reestruturação foi feita a partir de um diagnóstico dos problemas dos Conselhos Comunitários
de Segurança e da realização de dois Fóruns, onde foram discutidos os seguintes pontos:
necessidade de mobilização das comunidades; divulgação ampla e rodízio das reuniões;
institucionalização dos Conselhos; maior participação de autoridades de órgãos municipais e
estaduais nas reuniões; intercâmbio e integração entre os Conselhos; organização de pautas e
estabelecimento de calendários fixos para as reuniões. Ver Resolução SSP nº 781, de 08 de agosto
de 2005 e Teixeira (2006).

440
Ana Paula Mendes de Miranda

25
No Rio de Janeiro também existe o “Café Comunitário”, que foi criado oficialmente em 19 de
maio de 2003, pela Resolução da Secretaria de Segurança Pública no. 629. Funciona como um
encontro menos formalizado entre a polícia e a sociedade, cuja organização cabe à polícia
militar, possuindo formatos mais flexíveis com objetivos, funções e procedimentos variáveis e
permeáveis às correlações de forças vigentes em cada caso, principalmente no que se refere aos
atores envolvidos. A informalidade do encontro dificulta a participação dos agentes do Estado,
que não sejam policiais (diferentes níveis do Executivo, o Legislativo e as agências estatais
específicas), que não se vêem “obrigados” a participar. Com relação à dificuldades de participação
da sociedade civil, geralmente seus representantes alegam não se sentir à vontade de entrar em
unidades das polícias.
26
Com relação aos integrantes dos conselhos, com exceção dos membros do Conselho Tutelar, a
função de conselheiro não deve ser remunerada por ser definida como atividade de “relevância
pública”. Este ponto é altamente polêmico entre os conselheiros, já que os mais pobres afirmam
não poder arcar com as despesas de locomoção e alimentação.
27
Por isso não pode ser chamado de conselho popular. É preciso distinguir também o conselho
comunitário do conselho de notáveis, que se caracteriza pela presença exclusiva de especialistas,
como é o caso do Conselho Nacional de Justiça.
28
Galdeano (2007); Hussein (2007); Sento Sé (2005); Silva (2005).
29
É comum que seja solicitada a retirada definitiva de mendigos e “meninos de rua” das vias
públicas, prisões ilegais ou ainda o extermínio desses grupos.

Referências Bibliográficas
ALVAREZ, Sonia; DAGNINO, Evelina & ESCOBAR, Arturo (org.). Cultura e política nos movimentos
sociais latino-americanos: novas leituras. Belo Horizonte: UFMG, 2000.
APPADURAI, Arjun. Disjunção e diferença na economia cultural global. FEATHERSTONE, Mike
(coord.). Cultura Global: Nacionalismo, globalização e modernidade. Petropólis: Vozes, 1994.
AMORIM, Maria Stella; KANT DE LIMA, Roberto & MENDES, Regina Lúcia Teixeira. Ensaios sobre
a Igualdade Jurídica. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2005.
ARENDT, Hannah. Crises da República. 2ª ed. São Paulo: Perspectiva, 1999.
AVRITZER, Leonardo & COSTA, Sérgio. Teoria Crítica, Democracia e Esfera Pública: Concepções e Usos
na América Latina. DADOS – Revista de Ciências Sociais, Rio de Janeiro, 47, 4, 2004, p. 703-728.
AVRITZER, Leonardo. A Moralidade da Democracia. São Paulo/Belo Horizonte, Perspectiva/Editora
da UFMG, 1996.
BONACCHI, Gabriella & GROPPI, Ângela (org.) O dilema da cidadania: direitos e deveres das
mulheres. São Paulo: UNESP, 1995.
CARDOSO, Ruth. A trajetória dos movimentos sociais. In: DAGNINO, Evelina (org). Anos 90: política
e sociedade no Brasil. 4 ed. São Paulo: Brasiliense, 2004.
CARDOSO DE OLIVEIRA, Luis Roberto. Racismo, direitos e cidadania. Estudos Avançados, São Paulo,
18, 50, 2004, p. 81-93.
CARDOSO DE OLIVEIRA, Luis Roberto. Direito legal e insulto moral — Dilemas da cidadania no
Brasil, Quebec e EUA. Rio de Janeiro, Relume Dumará, 2002.
CARVALHO, José Murilo de. Cidadania no Brasil: o longo caminho. Rio de Janeiro: Civilização
Brasileira, 2003.

441
A Busca por Direitos: Possibilidades e Limites da
Participação Social na Democratização do Estado

CEFAÏ, Daniel. Qu’est-ce qu’une arène publique? Quelques pistes pour une approche prgamatiste.
CEFAÏ, D. & JOSEPH, I. (org.) L’Heritage du prgamatisme: conflits d’urbanité et épreuves de
civisme. Coloque de Cerisy, Editions de L’ Aube, 2002.
CRAPANZANO, Vincent. Waiting: the Whites of South Africa. New York: Random House, 1985.
DAGNINO, Evelina (org). Anos 90: política e sociedade no Brasil. 4 ed. São Paulo: Brasiliense, 2004.
DAGNINO, Evelina (org.). Sociedade civil e espaços públicos no Brasil. São Paulo: Paz e Terra, 2002.
GADEA, Carlos & SCHERER-WARREN, Ilse. A contribuição de Alain Touraine para o debate sobre
sujeito e democracia latino-americanos. Revista Sociologia e Política, Curitiba, 25, nov. 2005, p.39-
45.
GALDEANO, Ana Paula. Representações da violência e da segurança pública em São Paulo: o que
pensam, querem e fazem os participantes de Conselhos Locais de Segurança. VII Reunião de
Antropologia do Mercosul, Porto Alegre/RS, 23-27 julho 2007.
GIDDENS, Anthony. Profiles and critiques in social theory. London: Macmillan, 1982.
GOHN, Maria da Glória. Teorias dos movimentos sociais: paradigmas clássicos e contemporâneos.
São Paulo: Loyola, 2004.
GOHN, Maria da Glória. (org). Movimentos Sociais no Início do Século XXI. Petrópolis: Vozes,
2003.
GOHN, Maria da Glória. O papel dos conselhos gestores na gestão urbana. In: Repensando a
Experiência Urbana da América Latina: Questões, Conceitos e Valores. Buenos Aires: Clacso,
2000.
GRAMSCI, Antonio & BORDIGA, Amadeo. Conselhos de Fábrica. São Paulo: Brasiliense, 1981.
HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia: entre facticidade e validade. Rio de Janeiro, 1997.
HABERMAS, Jürgen. Mudança estrutural da esfera pública. Investigações quanto a uma categoria
da sociedade burguesa. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro,1984.
HUSSEIM, Saima. In war, those who die are not innocent: human rights implementation, policing
and public security reform in Rio de Janeiro, Brazil. Amsterdam: Rozemberg, 2007.
KANT DE LIMA, Roberto. Direitos Civis e Direitos Humanos: uma tradição judiciária pré-republicana?
São Paulo em Perspectiva, São Paulo, SP, v. 18, p. 49-59, 2004.
KANT DE LIMA, Roberto. Carnavais, malandros e heróis: o dilema brasileiro no espaço público.
GOMES, Laura Graziela; BARBOSA, Lívia & DRUMMOND, José Augusto. Carnavais, malandros e
heróis, 20 anos depois. 2ª ed. Rio de Janeiro: FGV, 2001.
KANT DE LIMA, Roberto. Polícia e exclusão na cultura judiciária. Revista de Sociologia da USP, São
Paulo, v.9, n.1 p. 169-183, maio 1997.
KANT DE LIMA, Roberto. A Polícia da Cidade do Rio de Janeiro: Seus Dilemas e Paradoxos. (2ª
ed.). Rio de Janeiro, Forense, 1995.
KERSTENETZKY, Celia Lessa. Sobre associativismo, desigualdades e democracia. Revista Brasileira
de Ciências Sociais, vol. 18, n. 53, out. 2003, p.131-180.
LALLEMENT, Michel. História das idéias sociológicas: de Parsons aos contemporâneos. Petrópolis:
Vozes, 2004.
MARSHALL, T. H. (1967) Cidadania, Classe Social e Status. Rio de Janeiro: Zahar.
MIRANDA, Ana Paula Mendes de. Arquivo público: um segredo bem guardado. Antropolítica, v.17,

442
Ana Paula Mendes de Miranda

p.123 - 149, 2005.


MIRANDA, Ana Paula Mendes de. Cartórios: onde a tradição tem registro público. Antropolítica, v.8,
p.59 - 75, 2000.
MOUFFE, Chantal (org.) Dimensions of radical democracy. London: Verso, 1992.
PERALVA, Angelina. Violencia e democracia: o paradoxo brasileiro. São Paulo: Paz e Terra, 2000.
OLVERA, Alberto J. La heterogeneidad de la sociedad civil y del Estado en America Latina y sus
efectos sobre la innovación democrática. III Congreso de la Asociación Latinoamericana de Ciencia
Política, Campinas / SP, 4-6 setembro 2006.
OLVERA, Alberto J. (org.). Sociedad Civil, Esfera Pública y Democratización en América Latina:
México. México, Xalapa: Fondo de Cultura Económica/Universidad Veracruzana, 2003.
OLVERA, Alberto J. Sociedade civil e governabilidade no México. DAGNINO, Evelina (org.). Sociedade
civil e espaços públicos no Brasil. São Paulo: Paz e Terra, 2002.
OLVERA, Alberto J. Los Modos de Recuperación Contemporánea de la Idea de
Sociedad Civil. Olvera, A.J. (org.) La Sociedad Civil. De la Teoría a la Realidad. México:
El Colegio de México, 1999.
PANFICHI, Aldo & CHIRINOS, Paula Valeria Muñoz. Sociedade civil e governabilidade democrática
nos Andes e no Cone Sul: uma visão panorâmica na entrada do século XXI. DAGNINO, Evelina (org.).
Sociedade civil e espaços públicos no Brasil. São Paulo: Paz e Terra, 2002.
SANTANA, Marco Aurélio & RAMALHO, José Ricardo (org). Além da fábrica: trabalhadores, sindicatos
e a nova questão social. São Paulo: Boitempo, 2003.
SANTOS, Boaventura de Sousa. A gramática do tempo: para uma nova cultura política. São Paulo:
Cortez, 2006.
SANTOS, Boaventura de Sousa. Os novos movimentos sociais. Leher, Roberto & Setúbal, Mariana.
Pensamento crítico e movimentos sociais. São Paulo: Cortez, 2005.
SANTOS JUNIOR, Orlando A.; RIBEIRO, Luiz Cesar de Q. & AZEVEDO, Sergio (orgs.). Governança
democrática e poder local: a experiência dos conselhos municipais no Brasil. Rio de Janeiro:
Revan, 2004.
SANTOS, Wanderley Guilherme. Cidadania e Justiça: A política social na ordem brasileira. 3ed. Rio
de Janeiro: Campus, 1994.
SENTO-SÉ, João Trajano & FERNANDES, Otair. A criação do Conselho Comunitário em Segurança de
São Gonçalo. SENTO-SÉ, João Trajano (org.) Prevenção da violência: o papel das cidades. Rio de
Janeiro: Civilização Brasileira, 2005. (Segurança e cidadania, 3).
SILVA, Carla Eichler de Almeida. Participação democrática em nível local: a experiência dos
conselhos comunitários de segurança pública. Dissertação de Mestrado em Ciência Política,
Universidade Federal Fluminense, Niterói, 2005.
TATAGIBA, Luciana. Os conselhos gestores e a democratização das políticas públicas no Brasil.
DAGNINO, Evelina (org.). Sociedade civil e espaços públicos no Brasil. São Paulo: Paz e Terra, 2002.
TEIXEIRA, Paulo Augusto Souza. Guia prático para participantes dos conselhos comunitários de
segurança. Rio de Janeiro: Instituto de Segurança Pública, 2006. (Série Conselhos Comunitários de
Segurança, vol. 2).
VELHO, Gilberto. “A democracia não prescinde da cidadania cultural” In: O Encontro: um olhar
sobre a cultura, o cidadão e a empresa. Rio de Janeiro: Ayuri Editorial/SENAI, 1995.

443
I LE
CH
Comunicação
RELAÇÃO POLÍCIA-COMUNIDADE
ANÁLISE DA EXPERIÊNCIA DO PLANO QUADRANTE NO CHILE
Javiera Diaz*

No Chile não existe um programa de polícia comunitária. No entanto,


nos últimos anos, Carabineros do Chile levaram a cabo esforços dirigidos a
estabelecer uma política institucional que incorporasse um trabalho
coordenado e orientado para a comunidade. Neste marco, a estratégia
emblemática é o Plano Quadrante de Segurança Preventiva, que é
implementado atualmente em 71 municípios1 do país. No entanto, em vários
territórios não se obteve êxito em uma implementação completa e,
adicionalmente, a forma de aplicação tem sido diversa em cada um dos
contextos.

Lamentavelmente, a inexistência de avaliações e monitoramento do


plano impede fazer uma leitura de seus resultados e impactos. Entretanto,
é relevante revisar alguns antecedentes gerais de sua implementação, dados
extraídos a partir da aplicação de questionários cidadãos a respeito do
trabalho policial comunitário e um caso de aplicação do plano que nos
permita realizar uma leitura mais profunda do mesmo, como também
visualizar suas forças e debilidades.

O objetivo desta comunicação é apresentar brevemente a


experiência do Plano Quadrante e propiciar um debate a respeito de seus
objetivos, metodologia e implementação que permita refletir a outras
instituições policiais da América Latina sobre o papel policial na comunidade
e com a comunidade.

ANTECEDENTES

A partir da década de 80, na América Latina, iniciou-se um debate


sobre o papel da polícia e da comunidade na prevenção da criminalidade.
O retorno à democracia em grande parte dos países do Cone Sul, entre
eles Chile, Brasil e Argentina, manifestou a necessidade de implementar
mudanças nas polícias (Dammert, 2003; Frühling, 2001a; González, 1998;
Oliveira y Tiscornia, 1998). As necessidades de reformas se relacionavam
principalmente com a evidência de ações corruptas e violentas de membros
da instituição
parte policialcom
da população (Dammer, 2003), e uma crescente desconfiança de
a ação policial.
*
Pesquisadora FLACSO-Chile, licenciada em psicologia e mestre em criminologia crítica, prevenção
e segurança social da Universidade de Pádua – Itália.
444
Javiera Diaz

Por outro lado, a mudança de ênfase da segurança nacional à


segurança interna, e o aumento da sensação de insegurança da população
gerou uma reflexão, que se mantém na atualidade, sobre a necessidade de
aumentar a eficiência policial.
Diante das novas demandas, tanto no nível do Estado como no da
cidadania, as instituições policiais justificaram a impossibilidade de realizar
mudanças, principalmente devido à carência de infraestrutura e pessoal
necessários para controlar a criminalidade e a violência (Dammert, 2003).
Não obstante, se constatou um forte aumento no orçamento das polícias
no continente, e, no caso do Chile, isto é particularmente evidente ao
observar-se o aumento experimentado pelo orçamento dos Carabineros
de Chile (Ver Gráfico 1).
Gráfico 1. Orçamento de Carabineros de Chile 1990-2006 (moeda
nacional)

Fonte: Subsecretaria de Carabineros de Chile, 2006

É relevante destacar que nos anos 90 se constatou uma forte falta


de infra-estrutura, dotação e equipamento que justificavam em grande
medida os investimentos realizados.
O gráfico anterior nos mostra que em um período de 16 anos, o
orçamento dos Carabineros aumentou em 186%, chegando a alcançar os
321 milhões de pesos (US$ 625 milhões) em 2006.
Este aumento orçamentário se traduziu, por sua vez, em um

445
Relação Polícia-Comunidade: Análise da experiência do Plano Quadrante

aumento na dotação (aumento de pessoal de 31% entre 1989 e 2006) e


em investimento na infra-estrutura.

Gráfico 2. Evolução do pessoal efetivo dos Carabineros de Chile


1989-2006

Fonte: Subsecretaria de Carabineros de Chile, 2006

Gráfico 3. Aumento da frota veicular em nível nacional dos


Carabineros 2000-2006

Fonte: Subsecretaria de Carabineros de Chile, 2006

DESCRIÇÃO DO PLANO QUADRANTE

Carabineros do Chile puseram em marcha no ano 2000 um


programa orientado a melhorar a relação entre polícia e comunidade
denominado Plano Quadrante de Segurança Preventiva, o qual se

446
Javiera Diaz

circunscreve em todo um processo de mudança e modernização


institucional iniciado na década de 90. Esta iniciativa teve como objetivo
fundamental fortalecer os laços de confiança com a população, através de
um programa de vigilância orientado à solução e prevenção dos problemas
de uma determinada comunidade.

Para tal efeito, o território jurisdicional de cada Comisaria 2 se


subdividiu em setores chamados quadrantes, que corresponde ao
território de vigilância de um contingente específico de policiais. Um
quadrante compreende aproximadamente 1 quilômetro quadrado,
equivalente a 64 quarteirões e cerca de 12 mil pessoas. Cabe assinalar
que esta delimitação não é arbitrária, sendo que está fixada de acordo
com variáveis qualitativas e quantitativas. As variáveis quantitativas fazem
referência ao desenho urbano da zona, quer dizer, à extensão e
características do território e quantidade de pessoas residentes. No
entanto, as variáveis qualitativas se referem a características como o tipo
de população que ali habita, atividades que realizam, se é uma zona
residencial ou comercial, se existem lugares arriscados e o tipo de delitos
que com maior freqüência ocorrem neste lugar.

Cada quadrante está sob a responsabilidade de um delegado e três


subdelegados, cuja função é atender às solicitações da população e receber
as denúncias. Mas a estas funções se agrega uma com características
inovadoras com respeito à tradicional tarefa da polícia: os encarregados
também devem participar de reuniões sobre segurança cidadã e receber
capacitação em atividades comunitárias e atendimento do público.

Quanto à destinação de recursos materiais, a mesma também está


relacionada com as características dos quadrantes, segundo as quais se
determina o tipo de vigilância: motorizada, em veículo ou a pé.

Para uma eficiente distribuição dos recursos, tanto humanos como


materiais, se classificam os quadrantes de acordo com “níveis” relacionados
a um cenário específico de delinqüência, tipo e graduação da mesma. Os
níveis determinados são:
· nível 1: freqüência delitiva baixa;
· nível 2: freqüência delitiva intermediária;
· nível 3: freqüência média;
· nível 4: freqüência alta

447
Relação Polícia-Comunidade: Análise da experiência do Plano Quadrante

Deste modo, de acordo com o nível em que se classifica o quadrante,


são destinados as chamadas Unidades de Vigilância Equivalentes (U.V.E.),
as quais expressam um valor que determina o tipo de recurso, ou seja,
quanto maior seja o nível de freqüência de delitos em um quadrante, maior
a quantidade de U.V.E. que se lhe destinam. Este sistema objetiva não só
melhorar a eficiência na destinação dos recursos de Carabineros em uma
grande zona urbana compreendida por muitos quadrantes, mas também
a flexibilidade no uso de recursos, posto que um quadrante pode
reclassificar-se em outro nível, conforme mudem suas características.

É comum a todos os quadrantes a duração do serviço, que consiste


em três turnos de oito horas, a quais seis horas correspondem ao
deslocamento em patrulhas e duas horas de plantão na sede. Entretanto, a
freqüência das rondas também é determinada pelo nível ao qual pertence o
quadrante.

Os objetivos específicos do plano são:


· potencializar a vigilância policial preventiva, em termos de
uma maior e progressiva destinação de recursos humanos e
logísticos, com os meios disponíveis e com aqueles adicionais
que de forma paulatina se incorporem à instituição;
· dinamizar a gestão operacional para dar resposta oportuna
e eficaz às demandas da comunidade;
· dispor e empregar os meios institucionais, traduzidos em
Unidade de Vigilância Equivalentes, em harmonia com o
perfil de cada quadrante. Isso significa readequar os meios
e aumentar a cobertura da vigilância policial preventiva,
conforme o nível de risco assinalado.
· melhorar a gestão preventiva de cada quadrante, uma vez
que existindo um carabinero responsável pelo mesmo, este
obtenha uma progressiva identificação com os vizinhos e a
zona a seu encargo.
· Fazer com que a comunidade reconheça a “seus
carabineros”, sentindo-os comprometidos, acessíveis,
encomendadas
francos e profissionais no exercício das funções
Adicionalmente, o Plano Quadrante implicou a destinação de
recursos específicos para sua implementação a partir do ano 1999, tal
como se expressa a seguir.
448
Javiera Diaz

Gráfico 4. Investimentos no Plano Quadrante, 1999-2006

Fonte: Subsecretaria de Carabineros de Chile, 2006

PLANO QUADRANTE E A COMUNIDADE

Alguns dados sistematizados pela Encuesta Nacional de Seguridad


Ciudadana (ENSC) 3 dos anos 2003-2005 nos permitem ter uma
perspectiva preliminar do impacto que este teve na comunidade, através
da analise de alguns indicadores que se descrevem a seguir.

1. Conhecimento do Plano

Como antecedente à analise deste indicador temos que Carabineros


do Chile, desde o começo do programa, investiu recursos na difusão do
mesmo. Por outro lado, grande parte dos municípios nos quais se aplica,
contribuiu com a difusão do plano com campanhas conjuntas e recursos
para a geração de panfletos informativos e outros materiais entregues à
comunidade.

Neste sentido, um componente fundamental do Plano Quadrante


foi o comunicacional, pois só através da difusão é possível envolver a
comunidade no trabalho preventivo realizado pela polícia.

Contudo, segundo os resultados das ENSC, ainda existe uma


importante porcentagem de pessoas que desconhece o programa e seus
objetivos, apesar de que nos dois anos de aplicação do questionário, esta
porcentagem diminuiu.

449
Relação Polícia-Comunidade: Análise da experiência do Plano Quadrante

Gráfico 5. Sabe no que consiste o Plano Quadrante?

Fonte: Encuesta Nacional de Seguridad Ciudadana 2003 y 2005

2. Funcionamento do Plano Quadrante em nível local

Outro indicador interessante de se analisar, ainda mais decisivo


a respeito das capacidades de difusão, é o conhecimento que as
pessoas têm sobre a aplicação do plano em seu bairro. O
conhecimento do plano poderia estar influenciado pela proximidade
com o mesmo e por seu efetivo funcionamento em determinados
territórios.

Gráfico 6. Sabe se o Plano Quadrante é aplicado em seu bairro?

Fonte: Encuesta Nacional de Seguridad Ciudadana 2003 y 2005

450
Javiera Diaz

Apesar do referido anteriormente, só 31% dos entrevistados sabia


em 2005 se o Plano Quadrante se aplicava em seu bairro, porcentagem
bem menor a 54% que sabia em que o plano consistia, no mesmo ano.

Similar é a porcentagem de pessoas que sabe da existência do


delegado de quadrante, como se pode observar no gráfico 7.

Gráfico 7. Sabe se em seu bairro existe um delegado?

Fonte: ENSS 2003 y 2005

3. Aprovação da vigilância implementada pelo plano

O programa contempla como de uma de suas principais medidas


intensificar a vigilância policial, através de rondas periódicas, no
território designado, as quais, embora tenham se pensado no começo
como uma patrulha a pé, na prática são em sua maioria patrulhas
motorizadas e em veículo.

Embora este fato pudesse ser avaliado como uma debilidade do


plano, pois não se conseguiria uma efetiva proximidade com a
comunidade, os resultados lançados pelos questionários de segurança
cidadã indicam que as pessoas preferem o policiamento motorizado,
a viatura e inclusive o helicóptero, pois lhes transmite maior sensação
de segurança que as rondas a pé dos policiais.

451
Relação Polícia-Comunidade: Análise da experiência do Plano Quadrante

Gráfico 8. Que tipo de vigilância policial lhe dá maior sensação de


segurança?

Fonte: Encuesta Nacional de Seguridad Ciudadana 2003 y 2005

4. Avaliação do trabalho com a comunidade

Segundo um questionário realizado pela própria instituição no ano


de 2003, em relação a 30 tarefas realizadas pela polícia, o trabalho
comunitário de Carabineros não foi bem avaliado pelos cidadãos (20%
lhe deu uma avaliação negativa). Uma situação mais negativa se apresentou
em relação ao trabalho policial com vizinhos, o qual teve 39% de
reprovação.

O CASO DA COMUNA DE PEDRO AGUIRRE CERDA4

A comuna (município) de Pedro Aguirre Cerda, localizada no setor sul


da Região Metropolitana, utilizou de maneira muito criativa a metodologia do
Plano Quadrante, incorporando-a ao trabalho municipal no marco do Programa
Comunidade Segura5. Esta iniciativa apresentou desafios importantes ao
trabalho policial e da própria comunidade que até agora têm sido assumido
com êxito e tomados como referência para reformas ao trabalho no marco
do Programa Comunidade Segura

O contexto desta iniciativa é uma mudança na forma de execução e


distribuição orçamentária do Comunidade Segura, que passou a ser um
programa que distribuía 90% de seus recursos através de fundos concusables
com a comunidade, a ser executado em 90% pelo Conselho Municipal de
452
Javiera Diaz

Segurança Cidadã6. Isto implicou em que as decisões de destinação dos fundos


passassem por uma institucionalidade presidida pelo prefeito, mas composta
por membros e representantes da comunidade. Apesar de esta mudança
buscar assegurar o bom uso dos fundos, em benefício de toda a comunidade,
e não só de grupos específicos, não podia ser assegurada apenas pelo fato de
convidar os representantes da comunidade ao conselho; deveria gerar-se
uma instância anterior ao conselho que assegurasse a legitimidade dos
representantes.

Para alcançar o objetivo referido, a equipe do programa Comunidade


Segura do município gerou uma estratégia utilizando a metodologia de redes
abertas, que, por sua vez tomava a metodologia de Carabineros em relação
à divisão territorial da comuna em quadrantes (quatro quadrantes). Esta divisão
tinha por objetivo organizar a comunidade em relação ao pertencimento a
um território e envolver policiais no trabalho comunitário, na identificação de
problemáticas e de projetos de prevenção psico-social e situacional para cada
quadrante, os quais poderiam ser levados ao Conselho Local e financiados
pelo Comunidade Segura.

O funcionamento real da estratégia se traduziu em reuniões mensais


com todas as organizações sociais do território. Embora no início os Carabineros
não participassem (só assistiam esporadicamente e se enviava um policial
diferente a cada reunião), se conseguiu somar a instituição ao projeto como
convocante das reuniões, com assistência permanente junto com a unidade
preventiva do município (Programa Previene7 e Comunidade Segura).

Assim, cada quadrante tem seu próprio representante no conselho,


legitimando-se como território organizado e interinstitucional.

Finalmente, para fazer operacional a participação dos representantes


do quadrante no conselho, se desenhou um instrumento de priorização de
projetos para cada quadrante, pelo qual se trabalha com mapas geo-
referenciados de delitos proporcionados por Carabineros. O resultado da
priorização deve ser legitimado pelas organizações sociais do território e
logo a Secplan transforma as iniciativas propostas em projetos viáveis.

Os principais êxitos desta iniciativa têm sido a geração de um vínculo


comunitário com organizações sociais, um forte vínculo institucional com as
polícias e um intercâmbio de apoio social entre o município, as organizações
sociais e as polícias.

453
Relação Polícia-Comunidade: Análise da experiência do Plano Quadrante

ELEMENTOS CRÍTICOS PARA O DEBATE

1. Desenho e objetivos: O desenho do plano está centrado no melhoramento


do trabalho policial com base nos recursos disponíveis, embora não se observe
uma planificação do trabalho e priorização de ações em relação às realidades
de cada território, o que impediu, por sua vez, gerar metodologias ou modelos
de avaliação do processo, resultado e impacto.

Isto, por sua vez, tem incidência na designação e uso de recursos,


pois, ao não haver delineamentos claros dos objetivos específicos de cada
plano, não é possível realizar uma distribuição conforme os recursos.

Perguntas para o debate


– Que elementos deveriam estar na base do desenho de um plano
de trabalho policial comunitário e participativo?
– Que tipos de objetivos deveria pleitear um plano de trabalho
policial comunitário e como podem ser constatados, medidos e avaliados?
– Quem deve realizar o monitoramento e a avaliação?

2- Metodologia: O patrulhamento não é necessariamente uma metodologia


de trabalho para a aproximação com a comunidade, sendo melhor definida
como uma atividade que intenta obter certos resultados, como por exemplo,
a detenção por flagrante. Nesse sentido, seria importante incorporar um
conjunto de ferramentas metodológicas aplicáveis no plano, com seus
respectivos objetivos, atividades e indicadores, os quais poderiam ser
aplicados e adaptados a diferentes contextos locais.

Perguntas para o debate


– Qual é a diferença entre objetivos, estratégias, ferramentas de
trabalho, atividades e indicadores?
– Os objetivos da polícia são os mesmos objetivos da comunidade,
da política de segurança local ou central?
– Como se integram estes diferentes níveis em um plano gerido
pela instituição policial?

3. Capacitação: O plano não define claramente o que implica uma

454
Javiera Diaz

aproximação com a comunidade e um trabalho em conjunto com os


cidadãos na prevenção do delito, o que na prática tem implicado em que
isto se entenda gerar atividades recreativas, desportivas, assistir a reuniões
com vizinhos, convidar às crianças a conhecer as dependências policiais,
entre outras muitas atividades que, apesar de contribuir a melhora para a
relação polícia-comunidade, não necessariamente apontam para gerar
modelos participativos e preventivos conjuntos. Esta falência está
determinada, em grande medida, pela falta de preparação na temática
comunitária, na ausência de um enfoque definido que novamente diferencia
o enfoque dos objetivos e atividades que permitam concretizá-los.

Perguntas para o debate


– É necessário capacitar as polícias para o trabalho com a comunidade?
– Todas as experiências e atividades servem?
– Como se poderiam avaliar os distintos efeitos das ações?
– Que ações poderiam ter mais êxito e por quê?

4. Retroalimentação da comunidade: O plano, ao não ter sido avaliado,


carece de elementos que lhe permitam melhorar certos aspectos e
potencializar outros. Para isto é fundamental conhecer a opinião e avaliação
que realiza a comunidade envolvida no plano, não só a partir de questionários
nacionais, mas também através de diálogos locais que permitam aprofundar
na realidade local.

Perguntas para o debate


– É possível instalar um dispositivo de monitoramento permanente,
por parte da comunidade, à implementação de um programa?
– Como se pode envolver a comunidade de forma pró-ativa e não
só demandante junto às polícias?

5. Plano como parte de uma política local em diferentes níveis: O


Plano Quadrante, apesar de ter sido incorporado na política nacional de
segurança cidadã, tem independência em relação a outros programas das
autoridades locais e regionais. Este pode ser um elemento positivo,
enquanto outorga autonomia nas ações; porém, perde força ao não se
integrar com outras estratégias desenvolvidas no âmbito local.

455
Relação Polícia-Comunidade: Análise da experiência do Plano Quadrante

Perguntas para o debate

- Quais são os benefícios concretos que proporciona a coordenação


interinstitucional nos planos executados pelas polícias?

- É possível integrar os planos e estratégias a objetivos transversais


em nível local, regional ou nacional?

Notas
1
NT: os municípios, no Chile, são denominados por Comuna. Logo, quando pertinente, utilizaremos
esta designação, particularmente quando o contexto fizer menção ao termo comunidade.
2
NT: Uma Comisaría se distingue por servir de sede a uma polícia que se ocupa de atividades
investigativas ostensivas, na maioria dos países do Cone Sul. No Brasil, diferentemente, as
delegacias de polícia civil abrigam profissionais que se ocupam das investigações criminais,
enquanto os batalhões de Polícia Militar são sedes dos profissionais que cuidam do policiamento
preventivo e ostensivo. Por isso, a categoria foi mantida no original.
3
NT: Questionário Nacional de Segurança Cidadã.
4
Este capítulo foi redigido com base nas informações proporcionadas pelo Secretário Técnico do
município, Abraham Abugattas.
5
Programa preventivo pertencente ao Ministério do Interior e aplicado em diversos municípios do
país que apresentam problemas de criminalidade importantes. Sua execução é coordenada em
nível local pelo município.
6
Composto por autoridades municipais, policiais, representantes da sociedade civil e do mundo
privado, entre outros.
7
Programa de prevenção do consumo de drogas do Conselho Nacional de Controle de
Entorpecentes (Conace), implementado no nível municipal.

Referências Bibliográficas
Dammert, Lucia (2003). El gobierno de la seguridad en Chile 1973-2003. In: Dammert, (org)
Seguridad ciudadana: experiencias y desafíos. Red 14 URB-AL, Valparaíso, Chile
Frühling, Hugo (2001) Las estrategias policiales frente a la inseguridad ciudadana en Chile. In:
Frühling, Hugo y Candina, Azun (org) Policía, Sociedad y Estado. Modernización y reforma
policial en América del Sur. CED, Santiago
Ministerio del Interior Chile (2006). Informe anual de estadísticas nacionales y regionales. In:
www.interior.cl
Carabineros de Chile (2006). Sitio web: www.carabineros.cl

456
S IL
B RA
Comunicação
GRUPO ESPECIALIZADO EM ÁREAS DE RISCO (GEPAR)
OS DILEMAS DE UMA EXPERIÊNCIA INOVADORA DE PREVENÇÃO
E CONTROLE DE TRÁFICO DE DROGAS E HOMICÍDIOS EM
FAVELAS VIOLENTAS EM BELO HORIZONTE, BRASIL.
Elenice de Souza*

INTRODUÇÃO

Uma das inovações da Polícia Militar de Minas Gerais é a criação do


Grupo Especializado de Policiamento em Áreas de Risco, o Gepar específico
das unidades com responsabilidade territorial, as companhias de Polícia Militar.
Esse grupo, criado em 2005, foi implementado para atuar preventivamente
em favelas da cidade de Belo Horizonte, capital do estado de Minas Gerais,
onde o tráfico de drogas e o crime de homicídios foram identificados como
sendo problemas crônicos. Atualmente o Gepar tem sido criado também
nas demais favelas da região metropolitana e em todo o estado de Minas
Gerais. Inspirado no Grupo de Policiamento em Áreas Especiais (Gepae),
desenvolvido pela Polícia Militar do Rio de Janeiro no ano de 2000, o Gepar
conjuga estratégias de polícia comunitária, o policiamento orientado para
solução de problemas, e a repressão qualificada como ferramentas essenciais
para o controle e prevenção da criminalidade, restituição da paz e qualidade
de vida em comunidades carentes.

O Gepar é por definição um policiamento pró-ativo, de repressão


qualificada, que atua de forma permanente e diuturna em comunidades
específicas (Doutrina do Gepar, 002/05 – CG). Neste sentido, esse grupo
especializado se diferencia do policiamento mais tradicional direcionado
para o atendimento reativo a chamadas de emergência, e das atividades
de polícia desenvolvidas pelos grupos de operações especiais e táticas de
cunho essencialmente repressivo e esporádico.
Atuar de forma pró-ativa e através da repressão qualificada significa
que as ações do Gepar devem ser pautadas num diagnóstico prévio da
criminalidade local, constantemente atualizado a partir do uso, troca, e análise
sistemática de informação entre os policiais integrantes do grupo, dos policiais
de inteligência e das seções de análise criminal e estatística das companhias
de Polícia Militar, a qual cada Gepar faz parte. Os resultados de suas atividades
devem ser, assim, avaliados e monitorados de forma continuada. Além disso,
* Elenice de Souza, mestre em Sociologia pela Universidade Federal de Minas Gerais, Brasil, e
doutoranda em Justiça Criminal e Criminologia, pela Rutgers – State University of New Jersey, USA.
É pesquisadora do Centro de Estudos de Criminalidade e Segurança Pública da Universidade Federal
de Minas Gerais e professora dos Estudos Técnicos promovidos por essa instituição desde 2005. 457
Grupo Especializado em Áreas de Risco (GEPAR)

o Gepar deve procurar não apenas conhecer e entender a dinâmica do


tráfico de drogas e dos homicídios na base territorial em que atua,
identificando indivíduos infratores, mapeando gangues criminosas e seus
integrantes, mas também conhecer a comunidade local mais ampla, sua
organização social e características sócio-demográficas, seus membros, e
suas principais demandas.
Ao conjugar as ações pró-ativa e de repressão qualificada, o Gepar
procura reconstruir no imaginário social da população marginalizada das
favelas a idéia de uma polícia próxima às comunidades carentes; uma polícia
que conhece e é conhecida pela população local; uma polícia para proteger
e servir; uma polícia que tem no uso inteligente da informação, na mediação
de conflitos, na solução de problemas da comunidade, e no uso legal da
força os principais instrumentos para solução de conflitos.

O GEPAR E O PROGRAMA FICA VIVO!


A idéia inicial de se criar o Gepar pela Polícia Militar de Minas Gerais
coincide com um período das primeiras discussões entre essa instituição
e o Centro de Estudos de Criminalidade e Segurança Pública da Universidade
Federal de Minas Gerais (Crisp/UFMG), sobre a concepção de uma
estratégia inovadora de prevenção de homicídio capaz de intervir no
problema crônico das mortes envolvendo jovens principalmente em favelas
onde o tráfico de drogas foi instalado. Essas discussões foram
concretizadas na realização de um projeto de iniciativa do Crisp
denominado Fica Vivo! Esse projeto mobiliza não apenas a polícia, mas a
comunidade, e vários órgãos do governo do estado e do Município.
O Fica Vivo! sustenta-se em três grandes pilares: (1) gestão coordenada
envolvendo as várias agências do sistema de Defesa Social e outros órgãos do
governo; (2) ações de proteção social direcionadas para jovens entre 12 e 24
anos de idade envolvidos ou não com a criminalidade, através de oficinas de
arte, cultura, esporte, lazer e profissionalizantes e, o (3) Grupo de Intervenção
Estratégica, composto por representantes das polícias estaduais: Militar e de
Investigação; da Polícia Federal; da Promotoria Pública, e do poder Judiciário.
Além disso, participam desse grupo os representantes do sistema prisional.
Assim, o grupo de intervenção estratégica tem como principal objetivo promover
a integração entre essas várias instituições, dando celeridade aos processos
judiciais principalmente de indivíduos infratores contumazes e envolvidos em
gangues ao nível de cada comunidade onde o programa Fica Vivo! está presente.

458
Elenice de Souza

Busca também avaliar e monitorar de forma conjunta os resultados das ações


judiciais e das polícias no controle e prevenção do crime.
O Gepar foi criado de forma incipiente com a primeira experiência
de implementação do Fica Vivo! no Morro das Pedras em 2002 (Beato,
2002; 2003). Com o sucesso desse projeto na redução dos homicídios e
sua conseqüente institucionalização como um dos principais programas
de prevenção e controle de homicídios do governo do estado de Minas
Gerais, o Gepar passou a ser criado em todas as comunidades onde esse
programa foi instalado. A associação direta com esse programa e com
que o Gepar tornasse parte integrante do Grupo de Intervenção Estratégica
do Fica Vivo! além de desenvolver um papel central como catalisador das
demandas da comunidade e elo fundamental entre as ações de proteção
social desse programa e as atividades de polícia comunitária.
Em agosto de 2005, as diretrizes do Gepar são definidas a partir
da instrução no. 002/05 – CG, que regula a criação e emprego do Gepar
como um recurso estratégico fundamental da Polícia Militar na prevenção
e controle do tráfico de drogas e homicídios.

OS POLICIAIS DO GEPAR
O Gepar reúne policiais voluntários, com no mínimo um ano de
experiência em atividade operacional, devendo permanecer no grupo por
um período mínimo de dois anos. Esses policiais são treinados pela Academia
de Polícia Militar num curso com duração de 40 horas que abrange diversas
disciplinas entre elas: direitos humanos aplicados à atividade policial; polícia
comunitária; mobilização comunitária; prevenção e controle de drogas, entre
outras. Além disso, os policiais ingressam num curso especial promovido
pelo Crisp/UFMG denominado Estudos Técnicos. Esse curso é direcionado
para os representantes das diversas instituições que integram o Grupo de
Intervenção Estratégica do Fica Vivo! que reúne: policiais do Gepar, policiais
da Polícia Investigativa, policiais da Delegacia Especializada de Homicídios,
além de ter como convidados profissionais do Ministério Público e do Poder
Judiciário. Esse curso treina esses profissionais no uso da metodologia de
solução de problemas; no tratamento, uso, e troca de informações para
fins de planejamento estratégico e monitoramento das atividades que serão
desenvolvidas pelo grupo de intervenção estratégica ao nível de cada
comunidade onde o programa Fica Vivo! é implementado (Estudos Técnicos,
2005). Além desse curso, os policiais do Gepar também participam do

459
Grupo Especializado em Áreas de Risco (GEPAR)

curso de Gestores Comunitários promovido pela Secretaria de Segurança


Pública do Estado de Minas Gerais, onde junto com demais representantes
da comunidade onde atuam desenvolvem um plano de segurança local.
De acordo com a Instrução do Gepar no. 002/05 – CG, em termos
de estrutura o Gepar é distribuído geralmente em três guarnições, cada qual
composta por três policiais que atuam por turno de oito horas. Essas
guarnições estão sob o comando de um tenente e são submetidas de forma
regular ao controle e acompanhamento operacional e administrativo. Os
policiais do Gepar são equipados com instrumentos típicos da atividade policial
militar, tais como colete à prova de bala, armamento de porte, pistola .40,
rádios transmissores, algemas, bastão tipo tonfa, entre outros. Além disso,
por ser a geografia das favelas e aglomerados bastante irregular, com terreno
de topografia acidentada, o Gepar utiliza viatura Troler, ou camionetes. Isso
permite que os policiais possam cobrir uma área territorial que
tradicionalmente era impossível de ser policiada.
A presença diária dos policiais do Gepar nas comunidades das favelas
onde a polícia só entrava para atendimento de ocorrências emergenciais, e
operações repressivas esporádicas, tem despertado à primeira vista
curiosidade e estranhamento mútuo entre policiais e população local, muitas
vezes pautado por preconceitos de ambos os lados. Entretanto, é no cotidiano
das relações entre polícia e comunidade que os olhares de desconfiança mútua
são substituídos por olhares de expectativa de confiança mútua. Os policiais
passam pouco a pouco a ser percebidos pela população como policiais do
Gepar, e diferentes dos outros tipos de polícia, com a função de proteger e
servir a comunidade. Nesse processo, também os membros da comunidade
passam a se tornar familiares aos olhos dos policiais, sendo percebidos não
apenas como aqueles que acionam as chamadas de emergências, mas como
parceiros na produção da segurança pública local.

OS DESAFIOS DO GEPAR
Um dos grandes desafios do Gepar tem sido o de construir sua
identidade social como parte integrante da comunidade local, desenvolver
sua atividade tanto preventiva quanto repressiva, alcançando assim a

legitimidade por parte da população.


Um dos problemas enfrentados pelos policiais do Gepar é a
expectativa social de que uma policia próxima da comunidade é uma polícia

460
Elenice de Souza

mais “boazinha”, que “passa a mão na cabeça de bandido”. Policiais


reclamam que a aproximação com a comunidade cria na população a
expectativa de que a polícia terá um comportamento mais conivente, certa
cumplicidade diante de alguns pequenos delitos. Em geral, isso tem gerado
a quebra de confiança de parte da população em relação aos policiais
quando esses agem de forma repressiva. Assim, é comum ouvir relatos
de policiais do tipo:
“Uma senhora que me chamava para tomar café na casa
dela com certa freqüência mudou seu comportamento
comigo depois que o filho dela foi preso por estar envolvido
com crime. Ela não me convida mais para o café e quando
passo por perto ela faz que não me conhece.” (depoimento
de policial do Gepar, 2007).
Esse tipo de comportamento de alguns moradores das áreas onde
o Gepar é implementado é relatado também por lideranças comunitárias,
tal como é demonstrado num depoimento abaixo:
“Aqui no bairro, os jovens costumam pilotar motos sem
documento e a polícia aborda esses meninos e acaba
apreendendo as motos. A população fica com raiva da polícia
e não entende que a polícia embora seja da comunidade tem
que reprimir ações fora da lei.” (depoimento de liderança
comunitária em encontro comunitário realizado em 2007).
Outra dificuldade enfrentada pelos policiais do Gepar é o sentimento
de medo e desconfiança que geralmente a população de favelas e aglomerados
tem em relação à polícia. A entrada da polícia nessas comunidades
tradicionalmente foi pautada por ações repressivas, que acabavam em algumas
situações por extrapolar a legalidade, resultando em violência e abuso de
autoridade. Com isso, a presença do Gepar em algumas comunidades não
tem sido percebida à primeira vista com bons olhos, sendo acompanhada
por reclamações e questionamentos por parte da população em relação à
polícia. Isso também é explicado pelo próprio desconhecimento que a
comunidade tem da polícia, da sua função, e de como deve agir. Isso é evidente
nos primeiros encontros promovidos pela própria polícia em parceria com o
Fica Vivo! para apresentação dos policiais do Gepar para a comunidade local.
Dúvidas sobre a legalidade das abordagens policiais, sobre a necessidade ou
não de apresentação de mandados judiciais para busca e apreensão e prisão
de pessoas, além de questionamentos quanto se a ação do Gepar será

461
Grupo Especializado em Áreas de Risco (GEPAR)

semelhante a dos outros tipos de polícia que atendem ocorrências na favela


são freqüentes. A grande expectativa nesse caso por parte da população é
que a polícia respeite a população.

Por fim um dos maiores dilemas tem sido a aproximação clara e


visível do Gepar como parceiro direto do programa de prevenção Fica
Vivo! Essa é uma situação que tem gerado muitas discussões. Como o
programa é aberto a jovens envolvidos com a criminalidade, a parceria
com a polícia pode ser vista por esses jovens com grande suspeita. Assim,
coloca-se em dúvida a relação de confiança construída com os técnicos e
trabalhadores do programa. Esses podem ser identificados como X9, ou
informantes da polícia. Uma das conseqüências disso é colocar em xeque
a viabilidade e sucesso do programa em atingir os jovens que buscam no
programa uma saída do mundo do crime, colocando também em risco os
profissionais do próprio programa.

A criação do Gepar tem assim trazido à tona vários dilemas sobre a


relação entre polícia, comunidade, e programas de prevenção. A solução
para esses desafios parece ser sem dúvida reforçar um conceito de polícia
que supere a idéia dicotômica de que a função da polícia se resume em
proteger a população ordeira e reprimir os fora da lei. Mais do que isso, o
conceito de polícia deve incluir a idéia de que a polícia tem um importante
papel enquanto representante da lei e da ordem em dissuadir o
comportamento violento, mediando conflitos e promovendo a mudança
do comportamento dos jovens envolvidos com a criminalidade a partir do
incentivo e participação em atividades de proteção social e comunitária que
incluam esses jovens como públicos alvo. Desta maneira, a polícia se torna
um elo importante entre os jovens fora da lei, a justiça e a proteção social.

Referencia Bibliográfica
Beato, Cláudio Filho (2002) Programa de Controle de Homicídios – FICA VIVO! Centro de
Estudos de Criminalidade e Segurança Pública, Universidade Federal de Minas Gerais, Brasil.
_________________ (2003) Homicide Control Project in Belo Horizonte. CRISP – Study
Center on Crime and Public Safety, Federal University of Minas Gerais, www.crisp.ufmg.br.
Estudos Técnicos (2005). Centro de Estudos de Criminalidade e Segurança Pública, Universidade
Federal de Minas Gerais.
Instrução 002/05, Comando Geral da Polícia Militar de Minas Gerais.
Souza, Elenice de (2007) Relatórios Estudos Técnicos. CRISP – Centros de Estudos de Criminalidade
e Segurança Pública, Universidade Federal de Minas Gerais.
_______________ (1999). Polícia Comunitária: Avaliação de um Programa de Segurança
Pública em Belo Horizonte, Minas Gerais. www.crisp.ufmg.br

462
S IL
B RA
Comunicação
UMA POLÍTICA ALTERNATIVA DE SEGURANÇA
COM PARTICIPAÇÃO SOCIAL: A EXPERIÊNCIA DE
PORTO ALEGRE
Helena Bonumá* e Luiz Antônio Brenner Guimarães**

“...paz sem voz não é paz, é medo...” (Rappa)

1. CONSIDERAÇÕES INICIAIS

O presente texto visa subsidiar o Curso de Liderança Policial para


o Desenvolvimento Institucional do Projeto ‘Rede de Policiais e Sociedade
Civil na América Latina’ e trata da problemática da participação social na
construção e no controle de políticas de prevenção e enfrentamento à
violência e à criminalidade, tanto no que se refere a uma abordagem das
políticas de atuação da polícia, strito senso, quanto de políticas de maior
amplitude que contemplem uma intervenção mais estrutural.

A problemática central é a relevância de mecanismos de participação


social no contexto da segurança pública, respondendo aos questionamentos
da necessidade, importância, oportunidade do envolvimento da
comunidade, tanto na definição de prioridades, quanto na construção e
controle das políticas públicas nesta área.

As temáticas propostas pelo texto serão desenvolvidas a partir do


debate teórico realizado no Núcleo Violência, Segurança e Direitos
Humanos da Guayí1 e da experiência vivida na Administração Popular de
Porto Alegre no último mandato, particularmente na gestão da Secretaria
Municipal de Direitos Humanos e Segurança Urbana (2003/2004) e no
acompanhamento sistemático do Conselho Municipal e dos Fóruns
Regionais de Justiça e Segurança (2004/2007).

O texto se propõe a tratar o tema em seis momentos. O primeiro


aborda a transformação da violência e da criminalidade nos dias de hoje.
O segundo analisa as políticas de segurança implementadas pelos governos
do ponto de vista de sua concepção e prática e a sua crise atual pela
incapacidade de enfrentar o problema. O terceiro formula, a partir de
uma análise mais de fundo do crescimento da violência e da criminalidade,

*
Socióloga - Coordenadora da Guayí
**
Oficial Superior da Reserva da Brigada Militar/RS - coordenador do Núcleo Violência, Segurança
e Direitos Humanos da Guayí 463
Uma Política Alternativa de Segurança com Participação Social:
a Experiência de Porto Alegre

a necessidade de políticas mais abrangentes de prevenção e enfrentamento


da violência, que sejam articuladas e que dêem conta da totalidade e da
complexidade do problema. No quarto momento recuperamos a
experiência do processo participativo em Porto Alegre do ponto de vista
de sua importância teórica, política e programática e de sua prática social
concreta, seu significado, avanço e limites. No quinto, a partir da recuperação
da realização de duas experiências, buscamos verificar em que medida o
processo de participação contribuiu com a efetivação de políticas de
prevenção e enfrentamento da violência na cidade de Porto Alegre. Por fim,
no sexto momento, avaliamos os limites, alcance, resistências, obstáculos e
avanços efetivos constatados na realização destas experiências.

2. O CONTEXTO ATUAL DA VIOLÊNCIA

Nos dias de hoje, o crime está disseminado, presente na normalidade


da vida cotidiana de qualquer segmento e em qualquer espaço, realizado,
em geral, sem planejamento, a qualquer hora, de acordo com a
oportunidade que aparece e, cada vez mais, com emprego da violência
física, do uso da arma de fogo e freqüente requinte de crueldade. O
assassinato, o tráfico de drogas, roubo à mão armada e suas variáveis,
como o seqüestro relâmpago, estão no centro da criminalidade, cujos
autores e as vítimas são predominantemente jovens. Se há criminosos
profissionais, há também um contingente de jovens que, a partir de uma
dada circunstância e oportunidade, buscando uma perspectiva de vida,
resolvem praticar o crime.

Na raiz do problema, como grandes impulsionadores deste


processo, estão os empreendimentos criminosos, organizados em escala
internacional, reproduzindo (ou sustentando) um pequeno número de
grandes cartéis criminosos dominando todo o processo de acumulação
de capital ilegal e, para tanto, organizado em nível mundial, operando
localmente, estruturado em macro atacado, atacado e varejo e utilizando,
nas diversas etapas de execução (varejo), pequenos grupos locais. A
realização destes negócios se dá numa grande rede de varejo que opera
em nossas cidades, muitas vezes se desdobrando e/ou sustentando outras
atividades ilícitas, mas principalmente disseminando armas e uma cultura
de violência que passam a agravar os crimes de menor potencial ofensivo
bem como os conflitos pessoais e de grupos.

464
Helena Bonumá* e Luiz Antônio Brenner Guimarães**

Nos países com grande desigualdade social e pobreza, como o nosso,


essa rede encontra solo fértil para estruturação de seus negócios a partir
do aliciamento barato de seguimentos “descartáveis” da população – uma
espécie de exército de reserva do crime que tem na adesão a este uma
estratégia de sobrevivência. A omissão histórica do Estado e a exclusão de
parcelas crescentes da população, situação histórica e estrutural em países
como o Brasil, que se agrava muito com o modelo neoliberal, implantado
na década de 90 passada, criam as condições para que o crime prospere
como forma de sobrevivência, de ascensão social (mesmo que para muito
poucos) e como uma alternativa de vida (e de morte).

Não se trata, portanto, apenas de um processo de dimensões (e


com conseqüências) materiais, mas também da construção de valores e
de identidades, da constituição de regras e de esferas de poder, de uma
dimensão social mais profunda. No mundo do mercado em que tudo,
inclusive a força do trabalho, se transforma em mercadoria e onde às
pessoas são reduzidas à condição de consumidoras (e, em algumas
circunstâncias, a objeto do consumo) vale quem tem capacidade de
consumir, o que descarta uma parcela considerável da população. No
entanto, o mundo do mercado e seus meios de comunicação transmitem
no cotidiano o apelo de uma sociedade que não é real para a grande maioria
e que, permanentemente, desperta desejos de consumo e de inclusão
que não têm forma de se realizar, alimentando a frustração e reproduzindo
a exclusão de amplos segmentos, principalmente os jovens, muitos dos
quais, vão aderir às redes do crime como busca de uma alternativa não
apenas de renda e de consumo, mas de pertencimento, de inclusão e de
reconhecimento (mesmo pela negativa).

Este quadro se insere na realidade de apartheid social existente em


nosso país, onde os problemas de violência, miséria e insegurança são
endêmicos e fazem parte, juntamente com a fragmentação e a
desarticulação social, de uma estratégia de dominação e reprodução do
modelo existente, onde também o Estado, ao longo da nossa história,
tem sido violador de direitos.

Além disto, o Estado, como detentor do monopólio da violência,


muitas vezes demonstra não ter o controle da violência, da corrupção e
da impunidade dentro de suas próprias esferas, não conseguindo, através
de suas diversas instituições com competência nesta área, incidir mais

465
Uma Política Alternativa de Segurança com Participação Social:
a Experiência de Porto Alegre

efetivamente no combate e na prevenção à violência junto à sociedade, o


que evidencia a necessidade de mecanismos de controle e de prevenção
da violência do Estado pela própria sociedade.

O que temos visto é que o Estado tem sido incapaz de combater o


crime organizado de forma mais efetiva. Em algumas situações, torna-se
seu refém ou sócio quando a rede do crime se estabelece com relações
com segmentos da elite política e/ou econômica. Em outras, torna-se
impotente e despontencializado para o combate ao crime (mesmo o do
varejo) devido à adesão a este de segmentos das polícias e/ou outras
instituições, invertendo assim a lógica de ação dos agentes públicos. Esta
situação, em seu conjunto, gera uma lógica de impunidade, que estimula e
reforça o crime, perpetuando e agravando a incapacidade do Estado de
combatê-lo, seja no atacado ou no varejo. Também gera uma insegurança
que se agrava no conjunto da sociedade, bem como favorece o sentido
de falta de alternativa para os segmentos que vivem e/ou sobrevivem na
relação com o crime, facilitando a adesão a estes, ou gerando um
sentimento de conformismo e adaptação ou ainda, no outro extremo,
justificando a “justiça com as próprias mãos”.

Neste contexto, a violência passa a ser uma escolha, não só na


relação com o crime, mas também na vivência do cotidiano, na resolução
das diferenças e dos conflitos que são normais e acontecem em todos os
níveis das relações sociais (trânsito, trabalho, lazer, família, vizinhança).

3. POLÍTICAS DE SEGURANÇA: CONCEPÇÃO TRADICIONAL

A percepção tradicional da segurança pública representa um


obstáculo para obtermos resultados mais satisfatórios em relação ao
problema, limitando a discussão do mesmo às esferas da justiça e da polícia,
passando despercebidas ou desconsideradas as demais dimensões deste
grave problema social.

Historicamente, a escolha da criminalidade e da violência tem sido


atribuída, fundamentalmente, à dimensão individual, como desvio
comportamental e desajuste social, tendo como solução o condicionamento
do comportamento, através de ações repressivas. Se isto era suficiente,
em uma época em que o crime era pontual e uma exceção, na atualidade,
com a massificação e banalização da violência e o crescimento significativo

466
Helena Bonumá* e Luiz Antônio Brenner Guimarães**

e desordenado da criminalidade, esta estratégica é inoperante e incapaz


de enfrentar o problema.

Na prática, as conseqüências - condutas criminosas e violentas -


são consideradas como responsáveis pelo problema. Desta maneira, sem
preocupação de refletir sobre o motivo que faz com que um número
cada vez maior de pessoas pratique delitos e agressões aos seus
semelhantes, o único caminho visualizado é o sistema de justiça e polícia,
com o fortalecimento da vigilância e da punição.

Essa percepção traz três decorrências para a visualização e o


enfrentamento da problemática da violência em sua totalidade. A primeira,
é que os organismos da justiça e polícia responsáveis pelo problema, têm
a compreensão de que as soluções nessa área são de sua responsabilidade
exclusiva, sendo os cidadãos receptores passivos dos serviços. A segunda,
é que a prevenção somente é concebida a partir do condicionamento do
comportamento pela ação da justiça e da polícia, sem considerar a relação
com outras políticas públicas. E, a terceira, é que a sociedade pouco ou
nada se apropriou do tema, que sempre foi responsabilidade das
autoridades especializadas, dificultando qualquer forma de participação,
avaliação e cobrança, resultando no afastamento da comunidade da
discussão das políticas de segurança e da interação com os organismos
responsáveis pela prestação de serviço nessa área, pois, com esta
percepção, o assunto deve se restringir aos profissionais de polícia e justiça,
sendo meramente uma intervenção técnica.

Neste contexto, qualquer reflexão sobre o sistema de justiça e


polícia mostra que o mesmo é uma caricatura daquilo que é descrito na
nossa legislação. Na prática funciona com muita fragilidade, com cada
organismo atuando quase que isoladamente, estabelecendo intervenções
fragmentadas e com um baixo nível de auxílio mútuo, além de distanciado
da realidade das comunidades. Entre as evidências da situação, pode-se
citar a inexistência de uma base de dados única, a falta de coincidência
entre as áreas de atuação dos órgãos, bem como com a divisão
administrativa dos municípios, e a ausência de coordenação do sistema.
Sua atuação traz evidências da violência, arbitrariedade, corrupção,
amadorismo e de uma seletividade dominada pelos estigmas e pelos
preconceitos. Sua baixa capacidade de respostas às demandas do cotidiano
que, no Rio Grande do Sul, está representada por 1,4 milhões de inquéritos
policiais parados nas Delegacias de Polícia; por 20 mil mandados de prisão

467
Uma Política Alternativa de Segurança com Participação Social:
a Experiência de Porto Alegre

a serem cumpridos; pela remessa de somente 42% dos inquéritos policiais


abertos em um ano à justiça; pelas 3,6 mil perícias aguardando solução
por mais de ano e inviabilizando o processo penal; pela manifestação do
Ministério Público de que, por ano, somente consegue denunciar 17%
dos inquéritos analisados, estimulando assim todo um processo de
impunidade, além de mostrar com muita clareza a defasagem do sistema.

4. POLÍTICAS DE SEGURANÇA: CONCEPÇÃO ALTERNATIVA


A construção de formas alternativas para o tratamento da
problemática da violência e da criminalidade passa pela necessidade de
percebê-la diferentemente do que tem sido a compreensão tradicional,
analisando a mesma no seu conjunto e com todos os elementos que a
compõem. Assim, uma política alternativa de segurança precisa ser
composta, no mínimo, por três elementos estruturantes.

O primeiro deles é a construção de um outro patamar de


funcionamento do sistema de justiça e polícia, qualificado, respeitoso,
adequado, integrado, complementar, e submetido à participação e controle
da comunidade, contemplando suas duas dimensões – tanto individual de
cada ente, quanto coletiva como sistema.

Na dimensão especifica de cada ente, por desenvolver capacidade


técnica apurada, gestão qualificada, incorporação de tecnologia e boas
condições de trabalho, e, além disso, possibilitar, em todas as etapas da
intervenção, reconhecimento das diferenças e das diversidades sociais,
garantindo os direitos individuais e o respeito à dignidade das pessoas,
reagindo contra os preconceitos e os estigmas, colocando no centro da
atuação a atenção aos cidadãos (ãs) e que o uso da força e da violência legal,
seja judicioso, necessário, legítimo, não reproduzindo a violência criminosa.
Nesta dimensão, ainda é necessária uma adequação mais rigorosa às finalidades
de cada instituição, potencializando sua ação, superando a impotência e a
impunidade que deriva da incapacidade de resposta.

Na dimensão coletiva do sistema, deve-se considerar pelo menos


três aspectos. 1) Mesmo no âmbito da intervenção de cada ente, o
funcionamento como sistema potencializa a capacidade individual de
resposta a partir do compartilhamento de informações, da elaboração de
diagnósticos conjuntos, da sintonia das ações, atribuindo mais qualidade
ao processo como um todo. 2) O nosso sistema jurídico-institucional

468
Helena Bonumá* e Luiz Antônio Brenner Guimarães**

tem um desenho onde os entes possuem funções complementares que,


mesmo tendo limitações, devem funcionar de forma integrada, com alto
grau de complementaridade entre as atividades planejadas e os serviços
cotidianos prestados, com áreas geográficas de atuação coincidentes, banco
de dados único, inteligência e formação básica unificada, com sincronia
entre as ações e os processos desenvolvidos, considerando todos os níveis
públicos e comunitários. 3) Além da intervenção específica de cada ente
deve-se considerar que, para o enfrentamento de alguns problemas, são
necessárias intervenções em conjunto, desenvolvidas a partir da elaboração
de diagnósticos específicos para cada situação (espacial, temporal ou
temática), orientadas em uma metodologia que contemple um
planejamento sustentado no exercício de inteligência estratégica, voltado
para o tratamento das incidências recorrentes e executado de forma
integrada e complementar.

Os outros dois elementos estruturantes de uma política alternativa


de segurança decorrem da constatação de que, se a escolha da violência e
da criminalidade tem uma dimensão individual, atualmente, pela sua
disseminação e recorrência, torna-se um problema social grave, não
podendo mais ser tratado com a lógica anterior, apenas no âmbito das
ações de polícia e justiça. É necessário o reconhecimento da sua dimensão
social, do contexto em que está inserida, passando a ser compreendida
como um problema bem mais complexo que envolve socialização,
formação de subjetividade, pertencimento, reconhecimento,
oportunidades e inclusão. Neste âmbito a estratégia central é a articulação
de políticas de prevenção.

Assim, o segundo elemento estruturante desta política alternativa


de segurança - ações e políticas sociais -, deve ser considerado em uma
dimensão geográfica e comunitária específica, relacionada a diagnósticos
detalhados do espaço a ser considerado, contemplando um processo
coordenado, focado e sincronizado, caracterizado pela participação de
todos os segmentos, buscando trabalhar os problemas específicos
identificados. Este método deve ter uma capacidade de construir uma
intervenção integrada, permeando a execução das diferentes políticas
sociais com a prevenção e o enfrentamento do problema, possibilitando
resultados concretos no campo da inclusão material e social, da promoção
de oportunidades legítimas, melhorias das condições ambientais e de vida.
Além do que, o método deve potencializar os pontos críticos da execução
das políticas públicas universais, como o abandono da infância, a evasão

469
Uma Política Alternativa de Segurança com Participação Social:
a Experiência de Porto Alegre

escolar, a gravidez na adolescência, a drogadição, as medidas sócio-


educativas, a violência doméstica, a progressão da pena e a reincidência.

O terceiro elemento estruturante de uma política alternativa de


segurança consiste na participação social, representada, tanto pelo
envolvimento e organização coletivas para discutir problemas locais e
encaminhar lutas e interesses comuns, romper com o isolamento e ocupar
coletivamente espaços públicos, estimular a coesão e a construção de pactos
de convivência, definir estratégias de resolução de conflitos e das insatisfações
através de meios não-violentos, quanto também, pela participação na
construção de diagnósticos, definição de prioridades, monitoramento e
avaliação dos projetos da segurança pública e no controle social.

Assim, uma forma alternativa de tratar a segurança passa pela


compreensão ampliada da idéia de prevenção, onde somamos as ações
repressivas da justiça e da polícia, que queremos adequadas e qualificadas,
com as ações preventivas - políticas sociais, urbanas e comunitárias, voltadas
para a harmonia e fortalecimento da coletividade. O desafio aqui tem
outra lógica: quais as políticas que uma sociedade deve adotar para diminuir
o número de pessoas a fazerem escolhas pelas condutas criminosas e/ou
violentas. Neste sentido, uma política alternativa de segurança precisa
contemplar, no mínimo, estes três elementos estruturantes: ações de polícia
e justiça, articulação e integração de políticas públicas e as ações de
envolvimento da comunidade, a partir de uma intervenção focalizada,
integrada, sincrônica e coordenada.

5. PORTO ALEGRE: A PARTICIPAÇÃO SOCIAL NA CONSTRUÇÃO


DE POLÍTICAS PÚBLICAS.

Em Porto Alegre, no período de 1989-2004, durante as gestões da


Administração Popular, se desenvolveu um processo de participação social,
fruto do acúmulo dos movimentos sociais e comunitários e do
compromisso do governo. Esta experiência foi gestada a partir da discussão
do orçamento público e das prioridades de investimentos do município,
avançando para a estruturação do Orçamento Participativo, com ciclo
anual e permanente de funcionamento, de 32 Conselhos Municipais
Setoriais, Conferências Municipais Temáticas e Congressos da Cidade.
O desenvolvimento e a estruturação deste sistema de democracia
participativa significaram efetivamente um processo de socialização da

470
Helena Bonumá* e Luiz Antônio Brenner Guimarães**

política, com a superação das distâncias entre governantes e governados,


com a criação dos espaços democráticos de participação e de decisão,
consolidação de uma nova esfera pública não governamental, de elaboração
de políticas, de decisão, de fiscalização e controle do orçamento e da
gestão. .Uma experiência de democracia que, mais além dos mecanismos
formais herdados do liberalismo, promoveu formas participativas e diretas,
mais amplas, mais profundas e mais autênticas, mais do que uma mera
representação, tendo uma dimensão de participação direta e de
deliberação, onde o sistema político abre mão das suas prerrogativas de
decisão em favor da afirmação da participação popular. Este processo
teve o mérito de romper com a lógica da relação do Estado com a
população no Brasil, via de regra, caracterizada pelo afastamento e
autoritarismo, bem como pelo paternalismo, populismo e a
instrumentalização da participação popular.

Por outro lado, esta experiência fomentou a auto-organização social


como elemento fundamental de socialização da política, numa participação
ativa e deliberação coletiva na construção de um novo poder, onde os
excluídos passam a ser sujeitos de sua própria história. Este processo formou
uma geração de lideranças comunitárias e sociais nesta nova perspectiva,
capilarizou iniciativas de organização e ações comunitárias, integrou
segmentos e regiões, constituindo identidades, enraizamento e solidariedade.

Outra dimensão importante desta experiência democrática é que o


impacto do orçamento participativo na redistribuição dos recursos
públicos a favor dos grupos sociais mais carentes e no estabelecimento
de novos critérios de justiça na distribuição dos investimentos, bem como
os processos de elaboração das políticas públicas nas mais diferentes áreas,
mudaram a face da cidade, num movimento criativo de superação da lógica
de exclusão social e política, na construção de direitos, de políticas
compensatórias e afirmativas, enfrentando o preconceito e a discriminação,
contemplando a diversidade, o respeito às diferenças, a solidariedade, e a
exigência de igualdade e de justiça social com pluralismo político e cultural.

Por fim, salientamos como um dos resultados desta experiência, o


acúmulo no sentido da construção de uma nova hegemonia política. A
ampliação e o aprofundamento do processo participativo produziram novas
práticas e novas relações que mudaram a vida da cidade e dos cidadãos.
Produziram também novos valores e novas sínteses, numa dinâmica que
se renovou e se enriqueceu, afirmando mecanismos políticos que

471
Uma Política Alternativa de Segurança com Participação Social:
a Experiência de Porto Alegre

garantiram a participação, o diálogo, a formação, a partilha, a socialização


da informação e dos investimentos, a apropriação e a construção de
conhecimento, o controle crescente do poder. Com certeza, um processo
curto do ponto de vista histórico, com contradições e limites. Mas uma
experiência corajosa, alternativa e radical, como semente de uma nova
sociedade baseada na participação, na solidariedade e na justiça social.
Uma democracia conscientizadora e transformadora de si mesma, uma
mostra de que um outro mundo é possível.

6. A PARTICIPAÇÃO SOCIAL E A SEGURANÇA EM PORTO ALEGRE

É na seqüência desta história que, a partir de 2001, no início da quarta


gestão da administração popular, o tema da segurança passou a ser
incorporado como uma política a ser desenvolvida também como
responsabilidade do município, o que resultou em um diagnóstico e
articulações iniciais, bem como algumas ações. Ao final de 2002 foi criada a
Secretaria Municipal de Direitos Humanos e Segurança Urbana (SMDHSU),
fruto de duas Conferências Municipais de Direitos Humanos e da experiência
acumulada no município no tratamento do tema da violência.

Dando conseqüência ao processo participativo na apropriação e no


desenvolvimento de uma política de prevenção da violência, durante o
ano de 2003, foi realizado um roteiro de seminários e plenárias nas 16
regiões do Orçamento Participativo, culminando com a elaboração do
Plano Municipal de Segurança Urbana e a formulação e estruturação de
um Sistema Municipal de Proteção Social, constituído do Conselho
Municipal e sua rede, com os 16 Fóruns Regionais e os Conselhos
Comunitários de Justiça e Segurança, nas regiões da cidade.

Duas ações realizadas a partir do Plano Municipal são objetos deste


texto, pois tratam especificamente do tema da participação social em um
projeto de prevenção à violência e segurança – o Conselho Municipal de
Justiça e Segurança e sua rede - e a intervenção localizada junto à
comunidade do Loteamento Cavalhada. Cada experiência está relatada
separadamente, sem, contudo, obedecer à ordem cronológica.

O Sistema Municipal de Proteção Social


O Conselho Municipal, os Fóruns Regionais de Justiça e Segurança
e os Conselhos Comunitários foram criados por lei municipal em janeiro

472
Helena Bonumá* e Luiz Antônio Brenner Guimarães**

de 2003 (Lei 487, 14Jan03), como espaços de articulação dos órgãos


públicos e comunitários na análise da temática, elaboração de diagnósticos,
e na busca das soluções mais adequadas para o enfrentamento e a prevenção
à violência, nos níveis municipal, regional e local, na perspectiva de uma
metodologia de resolução de problemas. Sua estrutura e organização
foram posteriormente definidas a partir de um processo de discussão
com a comunidade. Este debate ocorreu durante o ano de 2003 e definiu
a regulamentação da Lei, sendo concluído em março de 2004, quando foi
instalado o Conselho Municipal e sua rede dos 16 Fóruns Regionais.

Do ponto de vista da distribuição geográfica, o Sistema Municipal


de Proteção social busca estabelecer uma capilaridade em toda a cidade,
através do Conselho Municipal de Justiça e Segurança e sua rede que é
composta por 16 Fóruns Regionais, um em cada região do Orçamento
Participativo e, ainda nestas regiões, a disseminação dos Conselhos
Comunitários de Justiça e Segurança.

A finalidade básica do Conselho é constituir-se em um espaço que:


a) estimule a articulação dos organismos judiciais, policiais, sociais e
comunitários no desenvolvimento das atividades de segurança pública no
município; b) represente um espaço permanente de debate, fiscalização e
avaliação das questões referentes ao tema; c) garanta a participação
comunitária para encaminhar problemas, solicitações, sugestões, avaliação
de projetos públicos e prestação de contas; e, d) sirva de canal de
comunicação com os órgãos públicos para demandar serviços e
providências. Sua composição tem um representante comunitário de
cada Fórum Regional, representantes dos órgãos municipais, dos órgãos
estaduais, da Polícia Federal, do Ministério Público, de organizações não-
governamentais. Os Fóruns Regionais consistem em uma extensão
regionalizada do Conselho tendo uma composição semelhante, sendo
integrado por 13 representantes comunitários da região, eleitos em
assembléias, realizadas a cada dois anos, sendo um dos 13 indicados como
representante no Conselho Municipal.

A participação dos organismos públicos do estado, da união e dos


demais poderes e das organizações não-governamentais decorreu de um
processo de articulação e negociação organizado pelo governo municipal,
culminando com a assinatura de um protocolo formalizando a adesão.
Nesta articulação, duas instâncias não aceitaram participar, o Poder
Judiciário, que alegou incompatibilidade com a lei da magistratura e a

473
Uma Política Alternativa de Segurança com Participação Social:
a Experiência de Porto Alegre

Defensoria Pública do Estado que, mesmo reconhecendo o mérito e


importância da política, alegou deficiência de quadros.

Este período inicial de construção do Sistema é dividido em duas


fases distintas. A primeira delas, durante 2003 e 2004, foi de implantação
através de intensos movimentos de articulação e mobilização, tantos dos
órgãos públicos, como da comunidade, na estruturação de cada instância,
trazendo como resultado, ao final de 2004, o funcionamento ordinário mensal
do Conselho Municipal e de seus Fóruns Regionais. Este esforço foi
coordenado e impulsionado pela SMDHSU, conformando aos poucos o
que deve ser o papel do município na segurança urbana, num processo de
construção coletiva com participação institucional e comunitária,
considerando pesquisas, diagnósticos, produções teóricas e acadêmicas,
em sintonia com o debate nacional dos municípios sobre esta problemática,
com as iniciativas do governo Lula, e com acompanhamento de experiências
internacionais. Portanto, existiu uma deliberação, uma intencionalidade do
governo da Administração Popular em, ao assumir a problemática da
segurança como responsabilidade sua, fazê-lo de forma a romper com os
limites da política tradicional, buscando a construção de um novo paradigma
que, integrando todos os responsáveis pela questão que exercem suas
atribuições no município, com a participação da comunidade, sustentasse
um processo de construção de uma política alternativa que superasse os
limites e os estrangulamentos atuais das políticas de segurança. Para isto,
contávamos com a extraordinária experiência participativa de Porto Alegre
na elaboração de políticas públicas e com o acúmulo produzido na área da
segurança pelo governo popular no Rio Grande do Sul, de 1999 a 2002.

A partir de janeiro de 2005, com uma nova gestão na administração


municipal, eleita no ano anterior, esta política ingressa numa segunda fase.
Mesmo que o novo prefeito (José Fogaça, eleito pelo PPS, atualmente no
PMDB para concorrer à reeleição), em alguns eventos públicos, tenha
manifestado a importância e o ineditismo das linhas de intervenção do
Plano Municipal, em especial o Conselho e Fóruns Regionais de Justiça e
Segurança, e que seu governo tenha o compromisso de manter, pois
considera políticas de Estado, a prática tem sido muito diferente. Percebe-
se um claro retrocesso, pela carência de uma concepção clara e pela
realização de uma execução caricata, bem como pela desestruturação da
Secretaria, enquanto gestora pública responsável pelas políticas de direitos
humanos e segurança urbana, considerando como único elemento da

474
Helena Bonumá* e Luiz Antônio Brenner Guimarães**

política municipal de segurança a Guarda Municipal, representando uma


versão local da polícia.
Em relação ao Conselho Municipal e sua rede, existe um total
descaso, tanto do ponto de vista de enfraquecer o apoio técnico e
administrativo, quanto pela da falta de discussão, nestes espaços, dos
projetos e suas prioridades e das prestações de contas, além de
desconsiderar totalmente o Plano Municipal aprovado e as decisões da 1ª
Conferência Municipal de Segurança Urbana (realizada pelo Conselho
Municipal em maio de 2006). Esta situação foi se agravando com o passar
do tempo neste período de 2005/2007, a ponto de, no primeiro semestre
de 2007, ocorrer um movimento de conselheiros comunitários para
garantir o funcionamento do sistema, que elaborou carta-denúncia,
provocando sessão pública na Câmara de Vereadores e audiências no
Ministério Público Estadual e Federal, além do encaminhamento de
documento ao Ministério da Justiça.
Esta situação permite destacar que, dentre os limites e obstáculos
à instituição e ao funcionamento de um sistema como este, três questões
são centrais. A primeira delas é que a ação do poder público é fundamental
para a efetivação desta política. Seu comprometimento e sua participação,
tanto na articulação do processo, quanto na construção e validação
permanente destes espaços como fóruns privilegiados para discutir seus
projetos, definir prioridades, fazer as prestações de contas devidas,
considerando-o como um espaço permanente de diálogo com a
comunidade, são condições necessárias para o desenvolvimento das ações
nesta área. Mas em Porto Alegre, neste momento, acontece ao contrário.
O poder público municipal está capitaneando a desconstituição do
processo. A fala do prefeito de que “são políticas de Estado” não resiste
à lógica hegemônica de uma gestão tradicional do Estado e das políticas
tradicionais de segurança pública.
A segunda questão central para a afirmação desta proposta é que o
poder público deve ser fiador, perante à comunidade, da nova possibilidade
representada por esta nova construção, possibilitando assim a superação,
por parte da comunidade, dos limites do senso comum que consideram
o enfrentamento da violência e da criminalidade somente a partir da
intervenção da polícia e da justiça, o que inibe a participação e dificulta a
atuação voltada à prevenção e a construção de um plano integrando as
demais políticas públicas e ações sociais no processo da prevenção. Se

475
Uma Política Alternativa de Segurança com Participação Social:
a Experiência de Porto Alegre

isto foi um importante elemento impulsionador da primeira fase da


construção do Sistema de Proteção Social, agora, a situação é invertida. A
comunidade pressiona o poder público municipal para assumir suas
responsabilidades legais frente ao processo, inclusive denunciando-o e
recorrendo à outras esferas institucionais.
Por fim, a terceira questão que se coloca como um elemento
insubstituível para efetivação do Sistema de Proteção Social é a necessidade
da experimentação. Somente a partir do funcionamento concreto desta
engrenagem é que pode haver a integração das instituições, a participação
da comunidade, a socialização de informações, a elaboração coletiva, a
construção de acordos, constituindo capacidade de decidir sobre os
processos, de monitorar e avaliar as ações. Apenas o funcionamento efetivo
poderá mostrar contradições e limites a serem superados. Portanto, a
experimentação é um requisito à consolidação do sistema, que só tem
sentido se, com seu funcionamento, conseguir incidir no enfrentamento e
na prevenção à violência vividos em nossa cidade.
Hoje, no entanto, temos uma participação dos organismos públicos
de muito baixa qualidade, pois, além do quadro de ausências freqüentes e
significativas, inclusive de alguns órgãos municipais que há meses não
comparecem, os que comparecem não se dispõem a privilegiar esta
instância como um espaço de construção e controle de políticas de
segurança, tendo uma participação meramente formal. E, a participação
comunitária, que se esforça para garantir a consolidação do Conselho e
sua rede, mas com muitas dificuldades.
Com certeza, a situação que vivemos hoje não possibilita que a generosa
experiência participativa de Porto Alegre fecunde, com sua energia e seu
potencial criativo, a construção de uma esfera pública mais ousada que, a
exemplo do acontecido em muitas outras áreas, possa responder ao
enfrentamento dos problemas da violência e da segurança, contribuindo para
melhores condições de vida na cidade, para a garantia de direitos, para a
afirmação da democracia como método de construção das políticas e para a
afirmação de sujeitos como condição para a democracia. Mas esta construção
é um processo em aberto, portanto, uma história a ser continuada.

Intervenção localizada no Loteamento Cavalhada

O Plano Municipal de Segurança Urbana previa, como uma de suas

476
Helena Bonumá* e Luiz Antônio Brenner Guimarães**

Linhas de Intervenção, as intervenções localizadas que consistiam no


desenvolvimento de uma estratégia de prevenção e enfrentamento à
violência, com uma metodologia adequada para intervenção em
comunidades em situação de vulnerabilidade social e submetidas a
processos de violência e criminalidade, com o objetivo de alterar
significativamente a situação, criando capacidade comunitária de resistência
e construção de alternativas. Para tanto foram escolhidas oito
comunidades, uma de cada região de planejamento da cidade, com os
critérios acima e com histórias emblemáticas que simbolizam a
problemática, sendo o Loteamento Cavalhada uma destas áreas.

O Loteamento Cavalhada é resultado de um processo de


assentamento de famílias oriundas de ocupações irregulares, possuiu 584
casas, com aproximadamente três mil pessoas, caracterizando uma
comunidade jovem e de baixa renda e escolaridade. No Loteamento há
uma presença significativa e de qualidade do poder público, pois além das
novas casas, no seu interior existe escola municipal, posto de saúde da família,
creche comunitária, módulo de esporte, módulo da assistência social,
incubadora de geração de renda e uma unidade de triagem de lixo reciclável,
operada por uma cooperativa de catadores de moradores do local.

Em junho de 2002, o loteamento apresentava a seguinte


caracterização: 1) Dois grupos criminosos, compostos majoritariamente
por jovens integrantes da comunidade, disputavam os espaços, havendo
brigas e tiroteios freqüentes, varejo do tráfico de drogas e de armas, o
que dividia o loteamento, literalmente, em duas partes distintas; 2) Os
problemas de violência entre os dois grupos criminosos estavam colocando
em colapso todos os serviços públicos ali existentes: a escola operava
com 50% de sua capacidade, o módulo do esporte e o da assistência
social foram desativados, o Posto de Saúde da Família ameaçava fechar, a
incubadora foi desativada, a creche apresentava constantes depredações
e furtos e a unidade de triagem apresentava dificuldade no seu
funcionamento: 3) A comunidade fragmentada e fragilizada, submetida à
lógica imposta pelos grupos criminosos, demonstrava muito medo, não
apresentando condições para qualquer reunião ou ação, pelo menos nos
limites do loteamento, ou em atividades públicas, sendo que igual medo
apresentavam os servidores públicos municipais para realizarem suas
atividades naquele espaço. A Associação de Moradores estava totalmente
desarticulada; 4) Havia conflito do loteamento com o entorno, produzido,

477
Uma Política Alternativa de Segurança com Participação Social:
a Experiência de Porto Alegre

no primeiro momento, pelo preconceito com as condições sociais de


vulnerabilidade da comunidade e sua origem, uma vez que a região é
integrada por comunidades bem desenvolvidas e com um bom nível
socioeconômico e, num segundo momento, pelo agravamento da violência
que extrapolava os limites do loteamento, como os tiros disparados nas
disputas entre gangues. Além do que, grande parte dos roubos e furtos
da região passava a ser atribuída àqueles moradores, sendo que estas
notícias estavam ocupando pauta da mídia da cidade.

Esta caracterização tem uma peculiaridade importante a ser


considerada, pois contraria a afirmação de que a violência e o crime se
alastram onde o poder público e seus serviços não estão presentes. Neste
loteamento, os serviços públicos e seus equipamentos estavam presentes
em uma proporção considerável e de boa qualidade e, mesmo assim, a
comunidade ficou à mercê de uma pequena representação de criminosos, a
partir do que, os serviços foram um a um, sendo atingidos. Isto permite
considerar que é insuficiente somente oferecer as condições e os serviços
de qualidade. As execuções de políticas públicas precisam dialogar e ter
capacidade de responder ao contexto no qual estão inseridas - no caso, a
violência. Além disto, devem estar sintonizadas e articuladas com a execução
das políticas de segurança na região, bem como estimular o fortalecimento
das relações comunitárias e das organizações da comunidade.

Assim o governo municipal, em julho de 2002, resolveu promover


uma intervenção para restabelecer condições de convivência e comunidade
no local e restabelecer o oferecimento pleno da prestação do serviço
público. Esta intervenção ocorreu antes da criação da Secretaria Municipal
de Direitos Humanos e Segurança Urbana em decorrência da situação
peculiar de violência que a comunidade vivia. Seu acúmulo foi importante
para a criação da secretaria e para a elaboração do Plano Municipal de
Segurança Urbana. A experiência aqui relatada ocorreu entre agosto de
2002 e dezembro de 2004.

A questão da segurança, em seus primeiros passos no município,


era então responsabilidade da Secretaria de Governo Municipal, que
coordenou o processo que, portanto, contou com uma certa capacidade
de centralização do governo. Iniciou com a formação de uma Gerência
Ampliada específica para articular e realizar as atividades dos diversos
órgãos do município com interface na comunidade. As ações planejadas
contavam quatro eixos: 1º - ações sistêmicas que potencializavam os

478
Helena Bonumá* e Luiz Antônio Brenner Guimarães**

serviços; 2º - mobilização e envolvimento da comunidade; 3º - ações


coletivas de oferecimento de oportunidades, geração trabalho e renda,
esporte, cultura e lazer; e, 4º - articulação de parcerias institucionais. O
plano de intervenção do governo municipal foi organizado em três etapas:
ações emergenciais, ações a médio prazo e ações a longo prazo.

Duas medidas efetivaram as ações emergenciais: uma articulação


com as policias, em especial a Brigada Militar que realizava o policiamento
ostensivo na região; e, ações do governo municipal, que tinham o objetivo
de mobilizar e envolver a comunidade, além de criar as condições para a
superação do medo nas ações coletivas em vias públicas.

A Brigada Militar, a partir da articulação, planejou e executou por


um período de dois meses, o policiamento ostensivo com viaturas
permanentes durante 24 horas por dia, o que de imediato inibiu o trânsito
em público de armas de fogo, além de inviabilizar o comércio criminoso
ali instalado e, após, manteve um policiamento direcionado de acordo
com as avaliações que iam sendo feitas. Durante este período as atividades
policiais na região originaram a prisão de lideranças criminosas dos dois
grupos e desarticulou a organização do comércio ilegal local. A Polícia
Civil não participou do processo, pois o delegado responsável pela
delegacia regional na época solicitou, como condição, que a prefeitura
fosse parceira para obter, junto ao poder judiciário, mandato de busca e
apreensão para as 584 casas do loteamento, o que, evidentemente, estava
fora de questão. Se o delegado não conseguia cumprir com sua
responsabilidade de fazer investigação, a prefeitura não seria parceira na
violação de direitos básicos daqueles cidadãos. A ação da Brigada foi
monitorada e avaliada durante sua execução, pois não queríamos reproduzir
a violência contra a comunidade, que muitas vezes acontece quando a
polícia faz este tipo de operações. Cabe ressaltar aqui, que a ação da
Brigada Militar foi em consonância com os propósitos da intervenção
planejada pela prefeitura, o que nos demonstra o potencial que existe
para ações conjuntas, planejadas e executadas em conjunto, com o mesmo
objetivo, onde cada um dos órgãos cumpre o seu papel, permitindo um
avanço na qualidade do resultado, na afirmação de direitos e de cidadania
para as comunidades envolvidas.

Paralelamente à ação da Brigada, o governo municipal planejou um


conjunto de ações que tinham o objetivo de romper com a situação que
estava posta e envolver a comunidade, fortalecendo-a enquanto coletivo.

479
Uma Política Alternativa de Segurança com Participação Social:
a Experiência de Porto Alegre

Estas ações contemplaram a oferta de serviços públicos em via pública,


na primeira fase, com intensidade e concentração, principalmente
ocupando as vias principais do loteamento com a oferta de diversos
serviços na área da saúde, educação, cultura, esporte, assistência social,
regularizações de documentação, além de desenvolver atividades, como
cultos ecumênicos, campanhas temáticas específicas, abertura da escola
nos finais de semana, contato com pessoas na rua e visitas dos agentes
municipais às residências, levantamentos de opiniões e atualização do
cadastramento da habitação. Com os jovens foram estimulados diversos
processos temáticos através de oficinas semanais, a partir da escola, onde
foram escolhidos pelos próprios jovens os temas da rádio comunitária,
capoeira, dança, grafite.

O primeiro resultado, alcançado ao final do mês inicial destas medidas,


foi o envolvimento de parcela da comunidade nas atividades o que possibilitou
a realização de reuniões comunitárias no próprio loteamento, junto à escola,
envolvendo a comunidade, a Gerência Ampliada e outras organizações
públicas, como a Brigada Militar. Destas reuniões resultou um plano de
atividades que contemplou a formação de grupos de atividades (Mutirão da
Praça, Mutirão da Limpeza, Clubes de Mães e Conselho da Praça) e
comissões (Praça, Jornal, Segurança, Direitos Humanos).

Na seqüência, com reuniões periódicas e sistemáticas, o plano de


atividade continuou a ser executado, monitorado e avaliado. Entre as ações
concretizadas estão: a organização da praça, a edição de dois jornais sobre
a história do loteamento, oficinas diversas, renovação da direção da
Associação dos Moradores, debate e votação pública para escolha dos
nomes das ruas do loteamento, encaminhamento do projeto com os
nomes de ruas para a Câmara de Vereadores, mutirão da limpeza, eventos
culturais e temáticos, processo de oficinas para a juventude, grupo de
geração de renda das mulheres, a partir do clube de mães, pesquisa sobre
os moradores e atualização do cadastro do Departamento Municipal de
Habitação, exposição de produtos produzidos e feiras de artesanatos,
ampliação da Unidade de Triagem (gerando 24 novos postos de trabalho),
e, por fim, desenvolvimento da atividade de macro drenagem e a
pavimentação das ruas.

Ao final deste período, as avaliações realizadas mostravam uma


melhoria significativa das condições de vida do loteamento, o fortalecimento

480
Helena Bonumá* e Luiz Antônio Brenner Guimarães**

da comunidade e a redução das manifestações da violência e da criminalidade,


além do que os grupos criminosos estavam desarticulados. Entre os pontos
destacados, estão: a reorganização e o fortalecimento da Associação de
Moradores, a criação do Clube de Mães e um grupo de geração de trabalho
e renda participando em uma rede de economia solidária; retorno da
normalidade dos serviços públicos; a violência na comunidade saiu das notícias
da mídia; a comunidade passou a ter a auto-gestão da creche comunitária;
redução das atividades do tráfico e de circulação de armas; redução dos
conflitos violentos e das ocorrências policiais; os espaços públicos sendo
ocupados com maior intensidade e coletivamente; diminuição da evasão
escolar; diminuição da depredação dos prédios públicos e comunitários;
renovação da capacidade da escola; confiança maior na circulação nos espaços
públicos; rompimento da divisão física do loteamento estabelecida pelos
grupos em conflito.

Algumas questões importantes, que foram tratadas no processo da


intervenção, ficaram pendentes, pois, pela sua complexidade, requeriam
um tempo mais prolongado de atenção, oportunidade que não tivemos,
para articulações interinstitucionais e acúmulos que permitissem avanços
mais significativos. Trata-se do cumprimento das medidas sócio-educativas,
do melhor acompanhamento do problema da evasão escolar, da
drogadição dos jovens, da gravidez na adolescência, das ações do Conselho
Tutelar (que se negou a participar do processo), da violência doméstica e
do problema do acompanhamento das progressões de medidas penais e
dos egressos do sistema penitenciário. Acreditamos que o investimento
nestas questões num espaço maior de tempo teria trazido resultados
significativos ao processo.

Hoje, o governo municipal não mantém a metodologia de ação da


forma que havia sido concebida neste processo e, se é verdade que muitas
das coisas construídas na intervenção se mantém, como é o caso da
Associação dos Moradores, Grupo de Geração de Renda, gestão
comunitária da creche, e os índices de violência não voltaram àquele
patamar do início da intervenção, a problemática da violência foi retomada
em certa medida e não há forma coletiva e articulada de enfrentamento à
ela. Sendo emblemático de paradigma na execução das políticas públicas,
a primeira medida do governo municipal atual foi construir um muro em
torno da escola que só atende à própria comunidade.

481
Uma Política Alternativa de Segurança com Participação Social:
a Experiência de Porto Alegre

7. CONSIDERAÇÕES FINAIS

A complexidade do contexto contemporâneo da violência e a falência


das políticas públicas tradicionais de segurança no seu enfrentamento criam
a necessidade da busca de políticas alternativas, que contemplem os vários
elementos que compõe este grave problema social. Assim, por um lado,
é preciso dar um outro patamar de qualidade e inteligência às ações de
polícia e justiça, capaz de responder às demandas atuais. E, por outro
lado, é preciso agregar a estas ações a prevenção através das políticas
públicas de inclusão e organização social e também das ações de
participação social.

A participação social em uma política alternativa de segurança pode


ser efetivada através de espaços de integração entre as esferas institucionais
e governamentais e comunitárias, na afirmação de uma nova esfera pública
onde realmente ocorra o debate e as deliberações relativas aos projetos
nesta área (prioridades, monitoramento, avaliação e prestação de contas)
e o controle social das ações governamentais na execução das políticas.
Sem que isto secundarize a necessidade de que estes órgãos com
competência na área de justiça e polícia tenham sua esfera de planejamento
e decisão própria, que precisa ser efetiva a partir da relação com o
processo mais amplo. E, também, através das ações coletivas da própria
comunidade no sentido de fortalecer a coesão e organização social em
torno dos seus problemas comuns e de suas lutas, na busca de pactos de
convivências mais solidários e justos.

Por fim, cabe destacar que o principal limite à participação social


em uma política de segurança é constituído pelo grau de
descomprometimento e falta de envolvimento do poder público em
cumprir a sua parcela de responsabilidade na estruturação e no
funcionamento destes mecanismos.

Nota
1
Guayí, Democracia, Participação e Solidariedade (www.guayi.org.br)

482
I LE
CH
Relato Policial
CARABINEROS DO CHILE COMO
GARANTIA DA ORDEM PÚBLICA NO CONTEXTO
DO CONFLITO MAPUCHE
Hernando Hevia Hinojosa*

Por Mandato Constitucional, conforme o artigo 90 da Constituição


Política da República, compete aos Carabineiros do Chile, como Força de
Ordem, velar pela ordem pública e segurança pública interna, em todo o
território da República.

Por sua vez, o artigo 1° do Regulamento de Organização dos


Carabineiros do Chile, assinala que essa é uma instituição policial, profissional,
técnica e de caráter militar, cuja finalidade básica é a vigilância e a manutenção
da segurança e da ordem pública em todo o território da República.

Para o cumprimento de seus objetivos, os Carabineiros do Chile exercem


as seguintes funções: preventiva, de controle da ordem pública, educativa, de
comodidade pública, de solidariedade social e de integração nacional.

Face ao exposto, se pode concluir que cabe à instituição tudo o


que estiver relacionado com a prevenção e com a ordem pública, em
todo o território nacional, com competência, dessa forma, em todo
conflito que altere a paz e a tranqüilidade da cidadania.

I. BREVE RESENHA HISTÓRICA E GÊNESE DO CONFLITO

Produzida a denominada “pacificação mapuche”, no ano de 1981, o


governo do Chile decide dar um impulso à zona recém integrada ao
território nacional, para o que entrega terras a chilenos e colonos europeus,
com o intuito de que estes últimos, com a necessidade que tinham de se
estabelecer e a riqueza de um terreno fértil, conseguissem integrar e
equiparar a região com o resto do país.

Também entrega terras a comunidades mapuches da área, mediante


um Título de Merced, que, em muitos casos, com o passar do tempo, é

*
Tenente-Coronel dos Carabineros do Chile.

483
Carabineros do Chile como garantia da ordem
pública no contexto do conflito mapuche

vendido aos colonos, reduzindo-se suas propriedades e ficando com terrenos


de pouco valor, o que os leva à pobreza. Por outro lado, a exploração
indiscriminada da terra por parte dos colonos, a tornou imprópria para a
agricultura, motivo pelo qual foram vendidas a empresas transnacionais,
que semeiam a zona com espécies exóticas (pinus e eucaliptos).
A pobreza e a pouca possibilidade de progredir em terrenos erodidos
e de baixo valor que essas comunidades possuíam, já em princípios dos
anos 90, origina o surgimento de organizações mapuches que começam
um processo de reivindicação territorial, mediante o uso de métodos
pacíficos, e depois mais radicais, que terminavam em graves alterações da
ordem pública, o que obrigou a intervenção dos Carabineiros do Chile.

II. CONFLITO INDÍGENA EM RELAÇÃO À ORDEM PÚBLICA E AO


SISTEMA JUDICIAL
Dando cumprimento ao mandato constitucional e legal, os
Carabineiros, desde o início do conflito, tiveram que atuar, em princípio,
em um cenário onde as comunidades ingressavam pacificamente em
prédios reivindicados, sobressaindo o diálogo e negociação com a
autoridade, com nossa instituição no centro das conversações e muitas
vezes sendo seu elo de ligação, propiciando o entendimento.
Devido à demora em chegar às soluções, toda vez que a recém-
criada Corporação de Desenvolvimento Indígena (Conadi) dava os primeiros
passos no seu processo de aquisição de terras, as organizações mostravam-
se intransigentes, incitando as comunidades a pressionarem de forma mais
violenta, originando enfrentamentos com a polícia, mediante o uso de
voleadoras, pedras, focos de incêndio, molotov e tiros de escopetas.
Tal quadro levou a uma atuação conjunta com juízes do sistema antigo,
os quais inicialmente não tiveram um papel central, o que mudou com os fiscais
do Ministério Público e a chegada do novo processo penal, que proporcionou
mais respaldo para a atuação dos Carabineiros, conseguindo controlar
juridicamente o conflito, buscando fazer prevalecer o Estado de Direito.
Por outro lado, isso levou a uma readequação sistemática dos
procedimentos em terreno e à implementação adequada dos recursos
humanos e materiais, com nova tecnologia, roupa apropriada, veículos,
helicópteros, etc.

484
Hernando Hevia Hinojosa

III. CURSOS DE AÇÃO DESENVOLVIDOS PELA INSTITUIÇÃO


PARA CONTROLAR E REDUZIR O CONFLITO

Cumprindo as funções da instituição, foram postos em execução


diferentes e novos cursos de ação, que permitissem evitar o conflito,
sem ter de chegar ao enfrentamento, tais como:
· interação direta com as comunidades em locais de conflito,
onde são desenvolvidas ações para detectar carências em
áreas de saúde, educação, serviços básicos de água e
eletricidade, emprego, melhorias de estradas e pontes,
buscando ser o intermediário com a autoridade
correspondente que solucionará tais deficiências. A solução
dessas necessidades acalma a situação, tirando uma variável
do conflito;
· desenvolvimento de operações cívicas nas comunidades
mapuches, com profissionais da instituição, médicos,
dentistas, veterinários, técnicos eletrônicos, etc;
· capacitação do pessoal, por parte de diferentes
organizações externas, em temas como “ Técnicas em
resolução de conflitos interétnicos”, “direitos humanos e
povos originários” , “gestão intercultural” e “língua
mapuche”;
· gestão junto às empresas florestais, principais oponentes
do povo mapuche no seu processo reivindicativo, para a
implementação de planos de emprego de mão-de-obra
mapuche nas suas diferentes tarefas, com o objetivo de ter
um sustento econômico com a remuneração, e, por outro
lado, desvinculá-los de organizações que os levam por
caminhos violentos para alcançar seus objetivos.

IV CONCLUSÃO

“A experiência adquirida durante os últimos tempos, com as


estratégias implementadas, conhecimento policial, trabalho de inteligência
e implementação de engenhosos rumos de ação para reduzir o conflito,
tem obtido resultados bem-sucedidos, conseguindo manter a situação
sob controle”.

485
S IL
B RA
Relato Policial
O MUNICÍPIO DE RESTINGA SECA E AS
RELAÇÕES DE SUA POPULAÇÃO COM A POLÍCIA
CIVIL EM CONTRAPONTO AOS REGISTROS
POLICIAIS REALIZADOS
Jun Sukekava*

1. INTRODUÇÃO
No momento em que a sensação de insegurança se alastra em todas
as comunidades, principalmente em razão da divulgação sensacionalista
de fatos policiais ocorridos nos grandes centros urbanos, a repercussão
dessa sensação ocorre em maior grau nas pequenas comunidades, ainda
mais se ocorre um delito violento que vitima um dos seus componentes.
O fato de a vítima ser conhecida, com história, familiares na comunidade,
introjeta na população a sensação de ser a próxima vítima da violência.
Em municípios pequenos, onde é quase sempre deficitário o número
de policiais, quando ocorre esse tipo de delito, ou mesmo para fazer frente
às demandas das ocorrências policiais corriqueiras, torna-se imprescindível
que a polícia se torne parceira da comunidade; com os policiais perfeitamente
integrados com ela, ensinando-a que a segurança pública deve ser
responsabilidade de todos e não apenas dos órgãos policiais.
O caso ora em exame refere-se ao município de Restinga Seca,
localizado na região central do estado do Rio Grande do Sul, com uma
área territorial de 961,80 km2, com uma população de 17.492 habitantes,
sendo que destes, cerca de 40% da população vive na área rural1. Entre
os dois lados mais distantes do município – Jacuí e localidade de São José
– há uma distância de cerca de 70 quilômetros, o que dificulta os trabalhos
de Polícia Judiciária, que necessita de bastante tempo para fazer as
intimações ou diligências nesses locais.
Para agravar a situação, nos últimos anos, ocorreu o pedido de
concordata por parte do maior empregador do município – uma fábrica
de móveis demitiu cerca de 300 empregados; operando, atualmente, com
133 empregados, incluindo aqueles que trabalham no setor administrativo
- gerando um grave problema social na cidade, o que sempre traz reflexos
nos trabalhos policiais2.
*
Delegado de Polícia do Município de Restinga Seca.

486
Jun Sukekava

Nos últimos anos houve um aumento significativo de ocorrências


policiais, enquanto o efetivo da Polícia Civil no período diminui pela metade,
em razão de transferências, aposentadorias e exonerações3.
Em 2002, foram registradas 753 ocorrências policiais; em 2003
foram registradas 837; em 2004 foram registradas um 1024; em 2005
foram registradas 970; em 2006 foram registradas 1128 ocorrências
policiais e neste ano, até o mês de julho já há 733 ocorrências policiais
registradas. Nesse período, o efetivo da Polícia Civil diminuiu pela metade,
uma vez que já trabalhou com um efetivo de seis policiais e, atualmente,
conta com três, além da autoridade policial.
Embora o número de boletins de ocorrência não seja parâmetro
para aferir os índices de criminalidade ante a ausência de pesquisa de
vitimização, como bem apontou ROLIM (2006, p. 257), nota-se que há
um aumento significativo do registro de ocorrências policiais após o
período em que ocorreu demissão de grande contingente de trabalhadores
na indústria. E, ainda que não se possa atribuir a isso o aumento da violência
no município ou aumento da confiança da população nos órgãos policiais,
o certo é que isso acarreta aumento de trabalho a estes, notadamente à
Polícia Civil, que precisa formalizar os boletins de ocorrência com fatos
criminosos em inquéritos policiais.
Não se pode atribuir nesse caso uma relação de causa e efeito, que
certamente demandaria um trabalho de pesquisa mais específico, o que
não é o caso do presente trabalho, mas é sintomático afirmar que o
aumento das ocorrências policiais deu-se em delitos contra o patrimônio.
Segundo CANO e SOARES, citados por CERQUEIRA (2003), “se
poderia distinguir as diversas abordagens sobre as causas do crime em cinco
grupos: a) teorias que tentam explicar o crime em termos de patologia
individual; b) teorias centradas no homo economicus, isto é, no crime como
atividade racional de maximização do lucro; c) teorias que consideram o crime
como subproduto de um sistema social perverso ou deficiente; d) teorias
que entendem o crime como conseqüência da perda de controle e da
desorganização social na sociedade moderna e e) correntes que defendem
explicações do crime em função de fatores situacionais ou de oportunidades.”
Ora, certamente que o desemprego em massa causado
abruptamente gera ao longo do tempo ao menos algumas das condições
que favorecem a existência do crime, considerando que há uma perda do

487
O Município de Restinga Seca e as Relações de sua População com a
Polícia Civil em Contraponto aos Registros Policiais Realizados

poder aquisitivo da família (homo economicus) e, conseqüentemente, há


maior desagregação familiar (desorganização social na sociedade morderna)
e, além disso, a ociosidade leva à oportunidade de cometimento de delitos
(fatores situacionais ou de oportunidades).

Para PEZIN (1986) há uma correlação positiva entre urbanização,


pobreza e desemprego em relação a crimes contra o patrimônio.

Mesmo com todos esses problemas, a população tem tido com a


Polícia Civil uma relação de compreensão e apoio, o que se pode traduzir da
votação do último Orçamento Participativo ocorrido em 2006, em que foram
votadas diversas propostas e a compra de equipamentos para investigação
(filmadoras, pistolas, gravadores) obteve a segunda maior votação, ficando
atrás apenas da compra de equipamentos para o Corpo de Bombeiros4.

Acreditamos que essa compreensão se deva ao comportamento


adotado pela Polícia Civil de participar à população as dificuldades de falta
de pessoal e, muitas vezes, até de material, como ocorre em muitos lugares
do país, sempre prestando conta dos trabalhos desenvolvidos e inserção
dos policiais em várias instâncias da comunidade, sempre ressaltando o
papel que cabe a elas de auxílio e prevenção da segurança pública.

Não apenas isso, mas no dia-a-dia, o trabalho da Polícia Civil é


beneficiado dessa relação de confiança, já que o Serviço de Investigação
recebe inúmeras denúncias anônimas que, depois de devidamente
averiguadas, têm sido de extrema importância na resolução de crimes
sem autoria. Também as intimações dos moradores de locais distantes
são feitos através de convocação pelo rádio e somente em alguns casos
especialíssimos estes não comparecem para prestar as suas declarações.

Não pretende esse trabalho demonstrar que os trabalhos de Polícia


Judiciária no município resolveram o problema da criminalidade ou mesmo
apresentaram elevadas taxas de elucidação dos crimes sem autoria definida,
aliás, deve ser igual ou muito parecido com as taxas de elucidação dos
locais com o mesmo perfil. Todavia, o fato de colocar a comunidade como
parceira da polícia faz com que essa taxa de atrito não seja mais um fator
para aumentar a desconfiança da população em relação a ela e que encare
a resolução do problema como seu também, daí porque os apelos dos

policiais têm encontrado eco junto à população.

488
Jun Sukekava

2. O RELACIONAMENTO ENTRE A POLÍCIA CIVIL E AS DEMAIS


INSTITUIÇÕES
Essa relação de confiança foi construída com a população através
do relacionamento harmonioso com as outras instituições, principalmente
com o Poder Judiciário, Ministério Público e Brigada Militar, em que há
auxílio mútuo entre os seus integrantes e apesar das independências
institucionais de cada um, as tomadas de decisões mais sérias, como, por
exemplo, pedidos de prisão preventiva, internação de adolescentes e outras
medidas cautelares são sempre feitas através de prévia conversação.
Evita-se, desse modo, que os organismos encarregados da repressão
à criminalidade passem para a população que há uma “disputa de beleza”,
onde se torna muito comum a afirmação de que “polícia prende e o Judiciário
solta”, ou ainda que a autoridade policial ou o representante do Ministério
Público convoque uma entrevista coletiva para informar que vai pedir a
prisão preventiva do suspeito e o juiz – e toda a população, inclusive o
suspeito – toma conhecimento desse fato pela mídia.
O relacionamento com a Brigada Militar também é bastante
harmonioso, onde as duas corporações se auxiliam sempre e o número
reduzido de policiais civis é compreendido pelos componentes daquela
corporação, principalmente, no período noturno e em finais de semana,
quando os agentes permanecem em casa, em escala de sobreaviso, o que
faz com que os casos de prisão em flagrante demorem algum tempo para
serem atendidos e é sempre motivo de tensão entre as corporações,
principalmente nas cidades do interior do Rio Grande do Sul.
Também há a participação dos policiais em associações, conselhos
comunitários, clubes e sempre que possível é programada palestras em
clubes, escolas ou outros locais de reuniões sobre temas atuais relacionados
à segurança pública – violência doméstica, atos infracionais dos adolescentes
-, em que é sempre ressaltada a eficácia do controle social sobre a
prevenção da criminalidade, tendo como paradigma duas pequenas
comunidades quilombolas onde, apesar de serem comunidades carentes
é raríssima a intervenção policial naqueles locais e, quando acontece,
geralmente, delitos de menor potencial ofensivo, o caso é resolvido antes
mesmo do envio do termo circunstanciado ao Poder Judiciário.
De modo não voluntário, as práticas da Polícia Civil no município vêm
ao encontro às teses da Polícia Comunitária, qual seja, a relação de confiança

489
O Município de Restinga Seca e as Relações de sua População com a
Polícia Civil em Contraponto aos Registros Policiais Realizados

entre esta e os cidadãos, como destaca ROLIM (2006), citando um dos


principais documentos norte-americanos sobre policiamento comunitário:
“A confiança é o valor que sublinha e vincula os componentes
das parcerias comunitárias para a resolução de problemas. A
fundação da confiança irá permitir que a polícia estruture um
forte relacionamento com a comunidade, o que irá produzir
conquistas sólidas. Sem a confiança entre a polícia e a cidadania,
um policiamento efetivo é impossível.”5

3. CONCLUSÃO
O momento atual, no qual a sensação de insegurança atinge a todos
torna imperioso que a questão de segurança pública não fique restrita
apenas às instituições encarregadas da repressão (polícias, ministério
público, poder judiciário e sistema penitenciário), ou seja, não seja tratada
apenas pelo viés repressor. É preciso, como afirma GUIMARÃES (2003)
que seja ensinado para a sociedade enxergar o conjunto das causas que
geram a violência e, com isso, estabelecer a possibilidade de encontrar as
melhores soluções, evitando-se a concentração em partes isoladas do
sistema e que é geradora de incompreensão e solução inadequada.
Quando a atuação da polícia visa a demonstrar aos cidadãos a
importância deles na prevenção da criminalidade, com o fortalecimento
das medidas de controle social (escola, família, igreja, comunidade) ou
mesmo na resolução de delitos com informações, tal parceria é
extremamente proveitosa em favor de todos, uma vez que firma uma
relação antes e depois do evento criminoso.
Embora não haja pesquisa nesse sentido, a partir do momento de
implementação dessas práticas, a imagem dos policiais perante a
comunidade não sofreu mudança de opinião6 e, pelo contrário, a maioria
dos casos de delitos graves (homicídios, latrocínios, estupros, roubos)
sem autoria foram solucionados e os autores presos, sendo quase a
totalidade deles através de denúncias anônimas feitas pelos cidadãos, o
que, de certa forma, torna-os co-responsáveis por estes atos.
É difícil modificar o senso comum da população de que é preciso
buscar alternativas para o combate à violência e criminalidade e que apenas
a repressão, ainda mais com o bombardeio midiático quase que diário de
uma imprensa sensacionalista que prega somente essa alternativa, mas

490
Jun Sukekava

quando há cooperação dos policiais com a comunidade e vice-versa tal


situação acaba sendo contornada.

É preciso, contudo, que a falta de elementos humanos não seja


obstáculo para que também esse trabalho de repressão, quando necessário,
não seja feito. O problema de conscientização da população só será frutífero
quando não houver passionalidade com relação ao tema.

O trabalho nesse sentido será longo e haverá algumas idas e vindas e


somente se dará com a participação dos policiais agindo como propagadores
dessa idéia através de palestras, entrevistas e inserção na sociedade e, em
locais onde há pouco efetivo desses profissionais, tendo a população como
parceira, até servindo como informante. Não é o ideal, mas é o primeiro passo.

Notas
1
Conforme dados estatísticos contidos em www.fee.tche.br
2
A indústria em questão pediu concordata e reduziu drasticamente a sua produção, com
demissão de cerca de 2/3 dos seus empregados, tendo tal fato ocorrido no ano de 2004.
3
Dados extraídos dos arquivos da DP de Restinga Seca
4
No ano de 2006 a proposta para obtenção de equipamentos para a Polícia Civil obteve o
segundo lugar e, neste ano, em votação realizada no dia 22/08/2007, embora sem campanha
com pedido de apoio ou mesmo esclarecimento por parte dos policiais e com pouca divulgação
por parte dos organizadores a compra de equipamentos para a Policia Civil ficou em quarto
lugar, atrás de propostas regionais na área de educação, saúde e esportes
5
Bureau of Justice Assistance, “Understanding Community Policing: A Framework for Action”.
Monografia, Community Policing Consortium, EUA, agosto de 1994.
6
ROLIM (2006, 100) cita pesquisa realizada em 2000, pelo Ilanud, em São Paulo, em que,
embora a população considerasse a experiência dos policiais comunitários como mais educados,
mais prestativos, menos violentos, menos corruptos, também eram menos eficientes.

Referências Bibliográficas
1. CANO, I.SOARES, G. D., As Teorias sobre a causa da criminalidade, Rio de Janeiro: IPEA, 2002,
mimeo.
2. GUIMARÃES, Luiz A. Brenner, Prefeitura de Porto Alegre e a Segurança Urbana: uma
forma alternativa e cidadã de construir soluções para a segurança, Porto Alegre, Prefeitura
Municipal, 2003, p. 69.
3. PEZIN, L. Criminalidade Urbana e Crise Econômica, São Paulo: IPE/USP, 1986.
ROLIM, Marcos, A síndrome da Rainha Vermelha: policiamento e segurança pública no
Século XXI/Marcos Rolim, Rio de Janeiro, Jorge Zahar Ed., Oxford, Inglaterra: Uiversity of Oxford,
Centre for Brazilian Studies, 2006.
3.www.fee.tche.br/sitefee/pt/content/resumo/pop impressao
mun.php?malha=nao&nomemunicipio=...23/08/2007
Dados de arquivos de mapas estatísticos mensais da DP de Restinga Seca – RS referentes ao número
de ocorrências mensais registradas na DP e as chanceladas registradas na Brigada Militar.

491
RU
PE
Relato Policial
ESTRATÉGIAS DE APROXIMAÇÃO À COMUNIDADE NO
DISTRITO DE VILLA EL SALVADOR, PERU
Lucas Nuñez Córdova*

O distrito de Villa El Salvador (VES), cuja população se aproxima


aos 400 mil habitantes, é um dos distritos com maior reconhecimento,
não só no Peru, mas também no contexto internacional, ao ter sido laureado
com as premiações “Príncipe de Astúrias” e “Mensageiro da Paz”, ambas
em 1987. Em ambas as ocasiões pelo fato do mesmo ser um povo
empreendedor e solidário, que tem primado pelo compromisso e pela
organização da vizinhança. No entanto, na década de 80 e a meados da
década de 90, esta organização da vizinhança foi diminuída e atemorizada
pelo execrável terrorismo que atingiu o país por quase 15 anos. É assim
que o distrito foi cenário dos mais execráveis atentados terroristas tais
como, por exemplo, o atentado contra a Comisaría1 do distrito, que
produziu a morte de policiais e civis e a destruição do local policial, e o
assassinato da reconhecida líder da vizinhança, Maria Elena Moyano. Esta
situação facilitou o incremento da violência urbana gerada pela criminalidade
comum e as gangues, bem como pelo consumo ilegal de drogas.

Nos anos 1999, 2000 e até março de 2001, trabalhei como


Comisario de VES e, após interagir com a população e diversas autoridades,
pude realizar um diagnóstico sobre os fatores que incidiam na problemática
da insegurança no distrito, particularmente no tema da violência urbana, e
da estratégia que usamos para combater esse dramático problema.

FATORES QUE INCIDIAM NA PROBLEMÁTICA DA INSEGURANÇA


CIDADÃ NO DISTRITO DE VES
· As diferenças entre o partido do governo e o governo local
representado por um outro partido político, longe de
harmonizar e articular esforços para enfrentar a criminalidade,
embaçavam ou diminuíam o pouco trabalho que era feito.
· As diferentes autoridades do distrito, como são a
prefeitura, o governo da Polícia Nacional e os outros
representantes das instituições do Estado, agiam de maneira
*
Comandante na Policia Nacional do Peru - PNP, Mestre em Administração e Ciências Policiais.
Atua na Direção Contra o Terrorismo - DIRCOTE.
492
Lucas Nuñez Córdova

isolada sem uma concepção clara sobre como enfrentar a


criminalidade e sobre como melhorar os níveis de segurança.
· A autoridade municipal, particularmente o prefeito e seus
vereadores (do mesmo partido político) não apoiavam o
trabalho na área de segurança cidadã que desenvolvia a
Comisaría. Por outro lado era absoluto o compromisso das
organizações sociais para coadjuvar com o trabalho nesse
sentido; como é o caso da Federação de Mulheres de Villa
El Salvador, o Clube de Mães e do Vaso de Leche.
· Não existia nenhuma pesquisa de vitimização no distrito que
nos permitisse medir os diferentes tipos criminais ocorridos
no distrito; bem como a subnotificação (cifra oculta).
· Não existia um registro dos fatos criminosos e menos
ainda uma análise estatística sobre a criminalidade no
distrito, nem existia um mapa cronológico e geográfico
das ocorrências criminais.
· As lideranças da vizinhança representantes da população
não tinham nenhuma participação nem protagonismo nas
tarefas de segurança cidadã e ainda menos tinham sido
chamadas para enfrentar o problema da violência urbana.
Entendia-se que o problema da criminalidade era uma função
e responsabilidade policial; quer dizer, existia um DIVÓRCIO
ENTRE A AUTORIDADE E O CIDADÃO. Este
distanciamento foi mais manifesto durante os anos de violência
terrorista, que afastou ainda mais a polícia de sua comunidade.
· As autoridades do distrito estavam contaminadas por
disputas políticas e desenvolviam suas funções de acordo
com as instruções de instâncias superiores, o que
obstaculizava o desenvolvimento sério e técnico de cada
organismo ao mesmo tempo que impossibilitava o trabalho
conjunto e a consecução de objetivos claros.
· Não existia iniciativa e, ainda por cima, havia um
desinteresse das autoridades locais em enfrentar esta
problemática. Estes se concentravam em outras tarefas,
que, embora fossem importantes para a comunidade, não
o eram mais do que o tema de segurança cidadã.

493
Estratégias de aproximação à Comunidade no
Distrito de Villa El Salvador, Peru

· Falta de uma legislação imperiosa acorde e coerente para


articular os esforços do Estado, na qual se estabelecesse
como requisito sine qua non a participação da sociedade
organizada.
· Quanto à problemática da Comisaría, havia carência de
efetivos policiais, unidades móveis, equipamentos de
comunicação e outros meios que garantissem uma adequada
logística para melhorar o rendimento policial, bem como
um local adequado para abrigar dignamente os membros
policiais.
· Em outras palavras, não existia o menor indicador de se
trabalhar no âmbito de uma política pública para enfrentar
o fenômeno da violência urbana e diminuir gradativamente
os índices de criminalidade.

ATIVIDADES REALIZADAS PELA A COMISARÍA DE VES NO


PERÍODO 1999- 2001.
· Em primeiro lugar, se orientou e trabalhou arduamente
para traçar pontes de aproximação com a população,
contando para este projeto com o valioso apoio de
lideranças da vizinhança como: Efraín Sanchez Saldaña
(atualmente Tenente Alcalde do distrito), Quintiliano Olivas
Ponce (atualmente Regidor do distrito), os quais junto com
suas polícias, se juntaram ao trabalho de integrar a população
com sua autoridade policial.
· O Comisário e o pessoal policial participaram das diferentes
reuniões covocadas pelos cidadãos, nas quais era analisado o
problema da insegurança cidadã de seus respectivos bairros.
· Foram compostos e juramentados 1.200 conselhos de
cidadãos, nos sete setores que abrangem o distrito. Foram
entregues a seus integrantes suas respectivas credenciais por
parte da Comisaría, as quais contavam com coordenadores
e com um coordenador distrital. Nesse período, foi eleito
Efraín Sánchez, atualmente autoridade municipal.
· Outra das estratégias desenvolvidas para aproximar a
polícia da sua população foi potencializar o esporte no

494
Lucas Nuñez Córdova

distrito, instituindo-se no dia 29 de agosto, o “Dia da


Bicicleta em Villa el Salvador”, cujo objetivo era criar uma
jornada de reaproximação entre país e filhos, irmãos, amigos
e a família de VES em geral. Alcançou-se uma maior interação
e aproximação com a população. Em ambos os anos, houve
uma participação de 2.000 ciclistas; para esse propósito
contou com a colaboração de diferentes meios de
comunicação local, obtendo um grande impacto na
população. A Polícia Nacional envolveu a suas diferentes
unidades especializadas como são as Unidades de
Emergência, de Trânsito, Unidade de Cães, a Banda de
Músicos.
· Na frente da Comisaría se instalou um palanque, com a
presença do Comando Policial, os micro-empresários de
Villa El Salvador e os coordenadores setoriais do distrito, a
fim de realizar o sorteio de brindes entre os participantes,
sendo premiados os participantes de menor e maior idade
e simbolicamente os microempresários que apostaram
nessa atividade doando uma série de presentes os mesmos
que foram entregues aos que ganharam o sorteio. Deve
ser apontado que, na atualidade, a atividade esportiva,
particularmente o Dia da Bicicleta que foi instituído no
distrito no dia 29 de agosto, não está sendo realizada.
· Durante a gestão também foi gerada e integrada a
participação do Instituto Peruano do Esporte, com a
finalidade de desenvolver um torneio de futebol no distrito,
durante os meses de janeiro e fevereiro (aproveitando as
férias escolares e os meses do verão). Para tanto, foi
conseguido o apoio policial requerido e, para tal, foi
contratada a organização de vizinhos existente.
· Foram chamados os microempresários do distrito para
que assumissem um papel mais dominante no tema da
segurança cidadã. Com o apoio do setor privado, foram
adquiridos oito equipamentos de alarmes e sirenes, cuja
ativação diante de um iminente ou eventual perigo, pode
ser feito com controle remoto e a uma distância de 140
metros. Estes equipamentos, na sua maioria, estão
localizados em parques ou quadras esportivas dos bairros

495
Estratégias de aproximação à Comunidade no
Distrito de Villa El Salvador, Peru

que apresentavam maior incidência criminosa. Por sua vez,


a população foi organizada e capacitada para organizar
“rondas mistas”, compostas por cidadãos e policiais. Esta
aliança permitiu lutar frontalmente contra a criminalidade,
o que levou a que nos anos de 1999 e 2000 a Comisaría
Villa El Salvador fosse escolhida como a mais operacional
de Lima e Callao, conseguindo diminuir os níveis de
insegurança e melhorar a aceitação cidadã.
· Este trabalho permitiu que no ano 2002, a Comisaría de
Villa El Salvador fosse premiada como a melhor Comisaría
do Peru, de forma tal que os integrantes em seu conjunto
fossem premiados pelo Ministério do Interior e o alto
Comando Policial com uma gratificação econômica de 100
mil dólares.
· A experiência em Villa El Salvador foi um modelo de
aproximação cidadã para definir políticas institucionais de
Polícia Comunitária e de organização de cidadãos. Nesse
sentido, foi potencializado o trabalho de composição e
capacitação das Juntas de Vizinhos nas diversas Comisarías
de Lima e Callao.

CONCLUSÃO DA EXPERIÊNCIA NA VILLA EL SALVADOR

A organização de vizinhos existente no distrito de Villa El Salvador,


que tem sido reconhecida como uma das organizações sociais mais sólidas
e pujantes do Peru, foi a base angular para a composição de mil e duzentas
Juntas de Vizinhos que cumpriram um papel chave na luta contra a
insegurança cidadã. A organização de vizinhos constitui um potencial
imponderável para desenvolver programas e ações conjuntas com a
autoridade, que garantam um trabalho sério e sustentado para diminuir
os índices de criminalidade no distrito e consequentemente melhorar a
qualidade de vida de sua população.

Nota
1
N.T. O termo comisaría é mantido no original em espanhol. Refere-se às unidades
descentralizadas de trabalho da polícia. Da mesma forma, o termo comisarío refere à autoridade
responsável por essas unidades.

496
L A
MA
ATE
Relato Policial GU
ESTAÇÃO DE POLÍCIA MODELO
Marlon Esteban*

Institucionalmente, a partir da criação da Nova Polícia Nacional Civil,


em 1997, em concordância com um dos Convênios dos Acordos de Paz,
tentou-se concretizar a idéia de uma Instituição Modelo, que garantisse a
segurança cidadã, tendo como referência uma Delegacia Modelo.

Esta idéia encontrou muitas dificuldades para florescer em sua


capacidade máxima; o sonho teve início com a construção de um edifício
para hospedar o pessoal policial na zona 7, e depois no Terminal zona 4 da
cidade de Guatemala, os quais resultaram ser contra-producentes devido
ao trabalho na área metropolitana ser totalmente diferente do trabalho em
zonas urbanas e rurais departamentais (estaduais), o que dificultou a
adaptação do pessoal no seu círculo de ação. Embora a infra-estrutura tenha
sido adequada, não foi possível conciliá-la com pessoal capacitado que
pudesse cumprir com a missão que lhes fora encomendada. Na atualidade,
se denomina “delegacia modelo” a unidade policial que se encontra
funcionando no município de Villa Nueva, a qual também enfrenta o problema
de contar com pessoal não capacitado o suficiente para desempenhar tarefas
numa unidade que deveria servir como modelo para outras.

Com base numa resenha histórica, na minha condição de oficial


subalterno, com a firme crença de que faço parte da coluna vertebral da
Instituição Policial, iniciei em 2006 o projeto de dar vida a uma Subestação
Modelo, a qual estaria localizada num dos municípios do departamento
(estado) de Izabal, lugar propício para colocar em prática o plano de
trabalho, devido à sua semelhança com o âmbito social onde me desenvolvi
como pessoa. Dita subestação compreendia, entre suas funções, a
aproximação com a comunidade, para o qual foram empregados diversos
processos, como a organização dos moradores da comunidade. Neste
caso, a classificação foi feita por setores como, por exemplo, adultos,
jovens, crianças, dentro dos quais existe o gênero feminino que, por cultura,
de alguma maneira, é considerado um grupo vulnerável, o que significa
que deve ter um tratamento especial para atender à diversidade de
problemas aos quais fica exposto em seu convívio diário. Assim foram
colocados em prática os planos de prevenção situacional e social, com o
que era cumprido com a participação de todo o conjunto dessa
*
Oficial Segundo da Policia Nacional Civil – Subchefe da Área Metropolitana – Seção de Delitos
Contra a Vida, Subdireção Geral de Investigação Criminal.
497
Estação de Polícia Modelo

comunidade, sem deixar de lado o bem-estar do pessoal policial como


parte da engrenagem polícia-sociedade, que se baseia em “estar bem para
servir bem”. Inicia-se assim o convencimento através do diálogo com os
subalternos para que os meios logísticos obtidos por parte da instituição
fossem otimizados ao máximo com o fim de realizar serviços produtivos
e sem a presença de um policial com uma postura não adequada à função
que desempenha. Da mesma forma, no edifício onde funcionavam as
instalações se coordenou do jeito mais viável, o conserto dos serviços
básicos (água potável, energia elétrica, instalações do banheiro), com a
finalidade de que as pessoas se sentissem confortáveis no lugar de trabalho
e também por ser o lugar onde moram. A intenção era incentivar o
sentimento do pessoal policial de se sentirem pessoas integradas na
sociedade e no Estado da Guatemala, principiando, com isto, o
fortalecimento dos Direitos Humanos de nossos agentes e, como
conseqüência, dos cidadãos em geral.

No entanto, devido à situação Institucional e de superação pessoal


profissional, não me foi possível cumprir com todos os objetivos traçados,
já que no final de 2006, me candidatei e participei do curso de ascensão
ao grau imediato superior -neste caso o grau hierárquico de Oficial
Terceiro - e no início do ano atual, ascendi ao grau hierárquico de Oficial
Segundo de Polícia; situação que para mim, implicou na transferência de
meu local de trabalho de forma obrigatória a uma unidade de delegacia, o
que impediu a conclusão do projeto de uma Subestação Policial Modelo.

Sem cair no fanatismo, no meu sentimento institucional policial,


encontra-se viva a chama de que, em tempos futuros, e enquanto tenha a
oportunidade de continuar superando-me institucionalmente, poderei
concluir meu objetivo de ter uma unidade modelo, independentemente
da denominação que seja (estação, delegacia, divisão, subdireção), e para
alcançá-lo terei que implementar processos para seleção de pessoal e
especialização dos mesmos, em temas relacionados com atenção à vítima,
atenção à criança e ao adolescente, violência intra-familiar, e em tudo o
que nos ajudaria a ser uma polícia pró-ativa. Colocaria em andamento
alguns planos que existem atualmente, mas que por falta de vontade política
institucional, não recebem o interesse que merecem, como por exemplo,
o Programa Dare, o qual enfoca os centros educacionais em todos os
níveis (fundamental, médio e superior), para conscientizar os jovens em
relação ao uso e abuso de drogas, ‘Puerta a Puerta’, ‘Me conoces te conozco’

498
Marlon Esteban

e daria mais ênfase às Organizações Locais de Segurança, procurando um


equilíbrio entre os recursos humanos disponíveis e as condições de vida,
referindo-me aqui à infra-estrutura das instalações para obter eficiência na
participação da unidade policial junto à sociedade. Nesta ordem de idéias,
a partir da minha perspectiva, deve-se contar com unidades independentes
para a atenção e recepção de denúncias de acordo com a problemática
apresentada. Em cada uma destas unidades, deve-se oferecer um ambiente
para prestar serviço à vítima ou ao denunciante, o ambiente dos
dormitórios para o pessoal deve ser adequado às necessidades básicas, e
deve-se mudar de alguma forma a carga horária de trabalho, encurtando-
a, com o fim de evitar o tédio e a monotonia na atenção às pessoas e no
cumprimento de um serviço com qualidade total.

499
I A
Ô MB
L
CO
Relato Policial
MODELO DE VIGILÂNCIA COMUNITÁRIA NA
COLÔMBIA
Yed Milton Lopez Riaño 1

1. CONTEXTO, ANTECEDENTES E FUNDAMENTOS


No marco das transformações socioculturais e sociopolíticas
vivenciadas na América Latina, a discussão sobre a instituição policial cada
vez retoma mais força, dada a importância desse órgão como
administrador do serviço de convivência e segurança cidadã e sua
adequação para a existência real da democracia.
Entre os tópicos de maior incidência nas discussões estão: o
acelerado abandono da tradição militarista, que caracteriza a grande maioria
dos corpos policiais e a recuperação do seu sentido civilista como órgão
vigilante da proteção das liberdades individuais e da vida dos cidadãos; a
profissionalização de seus membros; a descentralização das estruturas de
comando e a aproximação dos núcleos comunitários, para o conhecimento
das problemáticas geradoras de violência e delinqüência; e a formulação
de alternativas conjuntas de ação para a superação das mesmas.
Na Colômbia, o Plano de Transformação Cultural e Melhoramento
Institucional da Polícia Nacional, transcorrido na última década, convocou e
envolveu o comando institucional a partir de uma atitude autocrítica. Hoje
no país se reconhece a liderança da Polícia Nacional na recuperação de sua
imagem institucional, a profissionalização do talento humano através de
processos educativos permanentes para responder às mudanças sociais, a
execução de projetos como Cultura da Legalidade e Integridade, o
desenvolvimento do programa Departamentos e municípios seguros dirigido
à articulação do trabalho com as autoridades civis e o fortalecimento da
Polícia Comunitária, como modo de serviço compatível com a natureza
civilista da instituição.
A Polícia Comunitária como modo de serviço, no âmbito latino-
americano, responde a um apelo social e a um mecanismo institucional para
o cumprimento das funções policiais, de ordem civilista, com suportes
fundados no Estado Social de Direito. Nesse campo, as experiências de
países como o Brasil, Venezuela, Bolívia, Equador e Colômbia, entre outros,
*
Polícia Nacional da Colômbia; Bogotá d. c.; Assessor de Polícia Comunitária; Direção Geral da
Polícia Nacional
500
Yed Milton Lopez Riaño

coincidem na concepção da Polícia Comunitária como um “princípio e atitude


de serviço da Polícia à comunidade, com a comunidade e na comunidade”.

1.1. Premissas da Vigilância Comunitária


a) A vigilância “é o serviço que presta a Polícia Nacional, de
forma permanente e ininterrupta, nas cidades, povoados e
campos” 1 . Esse serviço, de caráter ordinário ou
extraordinário, é prestado no âmbito urbano e rural; seu
centro de atenção é cada indivíduo na sua relação com os
demais sujeitos: ou seja, a convivência em comunidade.
b) A Vigilância Comunitária confere continuidade à política
de participação cidadã, instaurada no ano 1993, e de Polícia
Comunitária, promovido desde l998, processos
congruentes com os lineamentos constitucionais tendentes
à legitimidade das instituições, à descentralização dos
serviços do Estado e à participação democrática como
dinâmicas necessárias para o exercício dos direitos e deveres
no Estado Social de Direito.
c) A Vigilância Comunitária é uma estratégia para fomentar
e alcançar a responsabilidade compartilhada na conservação
da convivência e na manutenção da segurança cidadã, como
ação conjunta entre autoridades civis, autoridades de polícia
e cidadania em geral.
d) A Vigilância Comunitária é o modo da Polícia Nacional
entender e implementar o serviço à comunidade, de
acordo com seu caráter civilista, adotado na Constituição
Política Nacional.
e) A apropriação da Vigilância Comunitária, no presente e
para o futuro, no contexto da situação de convivência e
segurança no país, implica uma mudança cultural que está
sendo construída desde os processos de incorporação,
formação nas escolas e administração do talento humano
em todas as unidades do território nacional. Esse é parte
do processo que lidera o Departamento Administrativo de
Planejamento Nacional até o ano 2019 no país.
f) A Vigilância Comunitária na Polícia Nacional se fundamenta
na formação e disponibilidade de servidores públicos da

501
Modelo de Vigilância Comunitária na Colômbia

convivência e segurança cidadã, com capacidade moral, ética


e profissional para compreender suas funções de prevenção,
dissuasão e reação, sabendo como aplicá-las em cada
contexto, dependendo das circunstâncias e dos atores.
g) A implementação do modelo de “Vigilância Comunitária”
em nível local e nacional implica em processos de difusão,
capacitação e ações de intervenção social diretamente com
as comunidades, em compromisso direto do governo civil
como gerente e administrador das políticas públicas de
convivência e segurança cidadã e no exercício da participação
dos cidadãos nos assuntos públicos. Esse modo de trabalho
permite materializar a responsabilidade compartilhada, como
princípio para alcançar todo objetivo social.
h) Na Colômbia, o fortalecimento da Vigilância urbana e
rural comunitária responde à dinâmica de adequação da
instituição aos processos sociais em torno da convivência
e segurança cidadã. Embora tenham sido retomados
elementos de Polícia de Proximidade da Espanha e Planos
Quadrantes do Chile, nesta ocasião os esforços se
concentrarão no aperfeiçoamento de um modelo próprio,
para atender às comunidades de acordo com as
características sociopolíticas e culturais, a idiossincrasia dos
diferentes grupos e a disponibilidade de talento humano,
bem como dos recursos financeiros e da estrutura logístico-
tecnológica do país e da própria instituição.

1.2. Antecedentes e Capital Institucional Suporte de Vigilância


Comunitária

De acordo com as bases fundamentais da Constituição Política


Nacional e o processo de transformação cultural e melhoramento
institucional da Polícia Nacional, na década de 90, a Polícia Nacional manteve,
dentro do Plano de Direcionamentos Estratégicos, a política de participação
cidadã, a partir da qual foi possível a aproximação do serviço de convivência
e segurança cidadã com a Comunidade.

O caráter civilista da Polícia, atribuído na Constituição Política a


partir do ano 1991, motivou a concepção e implementação dos três
momentos que são apresentados a seguir.

502
Yed Milton Lopez Riaño

1.2.1. Direção de participação Comunitária


Essa direção foi criada para fortalecer as relações entre os cidadãos
e a instituição, visando a atender aos diferentes interesses setoriais e
regionais atinentes ao serviço de Polícia e à segurança cidadã2, materializada
através de programas que possibilitaram a participação real dos cidadãos,
sendo que alguns deles ainda estão vigentes.
1.2.2. Polícia Comunitária
Essa denominação foi socializada institucionalmente no início do ano
de 1998. A idéia se materializou na capacitação e dedicação de um grupo
de policiais, em diferentes unidades do país, a essa modalidade de trabalho
com a comunidade. Seus conteúdos iniciais foram inspirados na Polícia de
Proximidade da Espanha e seus processos e procedimentos delineados
através de processos educativos, nos quais foram avocados saberes da
sociologia, criminologia e serviço social.
1.2.3. Vigilãncia Comunitária
De acordo com os resultados obtidos através do trabalho da polícia
comunitária no melhoramento das relações com a comunidade e na
compreensão das problemáticas que afetam a convivência e a segurança,
assim como na adoção de mecanismos para sua intervenção, a Polícia
Nacional considera fundamental seguir trabalhando para formar e dispor
de policiais com maiores competências cognitivas e práticas, que permitam
sua ação qualificada no trabalho com a comunidade.
A expressão vigilância comunitária engloba toda a polícia e qualquer
polícia, uma vez que: a vigilância é o serviço que presta a polícia e sua
forma de fazê-lo é mediante a aproximação e o trabalho conjunto com a
comunidade, razão de ser desse serviço. Dessa forma, fazer vigilância
comunitária se constitui em um princípio e em uma atitude de todo policial,
independente do serviço ao qual pertença.

2. OPERACIONALIZAÇÃO DO SERVIÇO
2.1. Disposição do Talento Humano

Na polícia colombiana, foi implementado um modelo de gestão


humana baseado em competências e um de seus componentes é o

503
Modelo de Vigilância Comunitária na Colômbia

“Desenvolvimento Humano por Competências”, assumido na execução


do projeto.

No Modelo de Vigilância Comunitária, parte-se do princípio que


um policial, em qualquer grau, é merecedor de sê-lo por haver sido
aprovado no processo de seleção e incorporação à Instituição e haver
passado pela formação e capacitação em uma escola. Um policial é, então,
um indivíduo capaz e competente para exercer sua profissão, e a profissão
de polícia está ligada, sem discussão alguma, ao serviço à comunidade.

A seguir, veremos um quadro que ilustra o aspecto a ser fortalecido,


perante cada competência, pelos integrantes da Vigilância Comunitária:

COMPETÊNCIA ASPECTO A SER FORTALECIDO EM


GENÉRICA VICOM
Habilidade para comunicar-se
1. Orientação do serviço à Sensibilidade social
comunidade Trato amável e desinteressado
Critério para identificar problemas,
conceber e executar planos de solução
2. Efetividade no serviço
Atitude de serviço baseada na prevenção
Capacidade física e mental para dissuadir
e reagir
Iniciativa para detectar problemas e
3. Liderança criatividade para envolver outros atores
na solução
Domínio e segurança para dirigir e
conduzir grupos
Autoridade por merecimento
Habilidade para distinguir funções
Compromisso e abordagem responsável
4. Trabalho em equipe
de tarefas
Solidariedade
Paciência
Prudência
5. Resolução de conflitos Capacidade de escuta ativa
Espírito de justiça
Imparcialidade e critério para decidir

504
Yed Milton Lopez Riaño

Respeito ao ser humano


6. Relações interpessoais Habilidade para comunicar-se
Amabilidade, afabilidade e empatia
Flexibilidade
Capacidade de ingresso em um tecido social
7. Adaptabilidade
Tolerância ante a diferença
Criatividade
Interesse por refletir e documentar
experiências
8. Aprendizagem contínua Interesse pelo estudo, aprendizagem e
capacitação
Curiosidade, iniciativa
Desenvolvimento de capacidades para
caminhar e montar em bicicleta por longos
períodos
9. Condicionamento físico Capacidade para correr e/ou responder a
uma reação
Condições de saúde apropriadas para o
trabalho em bairros e setores

2.2. Capacitação

O policial de vigilância comunitária deve ser competente para


desenvolver seu trabalho pelo fato de ser egresso de uma escola de formação
policial, com o titulo de profissional de polícia, indistintamente do nível,
grau ou escalão. No entanto como forma de reforço ou aprofundamento
de conhecimentos, são sugeridos os seguintes Módulos Temáticos:
I. CONTEXTO ANTROPOLOGICO E SOCIOLÓGICO
DA CONVIVÊNCIA E SEGURANÇA CIDADÃ.
II. PROCESSOS E PROCEDIMENTOS DE PREVENÇÃO
NA POLÍCIA NACIONAL DA COLÔMBIA, MODELO DE
VIGILÂNCIA COMUNITÁRIA.
III. FUNDAMENTAÇÃO SOCIOPOLÍTICA PARA A GESTÃO
DA CONVIVÊNCIA E DA SEGURANÇA CIDADÃ.

No que refere ao segundo módulo, PROCESSOS E


PROCEDIMENTOS DE PREVENÇÃO NA POLÍCIA NACIONAL DA
COLÔMBIA, MODELO DE VIGILÂNCIA COMUNITÁRIA, é preciso

505
Modelo de Vigilância Comunitária na Colômbia

mencionar seu conteúdo como guia para a compreensão geral do mesmo


nesse manual.

2.2.1. Contextualização da Vigilância Comunitária

Consiste em localizar o policial no contexto de evolução de nossa


instituição, abordando temas como a mudança, evolução das organizações,
tendências modernas dos corpos de polícia, história da Polícia Comunitária na
Colômbia e diferença entre “Polícia Comunitária” e “Participação Comunitária”.

2.2.2. Características do serviço

São enfocados os pilares sobre os quais se desenvolve o serviço:


prevenção, proximidade, continuidade, coordenação interinstitucional, visão
científica da segurança cidadã, liderança, flexibilidade, conhecimento, cultura
do trabalho e características próprias do serviço, tais como: planejamento
do serviço, cumprimento de missão através de processos, coordenação
com outros serviços de polícia, patrulhamentos a pé ou de bicicleta, serviço
descentralizado em bairros e setores, autonomia e comunicação.

2.2.3. Modelo de trabalho

Essência da Polícia Nacional, Segurança Cidadã (objetiva e subjetiva),


Convivência Cidadã, modelo causa-efeito, modelo de patrulha de bairro
ou quadrante, metodologias de trabalho (diagnóstico, priorização,
formulação e plano de trabalho).

2.2.4. Processos de Vigilância Comunitária

Definição de processo, tipos de processos (essenciais e de suporte),


processos preventivos, dissuasivos e de atenção ao cidadão. Pasta para
guardar papéis da patrulha de bairro, que deve conter as separatas de: 1.
diagnóstico, 2. priorização, 3. formulação de processos, 4. plano de
trabalho, com seus respectivos formatos e anexos.

2.3. Organização da Unidade Policial

2.3.1. Setorização

Levando em conta as características demográficas e físicas da área


urbana de cada população, cidade ou área metropolitana, devem ser

506
Yed Milton Lopez Riaño

organizados e delimitados quadrantes, que deverão obedecer a um critério


objetivo, levando em conta as seguintes variáveis:
• Densidade de população e/ou população flutuante
• Urbanismo
• Tipo de uso do solo ou atividade socioeconômica
predominante
• Topografia e/ou acidentes geográficos
• Problemática de convivência e segurança cidadã
• Recursos da unidade policial (pessoal, comunicações,
armamento, habitáculos, veículos etc.)

2.3.2. Dotação de Patrulhas de Bairro

Uma patrulha de bairro é constituída por dois policiais de vigilância,


que devem contar com um mínimo de recursos, tais como armamento,
rádio de comunicações, bicicleta, se possível, e os demais elementos que
dispõe o Regulamento de Vigilância Urbana e Rural, que lhes permitam
desenvolver um serviço de qualidade. A cada quadrante se deve atribuir
uma Patrulha de Bairro.

3. METODOLOGIAS DE TRABALHO

3.1. Diagnóstico Geral

É um exercício que nos permite conhecer detalhadamente o


quadrante e identificar sua problemática, através das seguintes atividades:

3.1.1. Reconhecimento do setor

Percurso físico pelo quadrante, delimitação, descrição morfológica


ou topográfica, extensão e consulta à memória local e topográfica.

3.1.2. Captação de informação

Realização de um censo populacional que permita identificar o perfil


dos habitantes do setor, tendência econômica, percepção de segurança e
vitimização, assim como também para dar conhecimentos ao policial sobre
a comunidade.

507
Modelo de Vigilância Comunitária na Colômbia

3.1.3 Identificar fatores geradores de risco

Com formulário semelhante ao da captação de informação, nos


permite identificar todos os fatores que tenham relação direta ou indireta
com a segurança e convivência cidadã do setor atribuído; podem ser de
caráter estrutural ou sócio-cultural.

3.1.4. Entrar em contato com autoridades

Em outro formulário, similar ao dos líderes, se constrói a informação


com as autoridades que têm ingerência no quadrante, cargos, missões e
compromissos com os processos de segurança e convivência.

3.1.5. Identificar líderes e organizações cívicas

Através de um formulário, são identificados os líderes, seu perfil,


utilidade e compromissos com a segurança cidadã.

3.1.6. Consultar registro estatístico

Consiste em fazer uma análise do comportamento estatístico do


último ano, em aspectos delitivos e/ou contravencionais, que permitirá
ter um critério de valor para a formulação de processos de solução.

3.2. Priorização

Geralmente se observa que o diagnóstico elege uma lista considerável


de problemas, os quais devem ser organizados em prioridades, o que nos
indica por onde devemos começar a desenvolver o trabalho.

Os critérios de priorização são os seguintes:

3.2.1. Por freqüência

Um problema é considerado prioritário por freqüência quando sua


ocorrência é repetitiva, constante e soma a maior quantidade de casos na
estatística ou na análise do diagnóstico.

3.2.2. Por impacto

Um problema é considerado prioritário por impacto quando no

508
Yed Milton Lopez Riaño

diagnóstico é detectada a ocorrência (ou possível ocorrência) de um


fenômeno delitivo impactante, como terrorismo, homicídio, delitos
sexuais com menores, entre outros.

3.3. Formulação de Processos

Consiste em determinar o processo, ou processos, que utilizará o


policial comunitário para resolver os problemas detectados no diagnóstico,
e que são considerados indicados para serem resolvidos de maneira
prioritária.

A Polícia Comunitária aplica basicamente sete processos essenciais:


1. Diagnóstico específico de segurança e convivência.
2. Gestão comunitária.
3. Gestão interinstitucional.
4. Educação cidadã.
5. Tratamento de conflitos.
6. Dissuasão da infração.
7. Atenção ao cidadão

3.4. Plano de Trabalho

Esses processos se traduzem em feitos tangíveis, em ações de


vigilância preventiva, sempre e quando se organizem em um plano de
trabalho que é executado pela patrulha de bairro e seja avaliado
periodicamente pelo comandante da área.

Cabe ressaltar que o Plano de trabalho é realizado por cada patrulha,


de acordo com a problemática levantada no diagnóstico. (ver formato
anexo).

Para ilustrar a compreensão do modelo de Vigilância Comunitária,


temos a seguir uma analogia com a área da saúde, que, a partir do ponto
de vista de prevenção, pouco difere da tarefa de garantir a convivência e
segurança cidadã (saúde social).

509
Modelo de Vigilância Comunitária na Colômbia

• DIAGNÓSTICO
• PRIORIZAÇÃO
• FORMULAÇÃO
• PLANO DE AÇÃO

POLÍCIA
(MÉDICO)
BAIRRO (PACIENTE)

PROCESSOS (REMÉDIOS)
• DIAGNÓSTICO DE SEGURANÇA CIDADÃ
• GESTÃO COMUNITÁRIA
• GESTÃO INTERINSTITUCIONAL
• EDUCAÇÃO CIDADÃ
• TRATAMENTO DE CONFLITOS
• DISSUASÃO DA INFRAÇÃO
• QUEIXAS, RECLAMAÇÕES E SUGESTÕES

4. PROCESSOS DE VIGILÂNCIA COMUNITÁRIA

A tendência mundial das organizações é o trabalho por processos,


deixando em segundo plano o trabalho por funções. O processo mostra
ao responsável a forma mais eficiente de fazer algo e garante o caminho
para a consecução de um propósito. Um processo é um conjunto de
atividades que, ao se inter-relacionarem, em forma lógica e coerente, nos
conduz a um resultado. Na vigilância veremos duas classes de processos:
essenciais e de suporte.

4.1. Essenciais

São aqueles que conduzem à essência da organização (negócio


essencial, nesse caso, a convivência e segurança cidadã). Caracterizam-se
por terem contato com o usuário (o cidadão) e seu resultado contribui
de forma direta no resultado final que a organização oferece. Estão
definidos, a seguir, os sete processos que são mais utilizados no exercício
preventivo da Vigilância Comunitária:

510
Yed Milton Lopez Riaño

4.1.1. Diagnóstico específico de convivência e segurança cidadã:

Esst processo parte de um problema específico de segurança e/ou


convivência, encontrado no Diagnóstico Geral, e nos permite identificar
suas causas e seus fatores de origem.

4.1.2. Gestão comunitária:

É aquele que nos permite envolver e comprometer a comunidade


na solução de problemas de convivência e segurança cidadã.

4.1.3. Gestão interinstitucional:

É aquele que nos permite envolver e comprometer as instituições,


autoridades e organizações que tenham ingerência em segurança cidadã,
para resolver problemas que não são da competência da Polícia Nacional.

4.1.4. Educação cidadã:

É um processo orientado a gerar cultura de segurança cidadã,


convivência, civismo e sentido de pertencimento em bairros e setores,
assim como propiciar na comunidade a auto-regulação.

4.1.5. Tratamento de conflitos:

É aquele que nos permite abordar os conflitos e resolvê-los ou


encaminhá-los às autoridades competentes, com o fim de evitar um
problema maior.

4.1.6. Dissuasão da Infração:

É aquele que nos permite atacar o problema de forma direta, através


da presença, patrulhamento, revista, planos intensivos, entre outros.

4.1.7. Atenção ao cidadão:

É um processo que nos permite conhecer os problemas do cidadão


com a instituição ou outras organizações, escutar suas sugestões e dar
respostas oportunas às mesmas.

4.2. De Suporte

São aqueles que sustentam a organização, para que se possa levar a


cabo os processos essenciais. Geralmente não têm contato com o cliente

511
Modelo de Vigilância Comunitária na Colômbia

externo (cidadão). Também são chamados de processos gerenciais,


administrativos ou logísticos.

4.2.1. Planejamento do serviço:

É um processo que nos permite organizar, através do planejamento,


o serviço de Polícia como resposta às necessidades da comunidade, levando
em conta a otimização do talento humano e os recursos materiais e
logísticos.

4.2.2. Implementação do serviço:

Processo destinado a instalar o serviço de Polícia Comunitária em


unidades onde não exista, levando em conta critérios padronizados, que
garantam o sucesso da unidade.

4.2.3. Inovação e desenvolvimento:

É um processo que permite à organização aplicar melhoramento


contínuo dos processos, crescimento e fortalecimento da Polícia
Comunitária.

Notas
1
Regulamento de Vigilância urbana e rural para a Polícia Nacional. Resolução No. 9960 de 13
de novembro de 1992. Título II. Art. 36.
2
Lei 62 de l993. Título V: Sistema Nacional de Participación Ciudadana.

512
S IL
B RA
Relato Policial
O PLANEJAMENTO PARTICIPATIVO DO BAIRRO
DE HIGIENÓPOLIS, RIO DE JANEIRO -
ORGANIZANDO A SOCIEDADE E QUALIFICANDO
AS DEMANDAS POR SEGURANÇA PÚBLICA.
Robson Rodrigues da Silva*

A área de policiamento do 22º Batalhão de Polícia Militar engloba


os bairros de Ramos, Higienópolis, Benfica, Bonsucesso, e mais o complexo
de favelas conhecido por “Maré”, do qual fazem parte as favelas do Timbau,
Baixa do Sapateiro, Parque União, Nova Holanda, Vila do João, Vila dos
Pinheiros, Conjunto Nova Esperança, Nelson Mandela I, II e III, Manguinhos
e uma pequena parte da favela do Jacarezinho. Apesar de não muito
extensa, quando comparada às áreas de outras unidades PM da capital
fluminense, ela é tida como bastante complexa no sentido operacional, já
que o tráfico de drogas ali se entranhou ajudado por fatores geográficos e
histórico-sociais que propiciaram sua rápida capilarização. A guerra entre
facções freqüentemente levava o pânico, não só às comunidades e aos
usuários de três das mais importantes artérias viárias da cidade que cruzam
aquela área (Linha Amarela, Linha Vermelha, que liga a cidade ao seu
Aeroporto Internacional, e Avenida Brasil), como também aos próprios
policiais militares. Pela insegurança que causava nos usuários, aquela faixa
de artérias era freqüentemente chamada de “Faixa de Gaza”, o que a
aproximava do terror dos territórios palestinos e revelava uma
representação coletiva alicerçada numa imensa sensação de medo difuso.

A fim de solucionar o problema, o Governo do Estado do Rio de


Janeiro construiu a nova sede do 22º BPM, agora encravada no coração
do Complexo de Favelas da Maré, quase que exatamente na divisa dos
territórios simbólicos de duas das mais poderosas facções do tráfico de
drogas do Rio: O Terceiro Comando e o Comando Vermelho. Inicialmente
a ação fez surtir algum efeito, pois houve uma contenção das latentes
invasões. No entanto, a força daquela representação levou a PM à
generalização de que o patrulhamento em locais tão deflagrados só é
possível com o uso de táticas de guerra, normalmente utilizadas em
ambiente hostis onde há um alto poder destrutivo por parte do adversário,
o que eu vou chamar de senso comum policial militar. Não pretendo discutir

*
Tenente Coronel da Policia Militar do Estado de Rio de Janeiro, cursando mestrado em Antropologia,
Coordenador dos Conselhos Comunitários de Segurança do Estado de Rio de Janeiro, no Instituto
de Segurança Pública – ISP.
513
O Planejamento Participativo do Bairro de Higienópolis - Organizando a
sociedade e qualificando as demandas por segurança pública.

aqui a utilidade de tais estratégias, mas é importante ressaltar que essa


representação homogeneizada fez com que a Instituição Policial Militar
não enxergasse outras demandas daquela área de policiamento.

Quando chegamos para comandar o 22º BPM era essa a situação.


Eu mesmo, como membro da PMERJ, também compartilhava dessa
representação. Entretanto a experiência naquela unidade operacional foi
extremamente valiosa e enriquecedora, inclusive por destruir alguns mitos
de nosso imaginário social. O primeiro deles era o de que as tão-exaltadas
reuniões com as “comunidades”, ocorridas no quartel do 22º BPM,
conhecidas como “Cafés-Comunitários” e tidas como as das mais
democráticas, não o eram. Explico: o próprio apelido da unidade (Batalhão
da Maré) e os motivos para os quais ela havia sido criada faziam crer que
tais reuniões eram espaços de diálogo plural, mas, na prática, somente
participavam deles as comunidades do Complexo da Maré, ou seja, aqueles
atores que se imaginava não possuírem voz. Na realidade, eram espaços
destinados a “dar voz social à comunidade da Maré”.

Todavia, a área do 22º BPM não comporta somente a Maré, mas


também outros bairros com demandas específicas e que, pela análise dos
índices criminais, apresentavam problemas até maiores, como o roubo e
o furto de veículos, o roubo a transeuntes e o roubo a estabelecimentos
comerciais. Mesmo assim, essas outras “comunidades” ficavam ao largo
daquele processo “democrático”.

Outro mito era o de que ali, naquelas reuniões, as corretas ações


dos policiais militares, as que socialmente foram pactuadas na Constituição
Federal, eram aceitas e aprovadas pelos representantes comunitários, mas
também não o eram. Quando cheguei, percebi que ali o assunto do tráfico
de drogas, pivô da perversa situação em que se encontravam os
moradores, que normalmente ficam no meio do confronto entre traficantes
e policiais, era um verdadeiro tabu. A grande maioria daquelas
“comunidades” realmente não queria a presença dos policiais do 22º sob
qualquer hipótese - mesmo a legal -, embora o objetivo formal do “Café-
Comunitário” fosse o de aproximar o policial militar de sua comunidade.
Nesse contexto, a aproximação só ocorria, na verdade, entre o BPM e
algumas pessoas das associações de moradores; ali o significado de
democracia beirava perigosamente o clientelismo e o populismo, com a
presença de lideranças políticas e representantes de ONG´s, conquanto
a marca “Maré” acumula um grande capital político.

514
Robson Rodrigues da Silva

A contenção das hordas de traficantes fortemente armadas ainda


continuava sendo priorizada através das tradicionais “ações de guerra”, e
o índice de homicídios, inclusive o de policiais militares mortos em combate,
era dos mais altos. Não obstante as atitudes arbitrárias de policiais militares
serem reprimidas pelo comando, a medida em que delas fosse tomando
conhecimento nos “Cafés Comunitários”, o instinto de sobrevivência não
permitia que esses agentes públicos construíssem uma rede de
sociabilidade em ambientes que se lhes apresentavam tão hostis. Nesse
tom, seguiam as reuniões com reclamações das “comunidades” e pseudo-
aproximações, o que em muito lembrava o clássico refrão da música dos
Titãs: “Polícia para quem precisa de polícia” .

Foi então que, procurando conhecer (agora de uma forma mais


democrática, no sentido clássico) também outras demandas, que se
inserem na função da Polícia Militar, convidamos representantes das demais
associações de moradores que não tinham o hábito de comparecer àqueles
eventos. Isso fez com que os “Cafés Comunitários” ficassem agora mais
representativos, inclusive com nova pauta de discussões, onde a presença
policial em seus bairros passou a ser pleiteada. A partir de então anunciamos
a todos o que passamos a chamar de planejamento operacional participativo,
que consistia na discussão, com os próprios destinatários do serviço de
segurança pública interessados, a aplicação, em suas localidades, do
policiamento ostensivo, missão constitucional da PM.

Mesmo não havendo muitas inscrições para aquela iniciativa ousada,


como era de se esperar, descobrimos no interesse dos representantes
do bairro de Higienópolis a possibilidade de materializar o que muitos
entendem como policiamento comunitário (eu, particularmente, entendo
como missão constitucional da Policia Militar). Este bairro de classe média
baixa fica entre as favelas de Manguinhos e do Jacarezinho e, muitas vezes,
como alguns de seus próprios moradores alegaram, os bandidos que os
assaltavam diziam ser ali o seu “shopping-center”, tamanha a facilidade
que tinham para ir, buscar o que queriam e voltar para seus redutos. Os
indicadores criminais apontavam naquele bairro uma alta taxa de roubos a
transeuntes e a veículos.

Com este diagnóstico, reunimos então alguns dos oficiais do staff


do 22º BPM, notadamente os encarregados do planejamento, do efetivo
e da logística, e partimos para o primeiro encontro, anunciado previamente
pela Associação de Moradores de Higienópolis, para acontecer numa escola

515
O Planejamento Participativo do Bairro de Higienópolis - Organizando a
sociedade e qualificando as demandas por segurança pública.

municipal do Bairro. Ele ocorreu não só com a presença dos representantes


da Associação de Moradores, como também com a de vários outros
moradores do bairro que, na oportunidade tomaram conhecimento,
através do comando do 22º BPM, tanto dos indicadores estatísticos e
dos limites dos recursos operacionais da PM, quanto da missão daquela
instituição enquanto um direito da cidadania. Foi então pactuado que seriam
realizadas operações do tipo A-REP-3 (Blitzens), em locais escolhidos por
eles próprios, após barganharem entre si a melhor escolha, segundo suas
próprias necessidades; tudo isso levando em conta os limites de efetivo e
viaturas policiais militares. A Associação de Moradores, por seu turno, se
comprometeu a comprar aparelhos de rádio para um contato ágil com os
policiais militares que estivessem de serviço no local, sendo que,
representando a cidadania, algumas pessoas que moravam em pontos
estratégicos se predispuseram a ser os guardiões do bairro,
responsabilizando-se por canalizarem os pedidos e chamarem os policiais
no caso de suspeição de ilicitude.

Os recursos eram os mesmos que já haviam sido disponibilizados


anteriormente para aquela localidade, mas o novo policiamento, agora
legitimado pela participação dos moradores, fez com que houvesse um
rápido decréscimo das taxas criminais. A satisfação dos moradores coroou
de êxito aquela ação conjunta, cuja rapidez, confesso, chegou mesmo a
me espantar. Para tanto, uma questão gerencial foi fundamental: a motivação
dos policiais. Antes havia um rodízio muito grande entre os policiais
militares que trabalhavam no setor de policiamento que cobria o bairro
de Higienópolis. O local não era prioridade do Batalhão, segundo a
representação da “guerra”, e quase sempre os policiais eram deslocados
para outras missões “mais importantes”, sacrificados nos apoios a outras
unidades. Não havia, portanto, identificação e nem compromisso dos
policiais com os moradores locais. A partir de então, foi enfatizada a política
da negociação entre os interesses do policial militar e os interesses
institucionais. Partiu do comando o compromisso de não serem mais
deslocados para outras missões, desde que atendessem aos moradores
em suas demandas por segurança pública e, consequentemente,
reduzissem as taxas criminais. Com esse intuito, eles foram apresentados
aos moradores como os novos companheiros do bairro, havendo uma
identificação mútua que viabilizou o êxito do planejamento. Posteriormente,
outras reuniões de ajuste foram realizadas, onde se pôde perceber a
inclusão de novas categorias técnicas no discurso dos moradores como,

516
Robson Rodrigues da Silva

por exemplo, “indicadores de violência”, “mancha criminal”, “taxas de


criminalidade”, “segurança pública”, “policiamento ostensivo” etc.

Havia, no entanto, ainda muita resistência por parte de boa parcela


de policiais militares, inclusive de oficiais mergulhados numa cultura
institucional que tende a valorizar ações tradicionais em detrimento das
que poderiam estar fulcradas numa racionalidade policial militar
democrática, onde através da criatividade profissional os objetivos gerais
da PM, estabelecidos na carta magna, pudessem ser alcançados com menor
esforço dos recursos públicos. Tudo leva a crer, portanto, que o projeto
não teria um futuro promissor dentro daquela cultura institucional.

Posteriormente, fui movimentado para uma outra unidade, de onde


não pude mais acompanhá-lo, mas mesmo assim a experiência valeu para
mostrar que sua aplicação é plausível.

517
R
E L DO
VA
S AL
Relato Policial
A ORGANIZAÇÃO DOS COMITÊS LOCAIS DE
PREVENÇÃO DA VIOLÊNCIA E DELINQÜÊNCIA
EM EL SALVADOR
Hugo Armando Ramírez Mejía*

INTRODUÇÃO

A experiência descrita faz parte de um trabalho que desde 2004


vem sendo feito pela Polícia Nacional Civil de El Salvador; esta experiência
consistiu em oferecer às instituições governamentais e não governamentais,
Conselhos Municipais, ONGs e OGs, entre outros; que de alguma maneira
participam do desenvolvimento econômico, político e social em nível local,
uma estratégia viável para se organizar de forma efetiva e poder, de uma
forma consensual, praticar uma abordagem integral para o tratamento da
violência social que atinge a cidadania.

Não é o propósito desta iniciativa que a proposta se torne uma receita


rígida, já que a adequação e/ou modificação da mesma depende da realidade
local, do nível de organização cidadã, do sentido de identidade, e da sensação
de pertencimento que existe entre estas e as instituições, organizações
governamentais e não governamentais que tenham projetos sociais.

No entanto, era nosso propósito que as ações que


empreendêssemos e fossem executadas fossem para o benefício da
cidadania e perdurassem no tempo; estas deveram ser desenvolvidas numa
ordem prioritária, privilegiando os processos de prevenção de todas
aquelas condutas que resultem na minimização da violência e delinqüência
com foco sobre a proteção dos segmentos mais vulneráveis (infância,
juventude, mulher, idosos e população com necessidades especiais).

OBJETIVOS

Geral

Organizar um fórum de análise (comitê), que articule o


conhecimento e tratamento integral das causas que geram os problemas
da violência e delinqüência em nível local.

*
Subinspetor, Chefe da Divisão de Serviços de Juventude e Família da Policia Nacional Civil de El
Salvador
518
Hugo Armando Ramírez Mejía

Específicos

a. Que as diversas instituições, setores, organizações comunitárias,


ONGs, OGs participem de forma efetiva na identificação de necessidades,
interesses e problemas que afetam de forma direta e indireta o
desenvolvimento: cultural, educativo, de lazer, político e econômico da
população em nível local.

b. Que as diversas instituições, setores ou organizações em


coordenação com autoridades municipais de nível local desenvolvam
atividades que mitiguem a problemática local.

c. Que as autoridades locais, em coordenação com as demais


instituições, organizações e setores desenvolvam atividades que permitam
minimizar os fatores de risco e potencializem os fatores de proteção,
implementando para isso efetivos programas de prevenção da violência e
delinqüência.

INÍCIO DO PROCESSO

O processo teve início articulando reuniões com autoridades dos


conselhos municipais, de instituições governamentais e não-
governamentais, expondo o problema da violência e delinqüência do
município, as projeções institucionais e o modelo de organização, focando
como, a partir da sua própria experiência, era possível melhorar a situação.
(O modelo foi concebido para ser levado à frente pelos prefeitos dos
municípios)

Sustenta-se, embora de forma empírica, a tese de que “a abordagem


e minimização dos níveis de violência e delinqüência são uma
responsabilidade compartilhada da sociedade em seu conjunto”. Essa
sustentação tinha como base os seguintes elementos.
a. Evitar a dispersão de esforços institucionais, setoriais e
organizacionais.
b. Conseguir uma efetiva economia de recursos: humano,
material e financeiro.
c. Dar uma resposta integral e integradora aos problemas
locais.

519
A Organização dos Comitês Locais de Prevenção da Violência e
Delinqüência em El Salvador

d. Focalizar ações consensuais com a comunidade.


e. Fomentar uma cultura de paz através da convivência em
harmonia.
f. Fomentar a responsabilidade cidadã através da
compreensão e aplicação de direitos e deveres.

MUNICÍPIOS ONDE A EXPERIÊNCIA FOI IMPLEMENTADA


1. Prefeitura de Soyapango
2. Prefeitura de San Salvador, Distrito Nº 1
3. Lourdes, Colón
4. Zacatecoluca

PASSOS PARA A ORGANIZAÇÃO DO COMITÊ LOCAL.

A seguir os passos que foram dados para organizar os comitês:


PASSO 1. Seleção de um/a líder (consistiu em envolver
diretamente o prefeito municipal ou seu representante na
condução do esforço)
PASSO 2. Organização de secretarias (Educação,
Cultura, Lazer e Esportes, Saúde e Meio Ambiente,
Emergências, Emergências Municipais e Segurança Cidadã)
PASSO 3. Coordenador por projeto (cada uma das linhas
de trabalho foi presidida por um especialista, EX; Em
Saúde, um médico; em Segurança Cidadã, um oficial
da polícia)
PASSO 4. Manual de Organização e funcionamento
(foi elaborado um documento onde se definiu a organização
e as funções dos agentes que a compuseram)
PASSO 5. Manual de Procedimentos (foi elaborado cada
um dos procedimentos para tornar o comitê operativo)
PASSO 6. Ata de Constituição e Regulamento Interno
(buscou-se a inscrição legal do Comitê diante dos
organismos correspondentes para dar vida legal e facilitar
a gestão)

520
Hugo Armando Ramírez Mejía

OBJETIVOS ALCANÇADOS
1. Elevar os níveis de organização nos municípios e comunidades

2. Pôr na agenda das diferentes instituições governamentais e não


governamentais e setores que têm presença em nível local o tema da
“segurança humana: uma responsabilidade de todos”

3. Desenvolver diagnósticos situacionais sobre a realidade social em


três municípios; Soyapango, Colón e Distrito Nº1 da prefeitura de San Salvador.

4. Elaboração de planos de ação em consenso com cidadãos e


representantes das instituições participantes.

5. Executar algumas ações pontuais para minimizar os fatores de


risco (campanhas de vacinação, coleta de lixo, campanhas para divulgar
os direitos e deveres dos cidadãos, campanhas nos centros educativos
para evitar que os jovens entrem nas gangues, entre outros)

PROBLEMAS NA SUSTENTAÇÃO DO MODELO


1. O alto nível de polarização política

2. A disputa por liderança impediu o consenso (embora todas as


agendas dos participantes incluam ações de prevenção)

3. A pouca compreensão de alguns setores participantes em relação


a ações de prevenção da PNC (uma alta porcentagem da população só
atribui a função de “repressão do delito” à instituição policial)

4. Os projetos sociais implementados pelo Executivo detêm um


alto grau de interesses partidários, o que gerou desconfiança nos municípios
governados pela oposição e vice-versa.

5. A baixa crença dos chefes policiais na função de prevenção social


da violência, preferindo a repressão ao delito.

LIÇÕES APRENDIDAS

1. É possível alcançar a organização da comunidade sempre que e


quando forem levados em conta os atores principais em nível local.

521
A Organização dos Comitês Locais de Prevenção da Violência e
Delinqüência em El Salvador

2. É difícil instalar um modelo de prevenção da violência e


delinqüência se não existirem políticas de Estado reais, ainda mais quando
em nível local não existe um envolvimento real dos conselhos municipais
na co-responsabilidade e viabilidade das políticas.

3. É possível alcançar a integração sociocomunitária na medida em


que os jovens e suas famílias se integram no ambiente natural onde vivem
cotidianamente.

4. Embora o modelo tenha sido desenhado para ser desenvolvido


com recursos próprios dos envolvidos, é necessário contar com a ajuda
de organismos nacionais e internacionais.

5. A rotatividade do pessoal policial dificulta a continuidade das ações


programadas.

CONCLUSÃO

O modelo é viável. E pretende se enraizar no “local”. Essa opção


de trabalho supõe, mas não limita à participação do governo municipal da
região na qual será implementado o modelo. Busca-se, e há princípios de
consenso, que supõe a participação de Governos Municipais (convênio
COMURES – PNC), falta definir as modalidades operativas nas quais se
expressará sua participação.

Também é possível entender este modelo de trabalho no sentido


da busca de vínculos com outros atores locais, entidades de serviço da
localidade, instituições educativas presentes na região etc.

522
G UA

CA
Relato Policial NI

O CONTROLE SOCIAL E A POLÍCIA: ALIANÇA


CONTRA O TRÁFICO ILÍCITO DE ARMAS DE FOGO
Xavier Antonio Dávila Rueda*

INTRODUÇÃO

Geralmente, o problema da delinqüência e o crime organizado se


conceituam como problemas a serem resolvidos pelos corpos policiais.
Por isso, não é de se imaginar que a cidadania exerça um controle social
ativo, sistemático e relevante nesses temas. Menos imaginável ainda é que
seja a Polícia Nacional que promova e gere condições para que a
comunidade exerça o controle social sobre as ações policiais e sociais
para a prevenção do delito.

Por essa ocasião, resolvemos apresentar a experiência recente da


Nicarágua, que ilustra o modelo de Polícia Comunitária Pró-ativa que
desenvolvemos ao longo dos últimos 28 anos, e que se baseia precisamente
numa aliança permanente e estratégica entre a instituição policial e a
sociedade, com o fim de exercer o controle social.

Nós, nicaragüenses, estamos construindo a segurança cidadã, mão


a mão, vencendo dificuldades, gerando sinergias institucionais e
comunitárias. Para isso, fortalecemos cada dia mais a aliança entre a Polícia
e a Comunidade e promovemos a auditoria social para avaliar e gerar
mudanças que nos permitam um maior desenvolvimento, assim como
alcançar novos patamares.

O MODELO POLÍCIA COMUNITÁRIA PRÓ-ATIVA: ANTECEDENTES


DE ORIGEM

A Polícia Nacional da Nicarágua, desde sua fundação em setembro


de 1979, assumiu como princípios fundamentais: o serviço à comunidade
e ao humanismo. Para assegurar organicamente o serviço à comunidade
criou-se uma função de vínculo permanente com a comunidade que
denominamos “Chefe de Setor”, um funcionário (a) policial designado
para atender um setor territorial que populacionalmente corresponde a
cinco mil habitantes em média. A missão do Chefe de Setor é representar
o sistema policial numa comunidade determinada, conhecer seus problemas
*
Comissionado Major, Diretor de Armas e Explosivos Polícia Nacional de Nicarágua

523
O Controle Social e a Polícia: aliança
contra o tráfico ilícito de armas de fogo

e necessidades de segurança cidadã, gerir a resposta policial, promover a


organização comunitária para gerar uma resposta social ao problema e
trabalhar conjuntamente com a comunidade no desenvolvimento local.

Até a data, as comunidades se apropriaram deste sistema. Exigem e


reclamam a presença e o bom desempenho do Chefe de Setor, se fazem
ouvir através deste funcionário (a), trabalham em conjunto buscando soluções
sociais para os problemas de segurança cidadã, motivam e demandam ações
das entidades públicas que devem intervir na situação e das entidades privadas
locais que possam contribuir para o desenvolvimento social e econômico.

O desenvolvimento desta experiência se deu gerando reformas


organizacionais no sistema policial, condicionadas pelos momentos
históricos, as mudanças sociais, políticas e econômicas na sociedade
nicaragüense, as quais abordamos a seguir.

O MODELO POLÍCIA COMUNITÁRIA PRÓ-ATIVA: DESCRIÇÃO


É o procedimento para dispor os serviços policiais ao serviço da
comunidade para a identificação de problemas e a abordagem conjunta dos
mesmos, em busca da prevenção do delito, da segurança humana e da ordem.

É um desenvolvimento constante das capacidades, aptidões e


habilidades mediante a capacitação e preparação contínua, criando
competências para a solução de problemas ligados à prevenção policial e
social, promovendo a gestão comunitária e interinstitucional.

O pró-ativismo se considera como sendo a prevenção policial em


que prevalece o sistema pró-ativo sobre o reativo, o que requer um policial
bem informado e capacitado para prever situações delitivas, facilitando
com sua atuação a solução de problemas antes que estes apareçam,
existindo coordenações entre as unidades, respondendo de maneira rápida
e eficaz às necessidades da cidadania, sendo facilitadores na resolução de
problemas sociais, em que o cidadão é a razão de ser e para o qual se
deve prestar o serviço policial.

Faz-se ênfase em processos de inteligência policial, como um sistema


mediante o qual todos e cada um dos integrantes da Polícia geram
informação (através da comunidade, contatos com a população etc.) e
depositam a mesma num banco de dados da unidade. Sendo processada,
passa por tratamento administrativo, operativo e de retroalimentação.

524
Xavier Antonio Dávila Rueda

Aplica-se como método de gestão e tomada de decisões um


processo que denominamos Método dos 6 pontos:
Ponto 1 INSUMOS: Consultas e consenso em nível local para
priorizar e hierarquizar os problemas da comunidade e
alternativas de soluções possíveis, melhorando o conhecimento
dos líderes locais sobre as responsabilidades da instituição em
sua competência.
Ponto 2 ESTRATÉGIA: Com as consultas e consenso o chefe
deve elaborar uma Estratégia de intervenção que envolva todo
o sistema policial.
Ponto 3 PLANEJAMENTO: Determinar objetivos, metas e
ações pertinentes para dar solução aos problemas identificados
como prioritários pela população.
Ponto 4 AÇÃO: Execução das ações de forma sistêmica,
desenvolvendo comunicação efetiva vertical e horizontal,
compartilhando experiências, alinhadas com metas institucionais
e da comunidade.
Ponto 5 COMUNICAÇÃO: Divulgação dos resultados do
processo de trabalho através da comunicação interna e externa.
Ponto 6 RETROALIMENTAÇÃO: Processo mediante o qual
socializamos os resultados esperados e trocamos experiências,
conquistas e dificuldades para a melhora contínua.

Este modelo está em processo de melhora contínua, sua aplicação


está condicionada pelas capacidades instaladas em cada jurisdição policial.
Em algumas delegações policiais sua aplicação é parcial, atendendo aos
recursos disponíveis e complexidades do entorno.

EXPERIÊNCIA DE CONTROLE SOCIAL SOBRE AS ARMAS DE FOGO


1. Contexto da experiência
a) A Lei especial para o controle e regulação das armas de fogo,
explosivos, munições e outros materiais relacionados é de recente
promulgação (2005), pelo que se requer criar condições na sociedade
(conhecimento, sensibilização, compromisso) para sua aplicação cidadã.

525
O Controle Social e a Polícia: aliança
contra o tráfico ilícito de armas de fogo

b) O propósito institucional da experiência que apresentamos se


define como divulgação direta da Lei de Armas aos Comitês de Prevenção
Social do Delito existentes nos Departamentos de Manágua, Masaya e
Granada, e para obter um diagnóstico da problemática social e delitiva
que geram as armas de fogo, explosivos, munições e outros materiais
relacionados nessas localidades.

c) O propósito comunitário se define como avaliação do


desempenho da Polícia Nacional e estabelecimento de demandas de
Segurança Cidadã.

2. Estratégia de intervenção

a) Contratação de uma empresa consultora que organize e execute


a intervenção com perfil civil e enfocada em temas de segurança cidadã e
prevenção social, para que documente os resultados.

b) Organizar eventos de comunicação participativa entre a Polícia


Nacional e as comunidades, através das organizações comunitárias existentes
que trabalham o tema de segurança cidadã (Comitês de Prevenção Social
do Delito). Estes eventos foram definidos como Grupos Focais.

3. Metodologia

a) A Delegação de Polícia local convoca uma reunião entre os


Comitês de Prevenção Social do Delito do setor geográfico de seu
interesse para abordar o tema.

b) O tema se organiza mediante um programa indutivo que vai


gerar interesse e participação das pessoas participantes:
1. A Polícia Nacional expõe a situação delitiva relacionada a
armas de fogo
2. A Polícia Nacional expõe os principais temas da Lei de
controle de armas que interessa divulgar com prioridade.
3. A empresa consultora gera a troca de opiniões sobre
cada um dos temas de maneira participativa e produtiva.
Neste processo se evitou a influência e o viés que pudessem
exercer os oficiais de polícia, limitando-os a responder
aspectos específicos do interesse dos participantes.

526
Xavier Antonio Dávila Rueda

4. As pessoas presentes expressam seus pontos de vista,


sua definição dos problemas, suas demandas e prioridades,
e recomendam estratégias para superar os problemas.

RESULTADOS OBTIDOS

Os principais problemas identificados pela comunidade são expressos


da seguinte forma:

· Existência de armas fabricadas artesanalmente por jovens que se


reúnem para alterar a ordem pública e gerar violência juvenil.

· Uso indevido de armas de fogo por pessoas com licença de porte de


armas, disparando, alterando a ordem pública e expondo pessoas ao perigo.

· Guardas de segurança de Empresas Privadas de Vigilância apresentam


desempenho negligente e alguns agem em cumplicidade com delinqüentes.

· Existe comercialização de produtos pirotécnicos à margem da Lei,


em lugares não autorizados (mercearias ou comércios de bairro), e venda a
menores de idade.

· Roubos utilizando armas de fogo em alguns lugares de uso público


como parques, entorno de bares e entrada a distritos.

· A comunidade perdeu a confiança no desempenho policial devido às


fragilidades na prevenção, relacionadas com a inexpressiva presença policial,
fraca capacidade de resposta às denúncias e alta rotatividade dos oficiais com
bom desempenho.

· A delinqüência tem mais recursos do que a Polícia Nacional.

· O organismo comunitário apresenta um baixo nível de organização e


se sente sem proteção para agir em apoio à Polícia Nacional.

· Fabricação de produtos pirotécnicos em lugares inadequados


(moradias e fábricas de tortilhas) e seu uso imprudente por pessoas que
organizam eventos públicos e por cidadãos comuns em família.

· No uso de explosivos industriais, as explosões danificam propriedades


e provocam danos à saúde nas comunidades ao redor.

527
O Controle Social e a Polícia: aliança
contra o tráfico ilícito de armas de fogo

· Uso indevido de armas de fogo em zonas rurais, realizando caça


de animais em lugares que a Polícia não tem capacidade de vigiar.
· Grupos delinqüentes vindos de fora realizam roubos utilizando
armas de fogo em moradias, veículos e comércios.
· Pessoas portam armas de fogo durante festas religiosas.
· Excesso de venda e consumo de bebidas alcoólicas geram fatores
de risco no uso indevido de armas de fogo.
· As empresas privadas de vigilância não provêm a capacitação
adequada de seus guardas de segurança, o que tem permitido que os
guardas transgridam a Lei.
· Comercialização de produtos pirotécnicos em lugares não
autorizados tais como mercearias (comércios de bairro) e queima de
pólvora negligente, que coloca em risco a vida de pessoas e, em alguns
casos, também de animais.

AÇÕES E ESTRATÉGIAS PROPOSTAS PELA COMUNIDADE


· Identificar e aplicar a Lei nas oficinas que fabricam armas artesanais.
· Descobrir as pessoas que têm armas artesanais para confiscá-las e
aplicar as sanções correspondentes.
· Intensificar a vigilância e presença policial nos lugares com tendência
à ocorrência de delitos, modificando a tática de intervenção e
implementando unidades móveis de prevenção.
· Orientar o trabalho de prevenção social a eliminar as condições
que facilitam a atividade delitiva, tais como: lugares sem iluminação, terrenos
abandonados, venda e consumo de álcool etc.
· Superar as fragilidades locais na relação polícia e comunidade.
· Exercer controle social sobre pessoas que têm condutas indevidas
fazendo uso de armas de fogo.
· Melhorar a resposta policial ao chamado de emergência.
· Melhorar o sistema de supervisão interna da Polícia Nacional,
apoiado pela comunidade.

528
Xavier Antonio Dávila Rueda

· Avaliar sistematicamente o desempenho dos guardas de segurança,


de forma conjunta entre polícia e comunidade.
· Melhorar os critérios de seleção e contratação do pessoal que
integra as empresas de segurança privada, estabelecendo um controle
cruzado entre Polícia e Comunidade. Particularmente, incidir na capacitação
sobre a Lei de Controle de Armas de Fogo.
· A polícia e a comunidade promoverão a divulgação e publicidade
pertinente das leis, utilizando os meios de comunicação social.
· Facilitar informação que possibilite à Polícia Nacional prevenir e
sancionar a fabricação e uso de armas artesanais.
· Intensificar a vigilância e a presença policial nos arredores de bares,
parques e entrada de distritos, exercendo controle sobre grupos de pessoas.
· Orientar o trabalho de prevenção social a incidir sobre pais de
família, para que exerçam sua autoridade sobre seus filhos jovens, e
responsabilizar os tutores sobre danos que ocasionem os menores de
idade, implementando como sanção o trabalho comunitário.
· Recompensar os chefes e oficiais da polícia que fazem um bom
trabalho com a comunidade e ampliar capacidades em delegações, segundo
o crescimento populacional em municípios e comunidades.
· Apoiar um orçamento maior para a Polícia Nacional que permita
uma maior presença preventiva, a criação e fortalecimento de delegações
em distritos e bairros.
· Revisar e ajustar o papel dos organismos comunitários e fortalecê-
los para que permitam um melhor desempenho em sua função de
prevenção social do delito.

· Desenvolver campanhas de comunicação e capacitação para a


população em matéria de prevenção social do delito.

· Desenvolver uma campanha educativa em conjunto entre Polícia e


Comunidade para sensibilizar fabricantes de produtos pirotécnicos,
cidadãos e, especialmente, as crianças e os pais de família.

· Criar pontos de venda autorizados, selecionando os lugares em


conjunto pela Polícia e a Comunidade.

529
O Controle Social e a Polícia: aliança
contra o tráfico ilícito de armas de fogo

· Inspecionar estes lugares e aplicar a Lei.

· A Polícia Nacional deve regular a potência e as condições adequadas


para efetuar as explosões industriais.

· A Polícia Nacional deve exigir a divulgação da programação de explosões


para favorecer a supervisão de autoridades comunitárias.

· Intensificar a vigilância e controle de porte de armas de fogo em via


pública.

· Exercer um controle social sobre os estabelecimentos que vendem


bebidas alcoólicas, a fim de evitar excessos na venda.

· Desenvolver uma campanha para evitar o consumo excessivo de álcool.

· A Polícia Nacional deve ser mais exigente no cumprimento dos


requisitos para autorizar o funcionamento de empresas de vigilância privada
e supervisionar sistematicamente o desempenho dos guardas de
segurança.

CONCLUSÕES

1. A problemática de segurança cidadã entre uma localidade e outra


não é necessariamente a mesma, e se algum fator se repete, este não tem
a mesma dimensão nem a mesma prioridade na demanda social em ambas
as comunidades.

2. Se não existe uma comunicação e relação sistêmica entre polícia


e comunidade, a polícia não pode conhecer com precisão a situação de
segurança da população, nem suas expectativas. Muito menos haverá uma
participação social ativa na construção da segurança cidadã.

3. A sinergia criada no trabalho conjunto entre polícia e comunidade


permite um impacto decisivo no bem-estar local.

4. O enfoque de trabalho local facilita as operações policiais e a


ação social.

5. É possível aplicar a prevenção social em temas complexos como


o tráfico ilícito de armas de fogo.

530
S IL
B RA
Artigo
POLÍCIA E JUVENTUDE NA ERA DA
GLOBALIZAÇÃO
Profa. Dra. Alba Zaluar*

INTRODUÇÃO: O CRIME NEGÓCIO GLOBALIZADO

A globalização tem sido analisada e avaliada em seus aspectos


ambivalentes e paradoxais. A extensa rede de comunicação no planeta, a
rapidez e o alcance com que produtos, idéias, modelos e pessoas viajam
têm contribuído para diminuir o desconhecimento dos outros, criando
assim mais condições para o hibridismo cultural, que o Brasil conhece
desde o século XVIII, e para uma cultura cosmopolita em que a
multiplicidade de culturas locais seja aceita no cenário mundial sem ser
esmagada pelos mecanismos da uniformização cultural. Além disso, o
respeito aos direitos civis e humanos passaram a fazer parte de uma arena
planetária, observado nos quatro cantos do mundo.

Mas há o lado escuro da globalização. O domínio da lógica do


mercado sobre as demais instâncias da vida social e política, a divisão de
nações, grupos e pessoas entre vencedores e perdedores fazem da
competição uma inexorável e interminável atividade humana. O jogo soma
zero que se segue afeta não apenas os sistemas de proteção social já
estabelecidos, mas também a vida pessoal de cada ser humano.

Mas o efeito da globalização que mais claramente aponta para o que


faz regredir o processo civilizatório tem sido pouco explorado nas
conexões com o que se poderia chamar o crime-negócio global, cujos
principais setores são: o tráfico de drogas e de armas no mundo.

Entre criminólogos, é um lugar comum dizer que o tráfico de drogas


ilegais, tendo sido instituído como crime, tornou-se uma atividade
econômica transnacional com conexões nos negócios legais e formais. De
fato, alguns de seus efeitos só são entendidos quando se tomam as relações
simbióticas entre diferentes atores que têm interesses comuns e formam
um tecido social, econômico e institucional bem entrelaçado. Este tecido
compõe o que deve ser considerado como o elemento sistêmico que
existe, no interior e fora das nações, nas redes transnacionais das atividades
econômicas criminosas, que negociam inúmeras mercadorias ilegais (Van
*
Professora Titular de Antropologia do Instituto de Medicina Social da Universidade do Estado
do Rio de Janeiro, coordenadora do Núcleo de Pesquisas sobre as Violências (NUPEVI/IMS/UERJ).
www.ims.uerj.br/nupevi 531
Polícia e Juventude na Era da Globalização

der Veen, 1998). O mercado das drogas ilegais é particularmente importante


no Brasil porque é ele que vai afetar a vida dos jovens vulneráveis, especialmente
os de sexo masculino. Por isso, o foco aqui é o comércio de drogas e armas.

Outra afirmação disseminada entre criminólogos é a que se refere


ao processo de globalização, nem sempre esclarecendo a dinâmica que
conecta as atividades ilegais ao sistema financeiro volátil e transnacional
bem como aos valores e práticas sociais que permitem a reprodução
dessas atividades. Os princípios do mercado invadem ainda mais
avassaladoramente aquelas formações sociais em que instituições são
corporações fechadas de pouca legitimidade e onde tradições morais não
demonstram capacidade de resistir às imposições, armadilhas e tentações
do novo e rápido mercado global. Não só a volatilidade e a rapidez do
mercado financeiro internacional facilitam as manobras para a lavagem do
dinheiro ganho em atividades ilegais diversas, como a própria cultura
empresarial se modifica. O objetivo deixa de ser poupar para investir, e
passa a ser o de ganhar dinheiro facilmente, e de qualquer maneira, para
consumir de modo hedonista (Sassen, 1991; Castels & Mollenkopf, 1992).
Outro autor assinala que a concepção de futuro foi alterada pelas incertezas
do novo ambiente econômico e os medos despertados pela competição
onipresente e infindável entre nações, grupos e pessoas. Em vez de poupar
para investir no futuro, gastos consumistas com o dinheiro de plástico, o
ubíquo cartão de crédito (Bauman, 2007).

Valores culturais modificados acompanharam tais mudanças nas


formações subjetivas: valores individualistas e mercantis selvagens se
disseminaram durante os anos setenta e oitenta em países como o Brasil,
traduzidos pelas expressões corriqueiras “fazer dinheiro fácil” e “tirar
vantagem de tudo”, também próprios desta nova fase do capitalismo
globalizado. Ou seja, a sociedade brasileira, pode-se dizer, sofreu o impacto
da colonização pelo mercado e passou a carecer dos limites morais
usualmente fornecidos pelo social e pelo institucional consolidado, e ficou
despreparada para enfrentar os novos desafios de uma economia que
tornou mais informal, precário e desprotegido o trabalho presente, ainda
mais incerto o futuro.

Como uma atividade ilegal e invisível, o comércio de drogas faz


parte deste novo ambiente social, econômico e cultural. Foi, portanto, o
próprio capitalismo na era da globalização que favoreceu, estimulou e criou

532
. Alba Zaluar

uma nova cultura que afeta desde os empreendedores econômicos de vários


níveis até o mais reles consumidor dos muitos novos bens ofertados, legais
e ilegais, com as facilidades da rapidez das conexões internacionais.

Mas são os atores no varejo do tráfico, que ficam na ponta final das
extensas redes de envolvidos nessa atividade econômica, os que continuam
sendo o alvo principal das políticas de segurança pública repressivas levadas
a cabo nos estados brasileiros.

EFEITOS DA POLÍTICA REPRESSIVA NO BRASIL

No Brasil, começou-se tardiamente a investigar e a conhecer a


provisão de drogas ilícitas ou a força organizacional das redes de traficantes,
principalmente suas conexões com a economia e as instituições legais.
Apesar da expansão do poder de Estado e dos fundos para o controle
público destas ações durante os anos oitenta, só muito recentemente
deu-se atenção aos interesses econômicos e políticos conectados à
economia da droga, particularmente as interações cuidadosamente tecidas
entre o mundo visível e o invisível, o legal e o ilegal, os setores formais e
informais da economia. Em outras palavras, se bem que a Polícia Federal
tenha examinado o crime organizado nos últimos anos, a Polícia dos estados
da República Federativa do Brasil, suas polícias civis e militares, intervém
principalmente na repressão violenta das favelas e dos bairros pobres nas
regiões metropolitanas e capitais.

Sem conhecer os meandros e as redes das atividades econômicas


ilícitas e, muito menos, sem entender os efeitos dessa nova cultura nas
práticas sociais dos jovens que entram ou convivem nos pontos de venda
das drogas, ou seja, nas formações subjetivas por eles internalizadas nos
últimos 30 anos, os resultados das políticas de segurança têm sido pífios.

Os primeiros permitiram desmantelar as redes de operação,


infringindo golpes mais contundentes nas atividades em questão e
diminuindo seus atrativos financeiros e políticos, o que deveria ser
implementado principalmente a nível federal e interestadual. As segundas
ajudariam a pensar em projetos de prevenção mais eficazes, com um
melhor convívio, ou mesmo cooperação entre as polícias estaduais e os
moradores das vizinhanças dominadas pelos traficantes de drogas do
pequeno varejo. Estas deveriam ser a principal transformação na forma

533
Polícia e Juventude na Era da Globalização

de agir das polícias militar e civil em cada estado brasileiro. Não adianta,
porém, implementar projetos modelos em uma comunidade apenas. É
preciso que tais projetos atinjam todas as áreas das cidades que se
encontram dominadas por traficantes armados, cada vez mais tirânicos
para com os moradores locais.

AS ATRAÇÕES DO CRIME NEGÓCIO

Em contexto de pouco desenvolvimento econômico, ou mesmo


de des-industrialização como acontece nas maiores cidades brasileiras,
mais pessoas podem vir a ser atraídas ao arriscado crime-negócio e passar
a organizar suas ações de modo a obstruir a detecção e a acusação judicial,
seguindo o jogo sujo e necessariamente violento das atividades fora e
contra a lei. Sua ilegalidade suscita extrema violência em alguns setores,
especialmente o do tráfico de drogas no varejo. Os que ocupam posições
estratégicas nas grandes redes de conexões transnacionais podem ter
rápidos ganhos devido a uma combinação de poucos limites institucionais
e morais, com a conseqüente corrupção que atinge as instituições
encarregadas de coibir o crime. Localmente, eles fomentam práticas
subterrâneas e violentas de resolução de conflitos e de luta perene pelo
controle do comércio e as posições de poder: as ameaças, a intimidação,
a chantagem, a extorsão, as agressões, os assassinatos e, em alguns países,
até mesmo o terrorismo.

Não falta no Brasil, o que Becker chamou de “motivação de um ato


desviante”, derivada de uma situação na qual o agente social não aceita a
ordem social ou o atual estado do jogo social e político, ou ainda se revolta
contra ele. Não que a pobreza explique o ato desviante, mas ela pode, em
conjugação com as falhas do Estado na criação de possibilidades de
ascensão social ou de aquisição de respeito, às quais deve se adicionar a
nova cultura hedonista que faz parte da cultura jovem, facilitar a adesão às
práticas de uso de drogas ilícitas, tidas como sub-culturas marginais. Sub-
culturas ou não, grupos de usuários se formam e são importantes na medida
em que sabemos ser o ato desviante ou a repetição dele uma decorrência
do aprendizado no grupo social de desviantes do qual o jovem vem a
fazer parte. Este pertencimento vem a gerar uma série de atitudes, valores
e identidades que podem se cristalizar e, também por criar laços reais de
amizade, domínio ou dívida, dificultar o rompimento com o grupo,
portanto com o próprio desvio.

534
. Alba Zaluar

Mesmo onde tais atividades ilegais surgiram de uma revolta contra


a discriminação e a desigualdade nas oportunidades que o mercado legal
oferece, as conseqüências principais das atividades transgressoras da lei
são: 1) criar vítimas entre possíveis concorrentes, tornando o mercado
ainda mais discriminador e desigual; 2) tornar a vida de todos nas vizinhanças
onde atuam seus protagonistas, e não apenas do pequeno número destes
protagonistas, muito mais difícil e cruel; 3) fazer surgir novos e inesperados
atores interessados em manter a ilegalidade pelas vantagens dela retiradas,
até mesmo os encarregados de reprimi-las no sistema de justiça,
especialmente em países de fraca institucionalidade como o Brasil; 4)
ameaçar a organização, a governança e um dos princípios básicos da
existência do Estado de Direito: o monopólio legítimo da violência,
contestado pelo uso de armas modernas e potentes nas mãos dos
integrantes de quadrilhas e comandos.

ENTENDENDO O CRIME NEGÓCIO LOCALIZADO

Mesmo admitindo que a pobreza impõe dificuldades no viver que


propicia a marginalização do jovem, é preciso nunca perder de vista que
a categoria “pobre” é altamente diferenciada. Os efeitos combinados da
pobreza e da urbanização acelerada, sem que houvesse um
desenvolvimento econômico necessário para oferecer emprego urbano
aos migrantes e aos trabalhadores pobres, não são suficientes para
compreender os conflitos armados que matam homens jovens. Portanto,
deve-se discutir como a pobreza e a falta de emprego para os jovens
pobres se relacionam com os mecanismos e fluxos institucionais do sistema
de Justiça na sua ineficácia no combate ao crime organizado, bem como
os efeitos da globalização da cultura sobre as tradições locais.

Tampouco a urbanização muito rápida, além de não garantir emprego


para todos os migrantes e, depois, para os seus filhos, não permite que as
práticas sociais urbanas da tolerância e civilidade sejam assimiladas entre
os novos habitantes das cidades. Entretanto, por conta dos processos já
mencionados de crise da autoridade e de difusão das novas identidades e
estilos juvenis globais, rapidamente corrói os valores morais tradicionais,
já não mais interiorizados pelas novas gerações da cidade.

Assim, muitos homens jovens e pobres se tornaram vulneráveis às


atrações do crime-negócio por causa da desorganização em suas famílias,

535
Polícia e Juventude na Era da Globalização

muitas delas incapazes de administrar os conflitos surgidos na vida urbana


mais multifacetada e imprevisível. Pais ausentes que não protegem, não
educam e não prestam atenção na companhia dos filhos são pais
inadequados. Políticas públicas que juntam jovens que já praticaram atos
delinqüentes sem fazê-los entender a dimensão dos seus atos e o
sofrimento que provocam nas vítimas estão destinadas ao fracasso por
estarem facilitando a dinâmica do contágio de idéias e comportamentos
violentos. E a favela ou o bairro pobre, evidentemente, seria o local propício
para a sua propagação por isolar uma população que apresenta um
percentual alto de famílias com “paternidade falha”, além de serviços
públicos, como escolas, de pior qualidade, mas principalmente pelo
policiamento inadequado e uso excessivo da força.

Jovens de famílias com renda abaixo do nível da pobreza tornam-


se vulneráveis por conta de uma combinação do abismo entre adultos e
jovens, do sistema escolar ineficaz, da falta de treinamento profissional,
com os postos de trabalho insuficientes, acrescidos das miragens das
identidades globais e do mercado onde se compete sempre para separar
“vencedores” e “perdedores”. Foi isto que apresentei como os
argumentos para sustentar a idéia de “integração perversa” ao sistema
econômico (Zaluar, 2004), formada na vinculação em posições menores
no tráfico de drogas.

Os mercados informais sempre existiram no Brasil, e constituíram


uma fonte de renda importante para os com pouca qualificação ou
desempregados. Estes mercados criaram redes e regras para organizar o
comércio de artesanatos e a produção caseira nas principais ruas dos
maiores centros urbanos. Entretanto, nas últimas décadas, as ruas foram
ocupadas pelos vendedores ambulantes de objetos roubados de
caminhões, de residências e de passantes. Teria sido mera coincidência,
ou a própria dinâmica do tráfico de drogas informal e ilegal estendeu para
outras redes o recebimento dos produtos roubados com o objetivo de
criar a liquidez para comprar novas doses da desejada droga?

O comércio informal, tradicionalmente uma saída para o


desemprego e o trabalho subalterno, tornou-se misturado com
empreendimentos econômicos criminosos, tais como o roubo de vários
bens utilizados como moeda para comprar drogas e seus precursores
(Zaluar, 1994; Geffray, 2001). Ferros-velhos, ourivesarias, oficinas

536
Alba Zaluar

mecânicas e antiquários viraram centros de receptação e, algumas vezes, de


lavagem de dinheiro. Usuários entrevistados e os que escreveram biografias
depois de tratados mencionam o fato de que, quando muito “fissurados”,
levavam os objetos roubados imediatamente para a boca de fumo e se
conformavam em receber uma quantidade de drogas muito inferior ao preço
que poderiam obter nos centros de receptação (Pinheiro, 2005).

Todavia, isto não se passa sem estratégias eficazes de corrupção


dos agentes da lei. Sem isso, não seria possível compreender a facilidade
com que armas e drogas chegam até as favelas e bairros populares do Rio
de Janeiro (Zaluar, 1994; Lins, 1997), nem como as mercadorias roubadas
- automóveis, caminhões, jóias, eletrodomésticos -, usadas na troca com
as drogas ilegais, chegam com facilidade ao seu destino final no Paraguai e
na Bolívia, passando pelo interior de São Paulo (Geffray, 1996).

Uma vez dentro de grupos criminosos, jovens, destituídos ou não,


ficam à mercê das rigorosas regras que proíbem a traição e a evasão de
quaisquer recursos, por mínimos que sejam. Entre esses jovens, no entanto,
são os mais destituídos que portam o estigma de eternos suspeitos, portanto
incrimináveis, quando são usuários de drogas, aos olhos discriminatórios
das agências de controle institucional. Com um agravante: policiais corruptos
agem como grupos de extorsão, que pouco se diferenciam dos grupos de
extermínio formados com o objetivo de matá-los. Quadrilhas de traficantes
e assaltantes não usam métodos diferentes dos primeiros.

Todas as entrevistas feitas com os jovens envolvidos pelas quadrilhas,


em Cidade de Deus, conjunto habitacional popular no Rio de Janeiro, pela
equipe de pesquisa que coordenei entre 1987 e 1991, mencionaram o
mesmo esquema de extorsão e terror da parte de policiais da região e a
imposição de traficantes para que os pequenos ladrões dividissem o produto
de seu roubo (Zaluar, 1994; Lins, 1997). Tornar-se membro da quadrilha
passa a ser imperativo, ou para pagar dívidas, ou para se sentir mais forte e
mais protegido frente aos inimigos criados. Se entra, o jovem se inicia no
circuito infernal de ter que andar sempre armado para não ser morto, que
os jovens de Cidade de Deus denominavam “condomínio do diabo”.

De fato, o comércio de drogas tornou-se sinônimo de guerra em


muitos municípios do Brasil, mas com diferenças regionais entre cidades
e entre bairros na mesma cidade. No Rio de Janeiro, mesmo que não

537
Polícia e Juventude na Era da Globalização

completamente coordenado por uma hierarquia mafiosa, o comércio de


drogas tem um arranjo horizontal eficaz pelo qual se faltam drogas ou
armas de fogo em uma favela, esta imediatamente as obtêm das favelas
aliadas. As quadrilhas ou comandos conciliam os dispositivos de uma rede
geograficamente definida, que inclui pontos centrais ou de difusão, com
outros que se estabelecem na base da reciprocidade horizontal.

Nesta cidade, as armas de fogo são mais facilmente obtidas por


causa dos portos e vários aeroportos assim como os mais importantes
depósitos de armamentos das Forças Armadas que estão dentro do seu
território. Muitos furtos ocorreram e continuam ocorrendo em tais
depósitos. Conseqüentemente, o tráfico de drogas tornou-se mais
facilmente militarizado.

Basta ler os jornais brasileiros para saber que os “comandos”


inimigos disputam violentamente o território onde controlam os negócios,
e proíbem os moradores das áreas “inimigas” de cruzar os limites do seu
perímetro, até mesmo para visitar amigos ou parentes. É por isto que
favelados, de alguns bairros da cidade, falam de uma “guerra interminável”
que opõe traficantes pertencentes a comandos inimigos ou policiais versus
traficantes. Nesta guerra, não somente os membros das quadrilhas, mas
também os jovens que vivem nas mesmas favelas ou em favelas amigas,
são obrigados a ajudar cada vez que os traficantes locais ou aliados são
atacados por inimigos. Os “soldados do tráfico” ou “falcões” formam
então um “bonde”, ou “elo” que responderá ao ataque do outro “bonde”,
constituído da mesma maneira. Por isso, os vizinhos não têm permissão
de cruzar as fronteiras artificiais entre as favelas. Muitos homens jovens
foram mortos apenas porque passaram de um setor a outro comandado
pelas redes beligerantes do tráfico. Mesmo para trabalhar, mesmo para
se divertir no baile. Algumas mulheres também foram mortas por ousarem
namorar homens de favelas inimigas.

Quando os “soldados” são chamados pelos “donos do tráfico”, este


chamado é dirigido aos jovens que conseguiram ultrapassar os
regulamentos existentes hoje nas Forças Armadas brasileiras para evitar
recrutar jovens de favelas. Eles foram treinados durante o serviço militar,
ainda obrigatório. Mesmo quando não fazem parte das quadrilhas, estes
jovens são “convidados” a montar e desmontar as armas automáticas
exclusivas das Forças Armadas e roubadas de seus depósitos; são chamados

538
Alba Zaluar

a instruir os novos soldados do tráfico a enfrentar os inimigos quando a


favela onde vivem é invadida pela polícia ou uma quadrilha rival. Eles devem
aceitar o “convite” não tanto porque são pressionados, mas porque se
sentem obrigados a colaborar com a quadrilha que controla o bairro onde
moram. De todo modo, eles sabem que, em caso de recusa, pagarão um
preço, tanto no plano moral como no físico: perderão o “conceito” ou a
“consideração” junto ao “dono do morro”; serão expulsos da favela; ou,
pior, executados (Zaluar, 2001).

Em algumas regiões pobres da cidade, os “comandos” que controlam


os morros dividiram militarmente não apenas as favelas, mas também as
ruas próximas. É preciso prestar atenção para não cair nas mãos de inimigos
ou, como eles dizem, de “alemães”. Além disso, as ruas são pouco iluminadas
e a polícia não vai ali senão em raras patrulhas ou “blitzen”. Por isso, os
traficantes das favelas reinam sem muitos problemas nas ruas dos bairros
mais longínquos. Trata-se, para eles, de impedir fornecedores
independentes de droga de vender sua mercadoria ali ou de mostrar seu
poder de fogo. Quando o “proprietário dos morros” avista um vendedor
não autorizado, ameaça-o. Se este último insiste, e confronta a quadrilha,
é morto. Não se pode vender drogas sem ser autorizado pelo dono. Se o
traficante ou o policial corrompido suspeita que os bandidos menos
importantes estão ganhando muito dinheiro, estes podem passar pela
experiência de serem agredidos, torturados ou extorquidos. A situação,
como dizem, fica “sinistra”. Eles podem ser mortos por um ou por outro.

Nessas áreas pobres da cidade controladas por traficantes, o uso


da arma de fogo é corriqueiro como meio de manter o domínio do
território, cobrar dívidas, afastar concorrentes e amedrontar possíveis
testemunhas1. Compreende-se, assim, porque jovens pobres matam-se
uns aos outros devido a rivalidades pessoais e comerciais, seguindo o
padrão estabelecido pela organização que, além de criar regras militares
de lealdade e submissão, distribui fartamente armas de fogo automáticas
e semi-automáticas, exclusivas das Forças Armadas.

Não se trata, pois, de guerra civil entre pessoas de classes sociais


diferentes ou mesmo uma nítida guerra entre polícia e bandidos. Nestas
mortes, os jovens pobres não estão cobrando dos ricos, nem estão
perpetrando alguma forma de vingança social, pois são eles as principais
vítimas da criminalidade violenta, seja pela ação da polícia, seja dos próprios

539
Polícia e Juventude na Era da Globalização

delinqüentes. Vivem, de fato, segundo as regras da reciprocidade violenta


e da vingança privada pela ausência de uma instância jurídica na resolução
de conflitos internos e do vigor de uma cultura cidadã. Tais conflitos
armados podem ser mais bem entendidos como guerras moleculares,
localizadas, mas sem fim.

HIPERMASCULINIDADE E VIOLÊNCIA

De uma dinâmica da economia informal transfigurada em ilegal,


cristaliza-se a “cultura de rua” violenta. Segundo um autor que estudou
esta cultura nos Estados Unidos da América (Bourgois, 1996), os
milhões de dólares dos negócios na rua, não bem estimados, tornaram-
se “a estratégia masculina mais visível publicamente” ou uma “alternativa
para a dignidade pessoal autônoma”. Disso resultou uma cultura de
rua de criatividade explosiva e desafiadora, como resposta e em
oposição à exclusão social.

Mas há outra interpretação que ressalta o caráter violento desta


formação subjetiva. No contexto do conflito armado e de muito
dinheiro no bolso, propiciado pelo tráfico de drogas, desenvolve-se o
estilo de masculinidade definido como o da hipermasculinidade
exibicionista, exagerada, na qual os homens se permitem demonstrar
o que um autor denominou “exibição espetacular de protesto
masculino” (Connel, 1987, 1995). São homens que não puderam
construir a identidade masculina como os tradicionais operários pelo
trabalho, pela educação, pela propriedade e pelo consumo de bens
duráveis, coisas que um emprego de trabalho manual permitiam até
meados do século passado. Segundo o mesmo autor, esses homens
tornam-se ameaça para a vizinhança em que vivem e o Estado os
estigmatiza porque o seu comportamento é conspícuo; eles se tornam
criminosos por causa da identidade de gênero construída assim.

Ora, no Brasil, crianças e adolescentes morrem numa “guerra”


pelo controle do ponto de venda, mas também por quaisquer motivos
que ameacem o status ou o orgulho masculino dos jovens em busca de
uma virilidade - do “sujeito homem” (Alvito, 1996; Lins, 1997), orgulho
que obriga resposta violenta ao menor desafio. Ou simplesmente
porque estavam lá no momento do tiroteio. Na circularidade do bolso
cheio de dinheiro fácil que sai fácil do bolso, ficam compelidos a repetir

540
. Alba Zaluar

sempre o ato criminoso, nas suas palavras, como se fosse “um vício”2.
Desenvolvem igualmente um estilo de chefia truculento, que aproxima
a quadrilha da gangue americana. Para segurar uma boca de fumo, o
chefe não pode mais “vacilar”, ou seja, trair, hesitar ou ter medo na
hora da luta contra rivais, comparsas, clientes em dívida ou alcagüetes
(Lins, 1997). A figura do chefe ou do “homem de frente” é construída
imaginariamente como aquele que mantém os seus comandados na
linha, controla o crescimento dos seus concorrentes nas vendas ou no
número de pessoas armadas na quadrilha.

No Rio de Janeiro, como em toda parte, são muitas as arenas


de conflito e muitos os estilos de masculinidade entre os migrantes de
outros estados, entre os jovens da segunda geração de migrantes, entre
os jovens negros, pretos, pardos, mulatos, cariocas ou descendentes
de nordestinos e mineiros. Entre os que pertencem às camadas mais
pobres da população, mesmo assim seguem diferentes trajetórias. Para
uma minoria, a possibilidade de enriquecer rapidamente e, assim, ter
acesso ao consumo conspícuo é um importante elemento para definir
as novas identidades masculinas bem sucedidas. Ajudar amigos, vizinhos
e parentes, impressionar a todos com a exibição de jóias e roupas
dispendiosas no seu próprio corpo, com festas e pagamento de bebidas
a todos em locais públicos, são parte dessa estratégia do macho
dominante em muitas sociedades, inclusive a brasileira.

Por isso mesmo, os gastos dos jovens traficantes são muito


individualizados e orgiásticos. Financiamento de bailes funk, orgias em
motéis, consumo conspícuo de roupas, bebidas, drogas e festas para
parentes, amigos e aliados. Dizer que substituem o estado ausente em
política social é leviandade intelectual fruto de observações ligeiras e
secundárias. Comando sobre o dinheiro, comando sobre o território,
comando sobre os liderados, comando sobre as mulheres cobiçadas:
é isso que define o traficante durão bem sucedido.

AS POLÍCIAS E AS ARMAS

Exemplos do funcionamento da rede que aporta armas às


quadrilhas que atuam no varejo nas favelas do Rio de Janeiro, repetidos
no país, apontam para o paradoxo do monopólio legítimo da violência
no Brasil. Policiais corruptos levam armas exclusivas das Forças

541
Polícia e Juventude na Era da Globalização

Armadas brasileiras até os comandos e quadrilhas de traficantes, o


que torna factível um estado de guerra permanente pelo controle dos
pontos de venda e dos territórios urbanos assim controlados
militarmente. Estas mesmas armas vão matar policiais que fazem a
repressão às atividades ilegais das quadrilhas3. Por fim, em decorrência
da insegurança que se estabelece nas vizinhanças controladas por
traficantes e policiais corruptos, que espalha em toda a cidade a falta
de confiança na instituição policial, formas de segurança privada se
espalham para proteger aqueles que podem pagar ou que são obrigados
a pagar, como acontece quando esta segurança privada é ilegal, caso
das milícias surgidas nas áreas de ocupação mais recente da cidade.

Na esfera institucional, está, pois, o mais terrível paradoxo: é a


mesma polícia repressiva que, pelos depoimentos tomados em 25 anos
de pesquisas de campo das quais participei, fornece armas e munições,
muitas exclusivas das Forças Armadas, aos traficantes que passam a
controlar militarmente territórios incrustados nas favelas do Rio de
Janeiro. As favelas e seus arredores tornam-se parte das áreas quentes
da ecologia do perigo e da violência, socializando jovens no desejo e no
manejo das armas de fogo, elementos-chave da nova “cultura de rua”.

Do mesmo modo que o uso das drogas, o porte de armas de


fogo também se explica pelo contexto sócio-cultural dos pequenos
grupos a que pertencem os jovens que seguem os valores e práticas
desta cultura de rua. Outros estudos, sobretudo os feitos nos Estados
Unidos, apontam o grupo de pares como o maior preditivo de
delinqüência entre homens jovens, especialmente os crimes violentos
mais graves e o hábito de portar armas (Myers et.al., 1997). A família
poderia influir direta ou indiretamente, mas é a rede de relações do
jovem com outros jovens de sua idade ou com jovens de idade superior
que aparecem como mais importantes para se entender o seu
comportamento. Os que portam armas constituíram 20% da amostra
de adolescentes negros entre 12 e 15 anos entrevistados. Estes jovens
mencionam 19 vezes mais do que os que não portam armas que têm
colegas também portadores de armas de fogo (ibidem).

Tais estudos procuram entender porque jovens que, de outra


maneira não andariam armados, passaram a fazê-lo para evitar serem
vitimizados pelos seus pares armados, para impor respeito e para

542
Alba Zaluar

gozar do prestígio adquirido com a posse de armas (Fagan, 2005).


Pois, mais do que uma inclinação natural dos homens jovens pobres à
violência, o que explica o aumento da taxa de homicídios nos locais
onde vivem é a alta concentração de armas nestes locais. É isso que
cria o que o criminologista Jeffrey Fagan da Universidade de Columbia
chamou “ecology of danger”. Depois de entrevistar 400 jovens nas
vizinhanças mais perigosas de Nova Iorque, descobriu que a violência
se expandiu entre 1985 e 1995 pelo contágio de idéias e posturas.
Nas várias pesquisas de campo que realizei com meus assistentes no
Rio de Janeiro, também sempre foi assinalada, desde 1980, a facilidade
e a quantidade de armas disponíveis para os jovens moradores das
favelas tidas como perigosas.

Ao concentrar o olhar sobre as condições atuais de vida dos pobres,


não se pode deixar de registrar a ausência e o estilo de policiamento mais
violento e mais corrupto nos bairros e favelas onde os pobres vivem. Pesquisa
de vitimização recente realizada no Rio de Janeiro (Zaluar, 2006), revela
que a Polícia Militar, a que faz o policiamento ostensivo, está muito mais
ausente nos bairros e favelas onde moram os mais pobres da cidade e que
estão sob o controle de quadrilhas de traficantes. Ao mesmo tempo, ela é
muito mais violenta nessas mesmas áreas, especialmente nas favelas que
abundam nos subúrbios, como (o bairro de) Madureira, ou na região da
Tijuca, conhecidas como “santuários do tráfico”. Nessas favelas, os policiais
atiram 10 vezes mais do que nas áreas regulares do asfalto e agridem duas
vezes mais os moradores.

Dados dessa pesquisa domiciliar de vitimização4 são reveladores sobre


os impasses e paradoxos impostos à ação policial. Considerando que esta
ação advém de um mandato outorgado às organizações para garantir a
segurança da população, o fracasso em garanti-la está criando novos
problemas que ameaçam paralisar as polícias estaduais no Brasil.

Os dados sobre os crimes comuns (furtos, roubos e agressões físicas)


cometidos contra os moradores da cidade não diferem muito dos
encontrados em outros lugares do mundo e são até menores do que muitas
cidades brasileiras. O risco depende muito mais do estilo de vida (se sai à
noite, se anda de transporte coletivo) do que da idade ou do sexo. Homens
e pessoas jovens são mais vitimados porque saem mais à noite e andam
durante a semana na rua ou em coletivos.

543
Polícia e Juventude na Era da Globalização

Quanto aos percentuais de confiança na Polícia, tem-se um


indicador da cifra oculta da criminalidade, aquela que não aparece nas
estatísticas oficiais. Por exemplo, 71,4% das pessoas roubadas não
procuraram a polícia; apenas 28,5% procuraram. Os que não
procuraram, deram como razão, principalmente, a falta de informações
para dar ao policial (37,9%) - ou porque não ia adiantar, por ser muito
difícil recuperar objetos roubados de pouco valor (18,4%), aos que devem
ser adicionados os 8,4% que afirmaram não valer a pena registrar o roubo.
Somados, são 64,7% os que percebem mais problemas técnicos do que
de confiança na polícia. Há também uma proporção de pessoas maior
(10,8%) do que a encontrada no furto que afirmou não ter procurado a
polícia por medo de sofrer represálias pelos autores do roubo, já que a
violência está envolvida nesse crime. Expressaram razões vinculadas à
desconfiança os que afirmaram que temiam perder tempo sem serem
atendidos (7,9%), os que disseram expressamente não ter confiança na
polícia (5,7%), não conhecer ninguém influente dentro da corporação
(0,1%), os que desconfiavam que policiais estivessem envolvidos no roubo
(0,3%), ou ainda saber que as pessoas não eram bem tratadas por eles
(0,8%), que somados chegam a 14,7%, percentual igualmente pequeno
considerando as altas proporções dos que, em outra pergunta, não avaliaram
bem o trabalho policial.

AGRESSÃO POR PM
Nos dados sobre as experiências e a avaliação que a população de
15 anos ou mais têm sobre as polícias, o quadro difere substancialmente
do encontrado em outras cidades brasileiras e no mundo.
A agressão física perpetrada por policiais militares contra pessoas
morando nos domicílios dos entrevistados chega a ser o dobro do
percentual de pessoas agredidas na cidade: 4,4% para 2% de agredidos
nos últimos doze meses em toda a cidade. E o padrão é muito claro,
diferente do encontrado nos outros crimes: a agressão atinge várias vezes
mais pessoas negras, pobres e faveladas.
As pessoas pretas e pardas são mais vítimas deste tipo de violência
do que as brancas e quando se considera a variável escolaridade, verifica-
se que mais pessoas de ensino fundamental assinalaram mais agressões
cometidas por policiais militares do que universitários. As mulheres pretas
em proporção três vezes mais (7%) do que as brancas (2,2%) e duas

544
Alba Zaluar

vezes maior do que as pardas (3,8%). Os de renda mais baixa afirmaram


ter alguém da sua residência agredido por policiais militares em proporções
maiores do que os de renda média.
Na avaliação do trabalho policial feita pelos entrevistados as
proporções indicam muito mais desconfiança do que as obtidas em relação
ao que fazer quando vítima de um crime. Por quê? A pior avaliação é para a
polícia que faz o policiamento ostensivo e está mais espalhada pela cidade:
a Polícia Militar que é também a que mais mata e a que mais atira em suspeitos
mesmo quando há transeuntes ou moradores no local da ocorrência. Isto é
especialmente verdade para as áreas de favelas e os bairros pobres dos
subúrbios. Segundo a pesquisa, policiais militares disparam dez vezes mais
tiros nas favelas do que nos demais bairros da cidade. E a proporção de
agressões perpetradas por policiais militares nos residentes é o dobro na
favela do que no asfalto. Por isso mesmo, negros avaliam as Polícias,
especialmente a Militar, muito pior do que os brancos.

Avaliação da Polícia Militar por brancos e negros do Rio de Janeiro

Polícia Total Polícia Militar Polícia Civil

Branco(a) Negros Branco(a) Negros Branco(a) Negros

M.Bom e Bom 59,8% 48,2% 55,0% 25,6% 62% 55%


Regular 20,1% 21,8% 21,7% 20,0% 19% 23%
M.Ruim e Ruim 20,1% 30,0% 23,3% 44,4% 18% 22%

Fonte: NUPEVI/ IMS/ UERJ/ IPP/PCRJ 2007

A confiança na Polícia é também menor nas áreas de planejamento


(APs) da cidade em que existem mais favelas controladas por traficantes,
onde quase não há policiamento. Em outras áreas mais afastadas do Centro,
mas com muitos moradores policiais e milícias de moradores fazendo a
segurança das vizinhanças, a confiança na PM é maior (gráfico 1). Do mesmo
modo, a percepção da polícia como violenta e corrupta, assim como a
que usa a força de modo desproporcional à ameaça recebida, é muito
maior nessas áreas (gráficos 2, 3, 4 ,5 e 6).

545
Polícia e Juventude na Era da Globalização

Em 2007, a pesquisa de vitimização foi repetida em uma amostra


das favelas do Rio de Janeiro5 e seus resultados revelaram que a desconfiança
da Polícia é muito maior entre os jovens favelados do que entre os mais
velhos, o que indica uma ação policial mais concentrada nos jovens.
Surpreendentemente, são as mulheres faveladas as que menos confiam
pessoalmente nos policiais, em todas as idades. São elas também, em
todas as idades que afirmam em mais altas proporções que a população
da cidade não confia na PM. Como são elas as que menos se locomovem fora
da vizinhança, é possível que observem mais vezes as ações policiais que
empregam a força excessivamente e injustamente, atingindo pessoas inocentes.

Você confia na PM?

Confia Confia Confia Não


Masculino muito razoavelmente pouco confia
15 a 19 0% 26% 9% 65%
20 a 29 5% 27% 18% 50%
30 a 39 14% 17% 14% 55%
40 a 49 18% 32% 14% 36%
50 a 59 8% 34% 21% 37%
60 a 69 7% 64% 7% 21%
70+ 0% 80% 0% 20%
Confia Confia Confia Não
Feminino muito razoavelmente pouco confia
15 a 19 0,0% 19,2% 15,4% 65,4%
20 a 29 0,0% 20,0% 17,1% 62,9%
30 a 39 6,9% 17,2% 20,7% 55,2%
40 a 49 0,0% 31,0% 24,1% 44,8%
50 a 59 5,7% 28,6% 22,9% 42,9%
60 a 69 8,0% 32,0% 12,0% 48,0%
70+ 40,0% 20,0% 10,0% 30,0%
Fonte: NUPEVI/ IMS/ UERJ/ CNPq 2007

546
Alba Zaluar

A imagem da Polícia Militar como violenta e corrupta tem também


percentuais mais altos entre os jovens favelados, especialmente as mulheres,
provavelmente pelos mesmos motivos. As altas proporções de favelados,
mas principalmente faveladas, que consideram a Polícia Militar violenta e
corrupta revelam a quase completa ausência de legitimidade desta instituição
junto aos jovens favelados.

A Polícia Militar é violenta?

Nem
concorda
Concorda nem Discorda
Masculino Concorda em parte discorda em parte Discorda
15 a 19 73,0% 5,4% 5,4% 2,7% 13,5%
20 a 29 63,6% 15,2% 3,0% 0,0% 18,2%
30 a 39 72,9% 10,4% 2,1% 6,3% 8,3%
40 a 49 68,2% 15,9% 2,3% 4,5% 9,1%
50 a 59 61,7% 8,5% 4,3% 6,4% 19,1%
60 a 69 51,9% 7,4% 0,0% 14,8% 25,9%
70+ 37,5% 25,0% 0,0% 12,5% 25,0%
Nem
concorda
Concorda nem Discorda
Feminino Concorda em parte discorda em parte Discorda
15 a 19 75,0% 2,8% 5,6% 5,6% 11,1%
20 a 29 75,9% 13,0% 0,0% 0,0% 11,1%
30 a 39 80,0% 9,2% 1,5% 4,6% 4,6%
40 a 49 65,4% 23,1% 3,8% 1,9% 5,8%
50 a 59 69,4% 10,2% 6,1% 2,0% 12,2%
60 a 69 65,7% 22,9% 2,9% 2,9% 5,7%
70+ 50,0% 12,5% 0,0% 0,0% 37,5%

Fonte: NUPEVI/ IMS/ UERJ/ CNPq 2007

547
Polícia e Juventude na Era da Globalização

A Polícia Militar é corrupta?

Nem
concorda
Concorda nem Discorda
Masculino Concorda em parte discorda em parte Discorda
15 a 19 72% 14% 6% 0% 8%
20 a 29 73% 12% 3% 3% 9%
30 a 39 77% 6% 4% 4% 9%
40 a 49 64% 18% 2% 5% 11%
50 a 59 60% 9% 6% 9% 17%
60 a 69 52% 4% 7% 15% 22%
70+ 38% 38% 0% 0% 25%
Nem
concorda
Concorda nem Discorda
Feminino Concorda em parte discorda em parte Discorda
15 a 19 92% 3% 0% 3% 3%
20 a 29 75% 19% 0% 0% 6%
30 a 39 80% 11% 5% 3% 2%
40 a 49 69% 23% 4% 2% 2%
50 a 59 71% 17% 4% 2% 6%
60 a 69 64% 24% 0% 3% 9%
70+ 64% 5% 0% 0% 32%

Fonte: NUPEVI/ IMS/ UERJ/ CNPq 2007

FORMAS DE SEGURANÇA PRIVADA

Na pesquisa de vitimização da cidade, 25% dos entrevistados


admitiram ter formas de segurança privada que variam muito: traficantes
pagos ou não pagos, moradores pagos ou não pagos, vigilantes não

548
Alba Zaluar

uniformizados, empregados uniformizados de empresas de segurança,


empregados não uniformizados. A tendência a uniformizar como “milícias”
as formas de segurança existentes nas áreas pobres, especialmente nas
favelas, precisa ser re-examinada. Muitas das empresas de seguranças
uniformizadas ou não nas áreas mais prósperas da cidade (AP 4 e AP 2)
pertencem a policiais, assim como as “milícias” nas áreas pobres (AP1,
AP 3 e AP 5) são dirigidas por eles ou mantém uma relação estreita com
eles. A grande diferença está na relação do pessoal da segurança com os
moradores. Nas áreas pobres, pela falta de acesso ao sistema de justiça,
mais facilmente os agentes da segurança privada tornam-se tiranos que
impõem outras decisões extralegais ou ilegais aos moradores por conta
do poder que advém das armas que afastam assaltantes e traficantes do
local por eles vigiado.

Comparando as áreas da cidade pelo tipo de segurança privada, temos


o seguinte quadro: Assistir trocas de tiros, pessoas agredindo outras pessoas,
pessoas sendo mortas ou levadas à força, pessoas traficando ou usando
drogas é várias vezes superior nas áreas em que os traficantes garantem a
segurança do que nas demais. O percentual de vizinhos, parentes ou amigos
mortos é também maior nessas áreas dominadas por traficantes.
Já viu nas
ruas da
vizinhança 74,1% 38,2% 29,7% 34,8% 16,2% SNU MÉDIA
Pessoas
agredindo
fisicamente a
outras 89,8% 58,4% 19,2% 37,2% 29,5% 31%
Pessoas 30%
consumindo
drogas ilegais 78,1% 58,4% 10,5% 19,2% 7,4% 18,2%
16,1%
Pessoas
vendendo
drogas ilegais
Pessoas 7,8% 12,1% 19% 20,4% 50,2% 16,3%
sendo 53,2%
assaltadas (ja
escutou)
Pessoas 43% 40,3% 15,7% 18% 1,5% 11,6%
sendo 16,8%
assassinadas TNP MPG MNP SU 15,7%
22,1%
por armas de
fogo TPG

549
Polícia e Juventude na Era da Globalização

Policiais
extorquindo 46,8% 40,3% 3% 12% 5,9% 10% 8,3%
ou intimidando
Policiais
46,8% 42,3% 3% 6% 1,5% 6% 4%
disparando
sem
provocação
Pessoas
armadas 46,8% 38,2% 15,7% 20,4% 5,9% 12,9% 10,8%
brigando
Vizinhos que
foram 15,6% 22% 0% 8,4% 0% 3,6% 4,7%
assassinados

Legenda:
TPG - TRAFICANTES PAGOS
TNP - TRAFICANTES NÃO PAGOS
MPG - MORADORES PAGOS
MNP - MORADORES NÃO PAGOS
SU - EMPREGADOS DE EMPRESAS DE SEGURANÇA UNIFORMIZADOS
SNU - VIGILANTES NÃO UNIFORMIZADOS PAGOS

A pesquisa de vitimização realizada em 2007 apenas nas favelas


permite-nos comparar áreas igualmente pobres, pois não há quase
nenhuma variação de renda familiar entre elas. Isto é importante porque
sabemos em quais das áreas de planejamento (Aps) estão as milícias, e em
que áreas os traficantes dominam de forma mais violenta. Na AP 4 é
notório o domínio pelas milícias, o que foi comprovado na pesquisa de
campo. A exposição ao barulho de tiros assim como à visão de alguns
crimes graves é sistematicamente menor nesta área. Nas AP 3 e 2, onde
as quadrilhas de traficantes dominam as favelas, esses crimes podem ser
observados várias vezes mais.
Já ouviu barulho
de tiros na
vizinhança Ap.1 Ap.2 Ap.3 Ap.4 Ap.5
Sempre 36,4% 53,9% 55,3% 6,1% 37,1%
Freqüentemente 3,6% 3,9% 9,1% 2,0% 12,4%
De vez em quando 14,5% 11,8% 12,8% 8,6% 21,9%
Raramente 23,6% 11,8% 10,5% 33,3% 16,2%
Nunca 21,8% 18,4% 12,3% 50,0% 12,4%

550
Alba Zaluar

Já viu na
vizinhança AP1 AP2 AP3 AP4 AP5
Pessoas agredindo 31,2% 30,3% 40,6% 17,2% 20%
fisicamente a outras
Pessoas consumindo 47,3% 44,7% 55,7% 9,6% 38,1%
drogas ilegais
Pessoas vendendo 47,3% 44,7% 47,5% 5,6% 20,0%
drogas ilegais
Pessoas sendo 1,8% 1,3% 5,0% 1,5% 6,7%
assaltadas
Pessoas sendo 7,3,% 10,5% 16,9% 3,0% 15,2%
assassinadas por armas
de fogo (45% viu mais
de 10 vezes)
Policiais extorquindo ou 10,9% 7,9% 20,5% 2,0% 9,5%
intimidando(82% viu
entre 10 e 100 vezes)
Policiais disparando sem 7,3% 6,6% 20,1% 2,0% 6,7%
provocação (80% viu
entre 10 e 100 vezes)
Pessoas armadas 9,1% 11,8% 24,2% 5,1% 16,2%
brigando
Vizinhos assassinados 3,6% 0% 8,2% 5,1% 7,6%
nos últimos doze meses

Ainda mais claro ficam os problemas na relação entre favelados e


policiais. As diferenças entre as proporções médias dos favelados e as
médias dos moradores de toda a cidade não são muito grandes, com
exceção da observação local de policiais atirando que é mais do que o
dobro nas favelas (9,7% para 4%) e de pessoas vendendo drogas ilegais
(30% para 18%). Qualquer uma das formas de segurança privada nas
favelas parece ser também muito mais eficaz no que se refere aos assaltos:
nas favelas, um percentual de 3,5% de moradores viu pessoas sendo
assaltadas na vizinhança, enquanto que 16% dos moradores de toda a
cidade observaram o mesmo crime nas suas respectivas vizinhanças.

551
Polícia e Juventude na Era da Globalização

Ora, se milícias ou moradores armados, sempre com o


apoio ou conexão estreita com policiais, conseguem controlar a
violência armada e o tráfico de drogas militarizado, porque a Polícia
enquanto instituição não obtém a mesma eficácia? Pelos dados
apresentados fica claro que o emprego excessivo da força policial
observado principalmente nas áreas pobres da cidade dominadas
por traficantes, mas habitadas por trabalhadores, não consegue
impedir nenhum dos crimes mais correlacionados com o aumento
da violência na cidade.

Assim, deve-se perguntar se não foi a própria ação policial


com força excessiva e altos índices de corrupção que contribuíram
para estabelecer a situação vivida hoje na cidade, situação
caracterizada pela extrema insegurança ou medo sentido por
grandes parcelas dos moradores. No mínimo estas práticas têm
se revelado ineficazes para alcançar o objetivo de diminuir os
crimes mais graves que atormentam a vida dos moradores. Estaria
a Polícia Militar do Rio de Janeiro arriscando-se a perder o seu
mandato de polícia? (Proença & Muniz, 2007).

Notas
1
O s d a d o s d a p e s q u i s a d e v i t i m i z a ç ã o d o N U P E V I ( Z a l u a r, 2 0 0 6 ) s ã o
impressionantes: o barulho de tiros é ouvido sempre e freqüentemente por 45% dos
entrevistados e está concentrado nas áreas de planejamento 1, 2 e 3, de urbanização
mais antiga na cidade do Rio de Janeiro e onde há muitas favelas. Conflitos armados
são vistos por 13% dos entrevistados e também estão mal distribuídos na cidade:
maiores proporções nas áreas 1, 3 e 5, onde há maior concentração de pobres.
2
Por causa da facilidade e nível de lucros, aqueles que se envolvem no tráfico, seja
qual for a classe social, o gênero e o nível de renda, os policiais brasileiros afirmam:
“Quem trafica uma vez, sempre volta”. Mas isso não quer dizer que não haja quem
trafique “por necessidade”. No tráfico capilarizado nas pontas nos bairros pobres e
nos centros de boemia, muitas mulheres, mais comumente ex-prostitutas ou de
profissões de baixa qualificação, como manicuras, faxineiras, etc são também
vendedoras comuns. Também não quer dizer que não haja quem deixe para sempre
as atividades ilegais do tráfico.
3
A Polícia Militar mata muito no Brasil. No estado do Rio de Janeiro, foram mortas
6218 pessoas entre 2000 e 2006. Mas muitos policiais são assassinados também. No
mesmo período foram 1034 policiais mortos, dos quais 80% na folga (ISP/SSP-RJ).
www.isp.rj.gov.br
4
O universo da pesquisa foi a população de 15 anos e mais na cidade do Rio de
Janeiro. Sobre este universo foi calculada uma amostra aleatória nos três estágios
da pesquisa. Primeiro foram sorteados 200 setores censitários mapeados segundo as
características socioeconômicas de cada um para que nenhum setor da população

552
Alba Zaluar

deixasse de estar representado na amostra. Segundo, em cada setor, depois de ter


todos os seus domicílios arrolados pelos pesquisadores, 20 domicílios foram escolhidos
pelo critério de pulo, que depende do número de domicílios arrolados em cada um
deles. Terceiro, uma pessoa de 15 anos ou mais em cada domicílio foi escolhida
segundo o sexo e a idade, de acordo com 32 tabelas montadas para assegurar a
representatividade de cada sexo e grupo de idade.
5
Foram 60 setores censitários em favelas escolhidas aleatoriamente, com um total
de 660 questionários aplicados.

Referências Bibliográficas
BAUMAN, Zigmunt. (2007) Miedo Líquido, la sociedad contemporánea y sus
temores. Barcelona: Paidós.
BOURGOIS, Phillipe. (1996) In Search of Respect, selling crack in el barrio.
Cambridge e New York: Cambridge University Press.
CASTELS, Manoel & MOLLENKOPF, John. (ed.). (1992) Dual City: Restructuring
New York. Nova Iorque: Russel Sage Foundation.
FAGAN, Jeffrey. (2005) “Guns and Youth Violence”, Em Children, Youth, and Gun
Violence, Volume 12, Number 2, www.futureofchildren.org.
GEFFRAY, Christian. (2001) “Effects sociaux, economiques et politiques de la
penetration du narcotrafic en Amazonie Bresiliene”. Em International Social Science
Journal, UNESCO, v. LIII, no. 3: Londres e Paris.
LINS, Paulo. (1997) Cidade de Deus, 1 a. edição. São Paulo: Cia das Letras.
MYERS, G. P.; MCGRADY, G. A.; MARROW, C.; MUELLER, C. W. (1997) “Weapon
carrying among Black adolescents: A social network perspective”. Em American
Journal of Public Health, 1038, American Public Health Association.
PROENÇA Jr, D & J MUNIZ. (2007), “‘Stop or I’ll call the Police!’ The Idea of Police,
or the effects of police encounters over time”, British Journal of Criminology 46:
234-257.
SASSEN, Saskia. (1991) The Global City. Princeton: Princeton University Press.
SCHIRAY, Michel. (1994) “Les filières-stupéfiants: trois niveaux, cinq logiques”. Em
Futuribles, no. 185, Paris, mars.
VAN DER VEEN, H. T. (1998) “The International Drug Complex: When the visible
hand of crime fractures the strong arm of the law ”, European University Institute,
www.unesco.org/most.
ZALUAR, Alba (1994): Condomínio do Diabo, Rio de Janeiro: Editora da UFRJ.
(2000): “Perverse Integration: Drug trafficking and youth in the favelas of Rio de
Janeiro”, Journal of International Affairs, , v. 53, n. n. 2, p. 654-671: New York.
(2001): “Violence in Rio de Janeiro: styles of leisure, drug use, and trafficking”
International Social Science Journal, UNESCO, v. LIII, n. no. 3, p. 369-379: Londres
e Paris.
(2006): Relatório Executivo da Pesquisa Domiciliar de Vitimização da Cidade do
Rio de Janeiro (2005-2006), NUPEVI, Rio de Janeiro www.ims.uerj.br/nupevi

553
Polícia e Juventude na Era da Globalização

ANEXO: GRÁFICOS

Fonte: NUPEVI/ IMS/ UERJ/ IPP/PCRJ 2007

Gráfico 1

Gráfico 2

554
Alba Zaluar

Gráfico 3

Gráfico 4

Gráfico 5

555
Polícia e Juventude na Era da Globalização

Gráfico 6

556
ALA
M
ATE
Comunicação GU
PREVENÇÃO DO DELITO E DA VIOLÊNCIA ENTRE
ADOLESCÊNCIA E JUVENTUDE
Leslie Sequeira Villagrán*

Ainda que o fenômeno das ‘maras’ ou gangues juvenis tenha começado


a ganhar destaque como um desafio à segurança cidadã na América Central
em meados da década de noventa; deve-se levar em consideração todo um
quadro de percepções que tenderam a responsabilizar a juventude pelos
problemas de insegurança que atinge um país.

No contexto do mundo bipolar e dos devastadores conflitos


armados que atingiram uma boa parcela do território centro-americano,
os jovens se configuraram como uma grande ameaça à segurança nacional;
embora, mas também devido a que, muitas das vítimas fatais do conflito
armado tenham sido precisamente jovens.

Tidos como subversivos contra o sistema, ou infratores que atentam


contra a governança, sem a intenção de matizar as ‘maras’ e gangues como
movimentos reivindicativos; em ambos os casos é possível falar da
juventude como um segmento da população altamente vitimado por
sistemas em que a iniqüidade e a exclusão tem sido o denominador comum.

Na década de sessenta, as demandas sociais consideravam urgente


a necessidade de ampliar a inversão social do governo, e a conseqüente
prestação de serviços, que contribuíram para o desenvolvimento da
população, especialmente na busca por reduzir a brecha entre o urbano e
o rural. Isto implicava, também, gerar espaços de consenso, que
permitissem à população participar do planejamento democrático de
desenvolvimento, o que significaria modelar a atuação do Estado, segundo
as necessidades específicas dos indivíduos. No caso da Guatemala isto
envolvia, especificamente, o reconhecimento de uma nação multiétnica,
pluricultural e multilíngüe.

A assinatura dos Acordos de Paz na América Central significou um


cessar-fogo e, como um claro matiz do advento da era democrática,
patenteou o compromisso por parte do Estado, de adotar um conceito
de Segurança Humana, Integral e Democrática, que buscasse o
desenvolvimento de todos os indivíduos por igual.
*
Cientista Política, Coordenadora do Programa sobre Segurança Preventiva e Participação
Cidadã do Instituto de Enseñanza para el Desarrollo Sostenible IEPADES.
557
Prevenção do Delito e da Violência entre Adolescência e Juventude

As expectativas entre os cidadãos eram muitas, o fim do conflito


armado e o compromisso por construir uma nação justa, eqüitativa e
inclusiva, despertou a esperança entre a população. No entanto, as
mudanças demoraram e a desilusão rapidamente tomou conta da cidadania,
insatisfeita com um governo que não entendia suas necessidades e que
continuava com um perfil autoritário e de controle, baseado no
armamentismo, na persecução e na suspeita.

As causas deste fenômeno se encontram ilustradas em múltiples


hipóteses que para o caso desta obra não foram analisadas. No entanto, é
necessário considerar que um dos principais impedimentos a cumprir os
objetivos foi a ausência de processos participativos e inclusivos na tomada
de decisões, que permitissem aumentar a confiança, e intrinsecamente o
fortalecimento da institucionalidade democrática, mediante a auditoria
social, a transparência, o combate à corrupção e a impunidade; além da
ausência de práticas que permitissem dar a conhecer à cidadania o avanço
dos processos, para gerar consciência sobre os custos e os prazos reais
para cumprir os objetivos. Nesse sentido, é possível dizer, em princípio,
que os níveis de sucesso alcançados, estariam intimamente ligados às
conquistas iniciais que foram feitas em relação ao fortalecimento da
participação cidadã e da democracia representativa. Possivelmente,
Nicarágua foi o país centro-americano que obteve as maiores conquistas.

Retornando ao tema da violência na adolescência e juventude, seu


surgimento em meados dos anos noventa, coincide definitivamente com
este período de desencantamento que se denominou “o processo contínuo
de transição da democracia” durante o qual a população enfrentou diversos
desafios à sua sobrevivência; tudo em conseqüência da ineficácia do Estado
de prover bem-estar à cidadania, somado a fatos conjunturais como os
devastadores efeitos do furacão Mitch e a Tormenta Stan, que colocam
novamente em evidência, as condições deploráveis enfrentadas por
milhares de centro-americanos. Advertindo, além disso, as novas ameaças
que supõem o crime organizado transnacional e os desafios ao
desenvolvimento com equidade, numa região que aposta na globalização,
sem ter determinado um plano estratégico que considere toda a população
e que permita distribuir os benefícios de forma eqüitativa e inclusiva.

Dessa forma, segundo estudos realizados pelo ILANUD1 sobre as


implicações entre Desenvolvimento e Segurança Cidadã a respeito do

558
Leslie Sequeira Villagrán

aumento do delito na América Latina, foram determinadas as seguintes


correlações:

A maior:
· População jovem fora do sistema escolar
· Nível de desemprego
· Menor consumo per capita
· Maior iniqüidade na distribuição da renda
· Mais urbanização

Maiores índices delitivos.

Tal correlação pode ser contrastada com alguns dados ilustrativos


para o caso da Guatemala:

Segundo o último censo da população na Guatemala (INE 2002) de


11.237.196 habitantes 60% são jovens e crianças. 44% do total da população
são menores de 14 anos. Enquanto 11% têm entre 15 e 19 anos.

A taxa de excluídos do sistema educativo formal é de 43% até a


sexta série, 80% até o primeiro ano do segundo grau e 85% até a conclusão
do segundo grau. Num país que se define como multilíngüe, a educação
bilíngüe, em nível nacional, cobre apenas 19%.

44% dos jovens não receberam mais de três anos de educação


fundamental, enquanto que 17% são analfabetos, com grandes brechas
entre populações urbanas e rurais e por etnias e gênero.

Além disso, segundo a Comissão Interamericana de Direitos


Humanos, em seu Relatório referente à situação da infância e juventude na
Guatemala (2003), o absentismo escolar infantil é elevado, a repetência
escolar reflete problemas no sistema educativo (12.8%), e a avasão escolar
no ensino fundamental é massiva (este último se deve a causas como
migração temporal, trabalho infantil, responsabilidades domésticas e custos
escolares).

De acordo às estatísticas nacionais e do UNICEF, estima-se que um


total de 811.987 jovens são pobres, enquanto que 340.308 sobrevivem

559
Prevenção do Delito e da Violência entre Adolescência e Juventude

em condições de extrema pobreza. As estatísticas nacionais tendem a


apontar que as crianças menores de cinco anos sofrem os mais altos níveis
de pobreza; de fato, 61.7% dos mesmos vivem em condições de pobreza
extrema e 41% sofrem algum nível de desnutrição, o que equivale a
756.000 crianças nessa situação. A mortalidade infantil com um índice de
89 crianças por cada 100 nascidos vivos é alarmantemente alta.

Devido a sua inserção no mercado de trabalho informal, os jovens


recebem remunerações menores que o salário mínimo; cerca de US$ 100.00
no setor agrícola e cerca de US$ 115.00 no setor não agrícola. 53% dos
jovens trabalham na agricultura. 52% dos desempregados são jovens.

Além de criminalizar a pobreza, a infância e a juventude constituem


um segmento populacional altamente excluído do sistema, “sem opções
de escolha e oportunidades para aproveitar”, presas fáceis e vulneráveis
diante de ofertas inescrupulosas e/ou modelos de vida que expõem a
precariedade no exercício e nos fatores que devem integrar os processos
de socialização, de acordo a valores sociais relativos ao respeito dos
direitos humanos, à promoção da paz e ao desenvolvimento.

Reduzir a violência e a delinqüência juvenil implica em


necessariamente visualizar modelos de abordagem que considerem fatores
causais, como medidas que tendem reduzir os riscos e as ameaças,
mediante a geração e dotação de recursos que reduzam a vulnerabilidade
da infância e da juventude.

As Nações Unidas em seu X Encontro sobre Prevenção do Delito e


Tratamento ao Delinqüente diferencia dois tipos de estratégias de
prevenção: prevenção social, que reduz a motivação do delinqüente, e a
prevenção situacional, que reduz as oportunidades de cometer o delito,
e propõe quatro focos gerais (três dos quais procuram reduzir a motivação
do delinqüente), que se diferenciam segundo seus objetivos e suas técnicas
características. Os quatros focos de prevenção do delito são os seguintes:
a) Desenvolvimento da infância. Indicando que o maior
investimento em educação integral, desde cedo e variada,
(escolas para pais de família) e uma melhor alimentação,
saúde física e mental para a infância e a adolescência
impactam consideravelmente na redução de futuros delitos
e delinqüência futura;

560
Leslie Sequeira Villagrán

b) Desenvolvimento da comunidade Uma linha importante


do esforço de prevenção reside nos esforços dirigidos a
reforçar a coesão social das comunidades locais e seu
desenvolvimento econômico mediante a promoção de
modelos produtivos sustentáveis.

Oferecer mais serviços e facilidades locais para o fomento da


comunidade, fortalecer os vínculos comunitários, ensinar os jovens a
importância do respeito à lei, e a desenvolver as relações entre a
comunidade e as instituições de justiça e de governo, presentes dentro
do município.
c) Desenvolvimento social. Acesso ao emprego
remunerado, à educação, atacar a descriminação e diversas
privações sociais e econômicas. Supõe-se que o
desenvolvimento social suprimirá essas “causas” do delito.
d) Prevenção das situações que facilitam o delito.
Diferentemente das outras três formas de prevenção do
delito, todas as quais procuram reduzir a motivação do
delito, a prevenção das situações de delito procura reduzir
as oportunidades de infração.

Esta modalidade inclui: campanhas de publicidade para a prevenção


do delito, esforços dirigidos a influir no planejamento urbanístico e no
desenho arquitetônico para fomentar um cenário livre de delitos, maior
iluminação, ordem no trânsito, controle de espaços, etc; esforços
concentrados na análise e supressão de oportunidades de cometer formas
altamente específicas de delito como, por exemplo: assalto a bancos ou
edifícios residenciais, entre outros.2

A prevenção situacional também tem a ver com aquele conjunto de


orientações destinado ao controle e supressão sobre o uso de armas de
fogo, álcool e drogas como três fatores criminológicos intimamente
relacionados com o delito e a violência na infância, adolescência e juventude,
tanto como vítimas quanto como algozes.

Como se sabe, a prevenção do delito encontra uma maior


compreensão a partir da visão epidemiológica, entendida em três níveis
fundamentais: a prevenção primária que parte da consolidação de

561
Prevenção do Delito e da Violência entre Adolescência e Juventude

sociedades eqüitativas e inclusivas, promovendo o desenvolvimento para


toda a cidadania, como o melhor antídoto contra a delinqüência e a
violência. A prevenção secundária que busca reduzir riscos e ameaças
entre setores vulneráveis a tornar-se vítimas e perpetradores de delitos e
violência; e a prevenção terciária que atende delinqüentes para sua
socialização e vítimas para o restabelecimento de seus direitos.

Nesses três níveis, o ótimo funcionamento do Sistema de Justiça


contribui decididamente a tornar o modelo eficaz, no entanto, é na
prevenção secundária e terciária onde adquirem maior protagonismo; é
onde se torna imprescindível maximizar os processos, para contribuir
com a prevenção de delitos, o restabelecimento de direitos e garantias e
a preeminência do Estado de Direito.

A respeito do tema da infância e juventude os desafios por parte do


Sistema de Justiça são os seguintes:
· Promover os quatro princípios fundamentais que regem
o conteúdo da Convenção sobre os Direitos da Criança:
Não discriminação; Interesse Superior da Criança,
Sobrevivência; Desenvolvimento e Proteção; e
Participação.
· Prevenir e erradicar a Violência Intra-familiar e todas as
manifestações de violência de gênero dentro do lar, como
fenômenos fortemente relacionados a condutas anti-sociais
na infância e na adolescência. Deve-se considerar também,
o combate aos delitos de Tráfico de Pessoas e a Exploração
Sexual Comercial infanto-juvenil.
· Promover espaços de participação e coordenação
interinstitucional entre o sistema de justiça, administrações
locais, cidadania, instituições solidárias e entidades de
governo central presentes dentro da comunidade, para
promover o desenvolvimento integral de infância,
adolescência e juventude; assim como para gerar modelos
de acompanhamento e apoio a vítimas e perpetradores
deste segmento populacional.
· Suprimir modelos de ação policial de caráter repressivo,
contra a infância, juventude e adolescência; entendendo a

562
Leslie Sequeira Villagrán

figura do policial dentro de um contexto democrático, com


um perfil eminentemente preventivo; lembrando, além
disso, que seu papel como “porta de entrada” ao Sistema
de Justiça contribui em grande medida ao fortalecimento
do Estado de Direito e ao combate contra a impunidade,
na medida em que contribui para garantir o devido processo
legal e aumenta o respeito e a confiabilidade de sua ação
diante da população.
· Promover espaços de diálogo e discussão entre
adolescentes, jovens e autoridades presentes dentro da
comunidade, para gerar modelos de desenvolvimento e
estratégias para a redução da violência e a delinqüência entre
estes segmentos populacionais, partindo de suas próprias
contribuições e propostas.
· Gerar redes de coordenação interinstitucional para referência
e contra-referência de casos de violência e delinqüência a partir
da e contra a infância, adolescência e juventude, com o propósito
de detectar casos e/ou verificar reincidências.

Em Conclusão: A redução do fenômeno da violência e a


delinqüência na infância, adolescência e juventude, está intimamente
relacionada a melhorar as condições de vida dos indivíduos, o resgate e a
proteção da família, o fortalecimento do Estado de Direito e a consolidação
de um Modelo de Segurança Humana, Integral e Democrática, que
promova o desenvolvimento e a paz com respeito pelos Direitos
Humanos.

ANEXO

Modelo de Prevenção Social de Delito na Nicarágua

Elementos do Modelo de Prevenção Social na Nicarágua

Prevenção Estatal:
· Estabelecer alianças estratégicas com os Ministérios de
Família, Juventude, Educação, Cultura e Esportes, Saúde e
prefeituras municipais, com o propósito de harmonizar as
políticas e a ação estatal em função de garantir a efetiva

563
Prevenção do Delito e da Violência entre Adolescência e Juventude

proteção de crianças e adolescentes.


Construção de infra-estrutura mínima necessária que permita
elevar a qualidade de vida dos setores mais vulneráveis.
· Geração de um sistema de referência que permita dar auxílio
estatal oportuno a: adolescentes em situação de risco, vítimas
de violência intra-familiar, submetidos a maus-tratos,
abandono e exploração, vítimas de violência sexual, etc.
· Atenção às vítimas de atos delitivos especialmente mulheres
vítimas de violência intra-familiar e/ou sexual e jovens.
· Geração de fontes de emprego e criação de projetos que
permitam a criação de empregos produtivos, projetos
educacionais, culturais e esportivos.
· Reinserção dos jovens em situação de alto risco social no
sistema educacional formal ou vocacional, assim como
promoção de projetos de capacitação que facilitem sua
reinserção na vida socialmente útil em temas tais como: a
auto-estima, saúde sexual e reprodutiva, sistema de justiça
penal e saúde mental.

Da comunidade
· Articulação dos esforços da Sociedade por meio do
Conselho Distrital de Prevenção Social do Delito, organismo
que rege a prevenção social e no qual estão representados
diversos setores da sociedade.
· Impulsionar a participação de todos os setores da
sociedade na prevenção social do delito, por meio das
diferentes comissões de trabalho que integram o Conselho
Distrital de Prevenção Social do Delito.
· Controle social não coercivo sobre agentes policiais com
tendência no conhecimento de atos delitivos, jovens em
situação de alto risco social, lojas de bebida alcoólica que
causem conflito, pontos de concentração de jovens

transgressores ou de jovens em situação de risco.

564
Leslie Sequeira Villagrán

· Apadrinhamento e elaboração de projetos destinados a


facilitar a reinserção de crianças, adolescentes e jovens em
situação de alto risco social na vida socialmente útil.
· Retroalimentação à Polícia Nacional sobre o sentimento,
as necessidades e percepções da população em matéria de
Segurança Cidadã.
· Formação de grupos de cidadãos de apoio a lares
disfuncionais ou famílias nas quais algum de seus membros
é dependente de substâncias químicas.
· Formação de comitês de cidadãos de apoio à aplicação
integral do Código da Infância e Juventude, relativo à
liberdade assistida e outras medidas cautelares.
· Apoio a eventos esportivos e culturais que permitam um
lazer sadio de crianças e adolescentes, assim como o
desenvolvimento de habilidades e conhecimento técnicos.
· Fortalecimento e impulso de lideranças locais que
permitam a busca de soluções comunitárias aos problemas
relacionados com a segurança cidadã.
· Articular diante das instituições estatais e privadas dirigidas a
resolver problemas de infra-estrutura que geram insegurança
à cidadania ou afetam a qualidade de vida da mesma.
· Incentivo e formação de lideranças juvenis de um novo
tipo, baseado na cultura da “Não Violência” “Não às Drogas”
“Respeito ao Direito Alheio”.

Da polícia

Doutrina Policial: “O trabalho policial em todos seus âmbitos tem


sentido somente em sua estreita vinculação com a comunidade à qual
serve, com o fim último de prevenir atos e situações que atentam contra
a segurança individual e coletiva. O policial mantém uma atitude permanente
de disposição ao serviço, de respostas às demandas da comunidade, em
estreita vinculação com ela e age em correspondência com as necessidades

565
Prevenção do Delito e da Violência entre Adolescência e Juventude

e aspirações sociais de segurança e tranqüilidade…”

Quanto ao caráter preventivo da ação policial se expressa: “a razão


de ser de toda ação policial é a prevenção. Ordenação escalonada que vá
da prevenção de danos maiores contra a sociedade…Conjuntamente com
a comunidade, devem ser desenvolvidas as capacidades de identificar
circunstâncias, condições, tendências, vulnerabilidades físicas, sociais ou
de outra índole que indiquem a possibilidade que ocorra um ato de interesse
policial, para evitar ou restringir seus efeitos…”
· Fortalecimento da presença policial nos lugares, dias e
horários mais atingidos pela atividade delitiva.
· Aplicação do Plano de Reinserção à vida socialmente útil
de grupos de jovens em Alto Risco Social (em aliança com
instâncias de apoio).
· Investigação, perseguição e combate frontal às bocas-de-
fumo e aos traficantes.
· Controle dos focos delitivos e pontos de concentração
de elementos anti-sociais.
· Profilaxia em relação a agentes policiais inclinados à
comissão de atos delitivos.
· Controle sobre comércios de bebidas alcoólicas que
gerem conflitos.
· Controle sobre lugares de concentração de jovens
transgressores e em situação de risco.
· Visitas de controle e apoio aos centros escolares e lugares
que representam risco para os estudantes.
· Controle sobre lugares vulneráveis ao conhecimento de
atos delitivos.
· Inserção dos vigilantes civis (patrulhas comunitárias) no
Sistema de Prevenção Policial do Delito.3

Notas
1
Instituto Latino-americano das Nações Unidas para a Prevenção do Delito e o Tratamento da
Delinqüência.
2
Décimo Congresso das Nações Unidas sobre Prevenção do Delito e Tratamento do Delinqüente,
Viena 10 a 17 de abril de 2000, Tema 5: Prevenção eficaz do delito: adaptação às novas
situações: 2-3
3
Polícia Nacional da Nicarágua “Alcançando um Sonho” Modelo de Prevenção Social da Polícia
5 6 6 da Nicarágua. Manágua, Nicarágua 2006.
S IL
B RA
Comunicação
DIÁLOGOS DE UMA JUVENTUDE VIGIADA E
VIGILANTE
Aline Gatto Boueri*

Somos cinco. Cada um tem a sua turma, a sua tribo, os seus projetos
de vida. Não somos amigos, parentes ou vizinhos e nunca sentamos juntos
em uma mesa de bar. Entre a favela e o asfalto, somos familiares e estranhos
uns aos outros. Nossas vidas se cruzam diariamente na periferia da região
metropolitana do Rio de Janeiro. Somos jovens. E nos encontramos aqui
para falar de polícia.

Mariana é socióloga, branca, tem 37 anos e há oito trabalha com


jovens em um projeto social de uma favela do Rio de Janeiro. Quando
chega à favela onde trabalha se depara com uma barreira policial. Mariana
não deve, mas teme. Afinal, a presença policial ali pode significar mais um
confronto. Mas o que ganha destaque na fala da moça é a forma intimidadora
e, ao mesmo, tempo insegura como o policial em serviço informa a
possibilidade de sua segurança estar em risco. “Ele me avisou que eu não
poderia passar, me questionou o que eu fazia ali e, quando argumentei que
precisava passar para chegar ao trabalho, ele cedeu, mas se isentou ‘tudo
bem, mas a senhora já sabe, né?’. E eu não passei”, conta.

Eu, Aline, 24 anos, jornalista, branca, classe média, criada na zona


norte e recém-chegada à zona sul, sinto-me também apreensiva diante da
presença ou proximidade policial. Ora insegura, ora segura. E isto tem
muitos “dependes”. Depende da situação? Do local? Da hora? Das minhas
companhias? Da minha aparência? Da minha cor? Da minha condição social?
Do tipo de policial? Do “como” ele faz o seu trabalho? Por que temos
sentimentos tão díspares sobre a nossa polícia, sobre estes jovens de
uniformes e distintivos? Por que podemos nos sentir mais seguros quando
avistamos, de fora e bem de longe, um carro da Polícia Militar entrando na
favela, enquanto que aqueles jovens que vêem a patrulha, de dentro e
bem de perto, talvez sintam justamente o oposto?

Leonardo tem 20 anos, é negro e de origem pobre, como boa


parte dos jovens policiais que patrulham a região metropolitana do Rio de
Janeiro. Ele mora, trabalha e estuda na mesma favela na qual trabalha
Mariana. Também não deve e também teme quando avista a polícia. Quase
*
Jornalista do Portal Comunidade Segura www.comunidadesegura.org.br

567
Diálogos de uma juventude vigiada e vigilante

sempre é mesma coisa: manobrar a desconfiança e a tensão das “batidas


policiais”, procurando responder com educação, levantar a camisa,
mostrar documentos, explicar tudo de novo, por vezes para os mesmos
policiais, quem é, onde mora, onde estuda, onde trabalha, o que está
fazendo, e para onde está indo. Leonardo acredita que o “único problema
agora é o Caveirão” (carro blindado da PM do Rio de Janeiro, usado para
fazer incursões em favelas). Por conta de tréguas entre os diferentes
comandos que disputam domínios territoriais, e determinam a geografia
política do local onde mora, Leonardo afirma que hoje em dia se sente
mais seguro na comunidade, apesar das incursões policiais. Apesar.

No entanto, o jovem não se sente injustiçado pelo tipo de serviço


prestado a ele pela Polícia Militar. Mesmo quando dirige sua moto com
documentação correta entre sua casa e o trabalho e, sem motivos
aparentes para a abordagem policial, ele acredita que a forma de atuação
policial na comunidade onde mora é “natural” porque é um local rotulado
como “perigoso” por quem está do outro lado, do lado de fora das favelas
(a polícia e os moradores do asfalto). Acostumado a ter que lidar com as
formas imprevisíveis e ameaçadoras de vigilância dos jovens do tráfico e
dos jovens da polícia, acostumado a viver entre as “batidas” e o batente,
Leonardo parece ter internalizado o medo dos moradores do asfalto com
tanta naturalidade, que justifica a prática policial na sua comunidade de
acordo com a imagem externa do que é seguro. Internaliza e aceita. “Eles
[os policiais] não sabem se a pessoa que está passando é bandido ou não.
Isso não está escrito na testa. Faz parte do trabalho deles abordar, revistar,
questionar”. Contenta-se com o repertório negativo de possíveis violações
policiais, desde que este exclua a violência física. “O que eles não podem
fazer é bater”, diz.

Teoricamente, eles também não poderiam favorecer determinados


indivíduos por conta de relações privilegiadas dentro da corporação. Mas
Tiago, soldado da Polícia Militar, branco, morador de um bairro popular
de Niterói, e Maurício, capitão da PM, branco e comandante de um batalhão
de policiamento comunitário em uma favela da mesma cidade, contam
que isso já aconteceu com eles. Tiago, que dirigia moto há alguns anos,
diz que precisou citar nomes de policiais militares conhecidos quando foi
abordado em uma blitz e, com a documentação do veículo vencida,
conseguiu se livrar das sanções previstas por lei. Maurício sequer conhecia
pessoalmente o policial que mencionou ao ser flagrado dirigindo sem

568
Aline Gatto Boueri

carteira de habilitação, quando tinha 16 anos. “Disse que conhecia um


subtenente que morava no bairro e o policial me liberou. Joguei com a
sorte”, conta. E deu certo.

Mas buscar ter alguma “consideração” ou “facilidade” do policial


não funciona para todo mundo. Leonardo é um cidadão comum, não tem
dinheiro, influência ou prestígio para negociar. Na última vez em que foi
abordado pela polícia, foi acusado de ser um bandido conhecido, insistiu
em sua inocência e venceu pelo cansaço - e pela verdade - a dupla de
policiais que o abordara nas proximidades de sua casa. Ainda que
aparentemente convencidos de sua “conduta legal”, Leonardo conta que
recebeu uma espécie de indulto. “Eles disseram que iam me dar uma
chance e me liberar. Chance de quê? Eu não sou bandido.” Venceu por sua
verdade cansada, já conhecida de todos. E, dessa vez, deu certo.

Habituado a estar sob “liberdade vigiada”, a ser visto como uma


ameaça para a, e a se sentir ameaçado pela polícia Leonardo desconfia dos
motivos que o levaram a se transformar em suspeito. “Coincidiu de eu
entrar numa loja no momento em que avistei a polícia. Eles devem ter
achado que eu fui me esconder. Quando saí da loja, eles vieram me
perguntaram o que eu estava escondendo”, relata.

Mariana passou por situação semelhante. Caminhando pela


comunidade onde trabalha, encontrou um policial e entrou em um bar,
mas não pôde evitar a abordagem. “Eles vêm com a arma já apontada, e
eu não vou ficar de frente de um fuzil virado para a direção onde eu estou.
É claro que aquela arma não estava apontada pra mim, mas se ele tivesse
que atirar, eu estava na frente.” Mariana não se furtou em explicar isso ao
policial que a interpelou. Mas prefere evitar o encontro. “Se dizem para
mim que a polícia está na rua, que pode acontecer alguma coisa, eu fico
aqui, espero”, afirma.

Por que é necessário explicar os motivos de entrar em um


estabelecimento comercial? Por que é necessário informar seus motivos
para ir e vir, ainda que este seja um direito garantido por lei a todos os
cidadãos, jovens ou não? Por que o questionamento some diante da menção
a um determinado membro da corporação?

Mariana tenta explicar: “Eu acho que qualquer relação humana – e


aí não é a polícia, cidadão, traficante – se estabelece através do seu olhar

569
Diálogos de uma juventude vigiada e vigilante

ou da sua postura, a sua reação ao que está acontecendo.” Seguindo a


linha, seria possível dizer que as relações entre esses jovens e a polícia
estão baseadas numa lógica de desconfianças e medos recíprocos,
agravados de acordo com as circunstâncias nas quais o encontro se dá. E
quase nada mais. Fica-se com a impressão de que nestas relações só há
espaço para temores e cobranças de dívidas. Do que somos devedores?
Os jovens temem os policiais. Os jovens policiais temem a juventude de
que fazem parte. Será que nos tornamos devedores do medo, do
preconceito? Desde quando passamos a ser percebidos como “elementos
suspeitos”? Desde quando nossa liberdade de ir e vir, de se expressar,
passou a ser vista como “fora de controle”?

Tiago acredita que um dia foi diferente. Para ele, há alguns anos –
quando precisou se valer de conhecidos na polícia para se livrar da
apreensão de sua moto – havia mais respeito pela figura da autoridade
vestida com uma farda. “Quando víamos um policial, tentávamos ao
máximo nos apresentar de forma insuspeita. Hoje o cara é parado com
moto sem documentação, sem capacete e ainda reclama de ser parado”,
avalia. Havia realmente mais respeito, mais dignidade?

Para um jovem, ser parado pela polícia no Rio de Janeiro é sempre


um acontecimento que se transforma em conversa de bar. Ainda que
muitos tenham pelo menos um caso para contar, é difícil encarar a situação
com naturalidade. Maurício, no entanto, acredita que policiais jovens são
os que mais encaram com agressividade sua função. Coincidentemente,
Tiago avalia a faixa etária que vai dos 17 aos 24 anos como a mais propensa
a cometer abusos e violações, estimulados ou não, pelo uso de drogas.
Lança uma pista sobre os perigos de se alimentar somente visões negativas
sobre as formas de expressão e de afirmação de nossas identidades.

Neste encontro de juventudes, o extremo parece ser o ponto de


convergência. Mariana encontra dificuldade em determinar as situações
nas quais se sente insegura, em desenhar uma face para o perigo. “Suspeito
não é uma categoria que eu gosto de usar, acho que cria um estigma. Eu
acho que tudo está muito contextualizado”, diz. Mas dá um exemplo:
“Vou passar por uma galera, os meninos de rua cheirando cola, empurrando
um ao outro ‘ah, eu vou passar pelo meio porque eu não sou
preconceituosa’. Não, eu vou atravessar a rua, porque eu sei que até por
conta daquele contexto, naquele momento, isso pode acontecer.”

570
Aline Gatto Boueri

Maurício tem medo de andar de ônibus. Acha que é possível identificar


um “marginal” só de vê-lo. Vive também a insegurança antecipada. “Não é
pela vestimenta; eu não sei, eu acho que se denuncia com o olhar.” Tiago
acha que a atitude diz mais. “Tem um grupo de pessoas muito isoladas, e
quando sente a chegada da polícia, o grupo pára de falar, fica aquele silêncio”,
descreve. Segundo ele, nas vezes que foi parado, o comportamento do
grupo onde estava era esse. E ele acha justo. “Quem não deve não tenta
ficar longe”, afirma. Porém, o seu medo contradiz sua própria afirmação,
evidenciando que mesmo quem não deve, tem motivos de sobra para temer
a polícia. Pois parece não está claro para ninguém o que pode e o que não
pode acontecer durante uma abordagem policial no Rio de Janeiro.

Maurício não teme pelo “marginal” em si, mas pela possibilidade de


ser identificado como policial. Moramos em uma cidade onde o policial
teme o “marginal”, moramos em uma cidade onde o jovem teme o policial,
ainda que esteja em concordância com a lei.

Por quê? Responder a questão significa buscar superar traumas e


frustrações, compreendendo a maneira como se dão, de fato, esses
encontros fortuitos entre as forças de segurança pública do estado e os
cidadãos que delas dependem para a garantia de seus direitos.

Leonardo não se sente muito tentado em ir à praia. Ele mora no Rio


de Janeiro, mas o litoral fica longe da favela onde mora e, quando diferentes
facções se encontram no ônibus, pode haver problemas. Certa vez, o
problema foi com a polícia. “De dentro do ônibus uns meninos jogavam
amêndoas nos pescadores. Eu e meus amigos acabamos levando a culpa
por algo que não fizemos”, conta.

Foi a primeira vez em que Leonardo foi parado pela polícia. Ele
acha que a atuação na favela onde mora tem relação direta com a corrupção.
“Quando eles esperam receber um dinheiro e não vem, então eles vêm
com tudo, dão tiro para o alto, se o pessoal correr, jogam bomba de gás.
Tem hora que os caras do tráfico também dão tiro, aí fica aquele tiroteio,
e quem está procurando lazer acaba ficando no meio disso tudo. Sai um
problema e entra outro”, diz.

Durante certo tempo eu acreditei também nesta meia verdade


construída a partir dos encontros fortuitos com alguns policiais

571
Diálogos de uma juventude vigiada e vigilante

aparentemente envolvidos com o crime. Acreditei que toda a polícia


funcionasse a partir da mesma lógica do tráfico de drogas: disputando
territórios de forma violenta na minha cidade. Mais isto é somente uma
pequena parte da história, e pensar assim pouco contribui para entender
as relações da polícia com a juventude, e prevenir os possíveis desvios de
conduta de policiais. Devo dizer que concordo com Mariana. Dentro da
polícia, como em todo lugar, há pessoas boas e ruins. É verdade que
quando as pessoas ruins se valem da instituição para praticar atos de
desrespeito e violação aos nossos direitos civis, isso me gera um
incômodo, como se não houvesse muito a quem recorrer.

Quando a instituição parece não assumir, de forma transparente,


regular e pública, a responsabilidade de punir os desvios internos – o que
pode fatalmente ser um equívoco meu, mas quando se fala em impressões,
os fatos nem sempre assumem o papel de protagonistas na construção
das versões -, então talvez os encontros fortuitos se tornem ainda mais
trágicos, pois se dão em um clima de incertezas e, pelo que ouvimos de
nossos entrevistados, é a incerteza de como agir e o que esperar do
policial que gera a tensão e, por conseqüência, a rejeição do outro, causa
aparente de violações e violências recíprocas.

Mas assim como Leonardo e Mariana, não vislumbro um “mundo


ideal sem polícia.” Desconfio de que neste exato momento a polícia ainda
exerce uma função importante na prevenção e no controle da violência
diária, que parece contaminar grande parte das relações humanas no Rio
de Janeiro. Assim como Tiago e Maurício, acredito que antes de temer a
polícia, é preciso compreender aqueles que estão nela como trabalhadores
de uma instituição, como cidadãos, como indivíduos em busca também
de reconhecimento, respeito, cidadania.

Ser jovem no Rio de Janeiro é estar na faixa etária mais vulnerável à


violência armada, é estar sob a mira de ambos os lados da lei, é estar mais
próximo de uma abordagem policial violenta, de um confronto armado
entre forças de segurança e traficantes de drogas. Somos todos
Leonardos, Marianas, Tiagos e Maurícios na corda-bamba do enorme
prazer de viver nossas vidas, e do grande temor em ser punido por isso;
do frenesi da juventude e de tudo que nos impede de vivê-la plenamente.
Nós nos encontramos aqui para falar de polícia, mas falamos, na verdade,
de juventude.

572
G UA
Á
C AR
Comunicação NI

UM RELATO SOBRE A POLÍCIA NACIONAL E O


CONTROLE DA DELINQÜÊNCIA JUVENIL NA
NICARÁGUA
Marco A. Valle Martínez*

1. APRESENTAÇÃO

O presente relato tem como base a minha experiência de 14 anos


de trabalho profissional com a Polícia Nacional da Nicarágua (PN), que
me permitiram contribuir para a análise, formulação, implementação,
monitoramento e avaliação de iniciativas diretamente relacionadas à
preservação e ao controle da delinqüência juvenil na Nicarágua, assim como
na região da América Central.

As seguintes linhas são uma espécie de reflexão com uma síntese


global, o que significa que – mesmo estando baseado em experiências
particulares e gerais de meu trabalho, algumas vezes como consultor e em
outras como assessor – se desenvolve em um nível geral e não responde a
uma única experiência, lugar, grupo, intervenção, tática, etc. Do mesmo
modo, destaco que o principal ator é a PN, os e as policiais e, no meu caso,
o que faço é organizar, sistematizar e relatar a minha experiência, tratando
de ser o mais fiel possível à ação policial junto à comunidade.

Gostaria de deixar claro que, se no relato se percebe que faço


bons comentários a respeito da PN, jamais será porque fui consultor ou
porque atualmente sou assessor, mas sim porque considero que as coisas
foram bem feitas; do mesmo modo indico os pontos fracos pessoalmente
na prática. Algo que esta polícia realmente tem é o seu grau de democracia
em seu interior, onde, mesmo com os seus pontos fracos, seus membros
não só podem como são estimulados a apresentar as suas opiniões,
intercambiar pontos de vista que, a posteriori, os chefes incorporam.
Existem casos em que este exercício é menos executado, ou podem existir
alguns que não o considerem de muita utilidade, mas se pode afirmar que
estes são a exceção e não uma política institucional.

Nesse sentido, as minhas apreciações nunca são absolutas durante


o relato; tenho certeza de que sempre existem as exceções ou que as
*
Assessor da Polícia Nacional, coordenador Mestrado Políticas Públicas - Universidade
Centro-Americana
573
Um Relato sobre a Polícia Nacional e o Controle
da Delinqüência Juvenil na Nicarágua

coisas não acontecem em 100%, mas o menciono agora para evitar ter
de repetir sempre que existem as exceções para o cumprimento da
política, da estratégia e da tática institucional.

Por outro lado, os olhos através dos quais se lerá o “estado da


arte” da prática policial a respeito do controle da violência juvenil são os
meus, o que implica que outros olhos podem apreciar algumas situações
de outra forma e outros de outra. O que é realmente importante é que
exista consenso sobre a tendência geral. Gostaria que este tipo de relato
ajudasse nos objetivos do curso como espaço interdisciplinar e
interinstitucional de diálogo, intercâmbio e reflexão sobre os problemas e
ações de democratização das polícias na América Latina.

Para finalizar a apresentação, destaco que, como se trata de um


relato, não esperem só notas de rodapé com citações de livros, artigos
ou ensaios; o que mais vou expor são apreciações, situações, referências,
documentos de trabalho e/ou oficiais, mas todas vividas, ou como também
se diz, fontes primárias.

2. O SER HUMANO E SEUS DIREITOS

Durante reuniões, capacitações, intervenções, operações e qualquer


tipo de evento, respira-se, no interior da polícia, um ambiente de respeito
aos direitos humanos, mesmo nas situações mais difíceis e arriscadas, ou
ainda quando um membro da instituição tenha de sair dela. Dito de outra
maneira, durante atuações policiais, cumprimento dos métodos particulares
de trabalho, preparação contínua, em resumo, na cotidianidade policial se
remarca a importância do respeito à vida e aos direitos humanos.

Este fenômeno não é produto natural e nem do acaso, senão de um


processo que nasce em 5 de setembro de 1979, quando é fundada a PN
com um sentido de serviço à população e respeito aos direitos humanos,
que se expressa em 1980 com o Decreto 559 que cria a “Lei de Funções
Jurisdicionais da Polícia Sandinista, assim como na Lei 228, Lei da Polícia
Nacional, emitida em 31 de julho de 1996 e seu Regulamento através do
Decreto Presidencial Nº. 26-96, emitido em 25 de outubro do mesmo
ano. Igualmente, tem a sua base explicativa na Doutrina Policial (20 de outubro
de 1997), no Diagnóstico Institucional de 1999, na Política Integral Polícia –
Comunidade e Direitos Humanos (Disposição 0426-2001), no Plano

574
Marco A. Valle Martínez

Estratégico 2005-2009, e no Modelo de Polícia Comunitária Pró-ativa (PCP),


que está sendo formulado através de um processo de consulta interna neste
ano de 2007.1 A Academia da Polícia “Walter Mendoza”, Instituto de Estudos
Superiores, desempenha um papel destacado neste âmbito.

Certamente, esta visão policial é a que incide para que quem esteja
cumprindo tarefas de prevenção e controle da delinqüência juvenil aprecie, à
primeira vista, os jovens como o são, ou seja, jovens e o seu mundo, e não
delinqüentes sem mais nem menos. Este ponto foi analisado com profundidade
em torno de 2002-2003, quando se estava projetando criar uma estrutura
especializada para atender os problemas produzidos pela violência juvenil;
nesse momento se pensava que era necessário mudar a estigmatização dos
jovens, que tínhamos que trabalhar com eles e elas, que se devia melhorar a
relação da PN com os jovens e, mais ainda, que a instituição devia promover
uma coordenação interinstitucional que ajudasse a melhorar as condições de
vida da juventude em risco, em vez de reprimi-los. A estrutura Direção de
Assuntos Juvenis (DAJ) foi criada em 22 de setembro de 2003 pela Disposição
Administrativa No.025 – 03 do Diretor Geral da PN.

De forma contrária, em alguns países existe a tendência a igualar os


jovens que se vestem de determinada forma, se divertem nas esquinas,
escutam a sua música e jogam o seu esporte favorito (ou ao que têm
acesso) e cometem uma ou outra falha com gangues, facções ou tribos,
dos quais se devem esperar condutas anti-sociais ou delitivas. Não querem
perceber que os jovens têm a sua própria forma de observar o mundo,
de se comportar, expressar, divertir e enfocar as suas preocupações e o
fato de que esteja em ascensão a delinqüência juvenil não significa que
todo jovem seja delinqüente, bem como tampouco que todo adulto o é.
O problema deste tipo de visão é que é eminentemente reativa, tem
preconceitos que leva a que, de antemão, se condene qualquer jovem de
risco, age em função de clichês, e não pensa que podem ser dadas
oportunidades para que se reintegrem à sociedade.

3. ORIENTAÇÃO PARA A COMUNIDADE (CIDADANIA)

Do mesmo modo, a PN, desde a sua fundação, desenvolveu a sua


ação pensando em servir e no bem-estar da comunidade, evoluindo desde
uma estrutura e organização centralizada (“de dentro para dentro”) para
uma gestão policial (“de fora para dentro”), que escuta a voz cidadã, recolhe

575
Um Relato sobre a Polícia Nacional e o Controle
da Delinqüência Juvenil na Nicarágua

opiniões, as incorpora e trabalha para aproximar ao máximo os seus serviços


da comunidade e implementar a sua ação junto à comunidade.

Um exemplo transparente dessa perspectiva de estar vinculada à


comunidade foi vivida, entre outros momentos, nos primeiros anos da
década de 90, quando se pensava em começar a precisar de um modelo
melhor de trabalho com a comunidade, e se dialogava sobre como chamá-
lo, chegando-se ao consenso de que devia se chamar “relações polícia-
comunidade”, ou seja, com hífen para denotar uma fusão de ambas as partes
e não “polícia e comunidade”, que insinuava separação. Hoje se expressa na
diretriz que mostra uma polícia “de e para a comunidade”, o lema de 2007
“com fortaleza e dignidade 28 anos de serviço à comunidade”.

A sua aplicação nas tarefas de prevenção e controle da violência


juvenil se materializa, entre outros pontos, na sinergia PN, participação
comunitária e coordenação interinstitucional no território, seja no distrito,
município, bairro, comarca, vilarejo, etc. A ação policial para enfrentar os
problemas da violência e delinqüência juvenil, teve as idas e vindas que nas
próximas páginas serão expostas.

4. CARACTERÍSTICAS DE LARES E DOMUNDO DE JOVENS EM


RISCO, E GANGUES

Diversos estudos da DAJ enfatizam que o mundo dos jovens em


risco e delinqüentes juvenis se caracteriza por a) lares pobres onde
geralmente falta uma autoridade necessária para impor uma ordem e
inculcar valores, práticas e atitudes socialmente aceitáveis, b) ausência de
controle familiar, c) exclusão do sistema educativo, e d) não sabem que o
fazer com o seu tempo que quase todo é livre.

Por nossa parte, em um diagnóstico de segurança cidadã nacional


que realizamos em 2002, encontramos os seguints fatores associados à
delinqüência juvenil: 1) percepção de exclusão, 2) pares ou amigos
próximos, 3) violência familiar, 4) exclusão do sistema educativo, 5) falta
de espaços de recreação e superação cultural, 6) desemprego. A pobreza
é um fator transversal desses lares.

A inter-relação destes fatores indica que à medida que o jovem vai


crescendo, vai interiorizando um modelo de vida produto de sua

576
Marco A. Valle Martínez

experiência caseira entrecruzada com a dos familiares, amizades, escola,


igrejas e meios de comunicação que em linhas gerais, indicam o caminho
do estudo, trabalho, formar um lar com filhos e filhas e ser mais ou menos
feliz. Do mesmo modo, quando chega a ser um jovem adulto espera
poder realizar o imaginado.

Mas quando a realidade lhe nega o imaginado, o jovem sofre um


choque já que percebe que os seus sonhos não serão realizados, enquanto
outros sim o farão, determinando a colocação em movimento de uma
conduta rebelde dirigida a expressar que têm valor, identidade, dirigindo as
suas forças contra tudo o que identificam como “culpável” pelo seu fracasso
e contra os que percebem que “têm algo” que eles não conseguem. Quase
sempre esta cena acontece em lares pobres, é por isso que os jovens em
risco, gangues e delinqüentes juvenis predominam neste estrato.

É comum também que o jovem encontre na rua o que não encontra


em casa: calor humano, fraternidade, comunicação, ao mesmo tempo em
que reafirma valores próprios mais da adolescência e da juventude como
a coragem, a audácia, o heroísmo e o desafio pelo perigo. Os pares ou
amigos próximos da rua também são um fator intimamente associado,
que pesa nos jovens, mas também, e talvez inclusive com muita força, nas
crianças e adolescentes. No caso destes últimos, viver no mesmo bairro,
ser vizinho, ou familiar de integrantes de gangues ou de integrantes de
grupos anti-sociais é um elemento de risco, já que facilmente são percebidos
como seus heróis e modelos a serem imitados; e ainda mais quando nos
lares existe desunião, pouco controle sobre os filhos e estes não estudam,
deambulam pelas ruas ou trabalham em mercados, sinais de trânsito ou
em outro lugar de risco.

Ao mesmo tempo, em alguns casos é conveniente para os delinqüentes


ter em suas filas crianças e adolescentes já que podem cumprir “missões”
cada vez mais difíceis para os jovens e jovens adultos, tais como se introduzir
por uma janela para roubar uma casa, comprar drogas, servir de chamariz
para um roubo, arrebatar cordões, relógios, etc.

A tendência de prevalência de famílias com chefes de baixo nível


educativo, ausência de valores para orientação, desempregados e/ou
desunidos, constantes cenas de violência familiar, ausência de assistência dos
filhos e filhas à escola e pouco controle dos filhos por parte dos chefes de

577
Um Relato sobre a Polícia Nacional e o Controle
da Delinqüência Juvenil na Nicarágua

família, eleva as probabilidades de que alguns dos membros se precipite na


delinqüência juvenil. Noventa por cento dos jovens delinqüentes consomem
drogas como cocaína, maconha e crack, além de consumir álcool. Neste
sentido, a relação da violência, da delinqüência juvenil, e das gangues com as
drogas é direta. 2

5. GRUPO DE RISCO, GANGUES E GRUPOS DE DELINQUENTES

De acordo com a DAJ, as duas categorias policiais objeto de


prevenção e controle social e policial são grupos de risco (ou grupos de
alto risco social) e gangues.

Com relação aos primeiros, suas características são: a) não têm


natureza jurídica como associação de jovens, b) se relacionam
espontaneamente às vezes com fins menos lícitos, c) mantêm vínculos
com a sua família, d) saem constantemente de seus lares, e) juntam-se em
parques, esquinas, centros comerciais, mercearias, ao redor de centros
de estudo e pontos de ônibus, f) ocasionalmente consomem álcool,
drogas, entorpecentes e psicotrópicos, g) demonstram alguns sinais de
violência e rebeldia e, h) eventualmente cometem infrações leves contra a
lei, classificadas como faltas penais.

Enquanto as gangues têm as seguintes características: a) se identificam


como grupos, utilizam símbolos, linguagens e condutas de identidade,
como solidariedade e ser membro de grupo, b) pode ou não haver
hierarquia organizativa, c) mantêm vínculos com as famílias, d) se associam
eventualmente com adolescentes e jovens da rua, que não têm vínculos
familiares, e) as regras e normas de atuação não são rígidas, geralmente
não há ritual de entrada e não há conseqüências em caso de saída, f) se
organizam de forma local, no quarteirão, na quadra, na esquina, no bairro,
que consideram como seu “território”, g) não têm comunicação nem
vínculos com outras gangues de outros bairros e de outros departamentos
do país, h) cometem delitos, faltas penais, lesões, danos à propriedade,
etc., que provocam grande sentimento de insegurança i) consomem álcool
e drogas habitualmente, j) exercem a violência contínua e muito afirmada
como grupo, k) se enfrentam com outras gangues em defesa de seu
“território”; usamassociação
armas de fogo, 3 caça e outras, l) tipo penal
brancas, de
qualificado como para delinqüir.

Alguns nomes de gangues são: Los Batos Locos, Los Peteretes,

578
Marco A. Valle Martínez

Los Culiolos, Los Pelones, Los Chilamates, Los Cabros, Los Chibolones,
Los Arroyeros, Las Gárgolas del Fox, etc. Estes tipos de nomes indicam
que houve pouca influência de gangues ou facções de outros países centro-
americanos ou dos Estados Unidos. Mais ainda, em todas as intervenções
sobre violência juvenil que participamos escutamos poucas expressões
dos jovens delinqüentes que denotem admiração e desejos de chegar a
ser como os “modelos” salvadorenhos, hondurenhos ou guatemaltecos.
Em algum momento, foram percebidas pequenas influências estrangeiras
nas cidades de Estelí e Chinandega (ambas próximas da fronteira norte),
mas não tiveram maior significado. Um ponto em aberto na agenda de
pesquisas e intervenções é encontrar os fatores que explicam o
“nacionalismo” da gangue nicaragüense, sua ação amadora com relação às
gangues de outros países e o porquê de, sendo a Nicarágua um dos países
com índices mais baixos de desenvolvimento humano, é um dos países
mais seguros da América Central.

Os grupos de delinqüentes são – como indica o seu conceito - a


reunião de vários delinqüentes juvenis, que podem ou não andar com
adultos e que se dedicam a delinqüir, praticando atos contra a vida das
pessoas, contra a propriedade ou efetuando delitos contra a saúde. Este
tipo de grupos, que na área urbana têm normalmente poucos membros,
nem sempre age em conjunto, e se separa, e seus os membros agem
individualmente, com outros delinqüentes ou voltam a se juntar pra
delinqüir. O importante neste caso é que se está na presença de delinqüentes
que, não raramente cometem homicídios, assassinatos, lesões e roubos
de diversos tipos em seu expediente de vida.

Que não se pense que essas categorias sempre existiram e que são
estáticas e que as suas fronteiras são cristalinas. Pelo contrário, estas são
o resultado de um processo de reflexão e busca com base na prática
policial em inter-relação com profissionais e organismos cuja missão é a
prevenção da violência e o delito. Sobre esse aspecto, em sessões de
análise que efetuamos com oficiais que trabalham diretamente a
delinqüência juvenil, se destacaram muitos exemplos de jovens que
começaram em grupos de risco, passaram para gangues e que hoje são
delinqüentes que estão presos, sendo procurados e alguns estão mortos
devido a sua vida violenta. Do mesmo modo, existem os que conseguiram
superar os momentos de participação em gangues e se integraram à vida
social, ou outros que conseguiram sair dos grupos e da vida arriscada.

579
Um Relato sobre a Polícia Nacional e o Controle
da Delinqüência Juvenil na Nicarágua

6. RELAÇÕES POLÍCIA–COMUNIDADE, DELINQUÊNCIA JUVENIL


E PROCURA DO ENFOQUE ADEQUADO.

Durante os anos 90 e começo de 2000, estiveram em seu apogeu


as gangues que se fizeram notar em várias capitais departamentais com
maior presença que atualmente. Foram anos de investigação, busca e
reflexão sobre o enfoque adequado para enfrentar a violência e delinqüência
juvenil, sempre tendo como eixo da ação policial as relações polícia-
comunidade.

À raiz de um estudo que realizamos em 2001 sobre a necessidade


de melhorar o sistema de emergência policial 118 de Manágua, tivemos a
oportunidade de entrevistar policiais, consultar documentos e analisar em
alguns bairros da capital com a comunidade o problema da violência juvenil
e os serviços de emergência da PN. Na ocasião, precisamos que o 118
fosse concebido e colocado em funcionamento em dezembro de 1994
com a finalidade de oferecer serviços de emergência à população da capital,
preocupada com os problemas das gangues. Ou seja, o 118 nasce vinculado
diretamente aos conflitos provocados pela delinqüência juvenil. Conforme
a população foi conhecendo o 118, o utilizou não só para esse fim, mas
sim para qualquer assunto que lhe preocupara e que a polícia devesse
atender de imediato. Dessa forma, foi sendo legitimado como emergência
tudo o que segundo a população que chamava o 118 estava ocorrendo e
requeria a presença policial imediata.

Sob este prisma, tornou-se costume considerar como emergência


tudo o que se recebia no 118, que era transferido via rádio-operadores
às patrulhas e à Brigada Especial (B/E) no caso de gangues, que ofereciam
serviço em seis distritos (do 1 ao 6), ficando excluídos o distrito 7 San
Rafael del Sur e o distrito 8 Tipitapa. No caso da B/E, esta atendia de
forma rotineira do 2 ao 6 e, em certos momentos, o 1, e, depois, a
Tipitapa devido ao aumento da presença de gangues.4

Mesmo a polícia mantendo a sua orientação para a comunidade e


com objetivos de prevenção, se buscava aprofundar a mencionada relação,
no caso da violência juvenil e das gangues em particular, o método reativo
estava em seu apogeu junto com experiências de índole preventiva-
simbolizado pela ação da Brigada Especial, conhecida popularmente como
“anti-motins”. Ao anoitecer, os “anti-motins” saía para determinados bairros

580
Marco A. Valle Martínez

de Manágua para freiar a violência das gangues e levar a sensação de


segurança para a comunidade. A Brigada foi criada para conter alterações
da ordem pública e levar tranqüilidade à cidadania nos anos 90, quando se
deram perturbações devido a problemas da propriedade, estudantis,
greves de transporte, etc.

O “Plano Gangues de Manágua” executado em 1999 por exigência


do Executivo durante três meses, nas noites e madrugadas, exemplifica a
concepção reativa da ação policial desses anos, que teve como símbolo
os “anti-motins”. O plano operacional estabelecia diariamente os lugares
de maior conflito, violência e destruição ocasionada pelas gangues e, com
essa orientação as forças policiais marcavam presença desenvolvendo
vigilância e patrulhamento motorizado intenso e procedendo-se à
neutralização das gangues quando a situação assim exigia. Nos bairros em
que houve mais violência quando ao entardecer, e isso ocorreu nos finais
de semana, os “anti-motins” estavam em ação. Em meio à concepção
reativa se estava tentando mudar o método e, por isso, outras instituições
governamentais, como o Ministério de Educação, o Ministério da Família,
a Secretaria da Juventude, etc., foram incorporadas ao mencionado plano.

Alguns objetivos do plano foram melhorar a segurança e o


sentimento de segurança cidadã nos lugares de maior violência de gangues,
capturar os chefes das gangues e incorporá-los a centros de estudos,
associações esportivas, religiosas, etc. os jovens que aceitassem dar esse
passo de reintegração social. Com destaque nos meios de comunicação,
foi declarado que o plano havia sido um sucesso, pois a comunidade e os
bairros afetados expressaram que agora dormiam e viviam tranqüilos,
muitos chefes foram capturados e processados, enquanto outros
receberam pena de sanção policial comutável por multa.

Durante as entrevistas que realizei com chefes de setor destacados


nesses territórios eles expressavam que o plano a) teve bons resultados
imediatos, mas que a médio prazo o problema continuaria, b) que muitas
gangues tentaram se armar para enfrentar à polícia, c) que violência contra
violência gera mais violência, d) que o seu trabalho no território foi afetado
já que os “anti-motins” chegavam, colocavam ordem e embora iam,
enquanto eles que ficavam no território recebiam as conseqüências, por
exemplo, muitas famílias que acreditavam neles, os chefes de setor, depois
deixavam de acreditar e então diminuía o ânimo de trabalhar lado a lado

581
Um Relato sobre a Polícia Nacional e o Controle
da Delinqüência Juvenil na Nicarágua

com a polícia. À continuação, também consideravam que os chefes de


gangues e as gangues em geral “temiam os anti-motins”, “colocavam
falcões (vigias) nos bairros e, quando sabiam que vinham muitos,
membros das gangues fugiam e iam para outros bairros ou se
escondiam”, enquanto outra expressão síntese foi “...para que, os azuis
(os anti-motins) colocavam as coisas em ordem, esses não dialogavam
mas chegavam para fazer o seu trabalho…”.5

Pois bem, enquanto em Manágua se desenvolvia o Plano Gangues,


em Masaya, a 27 quilômetros, empreendíamos, ou melhor, participei
como coordenador de um projeto de segurança cidadã no qual
intervieram PN, governo central, prefeitura, comerciantes, moradores,
igrejas e organizações não governamentais, que teve como um de seus
eixos a prevenção da violência juvenil.6 Esta experiência foi totalmente
diferente da de Manágua. Enquanto na capital se abordava o problema
com as gangues, em Masaya era mais com grupos de risco e com uma
ou outra gangue incipiente.

De forma simultânea, a Chefatura Nacional da PN, e em particular


a Subdireção Geral de Prevenção, impulsionava reuniões e trabalhos de
análise das diversas formas em que se abordava a violência juvenil em
nível nacional, os seus resultados e a melhor forma de fazê-lo, tendo
como orientação o respeito à vida e aos direitos humanos e um sentido
de aproximação com a comunidade.

O contexto no início do projeto em Masaya foi marcado por uma


greve nacional do transporte e de estudantes que impediu que o Plano
de Ação (do projeto) fosse lançado em abril. Uma greve que afetou o
país determinou que a PN concentrasse o seu trabalho em tarefas de
ordem pública, tais como blitz operacionais fixas, serviços de
patrulhamento motorizado, controle de objetos explosivos, etc. Por
tanto, a população também se concentrou em resolver as suas
necessidades de mobilização com todas as conseqüências que para
cumprir com os seus trabalhos, compras, comércio, escolas e mais,
significou a greve. Deve-se ter em conta que são anos em que os grevistas
e incluindo alguns movimentos políticos quiseram manipular as gangues
e os jovens em risco para que provocassem o caos em algumas cidades,

especialmente na capital.

582
Marco A. Valle Martínez

Depois de pouco mais de um ano, os resultados do projeto estavam


à vista, entre outros, melhor controle de pontos de venda de bebidas
alcóolicas, neutralização de uma boa quantidade de pontos de venda de
drogas, avanços no controle de armas de fogo, desarticulação das gangues,
acordos de não agressão entre grupos de jovens em risco, incorporação
ao estudo e abandono da violência juvenil. Estes resultados foram produto
da combinação do trabalho preventivo policial e social, em que os diversos
atores articularam esforços, incluindo os mesmos jovens que foram
deixando a violência. O principal foi apreciar o jovem como jovem, não
como delinqüente, não como membro de gangue, valorizá-lo sem
preconceitos, falar com eles, entendê-los, penetrar no seu mundo, nos
seus problemas, escutá-los, integrá-los em atividades acordadas, falar com
as famílias, parentes próximos, amigos e amigas, fazê-los participar de
atividades culturais, esportivas e religiosas, e contribuir para que
encontrassem esperança no seu futuro. Ao mesmo tempo, eram
executadas ações de prevenção policial que, entre outros propósitos,
tratavam de abrandar os líderes de grupos em risco/gangues que tentavam
boicotar as atividades do projeto.

Um indicador de resultados foi que a população de Masaya avaliou


positivamente o serviço que a PN prestava em seu bairro ou em sua
região. Na pesquisa de 1998, 27% das pessoas consideravam que o
serviço era adequado e muito adequado, aumentando a porcentagem para
33.5% de adequado e muito adequado em 2000. O mesmo aconteceu
com as opiniões negativas. Em 1998, 71% opinou que era pouco adequado
e nada adequado, assim que em março de 2000 descendeu para 64.8%.
O mesmo aconteceu com o patrulhamento. Em 1998, 21.6% opinou
que a polícia patrulhou com freqüência e com muita freqüência a sua região,
enquanto em 2000, o índice foi 28.8% de pessoas que disseram que
patrulhavam com freqüência e muita freqüência. Sempre na mesma
direção, é interessante a diminuição de opinião negativa sobre o particular.
Em 1998, 77.3% disseram que a polícia patrulhava muito pouco e nunca,
e em 2000 essa porcentagem diminuiu para 48.5%.7

Este projeto teve certa repercussão nos esforços de mudanças de


métodos já que a Chefatura Nacional o monitorou constantemente e este
foi documentado do princípio ao fim, o que permitiu que servisse como
insumo para a reflexão, comparação e para avançar para um modelo
que tivesse como eixo a prevenção e não a reação.

583
Um Relato sobre a Polícia Nacional e o Controle
da Delinqüência Juvenil na Nicarágua

7. PELO MODELO DE PREVENÇÃO DO DELITO E DA


DELINQUÊNCIA COMO EIXO DA AÇÃO POLICIAL

Em 1995 a Chefatura da Polícia Nacional formalizou a priorização


da área preventiva, através da especialidade de Segurança Pública Nacional,
reestruturando a estratégia fundamentada na prevenção do delito, na qual
se envolveram os diversos atores da sociedade. Conclui-se que o delito e
a delinqüência não são um problema policial, mas sim social e como tal é
necessário enfrentá-lo sob uma perspectiva que combine o social e o
policial. Nesse mesmo ano, foram aprovadas as Normas de Organização
Interna da Especialidade de Segurança Pública e, em 1996, a Doutrina
Policial, que estabelece de forma clara a concepção e a filosofia de serviço
de prevenção pública do delito, que oferece a Polícia Nacional à sociedade
nicaragüense. Neste documento se orienta que a especialidade de Segurança
Pública adote o modelo integrado preventivo-corretivo, que concebe o
crime como um problema social.

Enquanto se está com o Plano Gangues e o enfoque reativo em


outros espaços e intervenções, também são vividas experiências de
prevenção social como Masaya, que depois são reproduzidas em
municípios como León, Chinandega e Estelí, e em nível central se reflete
no Conselho Nacional da PN sobre o caleidoscópio de práticas policiais,
e são organizadas as experiências e se incide na ordem normativa da
instituição, redirecionando a ação para o enfoque preventivo que hoje é
aprofundado e se busca consolidar.

Em meio a essa dinâmica, surgem os Comitês de Prevenção Social


do Delito (CPSD) em Manágua em 1997, com o propósito de ajudar a
enfrentar o crescimento dos problemas gerados pelas gangues e os pontos
de venda de drogas. O interessante do caso é que surgem um ou dois
problemas concretos e depois, conforme se intensifica a relação com a
polícia, vão se convertendo em estruturas participativas da população
para ajudar na construção de sua segurança cidadã. Em 2003 foi efetuada
a primeira reunião dos CPSD do departamento de Manágua. Neste ano
de 2007, se tem planejado efetuar a primeira reunião nacional em outubro,
que estava pronta para ser realizada nos dias 7 e 8 de setembro, mas que
foi cancelada por causa dos estragos ocasionados pelo Furação Félix, que
obrigou a instituição a dar prioridade à direção RAAN, onde pegou com
toda a sua fúria o fenômeno natural.

584
Marco A. Valle Martínez

Como expressamos no relato, esse espírito comunitário, que tem


as suas raízes nos anos 80, está claramente expressado no artigo 6, inciso
4, da Lei 228, que se refere às “relações com a comunidade” com o
propósito de estabelecer mecanismos e colaboração com as diferentes
organizações da sociedade civil, e observar, a todo momento, um
tratamento correto e esmerado com os cidadãos, entre outros tópicos.
Portanto, a Doutrina Policial destaca nos princípios e valores o “serviço à
comunidade”, dizendo que “o trabalho policial em todos os seus âmbitos
tem sentido só em estreito vínculo com a comunidade à qual serve, com
o fim último de prevenir atos ou situações que atentem contra a segurança
individual e coletiva”. A visão e missão também contêm essa orientação
de desempenhar o trabalho policial “íntima relação com a sociedade”;
perspectiva que se reafirma nas Diretrizes para o Trabalho da Polícia
Nacional em 1999, tanto em seus objetivos estratégicos, como em seus
planos e, objetivos específicos.

Em um relatório da Chefatura Nacional em 1999, transmitindo nossa


apreciação sobre o enfoque preventivo e as relações com a comunidade,
escrevíamos “...somos da opinião de que este estado da concepção - e
sua dinâmica – é alentador já que mostra que na prática policial há
efervescência, movimento e forças que empurram para a mudança, além
de ser parte da transição institucional. Dito de outra forma, as relações
polícia-comunidade, nos fatos, estão em processo de construção e
delimitação e, como tal, do mesmo modo a sua conceitualização, em um
ir e vir onde ambas as partes (prática e reflexão) se retro-alimentam.8

Esse espírito de prevenção e busca com relação à delinqüência juvenil


se concretizou em 2003 com a criação da Direção de Assuntos Juvenis,
depois de um processo de consultas à população, pessoas conhecedoras
do problema, organismos não governamentais, ministérios e, logicamente,
consultas internas na polícia. Foi uma aprendizagem valiosa já que foram
abordadas análises e discussões a respeito do enfoque preventivo, a visão,
missão, princípios, a percepção dos jovens sobre a polícia, a percepção
dos/das policiais sobre os jovens, o peso de sua participação no total de
delitos nacionais, algumas experiências com sucesso de trabalho com
jovens, a conceitualização de adolescente, jovem, jovem adulto, grupo de
risco, gangues, etc.

O modelo preventivo global da instituição policial, com relação à

585
Um Relato sobre a Polícia Nacional e o Controle
da Delinqüência Juvenil na Nicarágua

juventude se concebe como missão “definir e promover respostas de


prevenção ajudando a missão da Polícia Nacional manifestada em uma
eficiente e eficaz resposta de promoção, proteção e defesa dos direitos
humanos de meninas, meninos, adolescentes e jovens, contribuindo na
formação e transformação das relações de respeito, igualdade e equidade,
que propiciem uma cultura de paz no marco da segurança cidadã
necessários para o desenvolvimento da qualidade de vida da nação. Portanto
os princípios são caráter preventivo da ação policial, proteção especial,
interesse superior de meninas, meninos, adolescentes e jovens, enfoque
de gênero, responsabilidade compartilhada, etc.

Dentro do modelo preventivo policial desempenham um papel


primordial a família, as amizades, o bairro, o entorno próximo, a escola,
os colégios, inter-relacionados com as instituições do governo central ou
local, igrejas e organizações não-governamentais. Aproximadamente quatro
mil jovens se reintegraram à sociedade. Os tempos da brigada passaram,
hoje são tempos das brigadas estudantis, brigadas esportivas, brigadas
culturais ou outros tipos de brigadas que contribuam a fundo para potenciar
o valor da juventude. São promovidos espaços de superação e diversão,
oficinas de auto-estima, apoio para conseguir emprego para quem precisa,
promoção da participação da família e da comunidade nos esforços de
reintegração social, incorporação em tarefas próprias de prevenção e
mitigação de desastres ou outros fenômenos, etc. Em resumo, é feita
uma combinação do estudo dos diversos fatores de risco que se relacionam
com a delinqüência juvenil, ao mesmo tempo que se potencializam os
fatores protetores e tudo isso dentro de um conceito global de polícia
comunitária pró-ativa, que se está afinando este ano.

8. POLÍCIA COMUNITÁRIA PRÓ-ATIVA (PCP) E PREVENÇÃO DE


DELINQUÊNCIA JUVENIL

A política da relação polícia-comunidade e direitos humanos é a


referência do Modelo PCP.

O modelo PCP é o sistema de funcionamento policial que contribui


para assegurar que a instituição cumpra a sua missão orientada à cidadania
com a melhor eficácia, eficiência e qualidade profissional e humana. O
modelo PCP cruza transversalmente a instituição e como tal implica uma
forma de pensar e fazer no cumprimento da missão policial. Constitui um

586
Marco A. Valle Martínez

arquétipo transversal e integral do funcionamento institucional, que exige


romper paradigmas, substituir cultura e crenças arraigadas, persuadir e
convencer para que seja assumido por convicção. Tem dois componentes
essenciais: o comunitário e o pró-ativo.

O componente comunitário é a vinculação com a comunidade como


eixo principal da ação policial: auxílio judicial, segurança pública, trânsito,
inteligência, pesquisas econômicas, assuntos juvenis, pesquisas drogas,
administração, etc. O comunitário se desenvolve e é aproveitado
reciprocamente a fim de resolver os principais problemas da comunidade
em matéria de prevenção do delito e da delinqüência, assim como oferecer
um serviço de qualidade de acordo com a sua expectativa.

O componente pró-ativo se refere à prevenção policial e consiste


em impulsionar e manter permanentemente uma conduta e atitude pró-
ativa, ainda em meio daquelas situações nas que se deve reagir. Em outras
palavras, é a conduta desenvolvida para prever causas e condições que
possam facilitar com que ocorra um fenômeno de ordem policial, tal como
a atividade delitiva, acidentes de trânsito, alterações da ordem pública,
serviços policiais e administrativos, comunicação interna, comunicação
externa, recursos humanos, etc.

O modelo tem na base a necessidade de abrir espaços para o


concurso sinérgico do Estado, governo, empresa privada, organismos
não governamentais e sociedade civil diante do fenômeno do delito, da
delinqüência e da violência, promovendo um espírito de cooperação e
colaboração que é traduzido em estratégias que incidam na mudança de
padrões de comportamento e oportunidades para a cidadania. A
coordenação inter-institucional é um fator de importância primordial como
condição imprescindível para a consecução de melhores níveis de segurança
cidadã. Por isso, a PN deve impulsionar uma relação próxima com as
instituições que têm relação com a sua tarefa para que localizem no centro
o interesse comum, coordenem as políticas de forma que se consigam
diferentes decisões e ações dentro de uma única visão de conjunto com
sentido estratégico.

A prevenção social, policial e situacional está no centro do Modelo


PCP. A tendência e o caminho da prevenção e controle da delinqüência
juvenil estão ganhando com o avanço do modelo; não há volta atrás, cada

587
Um Relato sobre a Polícia Nacional e o Controle
da Delinqüência Juvenil na Nicarágua

dia mais se consente a idéia na polícia de que a missão policial tem assegurado
o seu cumprimento efetivo e eficiente desde que seja executada passo a
passo com a comunidade.

9. CONCLUSÃO

A Polícia Nacional da Nicarágua, nascida e enraizada na comunidade,


transitou de um enfoque reativo para um enfoque preventivo global, e em
particular, com relação à delinqüência juvenil, cuja justeza foi expressa no
fato de a Nicarágua ser um dos países mais seguros da América Latina e,
ao mesmo tempo, a delinqüência juvenil (gangues/facções) é amadora e
não há grandes organizações como é o caso de países como Guatemala,
Honduras e El Salvador. Estudos das polícias da América Central, assim
como de organismos internacionais são testemunhas dessa realidade.9

Notas
1
Site Web da PN: www.policia.gob.ni ; Polícia Nacional “Constituição Política. Leis.
Regulamentos. Doutrina Policial, 1ª.Ed., Manágua, El Amanecer S.A.1998, 360 p.; Instituto
Interamericano de Direitos Humanos (IIDH) e Agência Sueca para o Desenvolvimento Internacional
(ASDI), “Diagnóstico Institucional”, Três tomos e sete anexos, Projeto Modernização,
Desenvolvimento e Capacitação da Academia de Polícia e a Polícia Nacional da Nicarágua,
1999.
2
Valle Martinez, Marco A. “Diagnóstico de Segurança Cidadã da Nicarágua”, Projeto Apoio à
implementação de uma estratégia de segurança cidadã na Nicarágua, NIC/02/MO2, PNUD e
Ministério de Governo, 2002. Manágua, Nicarágua.
3
Ver trabalho da DAJ condensado no livro “Alcançando um sonho”, assinado pelo Primeiro
Comissionado na inatividade, Edwin Cordero, Comissionado Major Haymin Gurdian, Chefe da
DAJ, e Carlos Emilio López., Save Children, Editorial Criptos, Manágua, 2006, 200p.
4
Valle Martínez, Marco A. “Desenho da emergência policial 118 em Manágua”, Instituto
Interamericano de Direitos Humanos (IIDH), Manágua, 2001.
5
Informação sobre o Plano Gangues está na documentação da Delegação Departamental de
Manágua, entrevistas que efetuamos e, no texto citado na nota de rodapé 4.
6
Projeto “Segurança Cidadã na América Central”, IIDH, 1999.
7
Informação geral sobre o projeto se pode encontrar em IIDH, Segurança Cidadã na América
Central: Diagnósticos da situação, Equipamento de Pesquisa do IIDH. San José, Costa Rica.
2000
8
Informe sobre las Relaciones Policía – Comunidad. 1999.
9
Policías de Centroamérica, “Informe especial del estudio y evaluación de la actividad delictiva
de las pandillas y maras en Centroamérica”, Diciembre 2003. Informe en power point; BID,
“Crimen y violencia en Centroamérica”, Washington, Seminario Mayo 24, 2007.; WOLA,
“Pandillas juveniles en Centroamérica”, Octubre 2006, Washington.

588
I LE
CH
Relato Polcial
A RELAÇÃO COM A COMUNIDADE NA POLÍCIA
DE INVESTIGAÇÕES DO CHILE
Carlos Pino Torres*

Nossas instituições policiais não estão isoladas nem se desenvolvem


em um âmbito diferente das sociedades onde lhes corresponde atuar. As
polícias também estão expostas às mudanças de suas respectivas
sociedades. Hoje, enfrentamos delitos emergentes, próprios de nossa
globalização ou transnacionalizacão, como a lavagem de dinheiro, o
narcotráfico e o cyber-crime, entre outros. A última década do século XX
trouxe consigo uma necessária modernização, que não é somente
informática ou computacional, mas, principalmente, do capital humano.
“Com efeito, transitamos de um paradigma da segurança, cuja principal
referência era o Estado e a ordem pública, a um que, sem abandonar as
referências anteriores, também põe ênfase na pessoa e no trabalho público
de nossa missão policial”1

Conforme afirmado, devemos assinalar que no Chile nossa vinculação


com a comunidade acontece em um ambiente de modernização do Estado,
tal como ocorreu em um grande número de países, em nível latino-americano
e mundial. Não obstante, as estratégias e tarefas aplicadas para cumprir os
objetivos esperados tiveram pouco sucesso, ou seus resultados foram
infrutíferos, especialmente em instituições de longa trajetória. No geral,
existe uma resistência à mudança no interior das organizações, em particular
sobre processos ou conteúdos novos, como direitos humanos, deontologia
policial, satisfação dos usuários, diálogos cidadãos, contas públicas,
diagnósticos compartilhados, planejamento e avaliação do trabalho em
comunidade, extensão dos objetivos policiais a partir da aplicação da lei
para a prevenção da criminalidade e da violência, e a diminuição da percepção
de insegurança, entre outros. “Além disso, na atualidade não existe pleno
consenso sobre o formato (organização) que deve adquirir uma polícia de
orientação comunitária, mas sim sobre que áreas deveria desenvolver”2 .

Em outro âmbito de uma modificação na relação Estado-


Comunidade, se outorga grande importância às pessoas como elemento
principal de sua política social, motivando a participação cidadã, com a
transparência de suas autoridades e de todos os poderes do Estado para
com a sociedade (accountability). Sob esse novo palco, as polícias têm
*
Prefeito da Polícia de Investigações do Chile; chefe da XII Região Policial de Magallanes e
Antártica Chilena.
589
A Relação com a Comunidade na Polícia
de Investigações do Chile

uma grande responsabilidade no processo da gestão publica, devendo


responder de maneira clara e consistente às demandas que a sociedade impõe.

Nos novos tempos que se avizinham, não podemos nos manter


cumprindo unicamente a missão primária e específica de nossos afazeres
policiais: prevenir, controlar e investigar os delitos. Nosso trabalho já vai
mais além. Devemos ser capazes de encontrar uma forma de termos uma
participação mais pró ativa e eficiente à segurança humana, em conjunto
com a comunidade.

Uma boa forma de fazê-lo é através do policiamento comunitário,


que implica a já mencionada reforma, intimamente ligada à modernização
policial, o retreinamento e a capacitação, para melhorar nossas habilidades
e destrezas, sermos mais competentes, com um olhar especial no que se
refere à aproximação com a comunidade.

Essa interação com a comunidade representa nosso compromisso


com a sociedade, em termos de edificar alianças estratégicas com e para a
sociedade. A práxis nos demonstrou que para a segurança cidadã esse é um
fator primordial, cuja máxima preocupação é gerar fórmulas ou linhas de
ação integrais que balizem a criação de aproximações com a comunidade
organizada, dirigidas à prevenção estratégica do delito, à violência e à sensação
de insegurança.

“Essa mudança de orientação na atuação policial possui, em essência,


um valor ‘diferenciado’ no conjunto das diferentes possíveis soluções aos
problemas de vulnerabilidade e risco, que representam a violência e a
criminalidade para nossas sociedades latino-americanas. O policiamento
comunitário permite enfrentar uma faceta hoje mais daninha que a própria
delinqüência: a insegurança que se associa à deterioração do tecido social,
da perda de capital social, a desconfiança e o temor de ser vítima de um
delito ou de um fato violento. É uma forma de dar mais poder à comunidade
para enfrentar a solução de seus problemas. É um exercício de
“empoderamento” da comunidade sobre sua organização policial”3 .

Essa mudança para o policiamento comunitário será muito demorada,


enquanto não mudarmos significativamente nossa atitude no trabalho policial.
É uma transformação que melhora substancialmente a gestão policial,
recuperando um valor básico de todo Estado democrático, como é a
circunstância em que nos envolvemos com a comunidade, ressaltando duas

590
Carlos Pino Torres

áreas: “a primeira, um enfoque comunitário de serviços focalizado e, a


segunda, para resolver problemas. Tudo isso conjugado à prevenção, à
proatividade, à associação, ao serviço policial personalizado, à
descentralização dos serviços, à resposta oportuna, à ética e à deontologia
policial, à qualidade e eficácia policial, ao desenvolvimento de confiança, à
redução do temor e à construção de comunidades mais fortes. Nesse rol,
a polícia procura envolver-se e construir uma aliança com ela”4 .

A instituição a qual represento, a Polícia de Investigações do Chile,


no seu processo de modernização e reengenharia considerou, na sua
qualidade de instituição que faz parte da administração pública, dois eixos
fundamentais para melhorar sua contribuição à sociedade: a gestão de
qualidade e o serviço à comunidade. Nesse caso, se privilegiam as pessoas
e a função policial de serviço público, tendo como fim último a proteção
dos direitos humanos, a melhoria e a ampliação do sentido de segurança,
como também a demarcação e fiscalização das potencialidades da polícia,
que são elementos primordiais.

“O fortalecimento da relação entre a polícia e a comunidade é


concebida como uma forma de dar mais poder à sociedade civil na solução
de seus problemas, traduzindo-se em um “empoderamento”
(empowerment) dela sobre sua organização policial”.

Assim, desde 2004, depois de um processo de análise quantitativo e


qualitativo, a Polícia de Investigações do Chile inicia uma transição com um
olhar renovado, onde a missão original e os objetivos se conjugam. Tal
renovação está apoiada em um conjunto de iniciativas, tomando como base
“cinco pilares fundamentais da gestão: o desenvolvimento organizacional, a
reengenharia dos processos de trabalho, os recursos humanos, os recursos
para possuir uma infra-estrutura que facilite a eficiência, e a informação”.
Essa postura é dirigida à execução efetiva dos preceitos e diretrizes do
Plano de Modernização Institucional, denominado Plano Minerva, e busca
consolidar a instituição como uma Polícia de Alto Rendimento no Bicentenário
da Independência do Chile (2010), sendo sua referência e objetivo final a
comunidade, “aspirando a ser reconhecida como mais uma polícia crível,
mais confiável e transparente, valorada pelo seu profissionalismo e solidez
ética e reconhecida pelos organismos nacionais e internacionais”.

Para dar início ao cumprimento desse compromisso, e com a


finalidade de estabelecer um aporte significativo ao desenvolvimento de

591
A Relação com a Comunidade na Polícia
de Investigações do Chile

lideranças comunitárias positivas, a Academia Superior de Estudos Policiais,


da Polícia de Investigações do Chile, estruturou e coordenou, entre os meses
de agosto a novembro de 2004, a “Primeira Diplomação de Prevenção e
Segurança Cidadã no Contexto da Reforma Processual Penal”, da qual
participaram aproximadamente 50 docentes e líderes comunitários de Cerro
Navia na Região Metropolitana Santiago do Chile, evento patrocinado pela
Divisão de Segurança Cidadã e Programa Comuna Segura, do Ministério do
Interior do Chile. Da mesma forma, em maio do mesmo ano, aconteceu,
nas dependências da Academia Superior, o “Primeiro Seminário sobre
Segurança Cidadã e Contribuição das Igrejas Evangélicas ao Desenvolvimento
Social”, com a assistência de mais de 300 líderes religiosos e comunitários,
cuja segunda versão foi realizada no final de 2005, tendo sido encerrado
pelo subsecretário do Interior, representando o governo chileno.

É necessário ressaltar que para cumprir esse objetivo é primordial


que a polícia elimine de sua cultura tradicional o isolamento e que provoque
uma aproximação com a comunidade, como parte do ethos policial. Essa
inevitável mudança deve ser feita reconhecendo nossos interesses e
limitações. Nesse caso, não se trata de um problema de poder ou de
autoridade, mas de considerar que fazemos parte de uma sociedade que
se inter-relaciona, tendo como base uma subcultura que copia maneiras
de pensar, hábitos e visões. Assim, devemos ser capazes de renovar nossa
gestão policial, e ter a vontade de aprender a desaprender hábitos e
costumes que não apontam aos novos propósitos e não desenvolvem
novas competências.

Definitivamente, trata-se de modificar atitudes e pensamentos


obsoletos, assim como de condutas da cultura policial. “Assim, é preciso
assumir que trata-se de um processo longo e complicado, geracional,
subjetivo (perceptivo e doutrinal), estreitamente vinculado com orientações
valóricas, com incentivos para uma mudança proposta e impulsionada
desde dentro da polícia e também na sociedade”.

EXPERIÊNCIA DESTACADA POLÍCIA/COMUNIDADE

Projeto: “Modelo Metodológico Intersetorial Comunitário” (Momic)

O Momic é uma iniciativa que procura apoiar integralmente os jovens


em risco social, canalizando a oferta pública e privada, com o fim de gerar
oportunidades para esse grupo. Funciona através de um modelo sustentável

592
Carlos Pino Torres

de desenvolvimento, que procura ser uma contribuição para a


transformação social, fazendo confluir os esforços do Estado, da sociedade
civil e do empresariado, três setores que normalmente não se relacionam
entre si, para trabalhar com e pelos jovens em risco social, por meio da
otimização de recursos para a geração de oportunidades. Seu trabalho é
coordenado por um Conselho que se reúne mensalmente para informar
os avanços do projeto e os problemas que foram gerados no seu
cumprimento.

Uma das linhas de ação do Momic é gerar estratégias novas para a


prevenção da delinqüência, articulando redes com jovens líderes que são
reconhecidos nas suas comunidades. Esses jovens, que são líderes positivos
dentro da comuna e que estão em risco social, porque vivem em um
território onde há pobreza e narcotráfico, querem trabalhar com seus
pares através de oficinas culturais e esportivas, gerando um espaço para
enfrentar problemas tais como desemprego, delinqüência, alcoolismo e
dependência de drogas, entre outros.

Caracterização dos Jovens Momic


São jovens (52% de homens e 48% de mulheres), cuja faixa de idade
se concentra entre os 16 e 18 anos. Professam, principalmente, as religiões
católica (56%) e evangélica (30%). Vivem em famílias constituídas por cinco
pessoas, com uma renda média de US$250, provenientes de ofícios e
trabalhos do setor informal da economia (75%), o que se traduz em altos
níveis de pobreza (49% abaixo da linha de pobreza e 17% nas margens da
indigência, o que equivale a 66% total de pobreza, considerando que os
34% restantes só estão 1.5 ponto sobre a linha de pobreza).
De acordo com essas características, as linhas de ação do modelo
basearam-se em potenciar o trabalho de semelhantes, legitimando os
líderes das três Comunas que são parte da iniciativa, sendo fundamental o
papel que realizam as municipalidades de Pintana, Cerro Navia e Pudahuel,
com jovens em risco social, comunidades envolvidas, governo central,
Polícia de Investigações, acadêmicos, organizações e instituições nacionais
e internacionais, e com o setor privado. Além disso, possui cinco linhas
de trabalho definidas: educação, saúde, psicossocial, trabalhista e justiça,
coordenação e gestão, a seguir detalhados:
a) Linha Educação: Apresenta dois enfoques: o primeiro
faz alusão ao conceito de educação desde a escolarização,

593
A Relação com a Comunidade na Polícia
de Investigações do Chile

nivelamento de estudos e sistema formal, enquanto o


segundo se refere à formação e projetos de vida.

Esses dois enfoques definem os atores. O primeiro estimula a oferta


a partir dos governos locais e, o segundo, da a sociedade civil. Ao observar
a oferta concreta, a natureza dessa se desprende de programas de caráter
escolar e, inclusive, com dimensões trabalhistas (o Chile Qualifica e Omil).
Por outro lado, a oferta de formação, pela sua natureza, surge desde as
capacidades da sociedade civil. Portanto, são programas novos.

Uma terceira leitura é que os recursos, no ponto de vista dos custos do


primeiro enfoque, têm a ver com as estruturas oficiais. Entretanto, na perspectiva
da formação, os recursos dizem respeito à composição de profissionais.
b) Linha Saúde: A oferta é fundamentada, em nível local,
através dos consultórios, observando-se uma dupla
dimensão: a primeira de caráter mais linear, aponta para o
acesso ao serviço propriamente dito; a segunda, com um
caráter transversal, relaciona-se com a formação setorial,
mas uma formação dirigida aos jovens, diferente da
formação localizada na linha Educação, onde o eixo são os
líderes. Dessa forma, observa-se maior dinamismo pela
necessidade de responder às necessidades dos jovens.
c) Linha Psicossocial: Esta dimensão se refere
fundamentalmente à cultura juvenil, o que se expressa na
oferta em três dimensões: o psicossocial dentro do espaço
comunitário e coletivo, o psicossocial da cultura juvenil e
os afazeres dos jovens e o psicossocial a partir o
desenvolvimento de habilidades sociais. Partindo de um
olhar transversal, relaciona, concreta e diretamente, a sua
articulação com a dimensão formativa. Portanto, a proposta
lida com elementos de identidade, cidadania, inserção social,
etc.
d) Linha Trabalhista: Nessa linha, o eixo está nos governos
locais e na iniciativa privada. O enfoque trabalhista é uma
linha que se articula com Educação, porque é uma formação
para a vida profissional que se operacionaliza tanto a partir
da incorporação direta ao mundo do trabalho, como de
uma segunda dinâmica, que é a lógica de empreendimento

594
Carlos Pino Torres

e negócios de inclusão (PYME’s). O enfoque por trás disso


é outorgar-lhe um valor acrescentado à perspectiva
trabalhista e educacional dos jovens. Isto é, certificar
competências e não só oferecer emprego.
e) Linha Justiça: A possibilidade de implementar essa linha
a partir da matriz Momic se sustenta na aliança estratégica
entre governo local e polícia, enfatizada em dois aspectos:
o tema da prevenção (bate-papos de educação sexual,
formação de monitores de drogas, entre outras atividades)
e o tema do acesso à justiça.

A partir de um olhar transversal, articula-se com o psicossocial, no


ponto de vista da oferta (Comuna Segura, Mediações, OPD), e com a
dimensão educativa, mas no seu eixo formativo, pelo seu caráter preventivo.
f) Linha Coordenação e Gestão: Essa linha evidencia a
necessidade de suporte e mobilização das linhas anteriores,
através do seguimento, acompanhamento, sistematização
e gestão das iniciativas.

Para a Polícia de Investigações do Chile, ser parte da iniciativa


materializou-se na participação ativa no Conselho Momic, representada
pela Academia Superior, espaço de deliberação em que interagem todos
os atores. Além disso, foram desenvolvidas atividades de formação, através
de uma Escola de Líderes e da participação no projeto Comuna Segura,
na Comuna de Pintana.

A Escola de Líderes é um espaço de formação de lideranças


comunitárias, em função da iniciativa Momic, dirigido a jovens das comunas
de Pintana, Cerro Navia e Pudahuel, de modo a desenvolver competências
e habilidades sociais, assim como destrezas e competências técnicas para
o trabalho, com jovens em risco social. Essa iniciativa reúne 30 jovens na
Escola de Líderes, os quais receberão capacitação permanente, e 150
adolescentes, que participam das oficinas realizadas pelos guias, formados
para apresentar as ferramentas sociais, pessoais, educativas, culturais e
trabalhistas. Esses últimos contam com o apoio das redes intersetoriais,
que compõem o Conselho do Monic.

A Escola de Líderes será complementada, na sua dimensão


psicossocial, por um projeto denominado “Cuidando do meu bairro: jovens

595
A Relação com a Comunidade na Polícia
de Investigações do Chile

em movimento”, com uma duracão de oito meses, a contar do mês de


xxx, que inclui dez jovens infratores da lei, com liberdade vigiada, em
contato com os jovens que já participam do Momic, para colaborar com
sua reinclusão social. Os jovens conhecem a outra cara da “moeda”, já
que podem imergir no âmago do trabalho policial. Da mesma forma, isso
também é positivo para a Polícia de Investigações do Chile, já que gera
um crédito de confiança com a comunidade.

A participação da Polícia de Investigações no Conselho permite


interagir com os jovens líderes que participam da iniciativa e superar os
preconceitos sobre o papel das polícias, ao reconhecê-los como atores,
convocá-los a uma escola de líderes e estar disposta a gerar espaços para
discutir temas de seus interesses. É relevante destacar a realização de
jornadas de trabalho na sede educacional da Escola de Investigações, onde
se formam os futuros policiais, quando os jovens se familiarizam com o
local e acolhem positivamente a oferta de capacitação coloca à disposição,
gerando uma conexão real com as autoridades policiais, reconhecendo
nestes o interesse em melhorar suas condições de vida, e não somente a
recorrente visão de repressão, que gera distância e desconfiança.

Nesse sentido, a incorporação da polícia na iniciativa permitiu


conhecer o discurso dos jovens sobre a relação com a polícia e suas
expectativas, sendo essencial para a criação de estratégias de prevenção
e focalização das ações com a participação da comunidade. Por exemplo:
os jovens Momic assinalam que os problemas mais importantes que os
afetam nas suas comunas dizem respeito ao consumo de drogas e álcool
(49%) e à delinqüência (25%), que configuram um palco de violência
urbana nas suas povoações. Apesar dessa percepção, no íntimo dos jovens
Momic o principal problema que lhes afeta diretamente origina-se no
alcoolismo. Isso é revelador, porque nós, como polícia, temos a
oportunidade de identificar as percepções e valorações dos jovens sobre
seu ambiente e seus problemas, partindo de uma óptica reflexiva e
propositiva, no contexto de um modelo de intervenção inter-setorial.

Notas
1
HERRERA V., Arturo y TUDELA P., Patricio, “Modernización Policial: La relación de la policía
con la comunidad como campo de gestión y referente de cambio en la Policía de Investigaciones
de Chile”, publicado en Persona y Sociedad, Volumen XIX, N° 1, Abril 2005, Santiago de Chile.
2
Op. Cit.
3
Op. Cit
4
Op. Cit.

596
I NA
NT
GE
Relato Policial AR

DUALIDADE ENTRE SEGURANÇA PÚBLICA E


PARTICULAR EM ESPETÁCULOS PÚBLICOS
Guillermo Nicolas Zalaya*

1. A proposta é substituir os policiais por pessoal de empresas de


segurança privada ou por empregados capacitados dos próprios clubes
ou por pessoal que estes contratem.

2. O apresentado, segundo o preceituado no Código de Infrações


Municipais da Cidade de Córdoba REFORMA PARTE GERAL DOS
ESPETÁCULOS E SEUS LOCAIS, Disposição Nº 10.840, no seu Art.
31º DIZ: O sistema de segurança de todo espetáculo público deverá ser
contratado pelos organizadores junto à Polícia da Província de Córdoba,
nas condições que a regulação estabeleça. O pessoal policial uniformizado
cumprirá funções na entrada dos locais ou em suas imediações e, somente
no caso de necessidade, no interior do local. Para que prestem
serviços dentro dos locais, será necessário optar pela contratação
de funcionários de segurança particular, em cujo caso terão que
pertencer a agências de segurança devidamente habilitadas ou polícias
adicionais. Do mesmo modo, a Lei Nº 9.236 REGIME DOS SERVIÇOS
DE PRESTAÇÃO PRIVADA DE SEGURANÇA, VIGILÂNCIA E
INVESTIGAÇÃO, em seu cap. 1º, Objetivo e Âmbito de Aplicação, Art.
1°: DIZ: Serão regidos pelas disposições da presente lei os serviços de:
vigilância direta e indireta, investigações, custódia de pessoas e de bens
móveis, segurança interna em estabelecimentos industriais e comerciais,
em bens imóveis públicos e privados, em espetáculos e outros eventos
ou reuniões análogas que forem prestados por pessoas físicas ou jurídicas
privadas. Art. 2º DIZ: A vigilância direta compreende a tarefa de custódia
de pessoas e coisas emprestadas em âmbitos fechados ou abertos,
reuniões públicas ou particulares, espetáculos, imóveis públicos ou
privados, sedes de estabelecimentos comerciais e industriais, de
instituições, custódia em locais de dança, bares, restaurantes e todo outro
lugar destinado à recreação.

3. Como podemos ver, tanto o Código de Infrações Municipal


como a Lei Nº 9.236 Regime dos Serviços de Prestação Particular de
Segurança, Vigilância e Investigação, facultam às empresas de segurança

*
Comissário da Polícia da Província de Córdoba.

597
Dualidade entre Segurança Pública e Particular
em Espetáculos Públicos

particular a cobertura de segurança em locais de bailes. Cabe destacar


que nos diferentes eventos de “Rock” a segurança interna é coberta há
tempo por empresas de segurança privada, o que tem dado um resultado
muito bom, sendo utilizada a polícia para a cobertura externa e imediações
dos locais, preservando a ordem pública, ao que nos obrigamos.

4. É apresentada à continuação uma fundamentação:

Graças ao trabalho realizado pela Polícia Comunitária foram obtidos


dados que denotam um aumento nas condutas violentas de nossa
sociedade. Os conflitos tendem a se resolver de forma agressiva, não há
tempo para a negociação, nem tampouco foram encontrados mecanismos
para a solução acordada dos problemas que se apresentam. Alguns setores
sociais apresentam uma marcada tendência à violação das normas, se
converteram em indivíduos anômicos, não priorizam o respeito pelas
normas de convivência, mas sim o contrário, exalta-se a violação das
mesmas.

Essa tendência, indicada no parágrafo anterior, traz necessariamente


conflitos inerentes. Os vínculos sociais, fundamentais para o crescimento
harmônico da sociedade, se deterioram, perde-se a confiança no
semelhante, prevalece a desconfiança e a sensação de insegurança.

O esquema de vida indicado traz como conseqüência que as


Instituições que têm por finalidade o controle, a prevenção, a transmissão
de valores ligados à segurança e o respeito mútuo às normas sociais
vigentes devem redobrar a sua ação para alcançar um espaço comum de
convivência social.

Mesmo esta problemática tendo raízes profundas neste espaço


social, é nos bailes onde se expressa, em ocasiões, com marcada clareza
o que é uma fonte de preocupação para a instituição Policial.

É impossível generalizar, mas muitos dos conflitos sociais são


observados com clareza e se resolvem nestes bailes; os atores ali
intervenientes transferem suas problemáticas a um espaço onde deveriam
estar presentes a diversão e o ócio. Estamos na presença de uma
subcultura, entendendo pela mesma uma expressão cultural com códigos
de convivência e respeito particular. Essa subcultura em determinadas
oportunidades choca, lesa interesses, modos e costumes de outras

598
Guillermo Nicolas Zalaya

subculturas; surge então o conflito.

Muitos dos países que realizam adicionais nesse tipo de eventos têm
dificuldades para a correta interpretação destes códigos de convivência e
atuam a partir do preconceito e, mesmo sendo a sua função a de dissuadir,
dispersar, evitar males maiores, às vezes, a sua conduta fomenta, de forma
inconsciente (entendendo por conduta desde a postura corporal, os gestos
que acompanham a mesma, comentários etc.), reações ou condutas
inapropriadas.

Também, por sua vez, em determinadas personalidades, ainda que


isto pareça entrar em contradição com o parágrafo anterior, observa-se
uma identificação psicológica, que acreditamos ser inconsciente, por parte
do pessoal da polícia com as atitudes, posturas, modos de relação dos que
ali comparecem. Deste modo, são detectadas condutas em grande parte
desaprovadas com relação ao que se espera dos policiais em sua função de
prevenção.

Por outro lado, muitos dos que freqüentam os bailes tiveram


dificuldades com a lei penal ou contravencional, ou seja, tiveram um contato
prévio com a ação da polícia e esse contato, em geral, não aconteceu em
bons termos e, portanto, está rodeado de um contexto de crise e tensão.
A partir disso, também as suas idéias estão baseadas em preconceitos sobre
o que a polícia significa para eles.

Este sistema de preconceitos se alimenta continuamente com qualquer


atitude dos integrantes. Também em uma sociedade marcada pela influência
dos meios de comunicação, como a atual, estes meios de comunicação
potencializam os mecanismos e os transferem à consideração social. Estamos
diante de diferentes subculturas que não têm um espaço comum de
entendimento. Estas idéias pré-concebidas, em geral, levam ao atrito e ao
enfrentamento, muitas vezes sem um fator motivador específico. Esta
agressividade se expressa de muitas formas, dissimuladamente em críticas
veladas, gozações, ou de forma explícita através da agressão franca.

Então o que representa o policial nestes espetáculos dançantes? Na página


nove
entrada, revista
da antes
a polícia, mencionada
a polícia, e na
a polícia, mesma
você reportagem
está ao se afirma:
lado da pista Depois de
a polícia...”
ter superado a fila de entrada e a revista policial “e dentro, você só entrega a
Esse extrato do texto nos mostra que o policial não é visto como a
autoridade, entendido como a pessoa que está ali para oferecer segurança,

599
Dualidade entre Segurança Pública e Particular
em Espetáculos Públicos

proteger, mas sim o contrário: ele é visto como a figura persecutória, que
só tenta cercear a sua liberdade e capacidade de ócio. Essa atitude está
presente a partir do próprio momento da entrada.

Muitos dos assistidos vêem o policial como uma pessoa temida ou


como uma pessoa agressiva. A partir daí se produzem muitas condutas,
velhos conflitos tornam-se atuais e se age passando ao ato. Entendendo
por ato a atuação da conduta sem levar em consideração os resultados da
mesma. Passa-se ao ato, falham os freios inibitórios. Devemos somar a
isso o fato de que muitas das pessoas que comparecem a este tipo de
espetáculos consomem bebidas alcoólicas em excesso ou substâncias
estimulantes, o que potencializa estas condutas.

Até o momento, temos o preconceito como fator motivador e o álcool


ou os estimulantes como propulsores da conduta. Devemos indicar outro
elemento que é a conduta do indivíduo dentro da massa. Está bem estudado
que um indivíduo diante de uma situação similar apresenta diferentes condutas
no caso de encontrar sozinho ou em um grupo pequeno. As condutas da
massa indicam uma perda da identidade individual e o surgimento de uma
identidade coletiva. É por isso que em um ambiente de euforia e entretenimento
as condutas coletivas, ou o humor da massa, podem mudar rapidamente, e
podem se transformar em uma conduta grupal violenta, fora de controle.

É provável, também, que essa conduta esteja focada rapidamente


em direção àqueles que são vistos ou sentidos nesse estado de
embotamento coletivo como culpáveis de sua situação atual, (neste caso
o pessoal policial). Essas condutas poderiam ser desativadas com a presença
no interior destes espetáculos de pessoas de segurança privada. Por quê?
Pelo indicado com anteriormente, esse círculo vicioso indicado seria
interrompido onde a autoridade é vista como fonte de todos os males
que os afetam como pessoas e se age diante dela com agressividade e
violência. O pessoal de segurança privada pode ser percebido como
alguém que só está ali para cuidar e não é um representante social com a
carga que lhe é atribuída ao papel policial. Isso foi assimilado pela maioria
das bandas de rock que utilizam para seus espetáculos ou recitais a
segurança particular, por exemplo, “Los Redonditos de Ricota”, que eles
mesmos treinam as pessoas que devem oferecer segurança aos assistidos.

Outro benefício que se pode destacar é que os conflitos que surgem


nesses espetáculos dançantes são plasmados nos meios de comunicação

600
Guillermo Nicolas Zalaya

de massa e têm uma ampla repercussão social. Quase sempre a valoração


que é realizada da ação policial é negativa e se critica o tratamento que se
dispensa às pessoas e o uso da força empregada. Essas avaliações desgastam
a confiança que a sociedade deve ter nas instituições de segurança e
também ataca a motivação do pessoal que deve cumprir a função de
segurança nos mencionados espetáculos.

Outro benefício para a Instituição e para os seus integrantes é que


por um lado se disporia, ao desvincular este serviço da polícia, de mais
pessoal para cobrir as tarefas de segurança e prevenção que a sociedade
reivindica diariamente. E por outro, lado os policiais teriam mais tempo
de descanso, maior possibilidade de integração ao seu núcleo familiar.
Tudo isso resultaria em pessoas mais motivadas com a função e uma
instituição mais eficiente em seu serviço. Devemos mencionar que entre
sextas, sábados e domingos são disponibilizados entre 350 e 400 efetivos
somente na cobertura interna desses bailes.

Por outro lado, utilizando somente a quarta parte do pessoal


destinado a esses serviços, para os operativos de prevenção nas diferentes
áreas, esses serviços seriam otimizados, redundando em benefício para a
instituição e de forma pessoal para nossos policiais, que gozariam de mais
horas livres nos finas-de-semana e feriados, com a repercussão em nível
pessoal e familiar que isso significa.

CONCLUSÃO

O apresentado traria os seguintes benefícios:


INDIVIDUAIS: Por um lado o pessoal policial evitaria
situações de conflito e agressividade com a sua seqüela de
lesados ou feridos e os gastos médicos e de recuperação
conseqüentes.
INSTITUIÇÃO: A instituição disporia de pessoal com um
nível de motivação e satisfação no trabalho maior.
SOCIAL: A avaliação social do policial melhoraria, evitando
que o policial seja o depositário de todos os aspectos
negativos indicados. O serviço será efetuado com maior
profissionalismo e se poderá destinar o pessoal dispensado
da função para cumprir tarefas específicas de prevenção.

601
Dualidade entre Segurança Pública e Particular
em Espetáculos Públicos

Também diminuirá a pressão negativa que existe sobre a


instituição, causada pela avaliação negativa que os meios de
comunicação realizam sobre a ação policial nesses âmbitos.

5. Sem dúvida, esta seria uma mudança muito importante e benéfica


para a nossa instituição policial, que como toda mudança trará
conjuntamente uma resistência à qual nós nos devemos sobrepor. De
todas as formas, e para que não seja tão traumática, esta nova
implementação de trabalho deverá ser notificada aos empresários
dedicados a este tema com a devida antecedência, da nova modalidade de
cobertura de segurança, dando-lhes um prazo aproximado de três meses
para que contratem com as diferentes empresas de segurança particular
o pessoal adequado para oferecer este serviço, fazendo-lhes perceber
que lhes será oferecido todo o assessoramento necessário para a sua
implementação.

602
I L
AS
BR
Relato Policial
A ATUAÇÃO DA POLÍCIA NO BAIRRO RESTINGA
BREVE ANÁLISE
Carmen Isabel Andreola*

O objetivo da análise é mostrar, através das ações de polícia


desenvolvidas pela 2ª Cia de Polícia Militar do 21ºBPM, no bairro Restinga,
que, apesar de desenvolver significativo trabalho comunitário, suas ações
de repressão ao crime seguem os padrões dos demais Batalhões de Polícia,
ou seja, atuações fragmentadas e individualizadas, que pouco contribuem
para a melhoria das condições de segurança daquela comunidade. É preciso
mudar esse quadro.

A 2ª Companhia de Polícia Militar pertence ao 21º Batalhão Polícia


Militar e sua área de atuação é basicamente o bairro Restinga.

O bairro Restinga iniciou sua povoação em meados dos anos 1970 a


partir de loteamentos planejados pelo Departamento Municipal de Habitação
(DEMHAB). A Prefeitura de Porto Alegre, através do DEMHAB,
implementou políticas de remoção de favelas espalhadas pela cidade e
transferiu seus habitantes para a Restinga, localizada à cerca d 22 Km de
Porto Alegre. A paisagem caracteriza-se pela presença de cavalos, carros
de boi e pelas figueiras preservadas pelos moradores que dão ao local uma
impressão de zona rural, muito embora em sua avenida principal ocorram
acidentes e atropelamentos como em qualquer outro bairro da cidade.

Hoje, o bairro Restinga é um dos mais populosos da cidade,


apresenta grande vulnerabilidade social. Está entre os bairros onde
ocorrem o maior número de homicídios. A ambivalência das políticas de
urbanização dividiu a Restinga em duas áreas: a Nova e a Velha, separadas
pela avenida principal do bairro.

O espaço denominado Restinga Nova, é relativamente estruturado,


possui ruas calçadas, rede de água e esgotos, iluminação e apresenta
problemas de segurança comuns a um bairro de periferia. Já na Restinga
Velha, a infra-estrutura é muito precária, pois a maioria dos loteamentos
são invadidos. A principal característica deste lado do bairro é a intensa
atividade de grupos que compram e estocam drogas. A população
envolvida nessa atividade é composta principalmente por jovens entre 10

*
Oficial da Brigada Militar do Estado do Rio Grande do Sul.

603
A atuação da polícia no bairro Restinga

e 24 anos de idade, que se submetem a esse tipo de atividade por absoluta


fala de opções e oportunidades. Esses grupos controlam seus territórios
porque estão fortemente armados. Seus integrantes são da própria
comunidade e, por isso, acabam sendo protegidos pela chamada Lei do
Silêncio.A presença do Estado no local é quase inexistente e a comunidade
acaba se apoiando mais nos traficantes do que no próprio Estado para a
resolução de seus problemas.

O bairro possui uma territorialidade espacial e social marcada pela


diferença e pelo estigma. A comunidade devido a esses fatores é organizada
e luta por melhores condições de vida, criando mecanismos de proteção
constituídos por cidadãos que trabalham com hip-hop, mídias alternativas,
promotoras legais populares, enfim, atividades alternativas que contribuem
para melhor ocupação do tempo e diminuição da violência no bairro. Todas
essas iniciativas têm o apoio e participação dos integrantes da 2ª Cia do
21ºBPM, seja em debates ou prestando segurança nos locais dos eventos.
Da mesma forma, esteve sempre presente na construção de alternativas
para a melhoria das condições de vida do bairro, tais como a manutenção
do atendimento da unidade de saúde 24 Hs., pois a ULBRA ( Universidade
Luterana ) que prestava esse atendimento, retirou suas equipes por discordar
das condições de trabalho impostas pela prefeitura. Na ocasião, as
associações de bairro, o 21º BPM, através da 2ª Cia, a polícia civil, o poder
legislativo(representado por vereadores)e até o Poder judiciário
(representado pela juíza ) uniram-se e, num curto espaço de tempo
conquistaram a permanência do atendimento 24 Hs., não com a ULBRA,
mas com o Hospital Moinhos de Vento.

O que se quer mostrar com esse exemplo é que a 2ª Cia do 21º


BPM desenvolve seu trabalho promovendo ações conjuntas tanto com a
comunidade quanto com os demais órgãos do Estado presentes na
comunidade. No entanto, quanto às ações de repressão ao crime, a 2ª Cia
sofre todas as limitações impostas pela conjuntura atual, e pouco ou nada
contribui para a melhoria das condições de segurança desta comunidade.

Nesse sentido, a Conferência das Nações Unidas sobre


assentamentos humanos – A Habiat 2 - (1996), ocorrida em Istambul
(Turquia ), foi a última promovida pela ONU que iniciou em 1990 uma
Cúpula Mundial sobre a Infância , Cúpula da Terra ( Rio 92 ), conferência
sobre direitos humanos (Viena 93),Conferência sobre população e

604
Carmen Isabel Andreola

desenvolvimento(Cairo 94), Cúpula Social Mundial(Copenhague 95) e a


Conferência Mundial sobre Mulheres(Pequim 95). O evento tentou
encontrar soluções para problemas de assentamentos humanos
sustentáveis. Dentre os indicadores apontados está : - “A compreensão
sociológica da função social da polícia no agregado urbano.”

A função social da polícia precisa ser ampliada. A sociedade


reivindica uma ação mais decisiva no atendimento de suas necessidades
básicas de segurança.

Para exemplificar, vejamos um atendimento realizado pela 2ª Cia, a


captura de um foragido por porte ilegal de armas, na Restinga Velha. Ao
analisar o histórico da ocorrência, não se pode deixar de fazer o seguinte
questionamento: - a captura deste indivíduo melhorou as condições de
segurança daquela comunidade? O indivíduo em questão tinha 17 anos,
morava com a avó que por sua vez abrigava no casebre a neta com um
filho de 07 anos. Nenhum dos moradores da casa tinha emprego. O
sustento de todos era mantido por esse adolescente , que prestava serviços
a um dos grupos de traficantes da vila. Em que pese a ação ilegal cometida
pelo adolescente, porte ilegal de armas, a ação da polícia foi eficiente, mas
não eficaz, na medida em que esse adolescente é substituído em sua função
por outro, pois há recurso humano suficiente para este fim. Por outro
lado, o grupo familiar ao qual o adolescente pertence, fica sem condições
de suprir suas necessidades básicas, uma vez que o Estado é ausente
Verifica-se nesse exemplo também, a evidente desagregação familiar
presente nessa e na maioria dos casebres da vila . Não há mais a presença
do pai e da mãe. A avó abriga os filhos dos filhos e a cada geração, as
oportunidades diminuem e a chances de exclusão aumentam.

Verifica-se também que a opção feita pelo adolescente visa tão


somente a suprir as necessidades mínimas de sobrevivência do grupo
familiar, a julgar pelas condições precárias de moradia em que vive.

Assim, verifica-se que mesmo desenvolvendo um forte trabalho


comunitário no bairro Restinga, a 2ª Cia de Polícia Militar, no atendimento
de ocorrências e repressão ao crime, segue os padrões adotados pelos
demais batalhões.

A atividade policial, como é atualmente concebida, é relativamente


nova, especialmente se levarmos em conta que o exercício do policiamento

605
A atuação da polícia no bairro Restinga

ostensivo, planejado e executado pela Polícia Militar, ocorreu no final da


década de 1960. A Polícia Militar ainda busca firmar-se no exercício desta
atividade e, acima de tudo, necessita construir uma identidade própria e
definir claramente suas funções.

É urgente a necessidade de mudança. As corporações precisam


organizar e planejar estrategicamente suas práticas policiais. É preciso
pensar em ações conjuntas com os demais órgãos do Estado, e que dão
suporte à segurança pública . É preciso unificar condutas e informações
para o enfrentamento da violência, com qualidade e eficácia, assim
poderemos estar melhorando as condições de vida dessas comunidades.

Referências Bibliográficas
Gonçalves, Cleber J. S. Violência urbana e a função social da polícia - Uma rediscussão sociológica
necessária. Revista Unidade, nº 3, p 46 a 56, Jul/ Set 1999. Dal Molin, Fábio – Resumo da tese
Redes sociais micropolíticas da juventude UFRGS – 2007
Mattona, Cláudio e outros. O custo da violência urbana tem relação com a eficiência da
polícia?. Revista Unidade. Nº 61- p.05 a 18 –nº Jan/abr 2007.
Guimarães, Luiz Antônio Brenner. A prefeitura de Porto Alegre e a Segurança Urbana. Pág 06 a
09. 2ª impressão. Nov de 2004

606
ANEXO
RECOMENDAÇÕES PARA O USO DIDÁTICO DESTE LIVRO

Esta publicação consiste prioritariamente num livro didático que


serve como referência pedagógica para o Curso de Liderança para o
Desenvolvimento Institucional Policial. Por se tratar de uma ferramenta
didática, recomendamos observar a metodologia adotada como sugestão
para a sua utilização como recurso de aprendizagem.

A iniciativa do Curso destaca o papel central de três importantes


protagonistas institucionais relacionados à temática da segurança pública:
o Estado, a Polícia e a Sociedade.

Nesse contexto, buscou-se desenvolver um novo conceito


metodológico baseado num processo didático-pedagógico de orientação
construtivista que ambiciona aproximar o universo das teorias científicas
sobre segurança pública da prática institucional desenvolvida pelas
organizações policiais na América Latina.

O público principal deste curso é composto por policiais que


exercem ou já exerceram alguma função dirigente e integrante de
organizações da sociedade civil que desenvolvem projetos junto às polícias.
Foi organizado para funcionar durante o período de cinco dias, com
quarenta horas de carga horária, de acordo com a seguinte estrutura:
a) conferência de abertura versando sobre os principais
desafios da reforma das instituições policiais na América
Latina;
b) oficinas temáticas sobre os conteúdos programáticos
pré-selecionados e tratados nos artigos e comunicações
elaborados por pesquisadores e especialistas da América
Latina1;
c) painéis sobre temas contemporâneos e de interesse
com a participação de especialistas previamente convidados;
e
d) apresentação dos “casos” elaborados e relatados por
policiais.

607
Anexo

O desenvolvimento do conteúdo programático priorizou a


construção dialógica do conhecimento através das oficinas temáticas nas
quais os seus integrantes, especialmente os policiais, assumem um papel
de protagonistas na condução e produção das reflexões. Por esta razão,
todo o material pedagógico publicado neste livro é encaminhado com
uma razoável antecedência aos participantes para que tenham tempo
suficiente para uma leitura crítica, elaboração de notas, observações, etc.

As oficinas temáticas são conduzidas por um moderador(a)


responsável, no primeiro momento, por apresentar os principais pontos
contidos nos artigos e comunicações relacionados ao tema explorado.
Em seguida, o moderador(a) propõe um breve conjunto de indagações
sobre a temática que será debatida pelos grupos de trabalho, constituídos
por policiais e representantes da sociedade civil. Encerrada a discussão
dirigida, na última etapa da oficina, os diversos grupos constituídos expõem
suas conclusões que serão organizadas e sistematizadas para divulgação
ao final do curso.

Outro espaço fundamental de intercâmbio de conhecimentos e


experiências se dá na apresentação dos casos propostos pelos policiais,
que são organizados em blocos de duas a quatro apresentações por vez,
de acordo com a afinidade temática entre eles. Esta parte do curso é de
fundamental importância, uma vez que constitui um espaço aberto e plural
de convivência e articulação das reflexões saídas das oficinas com as
questões concretas vividas pelos integrantes do curso em suas atividades
profissionais. Tais apresentações são moderadas pelos próprios
participantes do curso e acompanhadas por debates.

Por fim, são organizadas visitas técnicas a programas, experiências


em curso, em conformidade com as questões tratadas e que atendem ao
interesse e curiosidade dos policiais. Estas visitas marcam o encerramento
do curso, momento em que os participantes recebem os seus certificados
e a inscrição como membros da Rede de Policiais e Sociedade Civil na América
Latina.

Após a realização do curso, os policiais e representantes da


sociedade civil continuam o processo de interação em ambiente virtual
dentro do portal www.comunidadesegura.org. Neste espaço são
promovidos regularmente fóruns e chats, que priorizam debater temas

608
Recomendações para o uso didático deste livro

escolhidos sob consulta e que refletem o interesse imediato dos integrantes


da Rede. Ao longo de 2007, por exemplo, foram priorizados os seguintes
temas: a relação entre polícia e juventude, a atuação policial em favelas e o
fenômeno das forças paramilitares e/ou milicianas na América Latina.

O processo de troca e construção de saberes e práticas, inaugurado


com o curso e mantido pelas interações virtuais, também se beneficia de
um programa de visitas de estudos e de intercâmbio institucional entre
policiais que compõem a Rede com duração de uma semana. No ano de
2007, os selecionados puderam conhecer instituições policiais,
organizações da sociedade civil, além de universidades e centros de
pesquisa nos países visitados2.

O acervo de conhecimentos e experiências profissionais de todos


os participantes constituiu o principal recurso de intercâmbio e de
aprendizagem explorado nesta proposta metodológica.

Por esta razão o curso pretende representar muito mais do que


uma proposta tradicional com vista à capacitação profissional. Visa ser a
expressão de um espaço participativo de reflexão crítica, discussão e
aprofundamento de questões que dialogam diretamente com as distintas
vivências, visões e experiências dos líderes policiais selecionados.

Esperamos, efetivamente, que esta contribuição sirva como subsídio


para futuros cursos promovido pela Rede, e também como material de
trabalho disponível a todos os policiais, centros de pesquisa, universidades
e organizações da sociedade civil que o desejarem utilizar.

Notas
1
Listados na apresentação deste livro.
2
Os roteiros destas visitas são organizados com a colaboração dos membros da rede que são
visitados e que atuam como cicerones de seus pares. Como contrapartida, os policiais selecionados
para o intercâmbio realizam palestras, conferências etc. Assim como elaboram um diário de
viagem com suas observações e, ao final da viagem, produzem um breve relatório técnico de suas
impressões, que é distribuído a todos os integrantes da Rede.

609

Anda mungkin juga menyukai