Havia uma pequena multidão em volta da cena. Um rapaz de estatura mediana. Cabelos
escuros e pele morena. Suas roupas acusavam que tinha por volta de 20 e poucos anos. Alguém
bem novo, e certamente imaturo para a decisão que estava tomando. Não era fácil ficar
olhando para aquele que ameaçava pular a qualquer momento, mas todos queriam assistir o
final da história.
Será que ele irá pular? Será que já dá para morrer dessa altura? O que o levou até lá? O
que será que ele está passando? Onde está sua família? Muitos questionavam. Alguns o
condenavam: “Esse moleque não deve ter qualquer motivo para estar ali. Provavelmente este
rapaz só quer aparecer”. Contudo, não houve uma só voz, ou pensamento, que se propusesse a
colocar sua vida naquele dilema a fim de solucioná-lo. Todos como espectadores da novela da
vida.
Seu rosto, todavia, não expressava qualquer sentimento. Não havia uma gota de suor.
Um tremor de nervosismo. Nem o vento parecia tocá-lo. Ele deveria estar muito longe dali. De
repente, a visão tranqüila do menino, poderia assim chamá-lo, foi substituída pela chegada da
ambulância, da polícia, e claro, dos jornais. Todos queriam salvá-lo. Todos queriam aparecer. A
imprensa. Os policiais. Os bombeiros. A população. O menino. Se for atenção que ele queria,
conseguiu.
Todo o aparato estava preparado. Ou deveria ser chamado de circo. Depende claro, do
ponto de vista. As negociações começaram. O megafone tentava de alguma maneira transmitir
serenidade e confiança para que o menino pudesse desistir que qualquer idéia que pudesse
estar tendo. Entretanto, era complicado entender diante do barulho e distorção do som.
Enquanto isso, alguns homens subiam as escadarias do prédio para uma tentativa de abordar o
menino, antes que ele pulasse.
Mas havia algo esquisito. Algo inusitado, diferente pode-se dizer. Não houve por
qualquer momento indício algum de que o menino pularia. Não havia uma respiração ofegante
para ser ouvida ou percebida, não houve movimentações corpóreas nem passos para frente, se
quer para trás. Era uma imagem estática. Alguém mais o estava observando. Aquilo não parecia
uma ameaça para a vida do menino. Aparentava mais um momento de reflexão, contemplação.
A busca pela vida, talvez, vida que ele estava prestes a perder.
De maneira quase que imperceptível, havia uma lágrima escorrendo de seus olhos.
Quando ela finalmente foi tocada pela luz do sol, que estava escondido atrás de uma nuvem
percebeu-se que em sua boca ele sentiu o sabor das águas que estavam armazenadas dentro
dele. Uma mistura de sal e minerais. Uma mistura de sabor e de nada. E o percurso caminhado
lentamente pela lágrima, foi o tempo suficiente para que eles o agarrassem com força pelos
braços, o puxassem de volta para a laje do prédio, e o tivessem em presumível segurança.
Envolto em uma manta azul, ele foi colocado apressadamente em uma ambulância e
certamente levado para o hospital mais próximo. Todos foram dispersos pelas autoridades
responsáveis. - “Não há mais nada para ver aqui”, - “Vamos pessoal, o show acabou”. E assim
todos se foram. De volta aos seus cuidados do dia-a-dia. Seguindo com sua própria história.
Atrás de resolver os problemas que os mantêm vivos. Acredito que sem eles, não haveria vida
para ninguém. Seriamos todos tão entediados, ao ponto de ficar em pé na beirada de qualquer
precipício, buscando no horizonte uma motivação qualquer para continuar. Imagino que o
menino estava neste lugar.
Porém, jantar não foi fácil. Não se falou em outra coisa em nossa mesa. Algo sobre esta
geração estar perdida, pais que não sabem educar os filhos, uma rápida e superficial
preocupação comigo e com minha irmã, é óbvio, nenhum pai ou mãe quer ver seu filho
aparecendo no jornal como um maníaco suicida. O que não iriam pensar deles? Quanta
ingratidão seria da nossa parte agir desta forma. Mas no fundo, não nos preocupávamos um
com os outros. Quatro desconhecidos, e um cachorro demasiadamente mimado por uma
família carente.
Enquanto tentava dormir, na madrugada fria e escura de um quarto úmido, repassei vez
após vez aquele momento. E revirei cada pergunta, cada pensamento que tive. Pergunto-me
quão gostosa deve ser a sensação de ficar a mercê, à dependência de um salvador incerto que
possa evitar que você abra, subitamente, mão da sua própria vida. Ou será que era algo mais
profundo do que isso. Ou será que... E se... Dormi com a sensação de ter desvendado todas as
possíveis perguntas, e com a insatisfação de não ter sido capaz de concluir qualquer resposta.
Período de provas estava chegando. Meus amigos mais próximos e mais ausentes nas
aulas estavam desesperados correndo atrás de conseguir as anotações de outros alunos,
querendo aprender a matéria de meses em alguns dias, era a chance de antecipar as férias e
voltar à curtição que, para mim, nunca parava.
Engraçado foi ver, no final, que todos ficaram de prova final. Eu, por outro lado, estava
me divertindo saindo com as amigas mais dedicadas e bonitas, que assim como eu, haviam
passado para o próximo semestre. Íamos para os mais diversos lugares. Era muito bom. Ser
rodeado de mulheres atraentes. Alguns me olhavam com inveja imaginando com qual delas eu
me relacionava, ou convenhamos, ficava. Outros me achavam um homossexual por não me
aproveitar da situação. Eu adorava preencher com sorrisos forçados e programas chatos o vazio
que havia em mim. Não havia problema nisso.
Alguns dias depois estávamos todos juntos. Os amigos tinham passado e a turma estava
completa. Fizemos os ajustes. Combinamos dia, hora e local para irmos a nossa segunda viajem
para a Ilha das Cruzes, que ficava a uns trinta minutos da cidade até a balsa, e mais quatro
horas de um fascinante rio marrom de águas doces, misterioso e convidativo para a crença nas
lendas que o promoviam. Seria memorável.
Na data acertada, nos despedimos de pai e mãe. Colocamos as malas nos carros. Cada
um com o seu grupo até a balsa. Brincamos a viagem toda, que acabou por demorar mais do
que esperávamos. Chegamos fora de horário para balsa. O radiador aqueceu demais. Um pneu
furou após alguns quilômetros na estrada de terra após a travessia. Porém tudo foi levado na
esportiva. Tudo virava piada.
Quando chegamos, as meninas logo correram para a praia. Nós, homens, claro, ficamos
com o trabalho pesado. Armar as barracas e gelar as cervejas. Divertido? Claro que sim.
Embriagamos-nos por dois dias. Beijamos. Brigamos. Beijamos de novo. Brigamos mais um
pouco. E curtimos cada instante daquele descanso. Fizemos promessas sobre amizades. Sobre o
futuro. Sobre esquecer o que tinha acontecido, e por principal, não contar nada. A ninguém.
A Ilha das Cruzes tinha esse nome esquisito porque fora descoberta por padres na época
da evangelização dos índios, e para tal, eles haviam construído depois de longos anos, uma bela
igreja, bem simples, mas grande em tamanho, com uma ainda mais simples praça na frente,
que desfrutava de alguns bancos para sentar e a copa de bonitas árvores como um refugio do
forte sol que fazia todos os dias. E é claro, como todo interior, aquele campo de futebol, com
aquela grama que coça mais do que qualquer outra coisa e traves sem redes. O gol, por vezes,
era visto por quem alegava ter feito e por mais ninguém. Normal.
Nada na vida, porém, ocorre como nós gostaríamos. Enquanto eu me apaixonava por
uma garota nova na turma, meus pais a cada dia que passava se desentendiam mais. Não se
toleravam mais. Nossa casa virou uma zona de guerra. Uma área de risco. A partir de então,
evitei chegar sem casa sem sono. Ficava na rua para chegar a minha cama, fechar os olhos e
dormir. É terrível ver pai e mãe assim. Estava tudo tão bem.
Como um vento frio que corta a alma no dia mais gélido de inverno, fui acometido com
a dor do divórcio entre os meus pais. E impactado pela descoberta de saber, que meu pai,
homem de Deus e da igreja, sempre envolvido em inúmeras atividades, havia se envolvido com
uma garota quase que da minha idade. Do mesmo grupo de jovens que vez ou outra eu
freqüentava. Eu já não tinha muito um bom conceito acerca de Deus. Daquele momento em
diante, ele passou a ser a imagem de meu pai: ausente, traidor, irresponsável, falso, superficial,
que nos julgava e condenava, e cobrava resultados inalcançáveis, para ocultar, claro, sua
hipocrisia e pecados.
Mas quem não passa por isso. Sou forte. Isto não irá me abater. Tenho uma mãe
depressiva agora e uma irmã a beira da descoberta de coisas ruins, por influência de suas
amigas. E eu tenho que aceitar. Que engolir. Minhas tentativas de persuadi-la são todas em
vão. Não tenho nenhuma moral com ela depois do que nos aconteceu. Nossa fragilidade foi
substituída por uma frieza tamanha. Nosso amor já inexistente reduzido a apatia, tédio,
superficialidade profunda, consideração tão falsa a ponto de dar enjôos, e por ai vai. Éramos
conectados por alguma coisa antes. Famílias sempre dão um jeito, até deixarem de serem
famílias.
Formado, arranjei um bom emprego. Mesmo não sendo fixo, posso pagar as contas e
ficar tranqüilo final do mês. Não que ganhe muito, mas conseguimos reduzir as despesas depois
do enterro da mamãe. Não doeu. Não senti. Não chorei. Apenas consolei os demais membros
da família com palavras que não acredito. Ao menos tenho minha irmã de volta.
Certo dia, ao andar pela avenida principal em direção ao Tribunal de Justiça da cidade,
fui surpreendido com a repentina lembrança do menino, e das cruzes, diante da Biblioteca
Municipal. Não que houvesse uma ligação. Ou talvez tivesse. Mais interessante foi notar, que
após tanto tempo eu estava sentindo alguma coisa. Fui encorajado de alguma forma a subir até
o teto daquele prédio. Eu precisava sentir alguma coisa.
Minha coragem foi tomada pelo medo ao passar pelos seguranças, pelas pessoas, pelas
salas e até a escada de emergência que levava até o teto. Quando lá cheguei, senti o vento
levando embora a armadura impenetrável que eu havia criado. Senti frio, senti calor. Senti a
morte de minha mãe, e em lágrimas ajoelhei-me no chão.
Mais calmo, tomei coragem, e fui até o parapeito. Agora um pouco mais alto após
aquele ano em que o menino se colocou ali. Subi lentamente, com todo cuidado, esperando
não deslizar. Eu precisava sentir alguma coisa. Agora sim, a adrenalina dominava meu peito, a
minha vida inteira passava diante dos meus olhos. Uma emoção incontrolável. Todos os
sentidos aguçados. Eu era o rei do mundo.
Não havia nada no horizonte. Nem prédios. Nem postes. Nem carros. Nem a praça. Nem
o chafariz. Não havia pessoas. Não havia lembranças. Apenas um momento eterno em que a
vida e a morte se fundem e se entrelaçam em amor. A contemplação do fim e do início. Do tudo
e do nada. O medo e a coragem lutam entre si. O vazio toma conta de tudo. Uma voz convida:
“Pule!” Outra diz: “Volte!” E no fundo escuto: “Este é o seu momento. Faça o seu melhor show.
Mostre-lhes sua melhor performance.”
Eu poderia ter descido a qualquer momento. Após um inigualável estado de frenesi veio
à dúvida sobre a minha sanidade. A dúvida quanto o que eu realmente estava sentindo. A
armadura voltava a me fechar para os sentidos. O mistério era desvendado. Eu não conseguia
sentir. Lembranças escaparam de minhas mãos. Meu coração não batia. Diante do dilema
resolvi entregar minha vida nas mãos do destino, ou da graça, ou de Deus. Eu pularia e
quebraria por fim aquela armadura. Eu iria sentir.
Então aconteceu. O prédio sob os meus pés ruiu. O céu escureceu. Fiquei cego por um
momento. “Não pode ser”, eu me dizia. Com todas minhas forças eu lutei, e por fim descobri,
eu não sabia pular. Meus braços foram fortemente agarrados e todo o meu corpo sentiu a
gravidade o puxando para baixo. Era o fim do meu espetáculo. Uma lágrima então tocou os
meus lábios. Eu sabia. Eu não sabia pular.
Quando recebi alta, andei lentamente pelos corredores do hospital, ansiando chegar ao
portão de saída do hospital. Não rui resgatado por ninguém. Minha irmã tinha vergonha de
mim. Ou me convenci disso para justificar sua ausência. Meu pai estava morto para mim há
muito tempo, desde sua separação com minha mãe.
Perdido, andando como um moribundo, sem destino, sem propósito, sem forças para
recomeçar o que havia sido consumado no dia anterior, resolvi sentar-me junto ao banco na
praça de grama verdade e vendas de água de coco para descansar.
Sem avisar, um homem barbudo sentou-se ao meu lado, e terminou a minha história,
naquele dia, assim:
O que mais é preciso para que eu te convença. O que eu preciso fazer para que você
creia em mim? É por causa de um erro, tropeço, falha que você vai desistir? Não compare seu
pai comigo, nem a você mesmo comigo, nem me limite aos seus pensamentos. Eu te amo e
nada irá separar você de mim. Nem dúvidas ou certezas. Nem trevas nem luz. Eu sou Deus e
não sou limitado ao que pensam sobre mim. Antes, sou eu quem sonda e quem julgará cada
pensamento.
Creia em mim, a partir de agora. Você está aonde eu posso te falar e você irá me ouvir.
Deixe das preocupações deste mundo, da culpa, da depressão, da soberba, das vaidades, da ira,
da raiva, da injustiça, da injúria, da torpeza do vosso coração e seu ânimo dobre. Ainda posso
lhe perdoar setenta vezes sete. E a contagem só está começando.
Creia em mim, tão somente, e provarás das águas que eu tenho para que bebas e jamais
tenhas sede, do alimento que comerás e sempre ficarás satisfeito, a saber, todas as coisas
cooperam para o bem daqueles que me amam. Entrega-me o teu coração, e o mais te farei”.
Sem quase entender, observando a doçura e a ternura de olhos tão machucados pela
vida, ressentidos pela dor e cheio de amor a transbordar, aprendi que se não sabia pular é
porque não deveria. E se tudo me aconteceu, era para que em tudo este homem fosse
lembrado. Seu nome era Jesus. E nunca conheci alguém tão sincero e leal assim.
Logo, em dias de graça, tais quais estou hoje, na busca infindável de sentir alguma coisa,
vivo pela graça da aceitação e do amor próprio, amando a Cristo e o consolidando sobre a
minha vida, para que, ao me encontrar outra vez com a dor da solidão, encontre nestes braços
o colo restaurador que desfrutou São João.
Amém.