Introdução
A um tempo em que saúdo o coordenador eleito do Curso de Licenciatura em
Artes Cênicas, venho também tentar contribuir para a reflexão sobre as questões
pertinentes ao nosso trabalho conjunto.
A pergunta extremamente relevante que ouvi do Prof. Micael Cortes foi sobre o
que deveria saber um professor de teatro formado por nosso curso? O presente artigo,
endereçado à comunidade do Curso de Artes Cênicas da UFAC, tem o objetivo de uma
provocação crítica e uma tentativa de reflexão sobre os caminhos que a formação de
professores de teatro poderá tomar em nosso estado.
Nós, do Curso de Licenciatura em Teatro da UFAC, somos responsáveis pelo
futuro do ensino de teatro nas escolas em nossa região, e pela reflexão sobre como
deverão ser os professores dessa área no futuro. Nossa responsabilidade não se restringe
à formação dos professores de teatro, mas chega às crianças e adolescentes que estarão
dentro das salas com nossos egressos. Devemos a eles a investigação radical sobre o que
fazemos, sempre “observando o observador”, como sugere o sociólogo Pierre
Bourdieu1, sempre nos questionando a cada passo.
Meu objetivo é demonstrar que o teatro é uma prática social autônoma, com seu
cabedal de conhecimentos práticos e teóricos, relevância como atividade sócio-
econômica (e, obviamente, cultural), reconhecimento legal e diversas características
distintivas em relação a outras atividades, notadamente em relação às especificidades da
academia. Nossos alunos deveriam passar por um mergulho profundo nesse universo
específico durante sua formação. Ao contrário, essa experiência está sendo evitada em
seu percurso acadêmico.
1
Bourdieu, P., "L'objectivation participante", Actes de la rechenhe en sciences sociales, Nº 150, 2003, pp. 43-58.
Uma explicação
A prática do questionamento daquilo que está estabelecido, tido como certo pela
maioria das pessoas, é uma tradição do teatro. Muito poucos artistas entraram para a
História do Teatro por ter seguido as tendências dominantes em sua época. Quase todos
aqueles cujos nomes lembramos até hoje foram revolucionários, desde Téspis e Ésquilo.
Grotowski enxerga o teatro como “um lugar de provocação”, e pergunta, com a resposta
na ponta da língua: “Por que nos preocupamos com arte? Para cruzar fronteiras, vencer
limitações, preencher o nosso vazio – para nos realizar.“ 2
O teatro sempre foi uma arma3, e uma ameaça aos governos autoritários,
justamente por essa tradição do palco como espaço dedicado ao homem inconformado.4
É que a praxis do artista de teatro, que exige o entendimento das situações sociais
representadas, leva quase sempre ao questionamento. Nesse espírito, honrando os meus
mestres e as gerações de mestres que os antecederam, devo tentar conduzir uma reflexão
radical sobre práticas que se tornaram parte do nosso cotidiano, que acabamos
cristalizando, e muitas vezes relutamos em abandonar.
Não devemos temer esse questionamento, mesmo que exponha nossas falhas. A
busca da excelência SEMPRE mostra que não fazíamos nosso trabalho bem o
suficiente.
A busca da verdade pressupõe o apreço ao contraditório. A divergência somente
ameaça aquele que quer impor suas ideias e sua vontade. Idealmente, é o diálogo
conflituoso que deveria levar ao aperfeiçoamento. Digo idealmente, pois a comunicação
humana não conseguiu ainda resolver certos dilemas: da apropriação e distorção das
palavras e dos conceitos, da superposição dos afetos à racionalidade, da utilização de
estratégias de violência simbólica para invalidar o pensamento discordante. O prazer da
teoria é o prazer de tentar superar esses dilemas.
Um alerta
2 GROTOWSKI, Jerzy, Em Busca de um Teatro Pobre. Civilização Brasileira, Rio de Janeiro 1971. pp 8
3 BOAL, Augusto. Teatro do Oprimido e Outras Poéticas Políticas. Civilização Brasileira, Rio de Janeiro
1983.
4 Eugenio Barba escreve que "o nosso ofício é a possibilidade de mudar a nós mesmos e desse modo mudar a
sociedade" . (BARBA, 1991)
O sociólogo francês Pierre Bourdieu redefiniu o esquema tradicional da
lingüística, superando o modelo então consagrado ‘emissor-meio-mensagem-receptor’.
Para Bourdieu a comunicação acontece como um mercado de trocas simbólicas e
lingüísticas onde a mensagem só é comunicada, fechando assim o ciclo, quando haja
demanda para os bens simbólicos e lingüísticos (oferta simbólica) do emissor5. Nas
sociedades mais hierarquizadas e menos meritocráticas esse fenômeno pode ser
devastador para o pensamento crítico, impedindo o conflito construtivo de idéias pela
dificuldade de obter demanda para a legitimidade simbólica de emissores que não
pertençam ao círculo superior da hierarquia. No Brasil isso infelizmente acaba
acontecendo algumas vezes dentro das universidades, que deveriam ser um templo para
a confrontação intelectual. Cada um ‘puxa a sardinha’ para seu lado, adotando uma
posição que garanta seu espaço de poder (simbólico e material), e tenta invalidar o
pensamento contraditório através de artimanhas nada científicas, que eu não titubeio em
categorizar como violência simbólica.
Posso enumerar, como uma sinalização para meus leitores que possa ajudar sua
orientação no debate que, espero, se seguirá, as armas mais utilizadas atualmente,
visando à conquista do domínio político, livre de qualquer contestação crítica:
Academia e Teatro
Em minha opinião a academia vem reconceituando a atividade teatral em
6 Mais uma vez, a referência é o sociólogo francês Pierre Bourdieu, e o conceito aparece em várias de
suas obras.
é garantir que a educação não se afaste da realidade, passando a ensinar aptidões
desprovidas de significação ou função social. A prática social do teatro não deveria
nunca ter sido perdida de vista, mas foi o que aconteceu quando nossos “doutos” se
debruçaram sobre o perfil do ensino de teatro nas escolas. A legislação, duramente
conquistada, que definia as atividades a partir de sua importância no sistema sócio-
econômico em que estavam inseridas, e de onde surgiram as especificidades que
fundaram o seu campo específico, foi ignorada.
No modelo vigente de curso de licenciatura em artes cênicas o futuro professor
parece ser preparado para ser o “festivo” do estabelecimento de ensino. A expressão-
chave utilizadas nos PCNs (Parâmetros Curriculares Nacionais) e nas obras dos mais
importantes nomes da área de pedagogia do teatro no Brasil de hoje é JOGO. Seja jogo
dramático, jogo teatral, simbólico ou de faz-de-conta, de qualquer maneira o conceito,
atrelado a uma noção do que seria teatro que se opõe muitas vezes às características
distintivas do teatro, torna-se extremamente vago. Nesse contexto, a formação dos
professores para as atividades práticas da sala de aula não pode ser apoiada por um
corpus realmente eficiente de técnicas, por não ser reflexo de uma prática social
autônoma. A amplitude absurda do conceito de jogo faz com que possamos utilizá-lo
em absolutamente todas as atividades sociais humanas. Embora existam tentativas de
“tornar mais precisos alguns dos conceitos que fundamentam a pedagogia teatral” 7, na
realidade da escola brasileira não vai importar realmente a definição - qualquer tipo de
jogo vai ser recebido pelos alunos como recreação, já que não reprova e não apresenta
dificuldades que deverão ser superadas com estudo ou trabalho duro - a não ser que
esteja apoiado por um corpo de procedimentos testados e aperfeiçoados na atividade
prática. Aliás, a tradição no teatro é de redefinir os conceitos a partir de sua utilização
no trabalho de ensaios, como uma forma de apropriação orgânica da teoria com
propósitos claramente práticos.
Essa diluição do conceito de teatro não acontece por acaso, é resultado de uma
disputa de poder entre a academia e a prática social do teatro. No campo teórico, essa é
uma briga boa, que tem um obscuro fundo ideológico que privilegia a formação de
peças de reposição para o mercado em detrimento do estímulo ao desenvolvimento da
autonomia do sujeito-estudante através da liberdade que se conquista ao dominar as
técnicas que permitam o processamento artístico da realidade. Na área de formação de
7 PUPO, Maria Lúcia de Souza Barros. Para Desembaraçar os Fios IN Revista Educação e Realidade
Jul/Dez 2005. Na verdade a autora acaba por apenas tornar mais precisos os conceitos de JOGO, e ignora
peculiaridades de qualquer prática pedagógica do universo especificamente teatral.
professores, a orientação que tem prevalecido leva os professores a saírem da
universidade sem qualquer conhecimento específico sobre teatro. Isso vai refletir em sua
atuação nas escolas. Os PCNs de teatro especificamente desestimulam o ensino de
qualquer técnica.
O que vai fazer um professor de teatro numa escola brasileira? Vai ser o
professor das aulas relaxantes, onde os estudantes não precisam aprender nada, pois
nunca serão reprovados por falta de conhecimento? Vai ser o portador de uma
autoridade artificial, só exercida quando o desrespeito de algum aluno se torna uma
afronta ao sistema coercitivo, de violência simbólica e domesticação, que é a escola8?
Como vai fazer para sua turma seguir os seus comandos, e realizar atividades com seus
corpos ativos, inter-relacionando-se com os outros alunos? Sem a autoridade orgânica,
proveniente do conhecimento sobre o teatro, como conseguirá liderar uma turma?
A prática do professor de teatro na escola tem muitas vezes mostrado que além
de umas poucas aulas onde parece sempre impossível levar as proposições além da
superficialidade das relações corriqueiras (um problema potencializado pela orientação
da utilização de jogos desvinculados da prática social do teatro), o professor vai
provavelmente preparar as festas que são uma mistura de rituais de afirmação de um
laço social (qual seja) com evento de marketing da escola. Entre suas tarefas habituais, é
bem provável que se incluam recortar bandeirinhas para a festa de São João e criar a
coreografia da quadrilha, além de uma ‘pecinha’ para o famigerado dia dos pais ou para
o Natal.
O professor de teatro se tornaria um recreador na escola? Precisamos de quatro
anos de curso superior para fazer isso? Mas a universidade não teria o objetivo de
estimular o pensamento crítico – e mais ainda um curso de teatro, pelos motivos já
expostos? Não seria desejável ter dentro das escolas artistas do teatro, treinados e
preparados para a tarefa da investigação crítica e artística da realidade?
Sempre que tive a oportunidade de exercer a função de professor de teatro na
escola, mesmo lidando com deficientes mentais, dediquei-me a ensinar as técnicas
consagradas, e a guiar os alunos a um mergulho no mundo do teatro. E os resultados
foram surpreendentes. As técnicas de concentração, consciência corporal e vocal,
integração de grupo, e mesmo aquelas relacionadas à interpretação de personagens (que
a prática facilmente demonstra serem um verdadeiro exercício de aceitação das
diferenças humanas), podem tornar-se uma maneira fantástica de incluir aqueles que
9 Eugênio Barba, Peter Brook e Grotowski ressaltam o papel fundamental do silêncio na transmissão dos
conhecimentos no teatro, apontando para a impossibilidade da transmissão cartesiana dos conteúdos.
de que essa investigação é corriqueira, e que geralmente quem se debruça sobre a
prática social do teatro chega a conclusões semelhantes.
Ortega y Gasset, em série de palestras depois editadas em livro com o título “A
Idéia do Teatro”10 ensina que
“a coisa chamada Teatro, como a coisa chamada homem, são muitas,
inumeráveis coisas diferentes entre si que nascem e morrem, que variam, que
se transformam a ponto de, à primeira vista, uma forma não parecer-se em
nada com a outra.”
Para alcançar a compreensão do que seria o teatro, ele averigua se não subsistiria
“em toda essa variedade de formas (...), mais ou menos latente, uma estrutura que
nos permite chamar a inumeráveis e diferentes indivíduos de ‘homem’, a muitas e
divergentes manifestações de ‘teatro’”.
Para ele “essa estrutura que debaixo de suas modificações concretas e visíveis
permanece idêntica é o ser da coisa.” Nessas diferentes modificações, Ortega y Gasset
identifica momentos de ruína e de plenitude, e alerta para a impropriedade de definir-se
algo a partir da observação de seu estágio de decadência, cujas estruturas não seriam
representativas do “ser” da “coisa” teatro. Sua reflexão leva à conclusão de que,
“quando falarmos agora de teatro procuraremos manter ao fundo e à
vista suas grandes épocas: o século V de Atenas com seus milhares de
tragédias e seus milhares de comédias, com Ésquilo, Sófocles e Aristófanes; os
fins do século XVI e inícios do XVII com o teatro inglês e o espanhol, com
Ben Jonson e Shakespeare, com Lope de Vega e Calderón, e logo, em seu
termo, com a tragédia francesa, com Corneille, Racine e a comédia de
Marivaux; com o teatro alemão de Goethe e Schiller, com o teatro veneziano
de Goldoni e a Commedia dell´Arte napolitana; enfim, tenhamos todo o século
XIX, que foi uma das grandes centúrias teatrais.
Dissemos que necessitamos manter à vista, como um fundo, tudo isto,
porque isso foi o Teatro ‘em forma’(...)”
Também o filósofo brasileiro Gerd Bornheim faz sua reflexão nessa mesma
direção:
"Precipita-se em erro insustentável quem pretende que a atividade
teatral constitua uma dimensão por assim dizer natural do
comportamento humano; tal ponto de vista, frequentemente afirmado,
deriva, justamente em seu exagero, de uma das criações mais soberbas
do espírito humano - o teatro e a paixões que ele sabe suscitar.
Acontece, entretanto, que aquela tese não resiste ao menor esforço de
inspeção nos acontecimentos históricos. O máximo que se pode
adiantar é que o homem - e isso vale, em suas formas mais primevas
Para que se torne aceitável que a academia se proponha a ensinar um “novo” teatro, com
um conceito mais abrangente da atividade teatral, teríamos que encontrar uma maneira
de transmitir as “convenções veiculadoras da comunicação11” adequadas a essas formas.
O problema é que sua novidade, e, em minha opinião, carência absoluta de suporte
como atividade socialmente relevante, não permitem que tenhamos acesso a um corpus
11 CF REF BORNHEIM, G
de técnicas e procedimentos suficientemente sólidos para a transmissão aos alunos. Se é
que existem os pesquisadores dedicados a isso.
Não estou fazendo um julgamento de valor. No campo da etnocenologia, a
performance é encontrada no comportamento socialmente expressivo, e identificam-se
elementos do teatro nos rituais religiosos e sociais. Muitos desses rituais são
extremamente interessantes e merecem estudos extensivos, a começar pela riqueza da
produção imaterial performática que podemos encontrar em nosso país, para não dizer
em nossa cidade. Na maioria das vezes prefiro ir a uma festa de candomblé do que a um
espetáculo de teatro. Mas será que deveríamos chamar um babalorixá para dar aulas de
interpretação? Não tenho dúvidas de que a experiência seria fascinante, mas me
pergunto quais seriam os efeitos dessa experimentação na formação dos professores, e
também se os valiosos conhecimentos do líder espiritual poderiam ser transmitidos fora
das especificidades do universo religioso.
A partir das teorias dos pedagogos, construiu-se uma idéia de “teatro
escolarizado” que subverte a própria idéia de teatro ao privilegiar alguns elementos da
atividade teatral em detrimento de outros. Mas será que o teatro, do jeito que ele existe
no mundo, teria algum efeito deletério na formação dos alunos?
Eu penso nas possibilidades que o teatro pode ter para a salvação de vidas.
Alguém duvida de que o sistema escolar pode massacrar muitas crianças e jovens? O
teatro dentro da escola tem que ter a função que ele tem na sociedade, de elemento
perturbadoramente libertário. Tem que ser o abrigo da reflexão mais radical sobre
identidade e massificação, e também do respeito à alteridade. O teatro tem essa tradição,
de abrigar o drogado, o excêntrico, o violento, o preguiçoso, e encaminhar para uma
disciplina ainda mais radical do que a da escola, porém muito mais doce e divertida.
Esse resultado se atinge através de uma formação ética e da transmissão das técnicas
consagradas pela tradição do teatro.
Eu me sinto um que foi abrigado e salvo. Tenho uma dívida, que só posso pagar
lutando para que o espaço do teatro, aquele a que tanto devo, continue existindo e possa
beneficiar outras pessoas. Como seria uma universidade voltada para o teatro? Meu
convite é para descobrirmos juntos, aprendendo a fazer teatro, cada vez melhor. Uma
coisa é certa: reinventar o teatro não vai funcionar. Precisaríamos de alguns milhares de
anos para aperfeiçoá-lo ao nível da ‘concorrência’. Que tal atrair os artistas de teatro
para a universidade ao invés de repelí-los?
BIBLIOGRAFIA
BARBA, Eugênio.
• Além das Ilhas Flutuantes. São Paulo: Hucitec, 1991
BOAL, Augusto.
• Teatro do Oprimido e Outras Poéticas Políticas. Rio de Janeiro. Civilização
Brasileira. 2005
BORNHEIM, Gerd.
• Prefácio a “Falando de Shakespeare” (HELIODORA, Bárbara. São Paulo,
Perspectiva 2007.)
BOURDIEU, Pierre.
• "L'objectivation Participante", Actes de la Rechenhe en Sciences Sociales, Nº
150, 2003
• “A Economia das trocas lingüísticas: o que falar quer dizer”. São Paulo:
EDUSP, 1996.
• “A Reprodução: elementos para uma teoria do sistema de ensino” Lisboa:
Editorial Vega, 1978
CARVALHO, Enio.
• História e Formação do Ator. São Paulo: Ática 1989.
GROTOVSKI, Jerzy.
• Em Busca de um Teatro Pobre. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1987.