ABSTRACT: The aim here is to analyse the way two official documents (the PNLD and the avaliation
document of the portuguese didactic book) construct the notion of citizen-subject. It is shown up that such
aspect isn’t considered in the same way by both documents.
0. Introdução
O objetivo geral deste ensaio é refletir sobre a importância atribuída à construção da cidadania
como meta da educação nacional, tendo como objetivo específico descrever o espaço destinado à formação da
cidadania: a) no Edital de Convocação para o PNLD 2005 (Programa Nacional do Livro Didático), na área de
língua portuguesa; e b) nas Fichas de Avaliação dos Livros Didáticos de língua portuguesa, segundo os
critérios do PNLD para a aprovação das obras a serem utilizadas.
Neste trabalho pretende-se considerar a maneira pela qual o Estado, discursivamente, constrói
as subjetividades, em específico, o sujeito-cidadão. Não se trata de descrever o que seria um cidadão, mas sim
a forma como o Estado recorta o sujeito que o constitui. Ao ler este trabalho, o leitor deve manter em mente
que não se deseja retratar o significado ou a verdade sobre cidadania ou ser cidadão, mas sim perceber que
Estado, em seu discurso sobre o ensino, constrói um modo de ser sujeito.
Uma questão crucial levantada pelo edital do PNLD 2005 é a necessidade de reverter o papel do
livro didático em sala de aula: ao invés de roteiro principal dos professores, ele deve ser tido como um
instrumento auxiliar na prática docente. Para que essa reversão seja possível, o edital salienta a importância
dos Parâmetros Curriculares Básicos Nacionais. Segundo o documento oficial do PNLD, um bom livro
didático “deve contribuir para a construção da ética necessária ao convívio social democrático”, uma vez que,
ainda em conformidade com o PNLD, “o objetivo último da educação escolar é “preparar o educando para o
exercício da cidadania” e “qualificá-lo para o trabalho” (Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional -
LDB, Título II, art. 3º )” (PNLD: p. 30).
Os princípios e critérios de avaliação, no que concerne aos critérios comuns, podem ser
eliminatórios ou classificatórios. A preocupação com a cidadania encontra-se entre os primeiros, que
caracterizam um padrão mínimo de qualidade para o ensino e que, se não correspondidos, justificam a
exclusão do livro. Os critérios eliminatórios gerais são: “(i) correção dos conceitos e informações básicas; (ii)
coerência e adequação metodológicas; (iii) contribuição para a construção da cidadania”. Além desses três, o
PNLD prevê mais quatro critérios essenciais: “(i) inscrição de uma única versão ou variante de uma obra; (ii)
ausência de erros de impressão e de revisão; (iii) adequada reformulação pedagógica de obras excluídas no
PNLD/1999 ou PNLD/2002; (iv) articulação pedagógica dos volumes que integram uma coleção didática.” (p.
31)
No que tange à questão da cidadania (terceiro critério), o PNLD 2005 postula o seguinte:
“Em respeito à Constituição do Brasil e para contribuir efetivamente para a construção da ética
necessária ao convívio social e à cidadania, a obra didática não poderá:
(i) veicular preconceitos de origem, cor, condição econômico-social, etnia, gênero, linguagem e
qualquer outra forma de discriminação;
(ii) fazer doutrinação religiosa, desrespeitando o caráter leigo do ensino público;
(iii) utilizar o material escolar como veículo de publicidade e difusão de marcas, produtos ou
serviços comerciais.” (p. 32)
Para a avaliação dos livros de língua portuguesa do 3º e 4º ciclos, o PNLD 2005 se baseia
teoricamente nos seguintes pontos:
Considerando que “os objetivos do ensino de língua portuguesa, nos dois últimos ciclos do
Ensino Fundamental (...) visam, fundamentalmente, a construção de práticas de linguagem essenciais à
cidadania”(p. 60), o PNLD 2005 estipula 7 critérios de avaliação do livro de língua portuguesa, que devem
relacionar-se a:
Quanto ao critério 3, o edital do PNLD 2005 considera que a preocupação com a construção da
cidadania significa:
“- não veicular, nos textos e nas ilustrações, preconceitos que levem a discriminações de
qualquer tipo, incluindo-se aí preconceitos contra variedades lingüísticas não-dominantes
(dialetos, registros etc.);
- não fazer do livro didático um instrumento de propaganda e doutrinação;
- estimular, sempre que possível, o convívio social e a tolerância, abordando a diversidade da
experiência humana com respeito e interesse;
- colaborar para a construção da ética democrática e plural (atitudes e valores), sempre que
questões éticas estiverem envolvidas nos textos e ilustrações.” (p. 62)
“ao final do Ensino Fundamental, a destinação do aluno é bastante variada. Embora fosse
desejável que o conjunto dos alunos buscassem o Ensino Médio, sabemos que, para muitos
deles, a terminalidade do ensino fundamental coincide com a saída da escola e o ingresso no
mercado de trabalho formal ou informal. Portanto, com uma prática de cidadania mais efetiva.
Este terceiro ponto intensifica as responsabilidades a cargo destes ciclos do ensino fundamental
e, no que tange à área de língua portuguesa, suas responsabilidades para com a formação do
leitor proficiente e crítico e do locutor capaz de uso racional, eficiente e democrático da
linguagem em s ituações privadas e públicas, que contribui para a formação das práticas cidadãs.
“ (p. 58)
“Por isso, as três preocupações centrais do ensino de língua materna, em todos os ciclos de
Ensino Fundame ntal, devem ser: a) o processo de apropriação da linguagem escrita pelo aluno,
assim como das formas públicas da linguagem oral — o mais complexo e variado possível; b) o
desenvolvimento da proficiência na norma culta, especialmente em sua modalidade escrita, mas
também nas situações orais públicas em que seu uso é socialmente requerido; c) a prática de
análise e reflexão sobre a língua, na medida em que se fizer necessária ao desenvolvimento da
proficiência oral e escrita, em compreensão e produção de textos” (p. 58).
- A coleção, no tratamento dos textos escritos e/ou imagens, é isenta de preconceitos que levam
a discriminações de qualquer tipo? (Sim/Não)
- A coleção, no tratamento dos textos escritos e/ou das imagens, é isenta de preconceitos contra
variedades lingüísticas não-dominantes (dialetos, registros etc)? (Sim/Não)
- A coleção é isenta de propaganda e doutrinação religiosas? (Sim/Não)
- A coleção aborda a diversidade da experiência humana com respeito e interesse, contribuindo
para a formação de cidadãos preparados para o convívio social e a tolerância? (Sim/Não)
- A coleção colabora para a construção da ética democrática e plural (atitudes e valores)?
(Sim/Não) (Ficha de Avaliação, 2004).
A seguir, com base no PNLD (e nos PCNs) passo a tecer algumas considerações críticas em
relação à maneira pela qual a ficha de avaliação opera com a formação da cidadania.
I – Quanto à distribuição dos critérios na ficha, os três eliminatórios – que incluem a formação
da cidadania – encontram-se todos na última página e restringem-se a oito perguntas, sendo cinco delas as
expostas acima. Primeira consideração: dada a preocupação com a formação da cidadania, conforme já
exaustivamente visto, a ficha ao mesmo tempo que a coloca como um item que pode levar à exclusão do livro,
também a resume a cinco perguntas, que parecem deslocadas das demais questões de avaliação postas pela
ficha. O lugar físico destinado à cidadania é a última página da ficha.
II – Percebe-se que, dentre os cinco quesitos relativos à cidadania, três deles – equivalentes a
60% do item da construção da cidadania – operam pelo negativo: trata-se de assegurar a formação da
cidadania pela NÃO vinculação de preconceitos em geral, preconceitos lingüísticos e de doutrinação religiosa.
Segunda consideração: parece que a preocupação com a construção da cidadania está associada a não
exploração de determinados temas considerados preconceituosos. Tendo isto em vista, questiona-se:
considerando que os alunos, em contexto real de uso da língua, estão imersos em leituras e práticas orais
atravessadas de preconceitos e de doutrinação religiosa, e isso não implica, necessariamente, um investimento
contra a formação da cidadania – muito pelo contrário! – qual é a relação existente entre temas e abordagens
que não tratem de determinados assuntos e a formação da cidadania? Essa relação não parece clara.
III – Quanto ao quarto quesito: “A coleção aborda a diversidade da experiência humana com
respeito e interesse, contribuindo para a formação de cidadãos preparados para o convívio social e a
tolerância?”, a preocupação em relação à formação da cidadania parece ser o convívio social, mesmo porque
esta é uma das sete capacidades que a escola deveria desenvolver em termos de formação da cidadania (cf.
PCN). Terceira consideração: a ficha parece associar o desenvolvimento da capacidade de convívio social (e
de tolerância) a temas diferenciados que abordam a diversidade humana de maneira respeitosa. Questiona-se:
em que extensão essa capacidade pode ser explorada por temas variados que vinculam respeitosamente
experiências humanas? O convívio social parece tratar, muito mais, de práticas a serem estimuladas entre os
alunos, constantemente, por meio de trabalhos de grupo, expressão oral, favorecimento de diálogos e de
comunicações etc.
IV – O quinto quesito revela uma preocupação com a construção de uma ética democrática e
plural. Quarta consideração: o que significa isso? De que maneira esse assunto pode ser avaliado pelo
analista? Trata-se de analisar, nos temas abordados, a questão da ética democrática? A ficha, novamente, não
deixa muito claro esse critério.
V – Considerando que o PNLD parece vincular a formação da cidadania aos trabalhos com
texto, oralidade e conhecimentos lingüísticos, esperava-se que a ficha contemplasse a mesma vinculação. A
questão posta é: de que maneira ela incorpora a construção da cidadania a outros aspectos (além do já
mencionado terceiro critério eliminatório, que trata exclusivamente desse tópico)? Algumas associações,
talvez, possam ser estabelecidas a partir dos seguintes itens: (i) exploração de recursos lingüísticos quanto a
dialetos e registros, e discussão crítica de posições preconceituosas; exploração interdisciplinar dos temas; (ii)
auto-avaliação dos textos produzidos; (iii) favorecimento do uso da língua falada na interação na sala de aula;
(iv) favorecimento da reflexão sobre os usos da língua. Quinta consideração: o olhar do analista – e do autor
do livro – sobre esses itens necessariamente contempla a questão da formação da cidadania?
VI – Por fim, sexta ressalva: enquanto os PCNs prevêem que os temas transversais aparecem
nas áreas definidas atravessando os seus objetivos, conteúdos e orientações didáticas, a ficha de avaliação
parece não levar em conta, de forma clara, a preocupação com os temas, a não ser quando aborda a
necessidade da diversidade temática. É nesse item que os temas transversais entrariam? Levando em conta
que os PCNs para língua portuguesa realçam a importância da formação de cidadãos que sejam capazes de
análise crítica e de transformação da realidade vinculada aos temas, de que maneira a ficha contempla este
aspecto? Parece que ela reduz a abordagem dos temas transversais à variedade temática.
2. Considerações finais
Este trabalho abordou a questão do sujeito. Antes mesmo da preocupação sobre a formação do
sujeito-cidadão, deve-se levar em conta a maneira pela qual os seres humanos são tornados em determinados
sujeitos. Segundo Foucault, o sujeito não pré-existe a nenhuma prática discursiva que o constitua – os sujeitos
se constituem historicamente por práticas e relações variadas. Na fala de Foucault (apud Rabinow e Dreyfus,
1995), “Há dois significados para a palavra sujeito: sujeito a alguém pelo controle e dependência, e preso à
sua própria identidade por uma consciência ou autoconhecimento. Ambos sugerem uma forma de poder que
subjuga e torna sujeito a” (p. 235). O sujeito-cidadão é o sujeito que o Estado visa – através do seu discurso
sobre o ensino, por exemplo. Trata-se, desta maneira, da criação de um modo de ser sujeito-cidadão – a partir
da forma pela qual o poder do Estado atua, podendo ser “tanto individualizante quanto totalizadora”(Op. Cit.:
p. 236). O Estado não está preocupado com a formação de sujeitos-sadios ou de sujeitos-normais, mas sim
com a produção de sujeitos-cidadãos, por serem “úteis” e constitutivos do modelo de Estado moderno. São
pertinentes aqui as palavras do filósofo:
“Não acredito que devêssemos considerar o Estado moderno como uma entidade que se
desenvolveu acima dos indivíduos, ignorando o que eles são e até mesmo a sua própria
existência, mas, ao contrário, como uma estrutura muito sofisticada, nas quais os indivíduos
podem ser integrados sob uma condição: que a esta individualidade se atribuísse uma nova
forma, submetendo-a a um conjunto de modelos muito específicos” (Op. Cit.: p. 237).
A citação acima nos permite refletir sobre a preocupação do Estado em formar cidadãos. Não se
trata de atribuir ao Estado virtudes em relação ao seu discurso sobre cidadania, mas sim de perceber que o
Estado produz os modos de subjetivação que sejam úteis ao seu funcionamento. Se os documentos oficiais
tratam da cidadania não é porque este seja o ideal de comportamento de um indivíduo – e de um povo –, mas
porque o indivíduo funciona e faz funcionar a engrenagem estatal.
O trabalho mostrou que o discurso do Estado sobre a formação da cidadania no processo
educacional parece incoerente, especialmente no que toca ao PNLD e à Ficha de Avaliação. No que se refere
a esses dois documentos, eles parecem não tratar da cidadania da mesma forma – não tratam do mesmo
sujeito-cidadão: no primeiro, a formação da cidadania parece ser inerente ao processo educativo. No segundo,
ela se torna um item a mais, sendo exterior ao processo educativo. Essa incoerência, por certo, não se deve à
ingenuidade dos produtores do documento, mas ela perece ser, desde já, constitutiva dos discursos do Estado
sobre a formação da cidadania e do cidadão. Sobre isso, valeria, para trabalhos futuros, outras reflexões...
Ainda para trabalhos futuros, seria relevante uma análise dos livros didáticos de língua
portuguesa aprovados pelo PNLD, para verificar a maneira como se encaminha, nesse material didático, a
formação da cidadania e do sujeito-cidadão. Que modo de ser sujeito eles produzem? Trata-se, também, do
sujeito-cidadão?
RESUMO: Objetiva-se analisar a maneira pela qual o Edital de convocação do Programa Nacional do Livro
Didático de 2005 (PNLD) e a Ficha de Avaliação do livro didático constroem a noção de sujeito-cidadão.
Evidencia-se que esta questão não é abordada da mesma maneira nos dois documentos oficiais.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS: