Anda di halaman 1dari 21

Ela nao é um monstro!

CENA I
(Nika está no foco do centro do palco, numa enorme cadeira de bebê. Vozes em off
ecoam: “Olha, que lindo bebê!”, “Que fofa!”, “Linda!”, “Olhos claros!”. E então as vozes
vão sumindo, como aquela distorção que ocorre quando pára-se um vinil lentamente.)

Narrador
Esta é Nika Burt. Uma criança saudável, de belos olhos claros, cabelos loiros,
normal. Seria uma criança fascinante se não fosse... (Subitamente, ascende o foco de Samy
e Neemo) Seus pais: Sr. e Sra. Burt. Um tradicional casal de Lugar Nenhum. Neemo Burt e
Samy Tamklitz, os jovens mais bem nascidos de Lugar Nenhum, uniram essas famílias
fabulosas por sua paixão. Paixão que rendeu este... belo?... fruto – a pequena Nika. Sr. e
Sra. Burt, os amáveis Sr. e Sra. Burt, se perguntavam o que poderiam ter feito para serem
merecedores de tal castigo – um filho saudável, de belos olhos claros, cabelos loiros,
normal? Como poderiam explicar tanta beleza à sua família, que chegava ansiosa para
conhecer a última herdeira de toda uma fabulosa geração?

(No fundo do teatro está a família inteira. Berrona, que chega perguntando aos berros pela
sobrinha, está iluminada pelas lanternas que todos eles vieram portando.)

Berrona (inicia a fala parada no fundo da platéia, e depois ela e os outros se espalham
pelos caminhos que levam ao palco, e Berrona continua falando no trajeto)
Já não suporto mais a ansiedade de conhecer a última Burt nascida! Tenho certeza
que deve ter todos os traços dos Burt, como o pai... Neemo quando nasceu era a cara de
nosso pai, que por sua vez era a cara de nosso avô e... (Ao chegarem ao palco são barrados
discretamente por Neemo e Samy, que tentam disfarçar a aflição. Simultaneamente a o foco
de Nika se apaga.) Ai está você, Neemo!
Neemo
Berrona, minha irmã! Você, já, aqui?
Berrona
Parece que sim, não é mesmo? Mas então, meu irmão, como ela é?
Samy
Ela quem, querida?
Berrona
Como assim, ela quem? De quem mais eu poderia estar falando depois de atravessar
Lugar Nenhum para chegar até aqui?
Neemo (tentando aproveitar a deixa para mudar de assunto)
Claro, claro. Falando nisso, você deveria nos visitar mais vezes, sua irmã
desnaturada!
Samy
É verdade, Berrona! Você não precisa de um motivo para...
Berrona (Interrompe, desconfiada)
O que está se passando aqui? Vocês não vão me convidar para entrar e conhecer
minha sobrinha?

(O casal Burt libera a passagem, indicando o caminho até a filha com um gesto e, em
seguida, se abraçam, apreensivos. Berrona e os outros seguem eufóricos à procura de Nika
pelo espaço cênico, com suas lanternas. Quando finalmente a encontram, examinam parte
por parte)
A: Olha – o cabelo da menina!
B: E sua boca...
C: Os olhos...
D: Nossa, que narizinho...

(Todas as lanternas iluminam, juntas, o rosto de Nika)

Berrona (Berra aterrorizada)


Quem é ela?

(A cena se ilumina)

Neemo (entristecido, abraçando forte Samy que começa a chorar)


Essa é Nika.

(Silêncio, permeado apenas pelos prantos abafados de Samy nos braços do marido. Longa
pausa)
Berrona (Surpresa, primeira vez na vida que fala num tom mais ameno)
Como isso aconteceu?

(Passagem coreografada. Conta como Neemo e Samy se conheceram; se apaixonaram; o


momento que Nika é concebia e seu parto.)

Berrona (Caindo em si, percebe a atitude que está tendo; fala amável)
Oh minha sobrinha... Venha cá! (Abraça a menina) Você é uma Burt e só isso
importa...
Samy (corre até Berrona e Nika)
Minha cunhada! Estou com tanto medo. Não sei como agir, não sei o que houve,
faltou coragem até mesmo para chamar o Dr. Boot...
Berrona
Mas precisamos chamá-lo. Ele é o único que pode ajudá-la, nos ajudar...
Neemo
Foi o que disse à Samy. Mas, de fato, faltou coragem, e sobrou vergonha! (Samy o
olha, com intenção de ser repreensiva, mas dá-se conta que está certo) Não podemos ser
hipócritas! Afinal de contas, ninguém é preconceituoso até ser alvo das anomalias do
destino... Quando se vive, quando é você no banco dos réus, ah, tudo é diferente.
Diferente, justamente é esse o problema. Quem agüenta ser único?
Samy
Mas não podemos perder a sanidade, Neemo. Devemos fazer o que é certo, lutar
contra nossos próprios conceitos e fazer o que for preciso por esta pobre criança!

Neemo
Eu aceitaria conviver co isso numa boa, mas precisava ser em nossa família?
Berrona
É triste, mas faremos exatamente o que Samy disse. Lutaremos todos, contra nós e
contra os outros, para que Nika seja feliz!
Neemo
Exatamente. Não há mais nada a fazer. A coitada não tem culpa de nada – se
alguma culpa deve repousar sobre alguém, esse alguém sou eu, e é você, Samy. Não sei
exatamente o que fizemos, mas só poder agente. E devemos sofrer conscientes, e tentar
resolver este infortúnio enquanto tivermos capacidade para isto.
Berrona
Sim, porque diferente ou não, esta criatura tem pelo menos uma coisa igual a nossa:
o sangue! Quer dizer, ela tem sangue não tem?
Samy
Claro que sim, Berrona. Um legítimo sangue Burt.
Berrona
Então, onde está o Dr. Boot se não aqui cuidando desta Burt doente? Tragam-no
até aqui!

(Os parentes que chegaram com Berrona fazem um número. Alguns saem para buscar o
Dr. Burt. Retornam à cena colocando-o frente a frente com Nika)

Dr. Boot (Surpreso, mostra um fascínio pela figura singular de Nika, e a esquadrinha
cuidadosamente)
O que... é... isto?
Neemo
Nossa filha, doutor.
Dr. Boot
Interessante... Talvez já tenha lido algo a respeito desse tipo de coisa...
Berrona
Por favor, doutor. Peço um pouco mais de cuidado com a maneira que se refere a...
minha sobrinha.
Dr. Boot
Perdão, por favor, me desculpe. Não era minha intenção ser deselegante. É que foi
uma surpresa muito grande... Ainda mais na família de vocês...
Samy
O senhor havia falado algo que já havia visto este tipo de caso em algum livro?
Dr. Boot
Talvez. Parece ser um quadro de fragilidade genética, algo como um homo
sapiens...

(Todos reagem com surpresa.)


Neemo
Podemos tratar isso, doutor? É reversível?
Dr. Boot
Talvez. Talvez. Essa garotinha está me fazendo falar tantos talvez ,como jamais
pensei que falaria. Se vocês me autorizarem, posso testar alguns tratamentos, porque, como
já disse, estamos na frente de algo inédito.
Berrona
Faça o que tiver que ser feito, doutor, desde que faça já!

(Dr. Boot revela um lado sinistro de quem sempre esperou a oportunidade de trabalhar
com cobaias humanas. Começa a passagem dos tratamentos de Nika, que é vestida,
maquiada, penteada, para ser mais estranha possível. Ao longo da cena o doutor vai
testando diversos tratamentos, pílulas, poções, eletro-choque, etc. Ao terminar, Nika está
transformada. Parece que sua vida se foi, restando apenas uma garota morta-viva, de olhos
parados e sem feições.)
CENA II

(Murmúrio, risadas, crescente. Nika está sozinha no centro do palco, onde permanece todo
tempo, indiferente a qualquer coisa.)

Narrador
Senhoras e senhores, Nika Burt, a aluna especial. A pequena Nika, pobre Nika,
Nika infeliz, infortunada menina de olhos perdidos em órbitas sombrias. O que todos
sentiam por Nika era um misto - ou era apenas, ou não era - pena, surpresa, estranheza,
compaixão. Mas para Nika era tudo indiferente. Pouco ligava para o que os outros diziam.
Pouco ligava para os outros. Os outros nada mais eram do que borrões chatos que insistem
em falar, e que se movem, ao seu redor. Isso sim a incomoda. O movimento, a agitação
daqueles borrões estúpidos, os ruídos que irritavam seus ouvidos. Ela não queria saber
como as crianças podiam ser cruéis com a “Nika Maluca”, “Nika Biruta”, “Nika Sei-lá-o-
quê”. Só queria se livrar dos vultos, dos ruídos, do incômodo. Queria um lugar tranqüilo
onde pudesse fazer a única coisa com que se importava, que fazia sentido, e que a tornava
real – ler. Curiosamente, é nos signos literários que Nika ganha algum tempo de vida, de
realidade. Alice, Dorothy, adoráveis meninas que se perdem em um louco mundo louco,
que querem achar o caminho de casa. Nika também quer achar o caminho de casa. O
caminho de um lar, onde a recebam com conforto e alento. Lendo ela tenta fugir para esse
lugar, ela caminha para lá. Caminha para onde pode ser Nika, a bela menina saudável, de
belos olhos e cabelos loiros, normal. Com toda sua estranha normalidade...
(Passagem de Nika pelo seu “mágico país das maravilhas”. Nika despe-se de todo o
figurino estranho, ajeita-se o melhor possível, e ganha alegria, vida. Brinca, dança, como
uma criança feliz por esse mundo maravilhoso. De repente, os personagens que estão
contracenando com ela mudam de atitude, observando-a e apontando-a, enquanto alguns
começam a vesti-la novamente. Então quando Nika percebe estão todos rindo dela, que
está abraçada a um enorme livro. Então, Nika volta à indiferença habitual. Uma voz em off
diz: “Deixam a garota em paz!”, e todos saem. Nika permanece sozinha. Surge então uma
figura curiosa. Hi, uma criança.)

Hi (tem um ar inocente, animado, se aproxima com entusiasmo)


Alô, Burt! Está me ouvindo? (Nika permanece imóvel) Que tipo de garota é você?
(Nika vira os olhos) Não to falando da sua aparência, e sim de você não reagir a nada aqui
fora? Pode ouvir isso?

Nika
Infelizmente estou ouvindo sim. Meus comprimidos devem estar fracos no meu
organismo, já... (saca um frasco de comprimidos)
Hi
O que é isso? Comprimidos? Por que você toma isto? Está doente?
Nika
Sim. Nasci doente, não está vendo?
Hi
Você não está com as melhores aparências, mas deve ser por causa disso ai...
(Avança nas mãos de Nika, pegando o frasco)
Nika
Me devolve isso, por favor. Eu preciso.
Hi
Quantos anos você tem?
Nika
Por favor...
Hi
Responde primeiro.
Nika
Dez.
Hi
A minha idade! Então se eu não preciso disso, você também não precisa... (Joga os
comprimidos pelo palco)
Nika
O que você fez? (Joga-se no chão, rastejando atrás dos comprimidos, que já vai
engolindo)
Hi
Acredite em mim. Meus pais comentaram esses dias que isso que fazem como você
é brutal...
Nika
Isso o quê?
Hi
Isso! Te dopam, não deixam você agir como um de nós...
Nika
Eu não sou uma de vocês.
Hi
E por que não? Olha, eu não to nem ai pro que os outros dizem. Eu também sou
diferente, você não vê? Sou andrógeno. Tem gente que aceita, tem gente que não. Mas
danem-se os outros!
Nika
Não... Quem me dera um dia ser como você. Jamais serei...
Hi
Ainda bem. De eu já basta eu!
Nika
Olha, você fala de mais, isso me incomoda... Só quero ler um pouco.
Hi
Está certo. Mas experimente parar de tomar isso um dia... Finja por uma semana, e
esforce-se!
Nika
Eu gosto das pílulas. Elas me fazem bem.
Hi
Tudo bem. Mas o dia que tiver coragem, experimente viver sem elas, mesmo que te
incomode, experimente o mundo real, sem anestesias. Mesmo que nem sempre eu termine
o dia me sentindo bem, pelo menos eu estou sentindo alguma coisa.
Nika (Extremamente irritada)
Vai embora! (Hi sai. Nika sente-se emocionada com as palavras do garoto) Vai! Me
deixa em paz! Não faz diferença mesmo! Diferença, sempre medindo minha vida... Esse
garoto... Nem mesmo sei seu nome. Depois a diferente sou eu, dez anos e dando uma de
psicanalista pra cima de mim... Aquelas coisas que ele falou mesmo... O que foi? Antes...
Ah, não lembro mais! Não to nem ai. Deixar de tomar meus comprimidos... até parece!
Papai e Mamãe me matam se sabem dessa conversa doida... Também, e daí?
CENA III
Narrador
Em meio a devaneios e sanidades passaram-se alguns anos da vida de Nika. E ela
experimentava, esporadicamente, viver a vida sem anestésicos. E gostou de viver. Gostou
de sentir-se cansada após caminhar longas horas por bosques, sentiu o medo de se deparar
com as criaturas peçonhentas que habitam estes lugares, sentiu o prazer que é tomar um
banho de cachoeira. Foi assim, descobrindo as sensações, os sentimentos, que Nika
tornou-se adepta daquela sugestão de simular a ingestão dos medicamentos de seu
tratamento. E ficou ainda mais inteligente, claro, e agora também era capaz de sonhar
acordada, fazer planos...

(Estão Neemo e Samy conversando com o Dr. Boot)

Neemo
Então, doutor, é isso. Ela quer ir fazer um curso longe... O senhor acha que ela já
pode?
Dr. Boot
Veja bem, Sr. Burt. O caso de Nika é muito peculiar... Qualquer um que a veja nota
sua doença...
Samy
Sim, doutor. Mas parece que ela não se importa mais com isso. Parece que ela vem
lidando bem com tudo, tem estado mais ativa...
Dr. Boot
Interessante. Com todos os remédios que ela toma...
Neemo
Concordo. Também fiquei surpreso com isso. Mas fico satisfeito.
Dr. Boot
Sr. e Sra. Burt. Eu sei que o que vou dizer agora parece cruel, mas deve ser dito –
não podemos correr o risco de que Nika fique longe do tratamento. Estando fora do nosso
controle, ela poderia, até mesmo, se envolver com alguém interessado em se aproveitar de
sua condição frágil...

Samy
Doutor, eu entendo sua preocupação. Mas não vejo nenhum problema de minha
filha se envolver com outra pessoa. Pra falar a verdade, tenho me acostumado com as
feições de Nika e até mesmo admirando alguma beleza exótica...
Neemo
Mas acho que sei aonde o doutor quer chegar. Caso Nika se envolva com alguém, e
caso decida reproduzir... Não sabemos que tipo de criatura pode vir da garota.
Dr. Boot
Exatamente.
Samy
Mas o que vier será tão cuidado quanto Nika foi...
Neemo
Querida, não seja ingênua. Imagina o impacto que isso teria - alguém como Nika
envolvido com o filho de um amigo... Está certo que duvido muito que isto aconteça, mas
não podemos descartar a hipótese.
Samy
Neemo...
Dr. Boot
Além deste ponto de vista político, como médico, eu não sei se saberia tratar esse
mestiço, se viesse. Sra. Burt, por favor, compreenda: é o melhor para nossa querida Nika.
Neemo
Está decidido, doutor. Assim que ela chegar, irei dizer que não fará o curso, e que o
tratamento continua.
Dr. Boot
Ótimo. Por mais terrível que isso possa parecer, é o melhor para a garota. Não sei
se seria o momento ideal, mas talvez pudéssemos chegar ao consenso daquele assunto que
deixamos pendente outro dia...
Samy
A respeito da castração de minha Nika? Se for isso, por favor...
Neemo
Samy, eu entendo se você não quiser falar disto. Mas se for assim, eu posso discutir
sozinho com o doutor...
Samy
Nem pensar, Neemo! Não estou reconhecendo o justo com que me uni.
Dr. Boot
Sra. Burt...
Samy
Por favor, doutor. Não sei onde de onde o senhor trás estes métodos de
tratamento, mas me parecem nada apropriados...
Neemo
Querida, o Dr. Boot é a pessoa mais habilitada que há em Lugar Nenhum... Você
não pode por em questão sua conduta profissional!
Dr. Boot
Tudo bem, eu sei que são decisões difíceis. Quando tiverem uma decisão, me
procurem. (Sai)
Samy (Aos prantos)
Neemo, eu não posso acreditar que você vai deixar este carniceiro retaliar nossa
filha!
Neemo
Samy, o que teria sido de nós até aqui sem o Dr. Boot? Simplesmente não
saberíamos como lidar com ela! Você está sendo injusta...
Samy
Injusta, eu? Você pode questionar só por um momento toda idéia maluca que este
senhor tem? Você pode pelo menos por um minuto consultar a opinião de nossa filha?
Você sabe se ela já não tem um namorado? Se ela já tem planos?
Neemo
Não seja ridícula, Samy! Quem iria querer se relacionar com Nika? Somente algum
infeliz aproveitador sem estômago! (Samy lhe dá uma bofetada)
Samy (Tentando se acalmar, ofegante, cara a cara com o marido)
Nunca mais, entendeu? Nunca.
CENA IV

(Uma festa. “A Cause des Garçons Remix”. Nika está dançando no meio de todos. Ainda
dançando, tem um rapaz, que é Hi, que se interessa por Nika, que usa uma máscara que
mostra apenas a parte do rosto acima do nariz. Mas seus olhos são únicos em todo Lugar
nenhum. Nika retribui, em um jogo de dança, mantendo alguma distância a principio, mas
vão se aproximando. Então se tocam. E começam uma coreografia envolvente. Chegam ao
máximo clímax, e Hi leva Nika para um canto da festa. Precipita-se para tirar sua máscara,
mas Nika hesita. Ele então sorri. O som da cena baixa um pouco)

Hi
Está sentindo hoje?

(Nika balança a cabeça, que sim. Então se dá conta que aquele era o mesmo garoto que
abrira-lhe, por acaso, os olhos para uma nova possibilidade. Feliz, tira a máscara com
entusiasmo e o abraça. Ele então a beija. O som aumenta novamente. Um longo beijo se
segue. Algumas pessoas que estão na festa percebem, e ficam enojadas, retirando-se da
cena. Lentamente, ficam só os dois no palco. Som baixa novamente.)

Hi
Parece que temos o lugar só para nós...
Nika
Devem ter se irritado com a Burt maldita beijando um dos deles...
Hi
Você se importa com isso?
Nika
Nem um pouco... (Beija Hi)

(Sobe o som. Após mais um longo beijo, entram dois homens que tiram Nika dos braços
de Hi, que reage, mas é desmaiado por um dos homens depois de uma breve briga, ao som
e luzes da festa que não parou em momento algum. Os homens levam Nika, que se debate
desesperada. A cena ainda continua mais alguns instantes com Hi caído no palco e a festa
seguindo.)
CENA V
(O laboratório do Dr. Boot. O velho está debruçado sobre uma mesa no centro do palco,
com a cabeça baixa. Então levanta-se e olha para platéia, com quem contracena
diretamente)
Dr. Boot
Eu tinha tudo sob controle. Tudo. Entrei neste mundo fantástico, aceitei estes seres
fabulosos, escondi minha própria natureza para ser aceito. Mas então tinha que nascer
aquela criança, aquela normal e linda criança, que me tirou o chão, a razão, que me fez
querer... (Os homens deitam-na entram com Nika, desesperada, clamando por socorro)
Você! Você mesma! Você é a culpada!
Nika (fala enquanto os homens amaram-na sobre a mesa)
Seu doente! Aposto que você convenceu meus pais a te autorizarem a fazer isso
comigo! Crápulas! São todos uns crápulas!
Dr. Boot
Na verdade, mais ninguém sabe que você está aqui, minha querida.
Nika
Você ficou louco de uma vez por todas? É isso? E eu me tornei sua obsessão? Por
quê? Diga-me por quê? Você me odeia? Por quê?
Dr. Boot (agarrando-a dos cabelos)
Sim, sim, e não! (Começa a rir) Sim, estou completamente louco, afinal! Sim, você
virou minha obsessão! E não, eu não te odeio... (Fica sério. Aproxima seu rosto do rosto de
Nika.) Eu te amo... (A beija a força. Nika o morde, fazendo saltar para trás, muito irritado)
Foi você, você mesma, que insistiu em nascer assim para me seduzir, não é? Com esses
olhos, esses olhos claros cheios de ternura e medo deste mundo horroroso onde vivemos...
A princípio, eu relutava, e dizia para mim mesmo que tudo que fazia era realmente o
melhor para você. Mas depois de um tempo, você foi crescendo, e com certeza fingindo
tomar meus remédios adquiriu todo esse ar independente, livre, soberano, acima de todo
preconceito que estas aberrações têm com você...
Nika
A maior aberração aqui é você! Seu nojento! Socorro! Alguém está me ouvindo?
Dr. Boot
Você está enganada. Eu não sou uma dessas aberrações... (Começa a esfregar a pele,
para tirar a maquiagem, tira algumas peças de roupas mais bizarras.)

Nika
Tem razão. É uma aberração ainda pior...
Dr. Boot
Eu sou homem! Um homem! E você, milagrosamente, uma mulher! Você surgiu
aqui como aquelas flores que crescem nos aterros sanitários: no meio da imundice surge
um toque de vida requintado... Você é uma mulher! E eu um homem... (Começa a rir
insano)
Nika
Eu... Eu... Como viemos parar aqui?
Dr. Boot
Não sei. De fato, você é um milagre. Eu, um infeliz que apareceu numa noite para
duas aberrações, que resolveram me criar, me proteger com essa maquiagem ridícula, que
esconde todo o homem que sou!
Nika
Agradeça a eles por terem te ensinado a esconder o homem que você é. No seu
caso, foi melhor assim...
Dr. Boot (Puxando forte o cabelo dela, e passando a outra mão pelo corpo de Nika)
Cala-te! Agora eu vou te mostrar o que um homem e uma mulher são
instintivamente instigados a fazer... (Sobe em cima dela) Por isso mesmo não tenho dúvidas
que você vai gostar... (Há um confronto, pois Nika dificulta como pode o ato de Boot, que
se diverte com toda situação.) Você sabia que eu também nunca fiz isto antes? Jamais tive
coragem de me relacionar com estas aberrações...
Samy (Entra e corre para cima de Boot com um punhal)
Crápula! (Apunhala o doutor diversas vezes, enquanto Nika chora muito em baixo
do homem)
Dr. Boot (Agonizando)
Você estava gostando... Eu sei... Nunca mais, agora... (Morre, caindo ao chão.)
(Samy desamarra a filha, e as duas se abraçam por um longo tempo, chorando muito).
Narrador
E ali ficaram as duas, um longo tempo, deixando rolar toda tristeza, estresse,
angústia, sofrimento que passaram intensamente naqueles minutos anteriores. Nika sentiu
vontade de tomar um daqueles comprimidos...
CENA VI

Narrador
Então era isso: a família Burt estava em crise. Todos em Lugar Nenhum
comentavam sobre o assassinato do doutor, e havia boatos que a Burt diferente tinha um
caso com o médico. Neemo não podia aceitar aquilo. Precisava tomar uma medida
imediatamente para abafar os falatórios e voltar à paz aos Burt. Além disso, Neemo
procurava uma maneira de controlar a filha, que agora não tinha mais o tratamento do
insano homem. E a loucura visitava Nika como nunca. Abateu-se desde tudo que viveu.
Voltou aos livros, a vida reclusa em sua casa, desistiu de fazer planos. E mesmo sabendo
que a conduta do doutor não era nada recomendável, mesmo odiando a existência de Boot,
não pôde evitar e voltou a tomar seus remédios. Precisa daquilo. Sozinha não conseguia
suportar aquilo tudo. Se ela nunca teve um mundo a qual pertencesse, hoje qualquer coisa
que podia ter desmoronou. E ao se importou com a idéia que seu pai teve para contornar
toda situação...
Neemo
Um casamento! Será isso que faremos – um grande, espetacular, estratosférico
casamento! Vamos chamar todos os Burt, todos os Tamklitz, e o resto de Lugar Nenhum
assistirá nossa filha se casando com o mais fantástico jovem que há! O mais habilidoso,
destemido – mais do que precisa ser para se casar com Nika (Samy olha repreensiva)...
Porque terá que enfrentar muitos desafios – além de forte, horroroso. E para isso pagarei o
dote jamais visto para o que nós escolhermos...
Samy
Quem vai escolher é Nika...
Neemo
Querida, você sabe que desde que tudo aconteceu, Nika perdeu as condições que
vinha conquistando de tomar qualquer decisão. Como pais, nós mesmos devemos zelar
pelo sem bem-estar... Nika, você se importa se nós escolhermos seu pretendente? (Nika
não reage) Viu querida, não se importa. Quem se importasse faria um escândalo!
Samy
Por favor, Neemo. Poupe-me das suas ironias! Concordo com esse casamento
porque é melhor mesmo que ela saia desta casa, saia de perto de você e ganhe um pouco de
espaço para viver, além de uma companhia. Ela neste estado, indiferente a tudo... você irá
transformá-la numa boneca de cera.
Neemo
Do jeito que você fala parece que eu sou um monstro.
Samy
Neemo, eu não entendo! Amávamos-nos, éramos felizes, tínhamos tantos planos...
Neemo
É verdade. Todos os planos estavam se realizando, até um falhar...
Samy
Não, não falhou! Apenas saiu um pouco diferente do que imaginávamos...
Neemo
Um pouco diferente? Você chama aquilo (aponta para Nika) de um pouco
diferente? Samy, eu fiz tudo que podia. No começo eu achava que iríamos conseguir...
Samy
Eu também achava. E por isso concordei com você, com o doutor, mais do que
devia. E, mesmo com tudo que aconteceu, por um instante, deu certo. Nika tinha planos,
queria viajar, estudar...
Neemo
Aquilo não era nada! Ela sairia de onde ela é alguém para um lugar onde ninguém a
respeitaria...
Samy
Você sempre achando que tudo gira em torno de um nome: Burt. Ela até poderia
sofrer no começo, sim, mas ela conquistaria a todos, tenho certeza. (Se dirige até Nika, e
enquanto fala, emocionada, sacode a filha pelos ombros, meche em seu cabelo, seu rosto)
Vai dizer que você prefere Nika desta forma?
Neemo
Vou comunicar a todos sobre o casamento. (Se dirige até a outra ponta do palco, e
anuncia) Atenção, jovens de Lugar Nenhum! Ofereço aquilo tudo que vocês puderem ter
para o escolhido que se casar com minha filha Nika Burt. Aviso que não será uma escolha
fácil, pois não é qualquer um que merece entrar para a família Burt. Venham até mim os
interessados, e mostrem-me seu valor!

(Música. Vem de todos os lados do palco vários pretendentes. Neemo está no centro do
palco, sobre um pequeno palanque. Todos os pretendentes começam a fazer todo tipo de
coisa – malabarismo, flags, cuspir fogo, contorcionismo, etc. Dentre todos destaca-se um
muito alto, que está fazendo um número de malabarismo. Neemo desce do palanque e
expulsa todos os outros. A música vai baixando.)
Neemo
Para alguém do seu tamanho, você tem muita destreza com isto ai!
Jan
Agradeço o comentário. Tenho muitas habilidades ainda melhores do que esta, e a
principal delas é ser um bom marido.
Neemo
E ainda fala bem, seu bajulador! Gostei de você – grande, forte, horrendo, hábil,
esperto... Esperto o suficiente para saber que o que lhe darei é o suficiente para suportar
uma vida inteira ao lado de minha filha.
Jan
Com certeza. E suportarei tudo que for preciso para que a senhorita Burt viva
tranquilamente. Engolirei meu preconceito, meu orgulho, a possibilidade de ter uma vida
feliz para que vocês vivam tranquilamente.
Neemo
Gosto da sua sinceridade. Qual seu nome?
Jan
Jan Glasnik, senhor.
Neemo
Jan, você falou tudo que eu precisava ouvir. Mesmo querendo evitá-la você vai
suportar o que for pela paz do MEU lar. É você mesmo o escolhido. Vou pedir que você e
ela, depois de casados, não... Não podemos correr um risco de nascer mais um Burt assim.
Jan
Não há a menor dúvida. Depois de cruzarmos o hall de nossa casa, não a tocarei
mais. Nem o quero.
Neemo
Ótimo! (Sobe no palanque, e anuncia) Que todos de Lugar Nenhum saibam que já
tenho meu escolhido: Jan Glasnik será um Burt!

(Blecaute)
CENA VII
(Nika está deitada. Acorda assustada de um pesadelo. Contracena diretamente com a
platéia)
Nika
Não devia ter parado de tomar os remédios de novo. Maldito seja aquele garoto que
me fez sair da ignorância! Maldito, além de me abrir os olhos, me abriu os sentidos. Me fez
sentir naquela noite o que nunca mais irei provar... Porque minha história não pôde ser
linear, do início ao fim, só assim chegaria de uma vez o dia da minha morte. O que será que
houve com ele? Aquele dia... Nem mesmo perguntei seu nome. Também, quem se
importaria com nomes naquele momento. Onde estará? Tenho certeza que gosta de mim.
Aquela maneira com que envolveu. A maneira como tentou me defender. É isso! Preciso
ao menos agradecê-lo por ter me defendido. Mas onde vou procurá-lo? (Grita para os
corvos) Corvos! Corvos venham até aqui!

Corvo 1
O que foi menina bonita?
Corvo 2
Você jamais nos evocou...
Corvo 3
O que quer agora depois de tanto tempo?
Nika
Nunca evoquei vocês porque nunca foi preciso. Vocês eram tão indiferentes como
qualquer outro presente da tia Berrona! Mas agora quero que façam algo por mim.
Corvo 1
Por você não...
Corvo 2
Para você.
Corvo 3
Nós pouco ligamos para o que você precisa.
Corvo 1
Só estamos interessados naquilo que você quer que nós façamos.
Nika
Tudo bem. Eu quero que vocês encontrem um rapaz, um rapaz mais ou menos
desta altura, de pele macilenta, cabelo esverdeado...
Corvo 2
Aquele que você beijou?
Nika
Como você sabe disso?
(Os corvos riem.)
Corvo 3
O que importa... Você quer que agente o encontre ou não?
Nika
Sim, quero muito. Vão, vão logo! Tenho pressa, pois quero vê-lo antes do meu
casamento. Talvez ele, mais uma vez, me dê vida, me faça reagir, e me leve com ele.
Corvos
Estamos indo, menina bonita! (Música. Luz especial na platéia, para onde descem, e
circulam a procura de Hi. No palco, Nika, fica apreensiva, sob um foco de luz. Os corvos
voltam ao palco, para um foco só deles.)
Corvo 1
Menina bonita, nós não o encontramos!
Corvo 2
Amaldiçoados sejamos nós que falhamos na sua primeira vontade!
Corvo 3
Mas suspeito o lugar onde ele pode estar...
Corvo 1
Cala-te, corvo bobo!
Corvo 2
Não sabe que isso é proibido?
Nika
O que? Fala-me, onde pensas que ele está?
Corvo 3
Dane-se o que aquela gorducha falou: todos seus caminhos levam até a floresta
proibida!
Nika
Floresta proibida? Que coisa mais fantasiosa é esta?
Corvo 1
Fantasiosa, disse ela, com um tanto de superioridade.
Corvo 2
Pobres os que não temem aquela floresta.
Corvo 3
Isso é verdade. Nós, não vamos lá.
Corvo 1
Nem que você deseje!
Nika
Mas por quê? Onde fica isto?
Corvo 2
O porquê é que lá habitam muitos seres...
Corvo 3
Que ninguém nunca viu, por isso tememos!
Corvo 1
E onde... Fica bem ali...
(Ascende-se as luzes do fundo do palco novamente, onde está a floresta. No entanto os
focos individuais de Nika e dos corvos permanecem distintos.)
Corvo 2
...Junto dos teus pesadelos.

(O foco dos corvos se apaga)

Nika
Mas o que terá lá? Já não sou mais uma Alice para temer um bizarro mundo de
maravilhas... Seja o que for, quero descobrir. E encontrar aquele que está sempre me
mostrando um caminho novo a seguir...
(As luzes do palco se ascendem, ao mesmo tempo em que a musica ambiente da floresta
começa a subir. O palco todo agora é a floresta, não mais apenas o fundo. Nika começa a
andar pelo lugar, perdida, curiosa, e com um medo contido.)
CENA FINAL
(O CASAMENTO. NIKA CASA-SE COM O PRETENDENTE ESCOLHIDO PELO
PAI, POIS CANSA DE LUTAR CONTRA TODOS E DECIDE QUE QUER SE
PADRONIZAR PARA NÃO SOFRER MUITO; É COMO USAR ANESTÉSICOS SÓ
QUE SEM FICAR CHAPADO, O QUE É MUITO MAIS TRISTE. ENTÃO, PARA
SUA SURPRESA, É HI DISFARÇADO. OS DOIS DECIDEM IR VIVER NA
FLORESTA, E LÁ TÊM MUITOS FILHOS... OS COMENTÁRIOS É QUE ELES
REPOVOARÃO A TERRA COM HUMANOS, POIS TODOS OS NASCIDOS SÃO
NORMAIS.)

Anda mungkin juga menyukai