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César Vidal
O CRIME DOS
ILLUMINATI
Tradução
ANTÔNIO FERNANDO BORGES
Título original: Los hijos de La Luz
© Copyright 2005: Random House Mondadori, S.A., Barcelona
© Copyright 2006: César Vidal Direitos cedidos para esta edição à
EDIOURO PUBLICAÇÕES S.A. Rua Nova Jerusalém, 345 - Bonsucesso
CEP 21042-235 - Rio de Janeiro, RJ
Tel. (21)3882-8338 - Fax (21)2560-1183
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A RELUME DUMARA É UMA EMPRESA EDIOURO PUBLICAÇÕES
Revisão Maria Helena Huebra
Editoração Dilmo Milheiros
Capa Simone Villas-Boas
CIP-Brasil. Catalogaçao-na-fonte. Sindicato Nacional dos Editores de Livros, RJ.
V691f Vidal, César, 1958-O crime dos Illuminati / César Vidal ; tradução Antônio
Fernando Borges. - Rio de Janeiro : Relume Dumará, 2006
Tradução de: Los hijos de Ia luz ISBN 85-7316-491-3
1. Romance espanhol. I. Borges, Antônio Fernando, 1954-. II. Título.
06-3160 CDD 863
CDU 821.134.2-3
Todos os direitos reservados. A reprodução não-autorizada desta publicação, por
qualquer meio, seja ela total ou parcial, constitui violação da Lei n° 5.988.
Segunda parte
CONSPIRAÇÃO
Terceira parte
NÊMESIS
Epílogo
Os filhos da luz
Um
1
Edifício-museu onde ficavam expostos objetos e jóias da família real.
repugnante e variada de cheiros. Roupa suja, suor acumulado em axilas e pés, baforadas
de álcool mal digerido... tudo aquilo o envolveu com seu fedor espesso e, por um
momento, ele pensou que não conseguiria conter a ânsia de vômito. Mas conseguiu.
Custara-lhe muito chegar até ali e não estava disposto a perder o espetáculo por culpa
do asco.
Um murmúrio, inegável mas reprimido, avisou-o de que tudo iria começar em
alguns instantes. Não se enganou. Em meio a um silêncio sepulcral, uma carroça
desgastada, puxada por cavalos, entrou na praça e se dirigiu para o cadafalso. Se não
fosse pelas pessoas que ficaram na ponta dos pés para poder observar melhor a cena, e
que se espezinharam, e que amaldiçoaram, e que blasfemaram, quase teria parecido que
não havia ninguém naquele lugar.
O carro chegou, lenta mas inexoravelmente, até o patíbulo, e Karl pôde ver que
os carrascos eram quatro. Se não fosse pelas divisas, tricolores e desproporcionalmente
grandes, que usavam nos nada modestos chapéus de três pontas, qualquer um teria dito
que pertenciam ao antigo regime. As mesmas calças, as mesmas casacas, os mesmos
penteados... bem, no fim das contas, também executavam o mesmo ofício realizado
tantas vezes ao longo dos séculos.
O réu estava acompanhado por três sacerdotes, era evidente, mas o
comportamento deles não poderia ser mais dessemelhante. Dois deles estavam vivendo,
sem qualquer sombra de dúvida, um momento extraordinariamente divertido. Karl
pestanejou para ter certeza de que o que estava vendo era real, e, claro, não teve dúvida
alguma: aqueles dois clérigos brincavam como se estivessem desfrutando de uma alegre
romaria. Engoliu a saliva. A praça transbordava de inimigos do condenado, mas
ninguém tinha se atrevido a se mostrar alegre naquelas circunstâncias. Aqueles dois
eram a exceção. Inclusive, um deles tinha começado a apontar a barriga e os quadris do
réu e a zombar de suas formas.
O terceiro, pelo contrário, demonstrava um comportamento diametralmente
oposto. Da distância em que se encontrava, Karl não podia distinguir suas feições com
clareza, mas tudo parecia indicar que era vítima de um forte retesamento que talvez
pudesse ser atribuído à tristeza. Não, aquele sacerdote não apenas não se divertia com a
cena como, de fato, ela devia estar lhe causando uma dor insuportável.
O carro parou, finalmente, no meio de um espaço amplo e vazio que rodeava o
cadafalso. Sim, amplo e vazio, mas não desprotegido. Estava rodeado por canhões e
pessoas portando as mais diferentes armas. Piques2, lanças, mosquetes...
2
Lança antiga
O condenado desceu do carro. Totalmente enfeitado de branco, levava nas
mãos um livrinho que Karl tentou em vão identificar e que acabou achando que fosse
um missal, um livro de salmos ou talvez um Novo Testamento. Assim que o réu pisou
no chão, três dos carrascos, daqueles carrascos que se vestiam tentando esconder sua
origem burguesa, rodearam-no e fizeram o gesto de lhe tirar a casaca. Com uma
dignidade que quase se poderia tocar como se fosse alguma coisa sólida, o homem fez
um gesto para afastá-los e se livrou ele mesmo da peça de roupa.
Por um momento, os carrascos pareceram totalmente desconcertados. Parecia
óbvio que não estavam acostumados à semelhante demonstração de dignidade —
principalmente de aprumo — por parte de alguém a quem iriam separar a cabeça do
corpo dentro de alguns minutos. No entanto, a atitude deles durou apenas um instante.
De maneira imediata, como se impelidos por uma mola, aproximaram-se do réu e
tentaram segurá-lo pelos pulsos. Karl não pôde escutar o que o condenado respondeu,
mas captou sem dúvida a firmeza, não empertigada mas natural, com que jogou o corpo
para trás para impedir que os carrascos fizessem aquilo com ele.
— O grande filho-da-puta não se deixa amarrar... — Karl escutou uma velha
colérica a seu lado resmungar. — Se fosse por mim, não iriam colocar a corda
propriamente nas mãos.
Mas além daquela mulher — que talvez não tivesse tantos anos quanto as
infinitas rugas que sulcavam seu rosto aparentavam — ninguém disse nada. Ninguém a
não ser os carrascos, que tinham começado a se agitar como se impelidos pelo ventinho
que soprava na praça. De repente, um deles levou a mão à boca como se fosse uma
trombeta e gritou algo que Karl não chegou a entender. Dois soldados que usavam o
gorro frígio vermelho se apressaram em atender a seu chamado.
Foi então que os olhos de Karl se detiveram, de forma casual, no terceiro
sacerdote, aquele que parecia profundamente triste. Pela primeira vez reparou que,
quase com toda a certeza, não era francês. Não, ele não era. Seus traços e suas feições
indicavam alguém de origem nórdica. Poderia se tratar de um alemão, de um holandês,
inclusive de um inglês. Em todo caso, não era uma circunstância tão relevante. O
significativo era que ele tinha se inclinado respeitosamente sobre o condenado e se
dirigia a ele num tom que, pelos gestos, poderia ser qualificado de submisso, até de
suplicante. Devem ter trocado apenas duas ou três frases, mas foram suficientes para
que o réu elevasse os olhos para o céu, sussurrasse alguma coisa e estendesse as mãos.
Fez isso justo no momento em que os soldados chegavam perto dele. Ele não
poderia garantir, mas Karl teve a impressão de que um dos carrascos amarrava o réu
com uma expressão de triunfo insolente, como se fosse a consumação de um longo
processo iniciado talvez muitos anos antes. Como se pretendessem sublinhar aquele
gesto pleno de significado, os doze tamborileiros localizados ao lado do cadafalso
começaram a tocar seus instrumentos com mais energia e vontade do que arte.
Quando o réu começou a subir a escadinha que levava até a guilhotina, Karl
percebeu que os degraus eram inclinados demais. Conteve nessa hora a respiração
desejando que o condenado não escorregasse, caísse ou tropeçasse naquela subida
sinistra para a morte. Se não aconteceu nada disso, talvez se deva ao fato de que o
terceiro sacerdote, o que não parecia francês, agarrou-o pelo braço com a intenção de
ajudá-lo. No entanto, aquela colaboração piedosa durou apenas o tempo de subida.
Quando os dois atingiram a plataforma sobre a qual a guilhotina repousava, o réu se
soltou com um gesto seguro. Depois, com passos inusitadamente firmes, cruzou o
espaço que havia entre o fim da escada e a guilhotina. Fez isso com tanta calma, com
tanta segurança, com tanta serenidade que qualquer pessoa teria dito que ele passeava
por um jardim desfrutando do bom tempo.
Achava-se a ponto de alcançar a lâmina, quando parou e olhou para os
tamborileiros. À distância em que Karl se encontrava não lhe permitiu captar a carga
exata que o condenado colocou naquela expressão, mas o certo é que as mãos deles
ficaram suspensas no ar sem permitir que as baquetas sequer roçassem a pele dos
instrumentos.
— Morro inocente de todos os crimes de que me acusam — disse o réu com
uma voz sossegada, clara e suficientemente forte para que o escutassem com clareza
mais além da praça. — Perdôo os autores de minha morte, e rogo a Deus para que o
sangue que vocês estão prestes a derramar não caia nunca sobre a França.
Nem uma palavra, nem um grito, nem um silvo, nem um assovio repercutiram
depois que o condenado pronunciou aquelas últimas frases. Por um instante pareceu que
o mundo, aquele mundo extraordinariamente convulso, tinha parado, que a terra tinha
deixado de girar, que o sol se fixara no firmamento. Então, uma mão, que parecia saída
do nada, cravou-se no antebraço daquele homem vestido de branco e o puxou para a
guilhotina. Não houve nenhuma resistência. O réu parecia reconciliado com seu destino
como poucos teriam estado. Documente, quase com mansidão, permitiu que dois dos
carrascos, que continuavam com os chapéus na cabeça, estendessem-no sob a lâmina. A
execução durou alguns instantes mas, ao contrário do que Karl tinha temido, a cabeça
não saltou até o chão, mas caiu na cesta. Talvez, pensou, a pequenez da lâmina tenha
evitado aquela profanação extra.
Um dos carrascos, alto, corpulento, com aparência brutal, aproximou-se da
cesta e, agarrando a cabeça pelos cabelos, levantou-a para que a multidão a visse.
Durante alguns momentos, deixou que o sangue jorrasse abundante do pedaço de corpo
já sem vida. No entanto, aquela exibição de força triunfal não pareceu comover os
presentes, talvez impressionados demais com o que tinha acontecido durante os minutos
anteriores. Foi então que o carrasco jogou a cabeça no cesto com um gesto depreciativo
e de uma só puxada apanhou a casaca branca que estava caída no chão do cadafalso.
Agitou-a por um instante no ar como se fosse uma bandeirola e depois a atirou com
violência sobre a multidão. Por um breve instante, a peça de roupa descreveu um vôo
curto que foi abortado por um oceano de mãos que se lançaram para dela se apoderar.
Entre rugidos e gritos, uivos e clamores, aquela brancura desapareceu
completamente no meio da massa. Como a vida daquele homem que tinha acabado de
ser guilhotinado, Luís XVI, o cidadão Capeto, um monarca de trinta e oito anos com
que se encerravam oito séculos de dinastia bourbônica na França. Nada restava daquela
dinastia que um dia tinha dominado metade da Europa. Num sentido nada metafórico,
tinha sido cortada de um golpe só.
Enquanto assim pensava, Karl observou como o terceiro sacerdote, o que não
parecia francês, o que tinha tentado consolar o rei, descia agora do cadafalso,
ultrapassava a primeira linha de soldados e se perdia no meio da multidão. Parecia
atordoado, exausto, submetido a um impacto que não podia suportar. Ninguém,
absolutamente ninguém, prestou atenção nele.
Karl enfiou a mão no bolso e tirou do colete desbotado um relógio dourado.
Eram pouco mais de dez e quinze. E então, exatamente quando afastou o olhar da esfera
branca, ele o viu. Era ele, sim, era ele. Sem nenhuma sombra de dúvida. Talvez
estivesse um pouco mais magro, embora não muito, e seus cabelos estivessem mais
ralos e grisalhos, mas era ele. E o olhava. Olhava-o com aqueles olhos inquisitivos que
pretendiam, e quase sempre conseguiam, esconder o que corria pelo fundo de seu
coração.
O coração de Karl começou a bater com mais força do que a que os
tamborileiros tinham empregado para bater nos instrumentos. Sabia que o encontraria
ali. Sempre soubera disso. Não poderia ser de outra maneira. E agora, enfim,
encontrava-o. Ali, no mesmo lugar onde acabava de desaparecer a monarquia mais
importante da Europa. Apertou os punhos, respirou e tentou abrir caminho até o lugar
onde ele se encontrava. Deu dois, três, quatro empurrões para alcançá-lo. Mas, de
repente, desapareceu. Angustiado, movimentou a cabeça para um lado e para o outro,
até que seu pescoço doeu, enquanto procurava encontrá-lo.
Empenhava-se nisso quando uma das abas da casaca ficou agarrada entre duas
matronas que conversavam animadamente, ainda que sem muito critério, sobre a
execução do Capeto. Conseguiu recuperá-la, suja e amarrotada, de um puxão, e,
seguindo um impulso instintivo, tentou lhe devolver uma elegância que talvez tivesse
perdido para sempre. Foi então, quando levantou a vista, com a desolação embargando
seu rosto, que ele o viu novamente. De maneira incrível, tinha conseguido se livrar
daquele imenso mar de corpos malcheirosos, e se colocar na outra extremidade da praça
abarrotada. Mas como ele tinha conseguido isso? Karl cravava os cotovelos, os punhos,
os antebraços em qualquer ser vivo que se interpusesse em seu caminho. Não, agora não
podia tornar a escapar. Tinha que agarrá-lo.
O fugitivo — porque ele era isso, de fato — livrou-se daquele pesado
espartilho humano entretecido com milhares de corpos quando Karl estava a quase
duzentos passos dele. Arfando, suando por todos os poros, reprimindo as maldições que
lutavam para brotar de seus lábios, contemplou desesperado como sua presa inatingível
apertava o passo e, quando chegou a uma esquina, começava a correr.
Demorou ainda alguns minutos para se livrar daquela maré, em que não eram
poucos os que já se vangloriavam de contar com um retalho da casaca branca do
Capeto. Quando conseguiu, começou a correr, embora estivesse consciente de que não
tinha rumo certo nem sabia em que direção seguir. Não poderia dizer o tempo que durou
aquela corrida, mas, por fim, o esgotamento o obrigou a encerrá-la e Karl teve que se
apoiar contra o muro gelado de uma rua desconhecida tossindo violentamente e
tentando recuperar o ritmo da respiração.
Inalou gulosamente o vento frio da manhã, como se disso dependesse sua vida,
como se num instante só pudesse conduzir aquele oxigênio indispensável até o último
lugar de seus pulmões, como se lhe fosse dado recuperar a juventude, o vigor e a alegria
gastos naquele incidente longo, o mais longo de sua existência. Um incidente que tinha
começado anos atrás, em outro lugar e em outra época.
Dois
Baviera, 1775
WILHELM KOCH PASSOU A MÃO pelo queixo. Sentiu então um pequeno tufo de
pêlos mal barbeados, localizado duas ou três polegadas abaixo da têmpora. Aqueles
hóspedes inesperados e, sobretudo, indesejados arrancaram dele um ricto de mal-estar
que saltitou de seus lábios. Por alguma razão que não era fácil de descobrir — as regras
familiares, a educação com os jesuítas, um motivo cósmico etc. — não podia tolerar a
desordem nem a falta de harmonia. Era uma atitude extensiva tanto ao traçado de uma
rua quanto à limpeza de suas camisas, a uma operação aritmética bem resolvida ou à
luta implacável contra o crime. Não suportava nada que parecesse dissonante, torto, feio
ou ruim. Talvez por isso poderia ter sido arquiteto, músico ou matemático. Certamente
por isso era um policial. Ele era, e dos melhores. Dificilmente se poderia encontrar, em
toda a Baviera, um outro igual.
Ao longo de vinte anos de serviço, tudo tinha corrido bem, ou seja, de maneira
ordenada. Roubos, fraudes, violações, assassinatos... raras foram as transgressões da lei
que não soubera enfrentar com sucesso. E tudo, absolutamente tudo, era devido a seu
método. Na opinião de Koch, a questão se limitava a encontrar o ponto exato em que a
harmonia que governava o cosmos era quebrada. Da mesma forma como uma tubulação
quebrada só pode ser consertada quando se descobre o lugar onde ocorre o vazamento, o
crime exigia que se detectasse a partir de quando a ordem social foi rompida. Um pai
que não se comportava de acordo com a moral, uma mãe que esquecia suas obrigações,
filhos que passavam por cima de seus deveres filiais... e com o que nos deparávamos?
Um desfalque, um adultério, ou até um assassinato. Sim, na verdade, o trabalho de
Koch consistia em algo muito parecido com os encanamentos. Justamente por isso,
incomodava-lhe que suas camisas não estivessem devidamente passadas, as botas
impecavelmente lustradas ou o rosto perfeitamente barbeado.
O que tinha agora diante dos olhos dava a sensação de ser outro vazamento
intolerável no âmago do edifício social. Tinha se deparado com ela pedindo os
processos atrasados para rever o que estava pendente. Tudo já se achava canalizado num
aqueduto de ordem que garantia, mais cedo ou mais tarde, que acabaria sendo resolvido
de maneira segura. Tudo, a não ser o processo que agora estava aberto diante de seus
olhos. Este, em resumo, de forma intolerável, não trazia número de referência, nem
menção ao agente que o tinha começado, nem data de entrada. Era uma pasta nua,
perdida no arquivo, era cujo interior jazia o que não deixava de ser uma carta como
tantas outras, escrita com tinta preta, com traços regulares, sobre um papel grosso
embora não necessariamente caro. Mas o conteúdo era uma outra questão.
Nada nos seria mais útil do que uma história da Humanidade que fosse
adequada. O despotismo roubou a liberdade. Como os fracos podem se
defender? Só através da união, mas esta no fim das contas é rara...
Nada pode ajudar a conseguir tudo isto além das sociedades secretas...
Koch bebeu outro gole de café e, enquanto sua boca se franzia num esgar de
desprezo, disse:
— O que é que você sabe, seu pateta, sobre o estado ruinoso da natureza
humana?
Os príncipes e as nações desaparecerão da face da terra. A raça humana se
transformará então numa família, e o mundo será a morada dos Homens
racionais.
Koch passou a mão pela parte de seu rosto em que o barbeiro não tinha
demonstrado exatamente um excesso de eficiência. Franziu os lábios com fastio, porque
determinou que não ia se deixar distrair. Não podia se permitir isso, sem dúvida. Talvez
aquele personagem fosse simplesmente um louco - nunca se podia descartar essa
hipótese —, mas a experiência lhe dizia que a falta de juízo não só não garantia a
segurança como, não poucas vezes, era seu pior inimigo.
Koch pousou a xicrinha no pires, procurando fazer com que a posição ficasse
simétrica. Em seguida, pegou uma pena de ganso que repousava, branca e inflexível, na
escrivaninha polida, e a molhou com suave energia num tinteiro gordo de prata. Depois,
escreveu numa folha de papel os nomes de Otávio e Catão. Pelo que lhe constava, eram
referências ao imperador dos romanos e ao famoso censor, não se tratava de nomes
verdadeiros, mas, ao mesmo tempo, sabia que podiam ser pseudônimos de personagens
tão tangíveis quanto a poltrona em que se encontrava sentado.
Illuminati ? Koch esfregou o queixo com uma expressão pensativa. Era uma
palavra latina ou italiana? Illuminati... sim, claro, respondeu com um sorriso. Os
iluminados! Só podia ser isso. Aqueles que têm a luz que não atinge a outros e que
mostra os conhecimentos secretos são iluminados! Que coisa óbvia! Tinha custado a
encontrar o significado, mas a culpa era desse pessoal. Empenhavam-se em ser tão
retumbantes, tão pedantes, tão rebuscados que acabavam obscurecendo o trivial.
O olhar de Koch desceu até o pé da página e deu com uma assinatura na qual,
com toda a nitidez, podia se ler Espartaco.
— Espartaco... Veja só. Nada menos do que Espartaco. Serviu outro café e o
tomou em pequenos goles enquanto cruzava o aposento com passos tranqüilos e
pausados. Estava mergulhado nas reflexões mais profundas e, quando ocorria tal
eventualidade, a rapidez com que sua mente funcionava contrastava com a lentidão que
impunha a seus gestos. Finalmente, parou, respirou fundo e murmurou:
Lebendig, Lebendig...
Quatro
França, maio de 1793
Cinco
Baviera, 1775
3
Em alemão, no original.
4
Em alemão, no original.
— Algumas podem ter sido ocasionadas por animais, mas tenho a impressão de
que já encontraram o trabalho bem adiantado. O assassino se fartou com as partes do
rapaz.
— O senhor acha que pode ter sido uma vingança por ele ter se recusado a se
entregar? — perguntou Steiner.
O doutor encolheu os ombros, deu uma nova sugada no cachimbo e lançou no
ar uma baforada de fumaça azulada. Desta vez não foi uma seqüência de gestos
prazerosos, mas um encadeamento de movimentos cansados, quase dolorosos.
— Talvez... talvez... — disse. — Em todo caso, depois de o matar, parece que
se deleitou em profanar o cadáver.
Um silêncio incômodo desceu sobre o aposento. Dava a impressão de que
nenhum dos presentes queria estar ali, de que teriam dado alguma coisa valiosa para
poderem se livrar da obrigação de examinar o cadáver. Sentiam-se surpresos diante de
uma manifestação da maldade humana que ultrapassava aquilo que estavam
acostumados a presenciar em seu papel de médico, juiz ou policial.
— O assassino deixou alguma pista? — quebrou finalmente o silêncio Steiner.
— Quer dizer, cabelos, um botão, um pedaço de roupa...
— Absolutamente nada — respondeu o médico. — Quase... quase dá a
impressão de que se preocupou em apagar qualquer pista depois de matar e sodomizar o
rapaz. Ou então era um fantasma...
— Ora, vamos! — protestou o juiz quando ouviu as últimas palavras. — Tudo
isso já é bastante complicado em si para que o senhor se dedique a brincar com as
palavras.
Um fantasma, repetiu mentalmente Steiner. Definitivamente, nada daquilo iria
agradar a herr Koch.
Seis
Baviera, 1787
MAIS DE UMA VEZ, mais de duas, mais de uma centena, Koch tinha se perguntado
por que Lebendig e, principalmente, a casa de Lebendig não lhe provocavam nenhuma
sensação de mal-estar. E isso apesar de que, sem nenhuma espécie de dúvida, nunca
tinha conhecido ninguém tão desorganizado quanto ele. Não, nem antes nem depois que
cruzara seu caminho ele tinha tido oportunidade de ver alguém semelhante. Era curioso
mas, para dizer a verdade, suas vidas nunca teriam se cruzado se não fosse por aquele
padre bêbado. Sim, bendito padre bêbado.
Tinha chegado numa manhã, fazia nove anos, sufocado e furioso, afirmando
que desejava recuperar alguns papéis pessoais que andavam em poder de um tal
Lebendig. Durante alguns minutos, o policial que o atendia o ouvira com enorme
interesse, quase com devoção — se fosse possível usar essa expressão de uma forma
que não soasse imprópria —, mas não tinha demorado a perceber que aquele homem
dizia apenas incoerências e que nada indicava que tivesse sido objeto de algum ato
punido pela lei. Foi nesse momento que, alegando que o caso que lhe expunha requeria
uma pessoa mais importante, tinham-no encaminhado para ele.
Koch tinha precisado apenas de dois minutos para compreender que o clérigo
em questão se sentia enormemente ofendido e que transpirava desejos de vingança por
cada poro da pele. O máximo que podia se perceber, no entanto, era que um sujeito
chamado Lebendig tinha dado dinheiro ao padre em troca de que escrevesse em alguns
papéis. Pensou imediatamente que devia se tratar de um analfabeto necessitado de um
copista. Havia-os — tanto uns quanto outros — aos montes em Ingolstadt.
— Tratava-se de alguma carta para a noiva ou a mãe? — perguntou Koch ao
ébrio sacerdote.
— Não — respondeu acalorado. — Não, não, não. Ora essa! Ele me fazia
escrever... só isso.
— Ah, sim — disse Koch respirando fundo —, mas isso, padre, se me permite
dizer, não é um crime.
O sacerdote passou os dedos pelo rosto como se quisesse arrancar alguma coisa
muito grave que tivesse ficado agarrada à sua pele.
— Calma, calma, é que... Bem, primeiro, ele me fez escrever. Nada em
especial. O que eu quisesse. E eu escrevi. Eu escrevi! Modéstia à parte, posso dizer que
desde meus tempos de seminário poucas pessoas tiveram uma letra melhor do que a
minha. E assim era. Não ficaria bem eu negar isso...
Koch concordou com a cabeça, enquanto se perguntava mentalmente quanto
tempo seria capaz de suportar aquela história.
— Então ele me manteve escrevendo um tempinho. Não muito. Um tempinho.
— Um tempinho — repetiu Koch, procurando lhe dar segurança.
— Mas depois começou a me dar bebida — continuou o padre com uma
mistura de arrependimento e raiva na voz.
— À força? — perguntou Koch, embora tivesse consciência de que a pergunta
era totalmente desnecessária.
— À força? Bem, não... não acho que se possa dizer que ele tenha me forçado.
Não, na verdade ele não fez isso mas...
— Mas... — repetiu Koch, tentando ajudar o clérigo a continuar seu relato.
— Mas olhou minha letra, sim, olhou minha letra e disse: "Estupendo,
estupendo, o que eu pensava."
— "Estupendo, estupendo, o que eu pensava" — repetiu Koch sem tirar os
olhos do clérigo.
— Isso, ele disse isso. "Estupendo, estupendo, o que eu pensava." Então me
avaliou outro tempinho e, de repente, saiu do aposento, voltou ao final de outro
tempinho e me disse: "Sinto muito, padre, mas acabam de me dizer que o telhado de sua
igreja acaba de desabar."
— Uma desgraça — pensou em voz alta Koch.
— E como, e como! O senhor poderia jurar — disse com os olhos abertos
como pratos o sacerdote. — Naquele momento, é claro, eu tentei me levantar, partir, ir
embora. O senhor me diga. Com a paróquia em ruínas, que outra coisa eu podia fazer?
Koch concordou mas não abriu a boca. Ou o padre estava louco de se internar
ou estava prestes a chegar ao cerne da questão.
— Mas quando tentei me levantar, esse... esse Lebendig pôs a mão em meu
ombro e me disse: "Padre, eu lhe suplico, escreva alguma coisa. O que for, mas escreva
alguma coisa."
— E o senhor escreveu?
— Claro... claro que sim. Não vou esconder. Escrevi. E então... aí vem o pior...
O sacerdote se apoiou na mesa, aproximou o rosto do de Koch e, ao mesmo
tempo era que lhe lançava uma baforada de álcool que o policial achou insuportável,
disse:
— Ele leu o que eu tinha escrito e disse: "O que eu imaginava." O senhor
ouviu? Ele disse: "O que eu imaginava!" Naturalmente, eu aproveitei que ele estava
lendo o papel para começar a correr até minha paróquia...
— Naturalmente — concordou Koch.
— Bem, pois cheguei à minha paróquia e o senhor sabe o que estava
acontecendo?
— Não faço a menor idéia — respondeu o policial.
— Pois nada — disse o clérigo —, nada. Nada! A igreja estava como sempre
esteve. Sem uma rachadura.
Koch se recostou no espaldar de sua cadeira quando escutou aquelas palavras.
Naturalmente, toda a história podia ser falsa, mas, se não fosse, o que ele tinha pela
frente exatamente? Uma zombaria com a religião? Não, ninguém tinha perpetrado
qualquer escárnio contra Deus, a Virgem nem contra nenhum santo. Uma fraude? Pelo
contrário. O padre em questão era quem tinha recebido o dinheiro. Era verdade que a
história do teto da paróquia era falsa, mas isso não podia ser considerado um crime. Em
outras circunstâncias, Koch teria prometido ao sacerdote ocupar-se do caso e, ato
contínuo, teria tratado de arquivá-lo, mas alguma coisa lhe dizia que o tal Lebendig era
um personagem peculiar, tão peculiar que podia interferir na ordem, impoluta e perfeita,
que caracterizava a tranqüila cidade de Ingolstadt.
— Não se preocupe, padre — disse por fim. — Dê-me o endereço desse
personagem e eu, pessoalmente, vou me ocupar de perguntar o que houve.
Um sorriso de felicidade paralisou o rosto do clérigo quando ouviu aquelas
palavras. Sem dúvida, já estava quase convencido de que ninguém o atenderia. E agora,
agora aquele policial tão atencioso, tão ponderado, tão diligente ia lhe dar atenção. Foi
embora feliz, risonho, quase entusiasmado. Tanto que resolveu comemorar isso
entrando na primeira taberna que cruzou seu caminho.
Koch não agiu imediatamente. Deixou passar uns dois dias e, finalmente, foi
até a casa do tal Lebendig. Ele morava num prédio não muito antigo de uma área quase
próspera da cidade. Com apenas algumas varas a mais, sua casa estaria numa área
invejável. De onde se encontrava, tinha apenas que andar alguns minutos para se
defrontar com algumas das pessoas mais necessitadas de Ingolstadt.
O policial alisou o queixo enquanto corria os olhos pela entrada do prédio,
depois respirou fundo e atravessou o umbral. Um cheiro de comida, não exatamente
agradável, invadiu suas narinas enquanto subia os degraus. Não se poderia dizer que a
escada estivesse suja, mas Koch teve a sensação de que aquele lugar não contava com
toda a limpeza necessária. Era como se os vizinhos não tivessem um interesse especial
em manter a dignidade, embora também não se pudesse acusá-los de sujos. Sem deixar
de olhar as paredes e os degraus, chegou até o andar onde o padre tinha dito que aquele
estranho indivíduo morava.
— Herr Lebendig? — perguntou quando abriam a porta.
— Sim, herr — respondeu a mulher cuja silhueta aparecia no umbral, ao
mesmo tempo em que acompanhava sua breve resposta com um movimento ligeiro de
cabeça.
— Gostaria de vê-lo — disse Koch num tom correto, mas que deixava claro
que não aceitaria uma negativa.
— Espere, bitte — disse a mulher enquanto fechava a porta.
Koch ouviu alguns passos no interior, suficientemente quietos para afastar a
hipótese de que alguém quisesse fugir à ação da justiça. Ao fim de alguns instantes, a
porta voltou a se abrir, confirmando seu ponto de vista.
— Entre, bitte.
A mulher foi na frente, ao longo de um corredor peculiar. Não era estreito
demais e também não estava mal iluminado, mas num de seus lados estava apoiada uma
estante comprida repleta de livros. Livros! Para que o morador daquela casa podia
querer tantos livros? E, sobretudo, como é que o padre não lhe tinha dito nada a
respeito?
A pergunta lhe pareceu ainda mais obrigatória quando ele desembocou,
seguindo a mulher, numa saleta. Em outra casa, aquele cômodo estaria ocupado por
diversos móveis. Um aparador onde expor melhor a baixela, cadeiras, talvez umas duas
mesas, e até um piano ou um cravo... No entanto, aquela saleta também estava tomada
pelos livros. Abarrotavam as estantes das paredes, mas também se remoinhavam - sim,
remoinhar-se era a palavra apropriada - pelo chão do aposento. Ao mesmo tempo em
que reprimia um calafrio, Koch pensou que aquelas montanhas formadas pelos volumes
lembravam os tufos de ervas daninhas que abarrotam um jardim malcuidado.
— Sente-se, herr — disse a mulher, mas Koch demorou alguns instantes para
localizar algum lugar em que pudesse colocar suas nádegas.
Encontrou-no numa cadeira minúscula colocada entre duas pilhas de livros
quase tão altas quanto o assento. Ocupou-a e, ao se sentar, percebeu que aquela
desordem tinha lhe provocado uma desagradável transpiração na palma das mãos. Tirou
de sua manga direita um lencinho e as secou, enquanto se perguntava que crimes uma
pessoa tão desorganizada chegaria a cometer.
— Em que posso servi-lo?
Sete
Paris, 24 de julho de 1794
5
Floreal: oitavo mês do calendário republicano francês, cujos dias primeiro e último
coincidiam, respectivamente, com o 20 de abril e o 19 de maio.
6
Frutidor: décimo segundo mês do calendário republicano francês, de 18 de agosto a
16 de setembro.
Oito
Baviera, 1775-1776
Nove
Baviera, 1787
7
Em alemão, no original.
— Desculpe, herr Lebendig, mas o que é que isso tem a ver com o padre List?
— Com seu... tio? Muito. Muito. Já vai ver. Da mesma forma como nossa
sombra fica projetada numa parede por efeito da luz, o que nós somos, o que pensamos,
o que escondemos, pode se projetar sobre o papel quando traçamos nossa escrita sobre
ele.
— O senhor está querendo dizer que o que escrevemos deixa a descoberto
como somos?
— Não exatamente. O que estou querendo dizer é que a maneira como
escrevemos deixa a descoberto aquilo que somos.
— Não tenho certeza de estar entendendo — reconheceu Koch.
— Sim, caro. É natural — disse com expressão compreensiva Lebendig. —
Bem, o que o senhor pensaria se eu lhe dissesse que na letra, em sua letra, posso ver
qual é seu estado de espírito, como é seu caráter, se está mentindo ou dizendo a verdade,
ou inclusive se sua saúde é boa ou a doença o corrói?
Koch ficou em silêncio por um instante. Terminou o conteúdo da xícara de café
e reprimiu o impulso de acariciar o queixo.
— O que é que tudo isso tem a ver com o padre List? — disse por fim. Um
sorriso alegre, divertido, quase infantil, iluminou o rosto redondo de Lebendig.
— Tudo. Tem tudo a ver. Espere um instante.
Lebendig se levantou da cadeira e de uma arrancada se dirigiu até uma das
portas que furavam as paredes do aposento. Demorou apenas alguns instantes para
voltar e ao fazer isso trazia nas mãos alguns papéis.
— Observe isto — disse, colocando uma das folhas sobre a mesa. — Esta é a
letra normal de List.
Koch observou os traços. Eram bem-feitos, redondos, como os de um aluno de
escola que deseja escrever da melhor forma possível seus exercícios de caligrafia.
— Agora observe a letra de List em adiantado estado de embriaguez —
comentou superpondo outro papel sobre o texto. — O senhor está vendo a diferença de
traços? São mais trêmulos, mais hesitantes, mais inseguros, ergo o efeito do álcool
transparece na maneira como escrevemos.
— Acho que estou entendendo — disse Koch entre dentes enquanto passava os
olhos de um papel ao outro. — O que eu não consigo compreender é por que o senhor
disse aquela história da paróquia...
— O senhor se refere à má notícia que lhe dei? — disse Lebendig, reprimindo
um sorriso.
Koch fez que sim com a cabeça.
— É facílimo, meu amigo — exclamou Lebendig, num tom quase triunfal. —
A tristeza, a ira e a dúvida também ficam projetadas na escrita como a sombra da xícara
na parede. De fato, o mundo desabou em cima de seu tio quando eu lhe contei a história
sobre sua paróquia. Veja, veja o senhor esta letra. Percebe como ela cai no final? É
quase como... como se ele desmoronasse esmagado pela dor.
Os olhos do policial se cravaram no papel. Sim, não restava a menor dúvida de
que o que Lebendig estava dizendo era verdade. Graças a isso que ele chamava de
experiências, podia-se ver como a letra de um homem se alterava em conseqüência do
álcool ou da dor. A verdade é que, quanto mais pensava naquilo, parecia-lhe mais
sugestivo.
— Seu tio, o padre List, prestou um grande serviço à ciência. Muito grande.
Admito que não agi corretamente mentindo para ele, mas como eu teria podido captar
os efeitos da aflição em sua letra sem lhe dar esse susto? Por outro lado, não tive a
pretensão de que colaborasse gratuitamente. Paguei a ele.
— Desculpe, herr Lebendig — disse Koch sem tirar os olhos dos papéis. —
Não sei se entendi direito, mas... o senhor disse antes que também poderia descobrir o
caráter de uma pessoa, que até poderia ver se ela está doente?
— Com certeza — respondeu Lebendig. — Com certeza. Posso lhe mostrar
alguns exemplos de escrita que...
— Poderia ler minha letra? — interrompeu-o Koch.
Lebendig não respondeu. Limitou a se levantar rapidamente e a tornar a se
perder por uma das portas que davam para a saleta. Retornou em alguns instantes com
um tinteiro, algumas penas e alguns papéis.
— Assine — disse enquanto colocava os objetos diante de Koch.
— Como?
— Assine. Escreva sua assinatura. A que o senhor faz normalmente. Koch não
teve o menor sinal de hesitação. Molhou a ponta bem cortada da pena no tinteiro e em
seguida assinou do mesmo jeito que fazia todos os dias.
— Bom, muito bom — disse Lebendig. — E agora o senhor gostaria de
escrever alguma coisa? Por exemplo, alguma coisa como "Gosto muito de meu tio, o
padre List". Sim, isso ou algo parecido.
O policial deixou no papel uma demonstração de carinho para com o sacerdote
que não era absolutamente seu parente e que, ainda por cima, àquela altura já não tinha
a menor importância para ele.
— Bem, vamos ver o que temos aqui — comentou Lebendig enquanto pegava
o papel. — Caramba, que preocupação o senhor tem com a ordem. É uma verdadeira
obsessão. Imagino que deva estar se sentindo muito mal nesta casa...
Koch engoliu em seco, ao mesmo tempo em que sentia uma pontada incômoda
no peito.
— Um apaixonado pela ordem. Puxa, e como! Dotado, além do mais, de uma
memória muito boa. Quase me atreveria a dizer que é excelente. Repare, repare na
forma como junta as letras. Um memorião. E além do mais, tem uma capacidade
excepcional para relacionar idéias.
O policial tentou esboçar um sorriso de cortesia, mas lhe saiu um trejeito
incômodo.
— Sim, intelectualmente, o senhor conta com algumas qualidades
excepcionais. Mas... mas... permita que eu lhe diga isso, não deveria ser tão exigente
consigo mesmo. Principalmente, porque não consegue colocar para fora toda a tensão
acumulada. Não, o senhor controla, reprime demais seu comportamento e, veja, veja
este traço. Não lembra a lâmina de uma faca? Está vendo? Pois bem, o senhor está
cravando essa faca em sua saúde com essa insistência permanente em ser tão exigente.
Com toda a certeza, o senhor tem dores de estômago com mais freqüência do que
desejaria.
Sem se dar conta, Koch levou a mão à barriga e fez uma leve carícia sobre sua
superfície, como se quisesse aliviar mal-estares sofridos com uma periodicidade
excessiva.
— Deve se cuidar mais — prosseguiu Lebendig. — Preste atenção no que
estou dizendo. Bem, passemos para outro ponto. Vejamos... O senhor é imensamente
discreto. Eu não diria que é mentiroso, mas sim discreto ao extremo. Quase me atreveria
a dizer que o que se passa pela sua cabeça só Deus e o senhor sabem. Mas, repare,
mesmo assim, não consegue esconder tudo. Por exemplo, o senhor não gosta do padre
List e não porque seja má pessoa. É simplesmente porque ele não é seu parente.
Koch fez um movimento brusco que tentou reprimir da melhor maneira
possível. Tudo, absolutamente tudo o que Lebendig tinha dito correspondia com
precisão matemática à realidade, mas a referência ao padre...
— Agora deixe-me verificar sua profissão... Funcionário, sem dúvida, mas...
mas que tipo de funcionário? Poderia ser juiz... mas... não, o senhor não é juiz. O senhor
é policial.
Dez
Baviera, 1776
Onze
Paris, 24 de julho de 1794
KOCH, POR SER MUITO RESERVADO, nunca disse isso em público, mas desde aquele
dia em que se encontrou pela primeira vez com Lebendig soube que sua vida iria sofrer
uma reviravolta. E sofreu. Encarregou-se — não queria ter surpresas desagradáveis —
de visitar o padre List e de elogiá-lo por sua colaboração inestimável para o avanço da
ciência. O clérigo — com os olhos arregalados como pratos — demorou um bom tempo
para entender o que o policial estava lhe falando.
— Padre, acredite em mim se eu lhe disser que o próprio Eleitor8 da Baviera
lhe agradecerá por sua dedicação — concluiu Koch diante de um sacerdote que não saía
de seu assombro e que retornou à sua paróquia com passo vacilante, em parte pelo
espanto e em parte pelas generosas doses que o policial tinha lhe oferecido.
Durante os anos seguintes, Koch se encarregou, da maneira mais discreta
possível, de impedir que Lebendig fosse embora de Ingolstadt. Quando constatou que
aquela figura notável andava mal de recursos, conseguiu-lhe alguns alunos particulares
para ensinar latim e grego. Não foi uma tarefa muito fácil, por que essa ocupação tão
necessária era desempenhada pelos membros da Companhia de Jesus que, depois da
dissolução de sua ordem, tinham que ganhar a vida de alguma forma. Não unha dúvida
de que os filhos de santo Inácio eram cultos, disciplinados e até brilhantes. No entanto,
para Koch era muito mais interessante contar com a colaboração de Lebendig do que
prover sustento para os jesuítas.
Era, dizia a si mesmo para tranqüilizar sua consciência, uma questão de ordem.
Naturalmente, empreendeu uma investigação rigorosa para conhecer as
intimidades de Lebendig. E, obviamente, resolveu encarregar disso Steiner, que se
transformou em pouco menos do que a sombra daquele extravagante indivíduo. Durante
semanas, seguiu-o por todos os cantos, municiado de uma caderneta em que anotava até
os detalhes mais mesquinhos. Foi um trabalho rigoroso, bem documentado e impecável.
Foi um trabalho de método e ordem policial. O que Steiner descobriu depois de jornadas
8
Nome dado a cada um dos príncipes alemães que nomeavam ou elegiam o
imperador.
inteiras não encheu Koch de alegria, mas pelo menos deixou claro que podia confiar em
Lebendig. Tratava-se de uma pessoa extraordinariamente trabalhadora. De fato,
conseguia passar horas sem tirar o traseiro da cadeira lendo e escrevendo. Claro que
acabavam aí suas extravagâncias. Não bebia, não fumava, não freqüentava tabernas nem
prostíbulos. Nem mesmo era clara a relação que mantinha com a mulher que vivia sob o
mesmo teto que ele e que, a julgar pelas aparências, era a mãe de um menino que não
articulava uma palavra. Era sua esposa? Era sua governanta? Era sua assistente? Era sua
amante? Difícil, para não dizer impossível, determinar isso, mas pelo menos não restava
dúvida de que não vivia correndo atrás de rabo-de-saia. Isso indicava uma ordem
interior — claro, que não tinha correspondente no mundo exterior — que agradou a
Koch. Estava tudo certo. Desde então, faria parte — não de maneira oficial, é claro —
das forças que mantinham a ordem na cidade.
Examinando tudo com a distância dos anos, ninguém teria podido duvidar da
ajuda de Lebendig e sua estranha ciência para a manutenção da lei na cidade,
extraordinária por diversas razões, de Ingolstadt. Em poucos anos, os casos foram se
multiplicando de forma realmente prodigiosa. O primeiro — lembrou-se, e um sorriso
divertido se desenhou em seu rosto — foi o de um falsário. Havia uma meia dúzia de
suspeitos e Lebendig resolveu toda a confusão em meia hora. Bastou-lhe comparar as
diferentes letras com a que figurava nos documentos falsificados. O juiz era um pouco
incrédulo, a princípio. No entanto, quando Lebendig disse que "o acusado, no fim das
contas, sofreu muito ultimamente. Está convencido de que sua mulher o engana e isso o
impeliu a violar a lei" e o delinqüente começou a chorar uma Madalena, o magistrado
não teve nenhuma dúvida de que a verdade nua e, acima de tudo, grandiosa se abria
diante dele.
— Foi fácil — disse modestamente Lebendig quando o juiz o parabenizou,
oprimido pelo espanto.
E depois daquele falsificador vieram os ladrões — muitos, certamente —, e
aquele assassino de mulheres que tiveram que perseguir durante metade do ano e...
certamente, os invejosos não demoraram a aparecer. Não questionavam a habilidade —
verdadeiramente indiscutível, realmente prodigiosa, absolutamente incomparável — de
Lebendig. Não, nunca se atreveram a colocar esse ataque frontal. Resolveram recorrer a
manobras envolventes. Começaram então a ressaltar que Lebendig era um protestante
numa cidade católica. Claro que Baviera podia se permitir a presença de hereges, de
maçons, de judeus, mas por acaso era necessário lhe outorgar esse privilégio?
— Sim — disse o bispo transparecendo convicção —, durante séculos meus
antecessores tiveram um médico judeu e tudo correu muito bem. Não vejo por que a
polícia do Eleitor tenha que renunciar a um colaborador com essas qualidades
simplesmente porque ele acredita na teologia da Reforma. Seria uma estupidez tão
grande quanto perder Mozart como músico simplesmente porque é maçom ou morrer de
sede porque o único aguadeiro é um turco.
A autoridade episcopal livrou Lebendig das armadilhas dos invejosos. Mas foi
apenas durante uma temporada. Porque depois apareceram aqueles que começaram a
censurar que ele morasse com uma mulher loura, pálida e calada, e um menino que não
falava uma palavra, sem que, pelo visto, estivesse casado com a primeira ou fosse o pai
do segundo. Foi quando Koch interveio diretamente em defesa de seu imprescindível
colaborador. Numa manhã, enquanto saía das dependências da polícia acompanhado por
Steiner, apareceu em seu caminho uma criatura que, alegando as intenções mais nobres
e desinteressadas, e até as mais piedosas, começou a criticar Lebendig de maneira
virulenta.
— Com o que você se escandaliza, hein? E por quê, pode-se saber? Porque é
tão caridoso que oferece estudo a um rapaz sem cultura do qual ainda por cima não é o
pai? Porque oferece casa e comida a uma pobre infeliz que não tem onde cair morta?
Estamos chegando a este ponto? A criticar a caridade?
Mais uma vez, Lebendig se viu a salvo de uma ordem de expulsão que o teria
atirado sabe Deus em que lugar distante. Mas isso porque todas aquelas ações não
poderiam ter estado mais bem encaminhadas para a manutenção da ordem. Porque a
cidade de Ingolstadt tinha muito a agradecer a Lebendig! E ele, ele também, porque —
tinha que reconhecer, ainda que não publicamente — se não fosse Lebendig nunca o
Eleitor da Baviera em pessoa o teria condecorado. Funcionário exemplar, tinha sido
chamado, antes que as pessoas irrompessem era aplausos. Funcionário exemplar! Pois
então, era o que ele era. Percebia onde a ordem cósmica tinha sido violada e corria para
consertá-la e, exatamente nesse trabalho de restauração, Lebendig se mostrava
essencial.
O melhor, no entanto, não tinham sido as promoções, nem as honrarias, nem
mesmo os aumentos de salário. O melhor tinha sido o que tinha conseguido aprender
com Lebendig sobre os homens e as mulheres com que cruzava diariamente pelas ruas.
Realmente, o coração humano era um poço sem fundo e em seus abismos mais
profundos nem sempre a luz brilhava. Senão, que fossem dizer isso à viúva Scheider.
Frau Scheider era uma das mulheres mais abastadas de Ingolstadt. Seu marido
— que era muito mais velho do que ela — tinha morrido deixando-a sem filhos, mas lhe
proporcionando em compensação uma fortuna extraordinária ligada a algumas
manufaturas de luxo como a porcelana e o cristal. Em circunstâncias normais, a viúva
não teria demorado a encontrar um partido conveniente e até atraente. No entanto, a boa
mulher parecia estar rodeada por um halo que afastava os pretendentes, em vez de atraí-
los. Para os velhos que tinham querido juntar riqueza com viver com tranqüilidade seus
últimos anos, frau Scheider parecia enérgica demais, vigorosa demais, forte demais para
lhes assegurar o tão sonhado sossego. Para os jovens que estavam à procura de boa vida
mediante o expediente de encontrarem uma esposa endinheirada, frau Scheider parecia
excessivamente independente, excessivamente sólida, excessivamente... mandona? Sim,
era essa a palavra. Mandona. No fim das contas, para uns e para outros, frau Scheider
tinha defeitos que anulavam uma capacidade de atração centrada fundamentalmente no
dinheiro.
Certamente, frau Scheider poderia ter procurado um amante para acalmar seus
inegáveis ardores. Mas Ingolstadt, ah Ingolstadt!, era uma cidade construída em torno
dos jesuítas e por mais que a Companhia de Jesus tivesse sido dissolvida por ordem do
poder secular, sua marca não tinha desaparecido. Frau Scheider, e principalmente
levando-se em conta o quanto era conhecida, devia ser um exemplo de decência. Ela,
mais ainda do que as mulheres comuns, tinha que saciar o apetite sexual com os laços
sagrados do casamento e se violasse as regras teria que assumir as conseqüências. Por
exemplo: ficar sem clientes que comprassem suas porcelanas e seus cristais.
Pois bem, aquela mulher chegou um dia ao gabinete de Koch, recém-
promovido, certamente, com um problema grave. Quando desempacotaram uma de suas
valises mais luxuosas no palácio de um conhecido aristocrata, mais concretamente,
quando abriram uma sopeira de refinadíssimo acabamento, encontraram um bilhete que
dizia: "Comam, idiotas, comam como porcos que são." Entre rubores e suores, a viúva
tinha pedido mil e uma desculpas a um nobre que, para falar a verdade, a duras penas
conseguia conter as gargalhadas diante do que considerava uma tolice pueril.
No entanto, apesar da benevolência do aristocrata, não se deu por satisfeita.
Certa manhã, com um vestido de luto fechado, embora decotado, tão decotado que
Steiner teve problemas para que seus olhos não saíssem das órbitas, apresentou-se no
gabinete de Koch intimando-o a descobrir o culpado daquela ação intolerável.
— A senhora suspeita de alguém? — perguntou enquanto estudava a mulher e
dizia a si mesmo que, sem dúvida, era preciso muita coragem para se casar com ela.
— Pois a verdade é que sim, herr Koch, tenho sim minhas suspeitas.
— Então, por favor...
— Veja o senhor — disse a viúva sem deixar que ele concluísse a frase. —
Quando meu marido, meu pobre Wilhelm, morreu, Deus o tenha em sua glória, bem,
quando ele morreu, deixou-me todos os seus empregados. Eu... por caridade cristã, essa
é a verdade, mantive todos eles em seus postos. E devo lhe dizer que todos têm se
comportado muito bem... bem, todos menos Sigmund.
— Sigmund — repetiu Koch, enquanto anotava o nome.
— Sim, Sigmund — disse a viúva. — É o administrador e... e um homem
detestável. Precisa ver como me olha.
Foi só ela terminar aquela frase e Steiner, como que impelido por uma mola,
direcionou os olhos para o teto.
— Desculpe — interrompeu Koch. — Como ele a olha? Por acaso se atreveu
a...?
— Não, claro que não — repeliu frau Scheider com um movimento da mão
direita. — Não estou me referindo a... isso. Trata-se de outra coisa. É como se tudo que
eu faço o incomodasse e, fique o senhor sabendo, as fábricas agora funcionam muito
melhor do que quando meu marido vivia. Pois muito melhor!
— Por que a senhora acha que Sigmund...?
— Não tenho provas — respondeu imediatamente a viúva, culpada dessa
acusação, sem deixá-lo terminar a frase. — Não as tenho, mas estou convencida de que
foi ele, e se for verdade, bem, vou colocá-lo no olho da rua imediatamente, por mais
anos que tenha trabalhado para meu defunto, que Deus o tenha.
Koch pediu a um Steiner empenhado em cravar os olhos no teto que
acompanhasse a viúva Scheider até a saída. Ainda não tinha deixado o aposento quando
já meditava sobre como devia ser desagradável viver com alguém que não o deixava
concluir uma única frase. Àquela altura, estava mais do que convencido de que
Lebendig poderia encontrar o culpado.
Não se enganou. Numa manhã, ele reuniu na fábrica todos os que sabiam ler e
escrever, sentou-os diante de folhas de papel e lhes fez um ditado breve. Depois
mandou que assinassem, dispensou-os e começou a comparar as amostras de letras com
o bilhete que tinha aparecido, desafiador e grosseiro, numa sopeira cara e elegante.
— Este é o culpado, sem dúvida — disse, ao fim de apenas um quarto de hora.
— Sigmund, claro — exclamou a viúva com um sorriso de satisfação
transbordante.
— Não... — respondeu Lebendig. — Não é Sigmund.
Koch tinha observado a maneira como os músculos faciais da viúva tinham
despencado, desenhando uma careta de dolorosa surpresa. Não se podia negar que tinha
sofrido uma enorme decepção.
— Na verdade, o autor do bilhete foi Rudolph — concluiu Lebendig, enquanto
estendia os dois bilhetes para a mulher. — Se tem que despedir alguém...
— Rudolph? — quase gritou a viúva, impedindo que Lebendig terminasse a
frase. — Mas... mas não pode ser. Não, não pode ser.
— É ele, frau Scheider, é ele — cortou-a Lebendig. — Naturalmente, se a
senhora prefere considerar tudo uma criancice...
— Exatamente, meu senhor — disse a viúva enquanto leva a mão à garganta,
sufocada —, tudo isso não passa de uma criancice. E despedir Rudolph por causa
disso...
Lebendig e Koch trocaram um olhar breve mas carregado de significado.
Parecia óbvio que a viúva teria expulsado Sigmund a pontapés, se ele fosse o culpado,
mas Rudolph...
— Frau Scheider — tentou Lebendig retomar sua explanação —, certamente, a
senhora é muito religiosa para perdoar. Comportar-se assim é realizar uma ação, diga-se
de passagem, que a aproxima de Deus, mas acho que é minha obrigação observar...
— Deixemos tudo como está — interrompeu-o a viúva. — Agradeço-lhes pela
ajuda e... e lhes suplico que aceitem uma pequena gratificação pelo tempo gasto.
Qualquer outra pessoa teria optado por se calar e cobrar, mas Lebendig não
pertencia a essa espécie de homens. Como se não tivesse escutado as últimas palavras
de frau Scheider, tentou continuar apontando o que tinha descoberto.
— Por favor, repare no R maiúsculo da assinatura desse Rudolph. A senhora
está vendo essa espécie de gancho voltado para a esquerda? Pois bem, esse traço
denuncia uma inclinação para, como direi?, para se apoderar do alheio. É uma
circunstância de importância nada desprezível. Se fosse meu empregado, eu o
despediria hoje mesmo. Faria isso antes que ele levasse tudo o que pudesse porque...
A viúva Scheider não o deixou concluir. Com um gesto decidido, firme, que
não admitia réplica, praticamente os tinha empurrado para fora do recinto da fábrica.
Um mês depois anunciou seu compromisso matrimonial cora o jovem, ainda que de
aparência duvidosa, Rudolph. Seis meses depois, a criada que a ajudava a se vestir a
encontrou no meio de um mar de sangue. Tinha sido degolada e o assassino tinha fugido
com suas jóias mais valiosas. A polícia conseguiu capturar Rudolph pouco antes que
pudesse cruzar a fronteira da Baviera. Em sua defesa, disse, soluçando e com tremores
que sacudiam seu corpo, que não tinha conseguido agüentar por mais tempo uma
mulher que não o deixava terminar uma única frase. Foi exatamente quando ouviu
aquelas palavras que Steiner, atônito, murmurou:
— E parecia tão maternal!
Uma freada brusca arrancou Koch de suas lembranças. Abriu a cortina da
carruagem e lançou uma olhada para o exterior. Tinha que reconhecer que o lugar para
onde Lebendig tinha se mudado havia alguns meses não era nada mal. Um tanto
isolado, um tanto longe, e, claro, bem desarrumado por dentro. Como sempre, no
entanto, com muito mais espaço. Bem, já tinha chegado. Agora era só uma questão de
permitir que examinasse a carta assinada por esse tal Espartaco, porque se alguém podia
desenrolar aquele novelo conspiratório esse alguém era Lebendig.
Treze
Paris, 24 de julho de 1794
LEVARAM APENAS ALGUNS INSTANTES para verificar que, infelizmente, não tinham
se enganado na identificação do ruído. Sim, eram as pisadas firmes, agressivas,
orgulhosas dos sans-culottes, um som que vinha sempre acompanhado do entrechocar
brusco das armas e do estalido seco dos mosquetões ao serem engatilhados.
— Mãos ao alto! — gritou aquele que, sem dúvida, estava no comando.
O comerciante, a velha e Karl obedeceram à ordem sem contestar. Não tinham
a menor vontade de que os moessem a golpes de baioneta ou disparassem contra eles.
Sabiam de sobra que os sans-culottes não titubeariam um só instante na hora de matar
alguém que, por definição, considerassem burguês, aristocrata ou inimigo do povo.
— Heliotropo — disse um dos homens —, estavam trafecando ovos.
Trafecando... Sem dúvida, era preciso reconhecer que a revolução estava influindo na
língua mais do que uma reforma educativa teria conseguido.
Heliotropo — como diabos se chamaria este vagabundo antes de decapitarem o
Capeto? — deu alguns passos na direção do pequeno monte de palha onde jaziam os
arremedos de ovos. Deu-lhes uma olhada, pegou um deles e o aproximou do nariz. Não
devia cheirar mal, porque não fez nenhuma cara de nojo. Claro que também havia a
hipótese de que, com o fedor que tudo naquele lugar exalava, seu nariz não fosse capaz
de distinguir fedentina alguma.
— Expropriados — disse com a voz enrouquecida apenas pelo efeito do álcool.
— Os ovos estão expropriados.
Sim, "expropriados" era outra das palavras introduzidas pela revolução.
Tratava-se de um belo eufemismo para o saque e o roubo, porque Karl não tinha a
menor dúvida de que aqueles ovos iriam acabar na barriga dos sans-culottes. Sim, antes
que a noite chegasse, Heliotropo e seus companheiros (como se chamariam agora?
Graco? Pluvioso, Catão...?) estariam se fartando de gemas. É bem verdade que, pelo
estado provável dos ovos, o pecado já incluiria a penitência. Era o mínimo que
mereciam.
— Quanto a vocês, andando, inimigos do povo.
Jogaram-nos na rua aos empurrões e Karl se sentiu feliz por só terem roubado
sua casaca, sem reparar no relógio que carregava escondido num dos bolsos da calça.
Não tinha a menor certeza de que não acabariam despojando-o dele, mas pelo menos
por enquanto ainda o conservava.
— Heliotropo — ouviu um dos sans-culottes dizer —, acha que vale a pena
guilhotiná-los?
Uma risada zombeteira acolheu a pergunta macabra.
— Não ria. Estou falando sério — protestou. — Estou querendo dizer que os
tribunais populares demoram muito a decidir. Além do mais, enquanto eles são julgados
é preciso lhes dar de comer e é uma comida que se tira do povo, ou seja, de você e de
mim. Há sempre um jeito de dizer que eles escaparam e...
Pela primeira vez em muitos meses, Karl, que tantas vezes tinha visto a morte
apenas a alguns passos de distância, percebeu que agora inclinava seu rosto cadavérico
sobre ele. Aquele sans-culotte não estava brincando. Estava propondo a sério que os
matassem. Achar uma desculpa depois — "tentaram fugir, cidadão"; "ofereceram
resistência, cidadão..." — seria extremamente fácil.
— Pensando bem...
— Cidadão, você estaria cometendo um erro grave — disse Karl provocando
um olhar de espanto da velha e do comerciante.
O chefe dos sans-culottes arqueou as sobrancelhas numa expressão situada a
meio caminho entre a surpresa e a ira. No entanto, Karl sabia que não podia perder
tempo. Iniciado o caminho, tinha que ir até o final. Era isso ou esperar que os
assassinassem em alguma ruela alegando justiça revolucionária.
— Não somos pessoas desleais — prosseguiu Karl enquanto se perguntava
como poderia continuar aquele discurso. — Na verdade, os senhores poderiam
encontrar poucos cidadãos mais leais do que nós em Paris. Eu mesmo não sou francês...
Os sans-culottes cravaram os olhos em Karl como se não pudessem acreditar
no que estava acontecendo.
— E você estará se perguntando, cidadão, por que estou aqui. Não é isso
mesmo?
Observou que dois dos sans-culottes, sem abrir os lábios, balançavam a cabeça
afirmativamente. Bem, já era alguma coisa.
— Pois a resposta, cidadão, é muito, muito simples — prosseguiu. — Estou
aqui porque, do que acontecer na França, desta revolução, depende a sorte do mundo
inteiro.
— Você não é francês? — perguntou com expressão de desconfiança o chefe
dos sans-culottes. — Mas você fala muito bem. Será que você não é um aristrocata?.
Aristrocata... outra das contribuições revolucionárias à demolição da língua.
Era o caso de se perguntar com o que o francês se pareceria quando a Convenção tivesse
sido imposta em todo o território nacional.
— Sou um escritor. Um intelectual — corrigiu em seguida Karl. — Sou,
principalmente, um amigo do povo.
— Um amigo do povo, hein? — repetiu Heliotropo, enquanto levava a mão a
um queixo do qual a navalha de barbear não chegara perto pelo menos nas duas últimas
semanas.
— Diziam isso de Danton... — lembrou um dos sans-culottes.
— Sim, diziam isso até que madame Guilhotina cortou a barba dele... —
deixou escapar ingenuamente um outro.
— Leve-me, cidadão, até o seu chefe — afirmou Karl fingindo uma segurança
que não possuía. — Não tenha a menor dúvida de que tanto você quanto os cidadãos
sob suas ordens serão devidamente recompensados.
Heliotropo fixou os olhos em Karl sem parar de alisar o próprio queixo. Estava
consciente de que nas últimas semanas tinham sido executadas algumas medidas
disciplinares muito severas. Talvez até demais para uma república, mas, claro, isso tinha
que ser explicado ao pessoal do tribunal popular. E se aquele fulano era, no fim das
contas, quem dizia ser... Um inteletual. Nada menos do que um inteletual. Claro que
Danton e Saint-Just também eram inteletuais e Robespierre tinha zecutado justiça em
seus pescoços. Este quem seria? Bem, e ainda que ele fosse bom — e isso ainda era um
caso a ser visto —, a velha e o comerciante não eram. Seria o caso de perdoá-los
também?
— Está bem — disse por fim o homem que talvez não soubesse que seu nome
de batismo tinha sido substituído pelo de uma flor. — À cadeia com eles.
Catorze
Baviera, 1787
OUTRA PESSOA TERIA FICADO comovida ao ouvir a entonação com que o erudito
tinha falado. Aquela disposição, aquela confiança e aquela certeza de que poderiam
esconjurar o perigo pareciam esconder um conjunto de razões que, por serem
desconhecidas, não eram menos fortes para gerar esperança. No entanto, Koch, como o
farejador que sabe que precisa capturar uma presa, já tinha concentrado seus cinco
sentidos em Espartaco, deixando de lado qualquer espécie de sentimento.
— Por onde o senhor começaria?
— Não tenho a menor dúvida — respondeu imediatamente Lebendig, como
viesse formulando para si essa pergunta desde muito tempo. — Deve-se começar a
busca pelas lojas maçônicas.
— Tem certeza, Lebendig? — disse Koch um tanto surpreso com a resposta.
— Confesso que não sei muito sobre a maçonaria, mas... mas, bem, nunca tivemos
problemas com ela em Ingolstadt. Inclusive algumas pessoas importantes são maçons.
Estou me referindo a nobres, a militares, e até alguns padres. Reúnem-se com
freqüência, mas, apesar de serem só homens, não tenho notícia de que aquilo termine
com prostitutas ou algum tipo de excesso. O senhor acredita sinceramente que em suas
reuniões eles fazem muito mais do que colocar um avental como se fossem criadas e
falar bobagens?
Lebendig jogou o corpo para trás em sua cadeira. Era um gesto que Koch
conhecia muito bem como o prólogo de alguma explicação particularmente importante.
— Herr Koch — começou a dizer Lebendig —, se não me engano, e acredito
sinceramente que não é o caso, o senhor é católico.
— O senhor está cansado de saber disso — interrompeu-o um tanto aborrecido
o policial.
— Sim, eu sei — admitiu Lebendig ao mesmo tempo em que tentava reprimir
um sorriso. — Exatamente por isso me chama a atenção a tolerância de que a maçonaria
desfruta em estados católicos como a Baviera. O senhor deve saber que, desde que o
papa Clemente XII, se bem me lembro no dia 28 de abril de 1738, proibiu a entrada de
católicos na maçonaria, seus sucessores não deixaram de pronunciar condenações
semelhantes.
Koch sentiu uma desagradável sensação na boca do estômago. Procurava se
esquecer de que Lebendig era protestante e a verdade era que conseguia isso com certa
facilidade, mas quando se permitia instruí-lo sobre aspectos relacionados à sua religião
não conseguia deixar de se sentir profundamente incomodado. Por um lado,
incomodava-o a maneira fria como ele se referia a questões dogmáticas espinhosas,
quase como se não lhe interessassem, como se estivesse se limitando a descrever o
funcionamento de uma máquina ou o processo de crescimento de uma planta. Por outro,
desagradava-lhe profundamente a sensação de que ele pudesse conhecer a teologia
católica e, no entanto, não demonstrasse o menor sinal de que estivesse disposto a
abraçá-la no futuro. Nunca tinha dito aquilo, mas quase lhe dava a impressão de que
aquele conhecimento excepcional do catolicismo só servia para ele se firmar em sua fé
reformada. E, justamente quando chegava nesse ponto, o policial experimentava uma
profunda sensação de incômodo enorme e indescritível mal-estar. Não porque Lebendig
fosse um herege — o que, sem sombra de dúvida, ele era —, nem que, por acréscimo, a
exposição continuada à luz do catolicismo não tivesse produzido efeito em sua
convicção espiritual, mas o fato de que, ainda por cima, tratava-se de uma pessoa
educada, inteligente, até mesmo brilhante, a quem só se poderia acusar do hábito de
uma desorganização crescente nascida do acúmulo incontrolável de livros e papéis.
— O senhor está me dizendo que os católicos não vivem de acordo com suas
crenças? — perguntou Koch com uma expressão azeda.
— Não tenho essa intenção — respondeu Lebendig com um sorriso suave, esse
sorriso que tornava muito difícil se indispor com ele. — Estou me referindo ao fato de
que existem numerosas condenações papais contra a maçonaria, condenações, se me
permite dizer, cheias de razão. No entanto, na hora da verdade, não serviram para muita
coisa. Não por que as lojas existam, mas porque, inclusive, para muitos elas parecem
proporcionar um toque de distinção social. Nelas existem tanoeiros, carpinteiros,
alfaiates, até pedreiros, mas também nobres e religiosos.
— Eu lhe agradeceria se me dissesse aonde quer chegar — interrompeu o
policial, cada vez mais atormentado pela dor que tinha se instalado na boca de seu
estômago.
— É muito simples, herr Koch — disse Lebendig. — Nem mesmo enfrentando
o Papa a maçonaria se dobrou. Ostenta sua veneração até em países tão católicos quanto
a Baviera e se dedica a atrair personalidades de grande importância. E não é só isso. As
pessoas acabaram acreditando que seus encontros são simples reuniões paroquiais. Mas
não são.
— Não acha que está exagerando? — interrompeu-o Koch.
— Talvez — disse Lebendig —, talvez, mas somos dois em matéria de
exagero. Eu e esse... Espartaco.
O policial ficou em silêncio. Sim, o argumento fazia sentido. Não significava
que fosse verdadeiro, mas fazia sentido. Afinal de contas, era o próprio Espartaco que,
em sua repugnante carta, apontava os maçons como a origem de suas crenças e o
veículo de suas aspirações.
— Preste atenção no que estou dizendo, herr Koch. Se quer procurar esse
homem, o caminho inevitável e imprescindível são as lojas e acredite que não estou
exagerando quando digo que essa trilha está eriçada de perigos.
O policial ficou em silêncio, enquanto levava a mão à boca do estômago num
esforço, totalmente inútil, de acalmar a dor que o atormentava. Por um momento,
perguntou a si mesmo se aquele sofrimento dilacerante não seria uma advertência
enviada por seu corpo para lhe indicar o perigo que poderia estar à sua espera. Talvez,
talvez fosse isso, mas não tinha a menor vontade de se afastar para um lado enquanto
sujeitos como aquele Espartaco planejavam o fim de todo o mundo conhecido.
— Não sei muito sobre maçonaria... — confessou Koch enquanto sentia como
as chicotadas que partiam de seu estômago se projetavam até suas costas.
— Nesse caso — disse Lebendig como se o que tinha acabado de ouvir fosse o
mais normal —, podemos começar pelos motivos que levam uma pessoa a entrar nela.
Dezessete
Paris, 26 de julho de 1794
9
Famoso hospício francês.
— Eles não poderão prevalecer — respondeu com um fio de voz seu
interlocutor. — No final, serão derrotados. Tamanha maldade não pode ficar sem
castigo. Não é possível. Deus não há de permitir.
Um silêncio quase tão denso quanto o ar da masmorra caiu sobre a última
frase.
Karl procurou engolir outra vez e percebeu que sua língua parecia uma bola
inchada obstruindo o interior da boca. Meu Deus, estava com uma tremenda sede! Com
que prazer teria bebido uma jarra de água! Ou um copo, ou até alguns goles... Por acaso
pretendiam matá-los de sede? Talvez só estivessem planejando dobrá-los privando-os
de água para depois interrogá-los. Ou talvez não pudessem garantir o abastecimento da
cidade de Paris e tivessem começado com os inimigos do povo. Cada uma daquelas
possibilidades era, ao mesmo tempo, absurda e verossímil.
Fechou os olhos como se esse simples movimento pudesse isolá-lo do calor
sufocante e úmido a que estava submetido. O tempo corria. Isso era a melhor parte.
Continuava transcorrendo e se soubesse esperar, se se deixasse levar pela passagem das
horas, antes que ele percebesse alguma coisa iria acontecer. Talvez até lhe dessem de
beber. Respirou fundo, começou a contar mentalmente enquanto prendia o ar e então, da
maneira mais inesperada, veio-lhe à mente um versículo da Bíblia: "Como o cervo
brame pelas águas, assim brame por ti, ó Senhor, a minha alma."
Sem dúvida, podia compreender o comportamento do cervo. Ele também
bramiria se isso lhe pudesse ser útil para conseguir água. Quanto ao que se referia a
Deus... não, não se podia dizer que o tivesse buscado nos últimos tempos com o mesmo
ardor com que o animal percorria a floresta em busca de um regato. Nunca o tinha
abandonado, isso era verdade. Até se lembrava dele diariamente nos momentos mais
inesperados, mas fazia meses que sua busca estava concentrada em alguém muito
diferente. Tomar consciência dessa situação e experimentar uma pontada aguda de dor
foi tudo uma coisa só. De repente, Karl sentiu como se toda a sua vida desfilasse diante
dele e os acontecimentos possuíssem uma perspectiva diferente daquela com que ele os
tinha observado cotidianamente. Não, os fatos tinham uma importância — ou uma falta
dela — que não correspondia à que ele lhes tinha dado nos anos anteriores.
Sem conseguir evitar, Karl sentiu que as lágrimas se acumulavam em seus
olhos. Como tinha podido dilapidar sua existência daquela maneira? Sim, com toda a
certeza, claro que muitos não enxergariam as coisas assim, mas a ele não restava a
menor dúvida. Quantas oportunidades desperdiçadas para fazer o bem! Como se fossem
as borbulhas de um vinho espumante, subiu de seu coração uma grande quantidade de
momentos, desde sua infância até as últimas horas, em que poderia ter se comportado de
outra forma. Poderia, mas não tinha feito isso e agora... agora já não tinha condições de
fazê-lo.
Levou a mão direita ao rosto e enxugou as lágrimas. Eram abundantes,
ardentes, como se quisessem arrastar nelas toda a tristeza que o oprimia. Santo Deus, se
pudesse simplesmente voltar atrás, se lhe oferecessem uma outra chance, se contasse
com a possibilidade... Senhor, eu vos buscaria como o cervo que brame atrás das
correntes das águas.
Um feixe de luz queimou seus olhos irritados. A porta tinha acabado de ser
aberta e, por conta da dor, não tinha se dado conta disso até que o resplendor externo
tinha ferido suas pupilas.
— Você, sim, você, saia — soou a voz do sans-culotte. — Vamos, imbecil, não
podemos ficar aqui a manhã toda.
Até que sentisse a aspereza da bofetada na face e o puxão em seu braço para
arrancá-lo da masmorra, Karl não tinha se dado conta de que os guardiães da revolução
estavam se referindo a ele.
Dezoito
Baviera, 1787
Conspiração
Um
Do caderno de estudos científicos do professor Lebendig
— NA MINHA OPINIÃO, herr Koch, a primeira questão que seria interessante para
sua investigação é ter uma idéia clara dos motivos pelos quais uma pessoa decide entrar
para uma loja maçônica.
Koch olhou à sua volta. Dois empregados discretos com aventais impolutos se
deslocavam no meio de algumas mesinhas de metal distribuindo café e chocolate.
Aparentemente, não dava a impressão de que a dupla formada por ele e por Lebendig
tivesse chamado a sua atenção. A alguns passos, um Steiner que se esforçava para
passar despercebido deixava claro que, entre suas muitas qualidades, não estava a de
permanecer incógnito. Sem dúvida, o lugar para onde Lebendig o tinha convidado não
lhe parecia especialmente discreto e, exatamente por isso, dava a incômoda sensação de
que alguém poderia ouvir aquelas informações tão importantes.
— Certamente — continuou Lebendig, que não partilhava do desconforto de
seu acompanhante —, como em tantas questões, uma coisa é a realidade e outra, bem
diferente, as explicações que as pessoas dão sobre ela. Destas, se estiver de acordo,
podemos prescindir por enquanto. No que se refere à realidade, devo reconhecer que ela
é muito variada. Já de saída, temos o caráter da maçonaria. Não podemos nos enganar a
esse respeito. Trata-se de uma sociedade secreta.
— As sociedades secretas estão proibidas por lei... — pensou Koch em voz
alta.
— Sem dúvida, mas o senhor sabe até melhor do que eu que uma proibição
legal não serve para garantir a realidade social — prosseguiu Lebendig. — Se fosse
assim, não existiriam policiais, nem juizes, nem exércitos. Bastaria proibir o roubo, o
assassinato e a falsificação de documentos.
Koch não comentou as palavras de Lebendig. O raciocínio parecia impecável
em sua simplicidade.
— A prova fundamental de que a maçonaria constitui uma sociedade secreta é
que seus membros se comprometem sob juramentos terríveis a não revelar nenhum de
seus rituais, nem os nomes de seus companheiros de loja. Em segundo lugar, deve-se
levar em conta outro aspecto de enorme importância. Estou me referindo à pretensão da
maçonaria de contar com um saber que foi transmitido ao longo dos milênios. Seria uma
sabedoria oculta, esotérica, misteriosa. Teoricamente, teria passado de uns para outros
de maneira cuidadosa e secreta. Se levarmos em conta estas duas circunstâncias — o
segredo e o ensinamento oculto —, podemos tentar responder à questão de fundo que
nos interessa. Estou me referindo, é claro, ao motivo que impeliu uma pessoa a entrar na
maçonaria, e isto varia. Beba o seu café ou ele ficará frio.
O policial deu uma olhada na xicrinha que repousava a umas duas polegadas de
sua mão direita. Era como se tivesse estado adormecida ouvindo o início da conversa.
Cobriu a distância que separava seus dedos do recipiente, segurou a asa e se pôs a
terminar o café.
— Fale o mais claro possível, herr Lebendig — disse o policial antes de
aproximar a xícara dos lábios, temendo que o erudito se perdesse numa exposição
prolixa demais.
— Farei isso, farei isso — disse esboçando um sorriso. — Agora me escute.
Vejamos, em primeiro lugar, as pessoas humildes que representam uma cota exigida
pela loja e são iniciadas apesar de não passarem da condição de sapateiros, tanoeiros ou
caldeireiros. O que leva esses homens a se iniciarem na maçonaria? É pouco provável
que, por educação ou interesse, essas pessoas andem à procura dos grandes enigmas do
saber humano. Ah, mas eles têm uma outra razão mais importante para ingressarem na
maçonaria! Em suas lojas, eles podem se aproximar de pessoas que nunca passariam por
seus estabelecimentos e, menos ainda, nunca os considerariam irmãos. Um conde, um
duque, um barão e até um príncipe pode fazer parte de sua loja, e isso lhes abre caminho
para dizerem: "No outro dia, na loja, ouvi o marquês dizer... um boato qualquer."
Pretium vanitatis10, essa é a verdade. Mas quantas coisas o ser humano não faz por
vaidade? Pode ser que eu me engane, naturalmente, mas não acredito que Espartaco
pertença a esse grupo.
— Entendo — disse Koch indignado ao observar como Steiner havia fixado os
olhos numa mosca que esvoaçava por cima de uma jarrinha de leite —, mas nem todos
são sapateiros...
— Certamente, certamente — admitiu Lebendig —, e nem todos entram para a
maçonaria para conhecer um duque, até porque muitas vezes estão cansados de esbarrar
com eles. Existe um segundo grupo que. na verdade, o que procura é que lhe
comuniquem esse saber, supostamente milenar, que existe na maçonaria. Imagino que o
senhor conheça Haydn...
— Refere-se ao compositor?
10
Em latim no original.
— Ao genial compositor — retificou suavemente o erudito. — Sim, ele
mesmo.
— Ele é maçom? — perguntou um tanto surpreso Koch. Lebendig concordou
com a cabeça.
— Puxa!... E ele, por que entrou? — perguntou enquanto observava Steiner de
esguelha, cada vez mais absorto no vôo do inseto.
— Solicitou a iniciação porque alguém tinha lhe dito que os maçons possuíam
o segredo da música das esferas celestiais que Pitágoras chegou a dominar.
— Bendito seja Deus! — deixou escapar Koch. — Mas será que isso é
verdade?
— Inclino-me a acreditar que não — respondeu Lebendig com um sorriso
zombeteiro. — Eu explico. Haydn não compôs peças melhorei depois de sua iniciação.
A mesma coisa aconteceu com Mozart.
— Mozart também é maçom? — perguntou o policial, aumentando
ligeiramente a voz.
— Sim — respondeu Lebendig bem-humorado. — O pobre infeliz achava que
talvez tivessem revelado os mistérios da música a Haydn, seu ídolo, e que ele também
poderia encontrá-los. Sua música, excelente, é claro, também não melhorou após a
iniciação. E existe um último argumento que apóia minha tese: a música
especificamente maçônica é muito ruim. Temo mesmo que, se Mozart não lhes der uma
ajudinha, os maçons vão passar à História como o movimento responsável pelas
partituras mais espantosas já escritas neste século.
— Ou seja, descartamos este grupo... — sinalizou Koch cada vez mais atônito
diante da falta de dedicação de Steiner.
— Não, não descartamos - apressou-se a dizer Lebendig -, porque a questão é
que nem todos buscam um conhecimento secreto e... musical. Para outros, a maçonaria
é um lugar onde esperam descobrir um conhecimento oculto que lhes ensine um
cristianismo diferente, ou os mistérios da magia ou inclusive a maneira de entrar em
contato com os mortos.
— Custo a acreditar — disse Koch enquanto observava consternado que sua
xícara de café estava vazia.
— O senhor se surpreenderia se soubesse que os nobres pagam para obter o
segredo da eterna juventude, ou para encontrar a pedra filosofal, ou para controlar os
chamados espíritos familiares. Nem Cagliostro nem Saint-Germain teriam conseguido
fazer fortuna sem esse tipo de pessoas.
— Ca... — tentou repetir inutilmente o policial.
— Cagliostro — disse Lebendig. — Como no caso de Saint-Germain, ele
afirma que é um aristocrata embora eu, para falar a verdade, tenha minhas dúvidas.
Tenho mais a sensação de que não passa de um farsante iniciado na maçonaria, que se
dedica a enganar incautos endinheirados. Não duvido que pretenda ter vivido vários
milhares de anos e até se dá ao luxo de dizer que aconselhou Jesus Cristo a não sair de
casa na Sexta-Feira Santa...
— É difícil de acreditar — comentou Koch, embora ninguém pudesse dizer
com exatidão se o comentário se referia às últimas palavras de Lebendig ou a Steiner,
que acabava de se dedicar a caçar a mosca, usando um guardanapo como arma.
— Sim, não é fácil de aceitar, mas é a pura verdade — reconheceu Lebendig.
— Naturalmente, pode-se imaginar o poder que está ao alcance das mãos destes
indivíduos.
— Mas a polícia... mais cedo ou mais tarde porá as mãos neles...
— Deveria ser assim — reconheceu Lebendig —, mas não é nem tão fácil nem
tão seguro. Quando a justiça entra em ação, não é raro que algum irmão maçom ajude a
driblá-la. Já ouviu falar alguma vez de um maçom italiano chamado Giacomo
Casanova?
— Não, não... — respondeu Koch tentando não olhar para Steiner, que não
conseguia capturar o inseto, mas que já tinha chamado a atenção de meia dúzia de
mesas.
— Não tem importância. O fato é que o tal Casanova é uma das figuras mais
desagradáveis que se possa imaginar. Quando não está seduzindo alguma infeliz,
imagina algum modo pouco lícito de esvaziar os bolsos do próximo. Certamente, os
juízes tentaram acabar com seus desmandos em mais de uma oportunidade, mas sempre
existe uma mão amiga que lhe permite escapar. Dessa maneira, vem burlando a lei ha
anos.
Uma sensação de mal-estar, pouco menos do que insuportável, tomou conta de
Koch.
— Parece preocupante — murmurou.
— Não parece, apenas — corrigiu Lebendig. — É, realmente. Vamos supor
que uma dessas figuras engane alguém. Quando acontece, existe uma possibilidade real
de que um policial maçom resolva não ver, um juiz maçom resolva não condenar ou um
nobre maçom resolva não aplicar a pena. Pode até haver um estalajadeira maçom que
esconda o perseguido para facilitar sua fuga. Todos eles, com certeza, podem ser
pessoas decentes e cumpridoras da lei em sua vida cotidiana, mas esse comportamento
será posto à prova se o prejudicado é um irmão maçom.
— E se essas pessoas resolvessem subverter um reino? E se, de repente,
ocorresse a elas acabar com um ministro, trocar um rei ou...?
— Não se pode negar que teriam chances de conseguir isso. A conspiração se
desenvolveria em segredo. Se algum dos maçons a descobrisse, o mais provável é que
não se atrevesse a revelá-la, e além disso contariam com um grupo secreto obrigado, por
juramentos sagrados, a obedecer ordens e colaborar.
O desconforto inicial que Koch sentia na boca do estômago se transformou
agora num alfineteiro completo que dilacerava sua barriga. Como podia ter lhe escapado
uma ameaça dessa envergadura dirigida contra a ordem? Por que ninguém o tinha
colocado a par de tudo aquilo? Os fatos eram realmente como o outro dizia ou,
simplesmente, o acúmulo de sabedoria o teria transtornado? Será que Steiner iria ficar
quieto uma maldita vez?
— Mas... — tentou encontrar um argumento para negar o que vinha escutando
com inquietação crescente — mas na maçonaria existem pessoas que não podem querer
que a ordem seja alterada. Por exemplo... ocorre-me que... que existem os nobres. E o
que me diz dos sacerdotes? Os sacerdotes vão impulsionar a revolução? Irão querer que
se acabe com os reis e com as crenças das pessoas simples? Não, Lebendig, não. Isso...
isso é impossível.
Lebendig ficou em silêncio por um momento. A experiência tinha ensinado que
a verdade, como a luz, podia tanto iluminar quanto ter o efeito de enceguecer.
Certamente, tinha-se enganado quando contou de uma só vez tantas coisas ao policial.
Uma informação convenientemente dosada o teria convencido mais do que aquele
acúmulo de informações. No entanto, tudo o que tinha escutado... Em todo caso, já não
podia voltar atrás.
— Existe de tudo, herr Koch, existe de tudo — respondeu Lebendig. — Para
muitos nobres, a maçonaria é só um caminho cômodo para se convencerem de que estão
perto do povo. Na loja podem conversar com um padeiro, com um ferreiro, com um
açougueiro. A verdade, no entanto, é que não são plebeus comuns. Antes de mais nada,
vão limpos, procuram ser educados e corretos, não incomodam... Para outros
aristocratas, as lojas constituem o instrumento ideal para estarem acima das pessoas de
sua classe. Não só porque graças a elas se imaginam próximos aos governados, mas
porque além disso se entrega a eles um conhecimento secreto que os coloca acima do
conde A ou do marquês B. E, em todo caso, por acaso a figura do nobre que conspira é
nova? Por acaso não existiu antes que a maçonaria criasse raízes?
— Os sacerdotes — disse Koch, procurando evitar que Lebendig driblasse a
resposta.
O erudito ficou em silêncio por um momento. Um protestante falando sobre
sacerdotes com um católico era uma situação que nunca se sabia como poderia terminar.
De acordo com sua experiência, não eram poucas as vezes em que os católicos
acabavam sendo muito mais severos ao se referirem a seu clero do que o que poderia
passar pela cabeça de um protestante. Não era menos verdade que, em outros casos, a
reação do católico podia ser muito hostil e até acarretar uma aberta agressividade. Bem,
de nada servia chorar pelo leite derramado. Tinham-lhe formulado uma pergunta e ele
iria respondê-la.
— Nem todos os sacerdotes são iguais — começou a dizer Lebendig. — Para
falar a verdade, nenhum deles deveria ingressar na maçonaria e as proibições papais
pesam sobre eles tanto quanto sobre qualquer católico. No entanto, não tenho a
impressão de que sejam mais obedecidas do que por outros fiéis de Roma.
Fez uma pausa para esquadrinhar o rosto de Koch, mas o policial dava a
impressão de ter se transformado numa verdadeira esfinge que escondesse no mais
profundo da alma seus sentimentos.
— O fato é que, no fim das contas, existem sacerdotes e inclusive bispos que
são iniciados em lojas maçônicas. No meu entender, as razões para dar esse passo não
obedecem a um mesmo motivo. Acho que alguns se sentem sozinhos, não se sentem à
vontade com seus paroquianos e simplesmente andam à procura de um lugar onde
possam se expandir de uma forma, aparentemente, inocente. Na loja não o oprimem
com perguntas e petições, as pessoas são amáveis com eles e sentem prazer em sua
companhia. Em outros casos... em outros casos, sinto muito dizer isso, mas... mas acho
que se trata de pessoas que perderam a fé...
Koch continuou sem reagir, mas seu aparelho digestivo tinha se transformado
numa espécie de ante-sala do inferno. Para ele, a idéia de um religioso sem fé se
aproximava, em gravidade, da de um policial dedicado ao crime ou de um militar
tomado pela covardia.
— Os motivos são os mais diversos e não vou me deter nisso agora —
prosseguiu Lebendig, enquanto passava por cima do assunto como se corresse sobre
brasas ardentes. — O problema é que alguns daqueles que perdem a fé nos
ensinamentos da Igreja Católico romana começam a procurar uma forma de acalmar
suas ânsias espirituais em outros lugares e não são poucos os que acabam derivando
para a maçonaria.
O policial passou suavemente a mão esquerda sobre a boca do estômago. A dor
tinha se tornado insuportável. Quisera Deus que, pelo menos, ela não aumentasse.
Embora, tal qual o encontro estava transcorrendo, ele quase teria se resignado se dois
sisudos paroquianos não estivessem agora ajudando Steiner a perseguir aquela
indomável mosca, em meio a uma extraordinária demonstração de ousadia e
persistência.
— De repente, eles acreditam que encontraram alguns conhecimentos
verdadeiros sobre o que Cristo ensinou, como dizia o tal Espartaco em sua carta; ou,
simplesmente, sentem-se felizes de pensar que sabem mais do que seu bispo; ou
deparam-se com uma realidade espiritual que lhes parece mais real do que a que
viveram até aquele momento.
— Mas... mas, então, como podem continuar... sei lá... celebrando a missa? —
perguntou inquieto Koch.
— Não creio que tenham muitas alternativas — respondeu Lebendig. — Em
determinada idade, não é fácil mudar de ocupação, e no caso de um sacerdote... quem o
aceitaria se ele deixasse de ser sacerdote? Por outro lado, com certeza, muitos deles
acreditam que só agora alcançaram o conhecimento da verdade. Não se trata de
abandonar o estado clerical, mas a própria fé que professaram durante décadas. Se essa
é a convicção deles — e não tenho nenhuma dúvida em determinados casos —, não me
parece nada disparatado que pensem que seu dever é difundi-la. Obviamente, nunca hão
de fazer isso no púlpito. Não, hão de recorrer a uma maneira mais sutil para expandir a
nova fé. Farão isso pouco a pouco, de forma quase imperceptível e, como acontece no
caso dos nobres, contra seus irmãos de posição social. Tendo chegado a esse ponto, e
levando-se em conta aquilo em que acreditam, como não irão contemplar com
esperança que esta sociedade desapareça e surja outra?
Koch ficou em silêncio. Não lhe parecia agradável, mas tinha que reconhecer
que havia uma lógica sólida, maciça e convincente no que tinha acabado de ouvir de
Lebendig. O problema é que, se tudo aquilo era verdade, o mundo — seu mundo —,
esse mundo que ele tanto amava e que tratava de manter em ordem e sossego havia
tantos anos, era muito mais frágil do que jamais teria podido imaginar. A qualquer
momento, poderia ser atacado por figuras como Espartaco e, quando isso acontecesse
— e quisera Deus que não ocorresse nunca —, os conspiradores seriam protegidos por
uma nuvem de amigos, e os nobres e sacerdotes advogariam a necessidade de se criar
uma nova sociedade. Respirou fundo para evitar a náusea que estava subindo de sua
barriga até a garganta.
— O senhor acredita que Espartaco é... — engoliu em seco antes de concluir a
pergunta — é um sacerdote?
Lebendig sentiu compaixão por Koch. Parecia óbvio que o policial estava
passando muito mal.
— Espartaco — disse por fim — é um perigo. O que importa se debaixo da
capa de maçom usa uma batina, uma toga ou um avental? O realmente relevante é
alguma coisa muito diferente...
Koch se esforçou para que aquelas palavras exercessem sobre ele um efeito
consolador. No fundo do ambiente, um criado rosadinho tinha esmagado a mosca com a
ajuda de um papel dobrado. As pessoas davam sinais de verdadeiro alvoroço. Bem, para
falar a verdade, nem todos. Steiner parecia que tinha acabado de voltar de um funeral.
Três
Do caderno de estudos científicos do professor Lebendig
11
Em alemão no original.
Cinco
Do caderno de estudos científicos do professor Lebendig
12
Nome de uma famosa cantata de J. S. Bach.
troca.
Alguns dias antes de chegar a seu destino, Lebendig sentiu a mordedura que o
medo de se separar dela lhe provocava. Outra pessoa que levasse menos em conta o
caráter sagrado do casamento teria pedido a Emma que o aceitasse como esposo, e
alguém que quisesse apenas garantir a satisfação de suas necessidades mais primárias
teria tentado transformá-la em sua concubina. Mas a consciência de Lebendig, educada
numa interpretação estritamente reformada da Bíblia, não lhe teria permitido manter
uma vida íntima com uma mulher com quem não estivesse ligado pelos laços divinos de
uma cerimônia religiosa. Por outro lado, sua idéia de casamento era tão pura que nunca
teria aceitado casar-se com alguém por quem realmente não estivesse apaixonado. E no
entanto...
Estava pensando em tudo isso quando, no meio das trevas espessas da noite,
ouviu alguns passos que se aproximavam do local onde estavam acampados. Em
circunstâncias normais, não teria sentido mede algum, consciente de que poderiam lhe
roubar muito pouco. No entanto, naquele instante, experimentou um sentimento de
angústia quando considerou que algum mal pudesse acontecer à calada Emma, à
bondosa Emma, à terna Emma.
O que emergiu das sombras foi um menino de apenas oito ou nove anos com o
rosto sujo, os cabelos despenteados e uns olhos em que pareciam se concentrar uma
dúzia de vidas. Ele deu alguns passos até Lebendig cravando nele aquele olhar ao
mesmo tempo tão obscuro e tão transparente e, de repente, estendeu trêmulo a mão
direita e desmaiou.
A conclusão a que ele chegou foi a de que não tinha comido, talvez nem sequer
bebido, havia muitos dias. Também não demorou a constatar que o menino era incapaz
de articular uma única palavra. Apesar de tudo, pelo estado em que se encontrava, não
era difícil deduzir que, se não tivesse cruzado com Lebendig e Emma, não teria
sobrevivido mais do que algumas horas.
Quando chegaram a seu destino, a criatura dormia no fundo da carroça que os
tinha transportado durante dias. Enquanto o erudito o observava com um sorriso terno,
Emma apanhou o pequeno fardo com que Lebendig a tinha encontrado, desceu do
veículo e começou a se afas-:ar. Ele se deu conta quando ela já estava prestes a dobrar
uma curva:
— Emma! — gritou subitamente inquieto enquanto saltava da boléia. —
Emma? Aonde você vai?
A mulher se virou e, como única resposta, lançou-lhe aquele olhar Límpido e
azul, que dava tudo e não exigia nada.
— Emma... — começou a dizer, ao mesmo tempo em que procurava articular
algum pensamento que lhe permitisse convencê-la a ficar a seu lado. — Emma... eu...
eu... bem, o menino... o fato é que...
Mas Emma não o ajudou a se expressar. Continuou olhando para ele calma e
docemente sem pronunciar uma única frase.
— Veja... Preciso... sim, preciso... de uma pessoa que cuide dessa criatura...
pelo menos até que seus pais apareçam... ou algum parente...
Emma se manteve em silêncio, sem afastar nem por um instante de Lebendig
aquele olhar tão especial.
— A verdade é que não posso lhe pagar muito... Nem mesmo sei se encontrarei
aqui algum trabalho, mas... mas... bem, ficaria encantado se ficasse para trabalhar...
Sem abrir a boca, Emma começou a caminhar na direção da carroça que tinha
abandonado uns poucos minutos antes.
— Espere, espere, Emma — disse Lebendig, colocando-se à sua altura. — Não
combinamos seu salário e...
Emma parou, olhou par ele e disse com a maior naturalidade:
— Não acho que isso seja algum problema. E então acrescentou com um
sorriso:
— Além do mais, não tenho para onde ir...
Desde então tinham-se passado muitos anos e nada tinha mudado. Ou talvez
sim. Lebendig confiava muito mais na mulher agora do que jamais poderia imaginar
que confiaria. Sabia que ela não o roubaria, que não o enganaria, que não seria desleal
com ele. Para ser sincero, nunca tinham conversado sobre esses assuntos, mas assim
estava convencido. Como Emma lhe tinha dito numa ocasião em que tinham ido levar o
garoto para um médico examinar, dava a impressão de que eles se conheciam havia
muitos anos, tantos como se fossem necessárias várias vidas para poder somar todos
eles.
De certa maneira, talvez Emma estivesse o mais próximo que se poderia chegar
nesta vida, não exatamente fácil, de conhecer a bondade, uma bondade que — não se
poderia duvidar — tinha uma origem celestial. Devia ser assim, porque quando se
comparava o coração de Emma ao daquele Espartaco, era impossível não encontrar
diferenças maiores. A mulher se contentava com cada dia, enquanto Espartaco...
Espartaco queria alterar o presente para dominar o futuro. Espartaco... Seria
Von Knigge? Era difícil saber, mas se um homem de uma condição tão privilegiada
como a nobreza ansiava acabar com a sociedade era porque as coisas não deviam andar
muito bem, a começar pelo coração da tal criatura.
— Herr Koch acaba de chegar.
Lebendig balançou a cabeça, como se o movimento lhe permitisse dissipar os
pensamentos que tinham ocupado sua mente durante os últimos momentos e assim ele
pudesse retornar a uma realidade que, não por ser próxima, era mais agradável.
— Faça-o entrar.
O policial entrou acalorado na saleta. Seu rosto estava avermelhado, como se
ele tivesse passado um bom tempo correndo e o suor perolasse sua testa. Ele parou no
umbral e ficou procurando com o olhar. Lebendig entendeu logo. Koch precisava se
sentar e não conseguia encontrar o lugar onde fazer isso.
— Desculpe — disse Lebendig ao mesmo tempo em que ficava de pé, afastava
uma pilha de livros e deixava aparecer uma cadeira.
Koch titubeou por alguns instantes. Definitivamente, não conseguia se
acostumar com aquela desordem que enchia tudo como se fosse uma inundação de
volumes e papéis. Era ainda mais difícil compreender como Lebendig conseguia
encontrar alguma coisa no meio daquele caos sem forma. Respirou fundo, afastou de
sua mente aqueles pensamentos que lhe traziam inquietação e se sentou.
— Herr Lebendig — disse enquanto acabava de recuperar o fôlego —, trago-
lhe informações muito importantes.
O sábio concordou com a cabeça ao mesmo tempo em que franzia os lábios.
Era uma maneira bem sua, que deixava Koch desconcertado, porque ele nunca sabia se
era um movimento de anuência, de zombaria, de interesse ou de cansaço.
— Sobre quem? — perguntou com um tom de voz tão calmo que quase beirava
a indiferença.
Koch tirou uma grande pasta de debaixo de sua capa e disse:
— Sobre o barão Von Knigge.
Sete
Do caderno de estudos científicos do professor Lebendig
COMO REGRA GERAL, OS escritos que foram submetidos à nossa reflexão reúnem
várias linhas de escrita. Para falar a verdade, acho extremamente difícil conseguir
analisar de forma correta e pertinente um indivíduo qualquer sem uma quantidade
mínima de sua letra. Mas, além das observações que os diferentes traços mereçam de
nós, não devemos nos esquecer nunca de esquadrinhar a separação existente entre as
linhas e entre as palavras.
Suponhamos que as linhas apareçam separadas por uma distância maior do que
a normal. Estaríamos diante de uma pessoa inclinada dispersão de idéias, embora
também pudesse ser alguém dotado de uma generosidade especial. Observei essas
características nos textos do assistente Steiner, o que me lembra que preciso informar
herr Koch sobre isso. Com toda a certeza, ele ficará preocupado em saber que seu
homem de confiança pode ser inteligente mas, ao mesmo tempo, é capaz de se distrair
com o canto dos pássaros. Em todo caso, ele precisa saber disso.
O que aconteceria se as linhas estivessem concentradas, com uma separação
menor do que a normal? Pois estaríamos diante de uma pessoa que concentra suas
idéias, que presta uma enorme atenção ao que faz e que até se preocuparia em fazer
economia. Herr Koch é um exemplo desse tipo de letra.
Oito
Baviera, 1787
13
Religioso da Ordem de Cister, criada por são Bernardo de Clairvaux (1090-1153)
Talvez andasse envolvido com atividades normais ou talvez, e eu não descartaria isso,
estivesse entretido com os livrinhos que comprara com antecedência. E então...
— Então...
— Então, de forma inesperada, começou a comprar como um louco. Repare. O
Traité des énergumènesde Pierre de Bérulle, o Disquisitionum magicarum de Martin
Del Rio e dois Teufelbücher.
— Teufelbücher?. Livros do Diabo? Que espécie de literatura é essa? —
perguntou o policial.
— Tratados de demonologia. Protestantes. Foram escritos por pastores que
queriam advertir suas ovelhas sobre os perigos que podiam vir do Diabo e de seus
demônios.
— Claro... — disse Koch, que ainda não tinha se acostumado com a
proximidade de um protestante.
— Quanto ao livro de Bérulle e ao Disquisitionum... bem, são verdadeiros
manuais de demonologia. Na minha opinião, Von Knigge vem seguindo um caminho
peculiar mas inegável nos últimos anos. Aceite isso como uma simples opinião, mas
acho que deveríamos trabalhar com ela até podermos confirmá-la ou descartá-la.
— Qual?
— Minha impressão é a de que o barão começou com um interesse pelas
ciências ocultas mais elementares. Queria possuir algum instrumento para adivinhar o
futuro, para descobrir o que o porvir nos apresenta. Se reparar, os primeiros livros estão
relacionados com a adivinhação. Trata-se de uma tentação bem humana e Von Knigge
sucumbiu diante dela como milhares de pessoas sucumbiram em outras épocas. Claro
que não parou aí...
— Está se referindo ao fato de que os demônios começaram a interessá-lo?
— Acredito que não imediatamente — respondeu Lebendig. — Da
adivinhação ele passou ao que se denomina, muito equivocadamente, magia branca,
quer dizer, a magia que tem, supostamente, boas intenções.
— Existe uma magia com boas intenções?
— Só nos contos de fadas, mas, por mais que haja pessoas que achem que
existe magia branca, isso não é verdade. A magia sempre, acredite em mim, sempre, é
maligna. Von Knigge passou por ela quase como um suspiro para mergulhar em seguida
na magia negra, aquela que tem uma origem explicitamente perversa.
— Sim, o salto parece não ter muita importância...
— Realmente. É isso mesmo. O barão passou do lado aparentemente bom da
magia para o abertamente maligno. Não vou dizer que ter feito isso num abrir e fechar
de olhos, mas... quase, quase. E isso não é tudo.
— Da magia passou aos demônios... — disse em voz baixa Koch.
— Realmente — concordou Lebendig —, e de que maneira: pelos manuais que
os descrevem, que permitem submetê-los aos propósitos pessoais e que ensinam como
combatê-los. Ele deve saber muito, e cor sobre os anjos caídos.
Um silêncio — interrompido apenas pela chegada de Emma com uma bandeja
— desceu, pesado e envolvente, sobre o aposento.
— Quer um pouco de açúcar no café? — perguntou Emma a Kock com aquele
tom de voz situado a meio caminho entre o som de um sininho e o gorjeio de uma ave.
O policial demorou alguns segundos para abandonar os pensamentos em que
tinha acabado de afundar como uma pedra num poço escuro.
— Não... não... — conseguiu dizer. — Não, não quero açúcar. Quero só café.
— O que é que a maçonaria tem a ver com tudo isto? — perguntou o policial
assim que a mulher tinha deixado a saleta.
Lebendig franziu os lábios e mexeu levemente a cabeça.
— Não é fácil dizer isso — começou a responder à pergunta. — É bem
provável que Von Knigge sentisse há muito tempo interesse pelo ocultismo e que tenha
chegado à conclusão de que a maçonaria lhe permitiria ter acesso aos mistérios ocultos
transmitidos em segredo há milênios. Afinal de contas, nas lojas conta-se toda essa
história de que existe um saber oculto que vem sendo transmitido desde tempos
imemoriais.
— E existe alguma verdade nisso? — perguntou interessado o policial.
— Pelo que sei, nem a mais remota. Só que os maçons inventam mentiras para
tornar sua mensagem mais atraente. Eles a relacionam com o templo de Salomão, com
os templários, com Pitágoras, com Platão... Se quiser a minha opinião...
— Quero, sim.
— Pois não passa de uma empulhação.
— Estou entendendo — disse o policial, convencido de que Lebendig não
exagerava nem um pouco —, e Von Knigge conseguiu engolir essa isca com anzol e o
próprio braço do pescador.
— Sim — respondeu Lebendig —, essa hipótese é cabível, mas também o
processo pode ter sido exatamente o inverso. Iniciou-se, primeiro, numa loja, talvez
impelido por todo esse palavrório sobre a fraternidade universal e, a partir daí, começou
a sentir um desejo crescente de saber mais e mais sobre as ciências ocultas. Em qualquer
dos casos, é preciso reconhecer que foi seguindo uma linha direta rumo ao
aprofundamento no mal e que fez isso como quem se prepara para se doutorar.
— Isso se encaixa com o que sabemos sobre Espartaco... — interveio Koch.
Lebendig tornou a franzir os lábios, numa expressão pensativa.
— Pode ser que sim, pode ser que não — disse. — Sem dúvida, Espartaco tem
uma vontade de destruição que poderíamos considerar diabólica, mas...
— Mas poderia não ser ele, pelas referências que faz ao cristianismo? —
perguntou Koch, procurando adivinhar a possível objeção de seu interlocutor.
— Não, não — respondeu Lebendig enquanto agitava a mão direita como se
quisesse espantar um inseto. — As menções ao cristianismo que aparecem na carta de
Espartaco não significam absolutamente nada. Satanás citou as Escrituras quando tentou
Cristo e houve um demônio que louvava Paulo. Não, como já disse o apóstolo, o Diabo
pode se disfarçar de anjo de luz.
Uma desagradável expressão de fastio surgiu no rosto do policial.
— Não podemos descartar a príori que Von Knigge seja Espartaco, mas, bem,
o barão me parece um pouco... um pouco teórico...
— E Espartaco é bem mais um carrasco — completou Koch.
— Sim, é o que eu acho — admitiu o erudito.
Koch bebeu de um só gole a xícara de café sem se importar que estivesse
fervendo. Sentiu o amargor do líquido preto subir da língua até as fossas nasais,
estendendo-se em seguida por sua garganta e seus ouvidos. Sentia-se irritado e bem que
se poderia dizer que estava procurando acalmar sua ira queimando a própria boca.
Apanhou o copo de água e engoliu o que restava, mais para aplacar sua ansiedade do
que para acalmar a sede.
— O senhor acha que Von Knigge pode nos levar a algum lugar? — perguntou
por fim com a língua ligeiramente dolorida.
Lebendig enlaçou as mãos como se fosse fazer uma oração e apoiou a boca nos
dedos. Durante algum tempo, ficou em silêncio, um silêncio tão reflexivo que Koch não
se atreveu a quebrá-lo.
— Sim, claro que sim — disse por fim. — É mais do que provável que Von
Knigge possa nos proporcionar alguma pista para chegar ate Espartaco.
— Se é que não é ele...
— Certo, se é que não é ele.
Koch ficou em silêncio por mais um instante e, finalmente, formulou a
pergunta obrigatória.
— Como?
— Bem... — respondeu Lebendig enquanto um sorriso iluminava seu rosto —,
o que acha de perguntarmos isso diretamente a ele?
Nove
Do caderno de estudos científicos do professor Lebendig
"PÔR OS PINGOS NOS IS." A expressão tem certa graça mas, sobretudo, do ponto de
vista desta nova ciência implica a formulação de uma grande verdade. A letra —
comprovei isso em centenas de casos — constitui um verdadeiro espelho de não poucos
aspectos da realidade. Vejamos, por exemplo, os is de herr Koch. Seus pingos aparecem
situados de forma regular. Nem muito longe nem muito perto do i, e exatamente em
cima. Não parece estranho, porque herr Koch é preciso e exato, presta atenção ao que
faz, demonstra uma excelente organização de suas idéias, cumpre com seu dever de
maneira rigorosa — moradores de Ingolstadt poderiam acertar seus relógios
simplesmente observando quando ele entra e sai de sua casa, e de seu escritório — e,
ainda por cima, possui uma capacidade de concentração realmente prodigiosa. Herr
Koch é um pingo bem posto sobre o i. Disso eu não tenho a menor dúvida.
Diferentemente de herr Koch, outras pessoas colocam os pingos de maneira
muito irregular. O grau de avanço ou a distância do pingo sobre o i são diferentes, às
vezes os suprimem... pois bem, esses indivíduos denotam imprecisão, personalidade tão
movediça quanto um cata-vento, tendência para o esquecimento, a distração, a
dispersão, falhas na hora de se concentrar e prestar atenção, e inclusive, uma
precipitação que pode acabar sendo realmente fatal em alguns casos. Quanto mais longe
— principalmente se for para executar um trabalho sério —, melhor.
Dez
Baviera, 1787
SE TIVESSE QUE ESCOLHER um aspecto desta nova ciência que com tanto esforço
estou delimitando, certamente eu ficaria com a assinatura. Com o passar do tempo,
cheguei a me convencer de que uma parte muito importante do que podemos descobrir
sobre o caráter de uma pessoa já fica exposto quando imprime seu nome ao pé de uma
carta, de um documento ou de um recibo. Não se trata unicamente dos traços que
aparecem nessas duas ou três palavras — traços que, com um pouco de sorte,
poderíamos encontrar também no restante de sua escrita. Não. A assinatura nos dá
muito mais. E tudo deriva da forma como ela se diferencia da letra comum, ou como se
inclina ou se situa no papel.
Uma assinatura colocada muito à esquerda em relação ao texto escrito nos
mostraria uma pessoa que tem medo, que foge, que se fecha dentro de si mesma. Se o
deslocamento para a esquerda é mais moderado, estamos diante de alguém inibido,
tímido que, muito provavelmente, torna-se às vezes presa da nostalgia do passado.
Se formos agora para o outro lado do papel e virmos a assinatura muito à
direita, estaremos diante de uma pessoa apaixonada, mas com uma paixão que poderia
ceder à cegueira e à agressividade. Na direita, pelo contrário, seria um bom sinal. Isso
nos falaria de uma pessoa decidida e com iniciativa, com segurança em si mesmo, com
disposição para os dias vindouros.
Em geral, como acontecerá no dia do Juízo tal qual Mateus narra no capítulo
25 de seu Evangelho, estar à direita é sempre melhor sinal do que estar situado à
esquerda.
Finalmente, uma assinatura colocada no centro — e isso agradaria a Aristóteles
— mostra-nos uma pessoa reflexiva, em quem a razão predomina sobre o sentimento.
Catorze
Baviera, 1787
KOCH FECHOU A PORTA depois de entrar. Sua expressão era séria, rigorosa,
profissional, mas Lebendig o conhecia o suficiente para saber que ele estava satisfeito.
— Ele confessou — disse reprimindo um sorriso de alegria que lutava para
saltar em seus lábios.
— Imagino que o relato deve ter sido interessante... — comentou Lebendig,
dando a deixa para que Koch pudesse lhe contar o que tinha conseguido averiguar.
O policial se sentou, serviu-se de uma xícara de café, bebeu um gole e expeliu
o ar pelo nariz, num gesto de cansaço e de dever cumprido.
— Chama-se StefanWeiss — começou a dizer Koch depois de limpar os lábios
com um guardanapo bordado. — Há muito tempo, trabalhava como ferreiro nas terras
do barão Von Knigge. Ao que parece, é o ofício da família desde muitas gerações. Há
alguns anos, durante uma briga numa taberna, ele se indispôs com um rapaz de sua
idade. É o que já se sabe... excesso de bebida, excesso de luxúria...
— Falta de ordem — disse Lebendig, que intuía a forma como Koch
qualificaria o episódio.
— Sim, exatamente, falta de ordem — prosseguiu Koch sem captar a ironia de
seu colaborador. — O fato é que resolveu se vingar. Esperou o infeliz na floresta e o
golpeou com um martelo na cabeça. Morte instantânea.
— E ninguém soube de nada? — perguntou Lebendig espantado.
— O primeiro a saber foi o barão. Stefan foi procurá-lo com lágrimas nos olhos
para lhe contar o que tinha acontecido e implorar sua ajuda. Parece que no início queria
apenas que o aconselhasse sobre como se entregar à justiça nas melhores condições.
Mas o fato é que Von Knigge lhe garantiu que ele poderia sair muito bem de toda
aquela dificuldade.
— Não se deu início a uma investigação policial? — indagou Lebendig.
— Claro que sim. Assim que soubemos da morte — disse Koch num tom
zangado. — O corpo foi encontrado por um grupo de camponesas e imediatamente
pusemos mãos à obra.
— E então?
— O médico que examinou o cadáver garantiu que a morte tinha sido
acidental. Supostamente, o rapaz tinha tropeçado com tanto azar que tinha batido com a
cabeça contra uma raiz que sobressaía e tinha fraturado o crânio.
— Claro..." Suponho que Stefan tenha ficado muito agradecido ao barão.
— O senhor supõe corretamente. A partir desse mesmo instante, o barão não
parou de lhe cobrar o favor. Tinha o ferreiro em suas mãos, alguma dúvida?
— E o utilizava como torturador?
— Sempre que podia — admitiu Koch. — Se ele não está enganado em suas
lembranças, nos últimos cinco anos esse imbecil tirou a vida de pelo menos meia dúzia
de infelizes.
— Não, nada mal — disse Lebendig enquanto passava a mão direita pelos
lábios. — Deve ter feito isso muito bem para que ninguém ficasse sabendo...
— Eram sempre pessoas que estavam de passagem. Alguma moça que aparecia
na época da ceifa, um jornaleiro...
— E como fazia para sumir com os cadáveres?
— Ele os enterrava perto do local onde o encontramos. Enviei Steiner com
alguns agentes providos de pás para verificar esta parte da confissão. É provável que
nem se lembre com exatidão das pessoas que tirou deste vale de lágrimas.
— Quando... quando conversamos — disse Lebendig engolindo em seco — ele
fez referência a um tal... Rudi, isso, Rudi.
— Foi ajudante dele durante uma temporada — respondeu o policial. — Ele o
tinha acolhido e estava lhe ensinando o ofício. Não parece que o ajudasse a perpetrar os
assassinatos, mas um dia... apareceu morto. Morto e violentado, para sermos mais
exatos. Stefan não teve nada a ver com o crime. Muito pelo contrário. Disseram-lhe que
tinha sido um forasteiro, que procurariam encontrar o culpado... Por certo, ele insiste em
que o senhor lhe disse, disse não, adivinhou que o assassino tinha sido Hans, o
mordomo do barão.
— Absolutamente — esclareceu Lebendig. — Eu me limitei a indicar que o
homem que tinha escrito um bilhete que ele me mostrou sentia certa... digamos,
predileção pelos rapazinhos.
— Estou entendendo — concordou o policial. — E da leitura desse texto o
senhor deduziu que este homem podia tirar a vida de alguém?
— Em circunstâncias normais, certamente não — respondeu Lebendig —, mas
se ele se viu rejeitado, se chegaram a insultá-lo, se alguém zombou dele... não posso
garantir que fosse o culpado, que isso fique claro, mas, sem dúvida, é o suspeito ideal.
— Eu tinha pensado alguma coisa parecida — reforçou Koch. — O mais
seguro é que Hans tenha se aproximado do rapaz e se insinuado, e até tenha procurá-lo
tocar nele, mas o jovem não só o rechaçou como além do mais riu dele. Provavelmente,
insultou-o, desprezou-o e o episódio acabou em homicídio. É surpreendente o número
de mortes que têm origem com algumas palavras de desdém. Essa parte nós
esclareceremos também, certamente.
— Stefan sabia alguma coisa sobre Espartaco?
— Não, nem uma palavra — respondeu o policial —, mas é realmente verdade
que o mordomo insistiu em que ele devia verificar o que o senhor sabia. Não se enganou
em suas deduções. Espartaco tem alguma relação com Von Knigge embora, pelo menos
no momento, desconheçamos que relação é essa.
— Bem, herr Koch — disse Lebendig com um sorriso —, só posso lhe dar os
parabéns.
O policial balançou a cabeça, embargado de satisfação. Sim, a verdade é que
ele estava transbordante.
— Também tenho de lhe agradecer — continuou o erudito. — O senhor
chegou justo antes que Stefan decidisse se iria deslocar meus ossos ou me soltar,
embora eu tivesse medo de que teria optado pelo primeiro. Como soube que eu estava
ali?
— Eu não sabia — começou a dizer Koch —, mas tinha a certeza de que, se eu
tivesse oferecido proteção, o senhor a teria recusado de imediato.
Lebendig se limitou a respirar pelo nariz quando ouviu as últimas palavras do
policial.
— Achei prudente colocar um agente perto de sua casa. Alguém que o senhor
não conhecesse como Steiner, que é um rapaz competente, mas às vezes se distrai.
Naturalmente, fiz isso sem lhe dizer nada. Quando o senhor se dirigiu à mansão de Von
Knigge, meu homem o seguiu. Estava sozinho, de forma que teve que deixá-lo assim
que o senhor chegou à casa do barão. Ali conseguimos perdê-lo de vista, mas, graças a
Deus, retornamos antes que Stefan o tirasse de lá.
— E como sabia que Stefan estava me tirando dali?
— Eu não sabia, na verdade, mas a carruagem... Decidi que o mais prudente
era segui-lo. Não foi fácil, mas conseguimos.
— Em algum momento me perderam de vista?
— Certamente que não — respondeu Koch com um timbre de orgulho na voz.
— E então por que demoraram tanto a entrar? Se aquele animal não tivesse um
pouco de curiosidade, vocês poderiam ter me encontrado com um braço transformado
em mingau...
— Um de nossos agentes esteve a ponto de torcer um tornozelo — respondeu
um tanto irritado o policial. — Custou-lhe muito retornar ao caminho, mas ele
conseguiu. Fez isso cumprindo com seu dever e, graças a isso, o senhor salvou a vida.
— Sem dúvida. O senhor deve me dizer quem é esse homem. Gostaria de
trocar uma palavra com ele.
— Está se recuperando em casa e demorará alguns dias a voltar ao trabalho,
mas, em todo caso, ele se limitou a cumprir seu dever.
Lebendig não quis insistir. Estava realmente agradecido a Deus, a Koch e à
polícia de Ingolstadt, e a última coisa que desejaria naquela hora era dar a impressão de
que era um ingrato. Por outro lado, havia questões mais importantes a serem
esclarecidas.
— O que sabe sobre Von Knigge?
Koch sorriu e em seu rosto se desenhou a satisfação que ilumina as feições do
colegial a quem perguntam a única matéria que ele sabe.
— Passei uma notificação ao juiz ao mesmo tempo em que enviava meus
melhores homens à mansão de Von Knigge. Quando o magistrado chegar, encontrará
todas as provas expostas e classificadas. De uma tacada, teremos solucionado meia
dúzia de crimes e estaremos a um passo de prender esse Espartaco. Esclareceremos até
por que o médico afirmou que a primeira vítima de Stefan tinha morrido
acidentalmente. Tudo, absolutamente tudo, ficará resolvido. Tudo, absolutamente tudo,
voltará a ficar em ordem. Posso lhe dar a minha palavra, herr Lebendig.
O erudito se limitou a acariciar o próprio queixo e a se perguntar, mais uma
vez, como estariam Emma e o rapaz. De repente, uma sombra lhe cobriu a fronte como
se o sol tivesse sido encoberto por uma nuvem.
— Herr Koch - disse. — Um grupo chamado Minervis lhe diz alguma coisa?
Quinze
Do caderno de estudos científicos do professor Lebendig
— O CASO DAQUELE POBRE RAPAZ... morto e... e violentado... foi horrível. Posso lhe
garantir. Foi espantoso.
Lebendig contemplou o agente Steiner com um misto de simpatia e de ternura.
Certamente, esses eram os sentimentos despertados quando observava aquele
homenzarrão, que tanto podia demonstrar uma notável perspicácia quanto uma
simplicidade quase inquietante.
— Seu superior está encantado... — disse o erudito antecipando uma resposta
que já conhecia.
— Ah, sim. O senhor não imagina até que ponto. A verdade é que ele sempre
defendeu a idéia de que, mais cedo ou mais tarde, acaba-se descobrindo tudo. Podem se
passar meses, até anos, mas no final tudo se esclarece. Uma mentira que vem à luz, uma
testemunha que acaba falando e...
— ...e a ordem se restabelece.
— Exatamente — sorriu Steiner. — É exatamente a mesma cosia que ele disse,
que a ordem se restabelece.
Um breve silêncio caiu sobre os dois assim que o agente concluiu a última
frase. De repente, de maneira inesperada, uma ruga profunda, vermelha e poderosa
dividiu sua testa numa mudança repentina de expressão. Lebendig pensou que uma
reflexão especialmente profunda tinha acabado de abrir caminho na mente, até então
animada e alegre, de Steiner.
— Herr Lebendig, o senhor tem certeza de que existe uma vida após a morte?
Lebendig reprimiu a duras penas a surpresa que a pergunta do policial tinha
acabado de lhe provocar. Para falar a verdade, o que tinha acabado de ouvir era a última
coisa sobre a qual teria pensado que poderia conversar com aquele rapagão
aparentemente tão despreocupado.
— Para falar a verdade, sim — respondeu enquanto tentava discernir o motivo
daquelas palavras.
— Então, o senhor acha que nem tudo se acaba com a morte? — continuou
perguntando Steiner, com uma candura que mergulhou Lebendig ainda mais na surpresa
inicial. Ficou em silêncio durante alguns segundos, respirou fundo e, finalmente, disse:
— Não gostaria que interpretasse o que vou lhe dizer como soberba ou
pedantismo. Não é nada disso, mas a verdade é que estou convencido de que, depois
desta vida, existe outra.
O rosto de Steiner adotou uma expressão melancólica. Sem dúvida, não parecia
que aquelas palavras tivessem dissipado a angústia profunda que sentia naquela hora.
— A verdade é que o senhor me dá inveja, herr Lebendig — disse o policial
com a voz forrada de dor, uma dor profunda e indefinida. — Não me entenda mal. Eu
acredito um pouco... ou quero acreditar, ou me ensinaram a acreditar, mas... mas quando
vejo um cadáver... bem, não tenho intenção de enganar o senhor, quando chego a esse
ponto, as dúvidas tomam conta de mim. Veja, eu observo como aquela mulher que
poderia dar à luz virou apenas um despojo, ou como aquele rapaz que ia dançar e que
ceifava como um gigante passou a ser carniça, que foi o que aconteceu com aquele
infeliz que foi violentado e assassinado, e em momentos como esses... vou lhe
confessar, custo muito a acreditar que, no final, não fiquemos todos reduzidos a isso, a
um montinho de ossos e de cinzas.
Lebendig observou Steiner. Aquele rapaz lhe era simpático. Provavelmente,
não era tão inteligente quanto Koch teria desejado, mas não havia dúvida de que era um
bom homem. Procurava cumprir seu trabalho meticulosamente — embora nem sempre
conseguisse isso — e, até onde sabia, comportava-se como um excelente pai de família.
No entanto, no fim das contas, como qualquer criatura que não tivesse se deixado
embrutecer pelas necessidades mais peremptórias da vida, queria ter a certeza de que a
tumba não era o fim de tudo. Com certeza, era assim desde aquele dia de mau agouro
em que o Criador tinha expulsado Adão e Eva do Éden, e o casal tinha se perguntado,
tomado pela angústia, se seu retorno ao pó da terra não representaria o final absoluto.
— Já se consultou sobre esta questão com seu pároco? — disse Lebendig
quebrando o silêncio.
Steiner alisou o queixo nervoso quando ouviu a pergunta.
— Bem, herr Lebendig... não sei o que lhe dizer... a verdade é que não... e não
vou enganá-lo. O senhor me inspira mais confiança...
— Mas você não ignora o fato de que eu sou protestante... - começou a dizer o
erudito.
— Não, é claro que não ignoro, mas, exatamente por isso, não vai me colocar
problemas... Quero dizer, com o senhor posso comentar que tenho dúvidas sem que me
veja mal... porque... bem, o senhor não vai ter uma opinião ruim a meu respeito por
causa disso, não é mesmo?
Lebendig conteve a tentação de deixar escapar uma gargalhada. Pelo visto, sua
posição de herege impedia que pudesse repreender um católico por sua falta de fé. O
argumento, apesar de sua absoluta falta de consistência, podia parecer sólido. Em todo
caso, era imperioso tranqüilizar o agente.
— Não, Steiner. Você sabe que tenho uma ótima opinião a seu respeito e não
vou mudá-la porque as dúvidas sobre o além o assaltam — respondeu Lebendig com
um sorriso de indulgência.
— Que bom... — disse Steiner mais animado ao verificar que suas intuições se
confirmavam. - Sei que o senhor é um homem honrado... e um sábio! Então falo com o
senhor, o senhor me escuta, eu o escuto. Isso não resolve nada, mas também não vai me
criar complicações. Agora, se eu falar com um pároco... quem sabe? Pode ser que seja
um homem compreensivo mas... mas nem todos são assim. Talvez ele me leve a mal e
as pessoas falam...
— E você é um policial, claro. Compreendo perfeitamente.
Um sorriso de alívio se desenhou, luminoso e franco, no rosto de Steiner.
Embora não tivesse certeza de que suas aflições seriam dissipadas pela conversa, não
restava dúvida de que, pelo menos no momento, ele se sentia mais aliviado delas.
— Bem, Steiner — aventurou-se Lebendig. — Para falar a verdade, não estou
certo de que minha experiência possa lhe servir para alguma coisa, mas... eu realmente
acredito que nem tudo termina no sepulcro. Acredito nisso porque Jesus ressuscitou e
demonstrou que tinha vencido a morte e, principalmente, porque prometeu que os que
acreditarem nele teriam um destino semelhante.
— Como sabe tudo isso, herr Lebendig? Quer dizer, de onde extrai essa
certeza que tem de que tudo isso aconteceu — perguntou, interessado, Steiner.
— Da Bíblia — respondeu Lebendig, impregnado de uma serenidade segura e
calma. — A Bíblia diz isso, e a Bíblia é a palavra de Deus.
— O senhor lê a Bíblia? — perguntou com a voz levemente trêmula Steiner.
— Sim, eu a leio todos os dias.
— Nós, católicos, não temos permissão para lê-la — disse o policial um tanto
entristecido. — Os padres podem fazer isso, claro, e em latim, mas...
— Se me prometer ser discreto, posso lhe emprestar uma Bíblia.
— Eu lhe agradeço, herr Lebendig, mas meu latim...
— Em alemão.
— Em alemão? — disse Steiner com entusiasmo. — Puxa! Isso realmente...
Por alguns momentos, o policial abriu e fechou os olhos e a boca, sentindo-se
completamente desconcertado com aquela oferta que nunca tinha imaginado. Na
verdade, dava a impressão de estar tão atarantado que começou a mexer os dedos da
mão esquerda como se quisesse pegar no ar alguma coisa indefinida. No final,
pigarreou, voltou a assumir uma posição normal e, olhando fixamente para Lebendig,
disse:
— Jura, o senhor me emprestaria?
Lebendig se levantou e percorreu a pequena distância que separava o lugar em
que estavam sentados e sua escrivaninha. Tirou então uma pequena chave do bolso do
colete e abriu uma das gavetas. Em apenas alguns instantes, estava de novo ao lado de
Steiner e lhe estendia um pequeno volume de cor preta.
— É o Novo Testamento — explicou Lebendig. — Conta a vida de Jesus e
seus apóstolos e também contém as cartas que eles escreveram para ajudar as primeiras
igrejas.
Steiner estendeu os dedos até o livro com um misto de assombro e curiosidade.
Nunca tinha tido nas mãos um Novo Testamento e agora experimentava uma excitação
desconhecida. Acariciou a capa, abriu o livro e leu:
— "Livro da genealogia de Jesus Cristo, filho de Davi, filho de Abraão.
Abraão engendrou Isaac, Isaac engendrou Jacó e Jacó a Judá e seus irmãos. Judá
engendrou de Tamar a Fares e Sara, Fares a Esrom..."
O policial ficou em silêncio e ergueu na direção de Lebendig um olhar
carregado de triste assombro.
— Tenho medo de não entender este livro... — comentou com uma melancolia
que impregnava cada uma de suas palavras.
— Permita-me, Steiner — disse Lebendig enquanto pegava o Novo
Testamento e começava a virar suas páginas. — Sim, aqui está. Leia a partir desta linha,
por favor.
Hesitante, o policial começou a ler o texto assinalado pelo erudito. Lia em voz
baixa, mas a maneira como seus olhos e sua fronte começaram a se iluminar de forma
quase imediata revelou que ele podia ser tudo, menos indiferente ao conteúdo daqueles
versículos. De repente, de seus lábios saíram, claras e firmes, as frases do Evangelho:
— "Maria, quando chegou aonde Jesus estava, ao vê-lo, prostrou-se a seus pés
e lhe disse: 'Senhor, se tivesses estado aqui, meu irmão não teria morrido.' Então Jesus
ao vê-la chorando e ao observar como os judeus que a acompanhavam também
choravam, abalado em seu espírito, comoveu-se e disse: 'Onde vocês o colocaram?'
Disseram-lhe: 'Senhor, venha e veja.' Então os judeus disseram: 'Olhe como ele o
amava.' E alguns deles disseram: 'Ele, que abriu os olhos de um cego, não podia ter feito
também com que Lázaro não morresse?'"
Steiner ficou em silêncio, mas manteve os olhos cravados no livro. Depois
respirou fundo, engoliu em seco e continuou.
— 'Ele, que abriu os olhos de um cego, não podia ter feito também com que
Lázaro não morresse?' "Jesus, profundamente comovido de novo, chegou ao sepulcro.
Era uma cova e tinha uma pedra em cima. Jesus disse: 'Tirem a pedra.' Marta, a irmã
daquele que tinha morrido, disse-lhe: 'Senhor, já está cheirando mal, porque faz quatro
dias que morreu.' Jesus lhe disse: 'Eu não lhe tinha dito que se você acreditar verá a
glória de Deus?' Então tiraram a pedra do lugar onde tinham colocado o morto. E Jesus,
erguendo os olhos, disse: 'Pai, eu lhe dou graças por me haver escutado. Eu sei que você
sempre me escuta. Mas disse isso por causa da multidão que está aqui ao redor, para que
acreditem que você me enviou.' E, após dizer isto, clamou em alta voz: 'Lázaro, venha
para fora!' E aquele que tinha morrido saiu, com as mãos e os pés amarrados com
ataduras, e com rosto envolto por um sudário. Jesus lhes disse: 'Desamarrem-no e o
deixem ir'."
Steiner ergueu uns olhos nos quais, inegavelmente, o assombro de alguns
instantes atrás tinha cedido lugar às lágrimas. Sem dúvida, era indiscutível que a leitura
tinha-lhe causado uma profunda impressão.
— Leve o livro. Pode me devolver quando quiser — insistiu Lebendig.
— Sim, vou levá-lo — respondeu, agradecido, Steiner. — Muito obrigado,
herr Lebendig.
Trocaram mais algumas frases, mas o erudito compreendeu que o agente
desejava ir embora e se perguntou se, no fim das contas, a visita não tinha sido
motivada pelo desejo de partilhar com ele aquela inquietação. Ao fim de alguns
minutos, os dois se levantaram de suas cadeiras para se dirigirem até a porta. Quando se
achavam a alguns passos do umbral, o policial parou e lhe disse:
— Não quero importuná-lo mais, herr Lebendig, mas... bem, perdoe a minha
indiscrição, como... como o senhor consegue que as dúvidas não o vençam?
O erudito interrompeu sua caminhada até a porta e se virou para Steiner.
Naquela hora, sentia uma ternura semelhante à que Emma e o rapaz lhe inspiravam.
— Veja bem — começou a dizer —, há alguns anos viajei à Inglaterra. Como
você sabe, trata-se de uma ilha e é preciso fazer a travessia num barco. Quando estava
quase chegando, contaram-me que em alguns povoados da costa tinham-se formado
bandos de malfeitores que, quando ocorria um naufrágio, dirigiam-se apressadamente
até a costa para se apossarem dos bens que o mar lançava nas praias. Eram pessoas de
tão poucos escrúpulos que faziam seu trabalho de rapina até quando isso significava
assassinar os poucos sobreviventes do desastre.
— Tremendos canalhas!
— Sem dúvida, eles eram — admitiu Lebendig. — Bem, o fato é que em uma
dessas tristes ocasiões, um dos náufragos, que sabia do perigo de cair nas mãos dos
integrantes desses bandos, conseguiu se afastar da praia e alcançar a nado um rochedo
situado no meio das ondas. Ficou esperando ali, encharcado até os ossos e debaixo de
uma chuva insuportável, até que aparecesse algum barco do rei que o salvasse não
apenas do tempo mas também daqueles ladrões costeiros.
— E conseguiu? — perguntou, interessado, Steiner.
— Pois a verdade é que sim. Rangeu os dentes durante algumas horas que
devem ter parecido intermináveis, mas, finalmente, depois de alguns dias a marinha real
o recolheu. Já tinha trocado de roupa e estava tomando um tônico reconstituinte, quando
um dos oficiais do navio lhe perguntou se no meio da tempestade não tinha tremido.
— Não devia ser um oficial muito inteligente... — permitiu-se dizer Steiner.
— Disso eu não sei — prosseguiu Lebendig —, mas isso não tem importância.
O interessante foi a resposta do náufrago.
— E o que a resposta teve de especial? — interrogou um tanto surpreso o
policial.
— O náufrago olhou para o oficial e disse: "Eu tremi, sim, mas a rocha em que
eu descansava não tremeu." Em outras palavras, ele sinalizou que, certamente, tinha
sentido medo e frio, e talvez tivesse se aproximado dos umbrais do desespero, mas
aquela rocha o tinha mantido a salvo de qualquer eventualidade porque era muito mais
forte, muito mais sólida e muito mais poderosa do que ele.
Steiner piscou os olhos, perplexo, mas Lebendig continuou.
— Veja, meu caríssimo amigo, comigo acontece a mesma coisa que com esse
náufrago. Às vezes, posso ter medo, insegurança, talvez até dúvidas. Sim, não se
surpreenda nem se escandalize, de vez em quando eu também não sei muito bem por
onde ir nem o que fazer, mas, ainda que eu trema, se me permite a expressão, a rocha
sobre a qual eu descanso não treme.
— E a que o senhor se refere? — perguntou o policial prendendo a respiração.
— A rocha sobre a qual eu descanso é Jesus, o Filho de Deus — respondeu
Lebendig. — E eu sei que posso contar com ele da mesma forma como Marta contou,
quando seu irmão Lázaro morreu.
Steiner o encarou com uns olhos inusitadamente abertos, como se através de
suas pupilas pudesse absorver melhor o que estava escutando.
— Nunca se apóie nos homens para enfrentar suas aflições, Steiner — disse
Lebendig. — Certamente, um amigo pode nos ajudar num momento ruim e é um
verdadeiro dom do céu, mas, no fim das contas, nós homens somos falíveis, nós nos
enganamos, temos fraquezas. Cristo... Cristo é uma rocha que não se mexe, que não
treme, que lhe oferece, se você procura e realmente deseja, o apoio mais completo e
absoluto.
O erudito fez uma pausa e observou como o policial tinha colocado as duas
mãos sobre o Novo Testamento, que agora ele apertava contra seu peito como se fosse
um tesouro de cuja custódia ele estava incumbido a qualquer preço.
— Continue a ler o livro do ponto onde parou, pelo Evangelho de João —
continuou Lebendig — e, de agora em diante, toda vez que achar que não consegue
seguir em frente, quando a dúvida o assaltar, quando não souber para onde ir, recorra a
Jesus. Fale com ele como falaria comigo, como falaria com sua mulher ou com algum
de seus filhos. Faça isso e descobrirá que, diferentemente do que normalmente acontece
com os homens, Jesus não lhe faltará nunca. Posso dizer isso porque, além daquilo que
a Bíblia ensina, é minha própria experiência.
Lebendig abriu a porta e estendeu a mão ao policial para se despedir. No
entanto, Steiner não a apertou. Pelo contrário, substituiu o gesto por um abraço,
caloroso, forte, sentido.
— Muito obrigado, herr Lebendig — disse quando se separaram. — Não pode
imaginar o bem que me fez. Estou... estou muito feliz... e muito agradecido. Garanto-lhe
que não me esquecerei nunca... o senhor pode contar comigo para o que quiser.
— Que Deus o abençoe, Steiner — murmurou o erudito antes de fechar a porta.
Dezessete
Do caderno de estudos científicos do professor Lebendig
—O SENHOR TEM CERTEZA de que isto foi a última coisa que ele escreveu? —
perguntou Lebendig levantando os olhos do papel.
— Sem sombra de dúvida — respondeu Koch.
— E escreveu isso duas horas antes que encontrassem seu cadáver pendurado
de uma viga?
— Um pouco mais, um pouco menos — disse o policial. — Sei lá... talvez
tenha sido uma hora e meia ou três horas, mas a diferença foi mínima.
Lebendig ficou em silêncio e voltou a cravar os olhos no texto que tinha à sua
frente. Era um relatório redigido com esmero, embora sem exceder às regras, pesadas,
convencionais e não particularmente criativas dessa espécie de escritos. Provinha de um
homem tranqüilo, meticuloso, talvez não muito inteligente mas sem dúvida dedicado a
seu trabalho com uma devoção quase religiosa. E, sem dúvida, de forma alguma
inclinado para o suicídio.
— Observe estas linhas - comentou Lebendig enquanto passava por baixo delas
a ponta de uma pena. — Como o senhor as descreveria?
— São... eretas. Sim, eretas. Talvez um pouco inclinadas para cima.
— Exatamente — concordou Lebendig. — Essa descrição é correta. A escrita
do pobre Steiner era a de um homem que não sofria da menor melancolia, que inclusive
se sentia animado.
— Não a de um suicida... — Koch, ansioso para afastar qualquer hipótese de
erro.
Lebendig virou o relatório, alisou a folha contra a mesa e molhou a pena no
tinteiro.
— Veja — disse ao mesmo tempo em que desenhava um risco sobre o papel.
— Esta é uma linha reta. Indica um estado de espírito normal.
— Estou vendo.
— Já esta seria indício de um estado de espírito eufórico, alegre, animado —
mostrou enquanto deixava a pena descrever sobre o papel uma linha ligeiramente
empinada para cima.
— Certo.
— Agora repare nestas linhas... — comentou Lebendig enquanto deixava
aparecer mais dois riscos sobre o papel. — A primeira corresponderia a uma pessoa
triste, afetada por uma notícia ruim, aflita. Repare na segunda. A inclinação é muito
maior. Corresponderia a alguém que sofre de uma melancolia extrema, que se encontra
a um passo de atentar contra a própria vida. Percebe a diferença?
— Sim — respondeu Lebendig. — Ela salta aos olhos.
— Compare com este relatório — disse Lebendig colocando lado a lado o texto
escrito por Steiner e o papel que tinha acabado de riscar. — O senhor diria que a
inclinação é a mesma?
— Não, nem aproximada — comentou o policial.
— É exatamente a mesma coisa que eu penso — concluiu Lebendig enquanto
se lembrava do dia em que tinha emprestado ao policial morto um Novo Testamento em
alemão.
Koch levou a mão ao queixo e o acariciou suavemente. Não, Steiner, não tinha
se suicidado. E se não tinha sido ele quem tinha posto fim à sua vida, era óbvio que
outros deviam ter feito isso. Não havia uma terceira alternativa.
— Tem alguma idéia de quem possa ter sido o assassino? — perguntou
Lebendig, fazendo eco aos pensamentos de Koch.
O policial balançou a cabeça pesaroso.
— Se eu soubesse, logo o juiz Zwack se encarregaria de que não fosse parar na
cadeia... — balbuciou com amargura.
Lebendig ficou calado. Era óbvio que Koch respirava pela ferida e que o ar que
saía dele era muito amargo. Era melhor mudar de assunto.
— Já tinha escutado antes a expressão Minirvais?
— Não... e se tivesse escutado, que diferença faria? Só Stefan e Hans sabiam
do que se tratava. Stefan é, de acordo com os médicos, um louco de camisa-de-força e
Hans... Hans é um filho de uma cadela que há anos violentou e assassinou um rapaz
mas que, graças ao barão Von Knigge e às ações de outro filho de uma cadela com toga
de juiz, passeia pelas ruas tão livre quanto um pássaro pela floresta.
— Veja só, Koch — interrompeu-o Lebendig, que não se encontrava em ótima
disposição para escutar as queixas amarguradas do policial —, os Minirvais não
existem...
— Puxa vida, homem! — exclamou Koch enquanto aplicava na própria coxa
uma palmada cheia de raiva. — Pois tínhamos que começar por aí! Se soubéssemos
disso, se tivéssemos consciência de que Hans e Stefan só diziam asneiras, não teríamos
feito o que fizemos. E nos teríamos poupado de uma porção de coisas. E Steiner, o
pobre, fiel e obediente Steiner, continuaria vivo e não estaria apodrecendo numa fossa,
depois de deixar uma viúva e três crianças...
Lebendig ficou em silêncio por um momento enquanto o policial percorria o
aposento com passadas largas, mexendo os braços como se fossem pás de moinho e se
irritando cada vez mais, à medida que ia falando.
—...e agora... agora o senhor me sai com essa de que os Minirvais não existem.
Pois muito bem. Muito bem. Que não existam. No fim das contas, o que se perde com
isso?
— Por que não se senta e me escuta? — acabou dizendo Lebendig. Koch
parou, como se um raio caído das alturas celestiais o tivesse pregado no chão. Conhecia
Lebendig havia alguns anos e nunca tinha se dirigido a ele naquele tom, ao mesmo
tempo de autoridade e censura.
— Tenho que lhe dizer uma coisa muito importante — começou a se explicar
com um tom de voz mais calmo —, e acho que se continuar se movimentando sem parar
e protestando dessa forma não vou conseguir fazer isso.
O policial continuou olhando para ele, mas não se afastou uma polegada do
local onde tinha parado.
— Os Minirvais não existem — tornou a dizer Lebendig ao mesmo tempo em
que erguia a mão para cortar pela raiz um protesto de Koch —, mas, eu lhe imploro,
deixe-me terminar, existem os Minervais16.
— Ah, pelo amor de Deus! — exclamou Koch sacudindo as mãos com tanta
força que elas poderiam ter se desprendido dos punhos.
— Demorei alguns dias a perceber que o nome me soava familiar e mais alguns
para compreender que era fruto da pronúncia ruim. Quando cheguei a isso... bem, a
partir desse momento, tudo ficou mais fácil.
— E daí?
— Trata-se de um grau de iniciação...
— Outra vez a maçonaria? — perguntou o policial, com um tom de voz metade
desesperado e metade lastimoso.
— Temo que sim, mas... mas, eu lhe imploro, Koch, deixe-me acabar. O
policial ergueu a mão direita num gesto que pretendia garantir que saberia manter
silêncio.
— Nem todas as lojas maçônicas dispõem desse grau de iniciação. Para falar a
16
Grau especial de iniciação na Maçonaria.
verdade, em Ingolstadt só existe uma loja que o tem. E não é nada estranho, porque se
trata de uma inovação. De uma curiosa inovação. A de alguém que, desconfio, acha que
conta com a possibilidade de unir, como os Minervais da Antigüidade, o poder da
sabedoria oculta com a dominação política.
Koch não abriu a boca, mas no fundo de seus olhos apareceu um brilho
estranho, o brilho típico do cão de caça que, instintivamente, sente-se próximo da presa
cobiçada.
— Em outras palavras — concluiu Lebendig —, os Minervais perseguem os
mesmos objetivos que Espartaco e Von Knigge.
— Qual é a loja deles?
— A Theodore — respondeu Lebendig.
— Quando eles se reúnem? — perguntou Koch enquanto seu coração ia se
acelerando.
— Às quartas e sábados.
— Ou seja, hoje... — pensou em voz alta Koch.
— Espere — disse Lebendig, que tinha acabado de observar uma expressão
inquietante no rosto do policial —, espere... Seu superior...
— Meu superior acredita nas explicações do juiz Zwack ou, pelo menos, finge
que sim — respondeu Koch enquanto tirava uma pequena chave do colete e a introduzia
na fechadura de uma gavetinha. Girou a chave, ouviu um leve estalido e segurou no
puxador.
— Compreendo como está se sentindo, Koch, mas acho que...
— ...que deveria ser prudente — completou a frase o policial, enquanto retirava
do móvel uma caixa de mogno. — Não tenha dúvida de que vou ser. Desta vez irei sem
avisar a ninguém.
Lebendig observou como a caixa se abria e deixava à vista duas pistolas e um
depósito metálico para a pólvora.
— Fique aqui enquanto eu vou fazer uma visita aos Miner... seja lá como se
chamem — disse o policial enquanto verificava que as pistolas estavam carregadas,
para, ato contínuo, prendê-las na cintura.
— Não tenho a menor intenção de permitir que vá sozinho — disse Lebendig,
levantando-se de um salto. — Eu o acompanharei.
— Nem pense nisso. O senhor não é um policial.
— Não... — respondeu o erudito enquanto via como Koch se aproximava da
porta. — Não sou. Mas sou uma coisa mais importante. Tenha o senhor se dado conta
ou não disso. Sou seu amigo.
Koch parou justo quando já tinha lhe dado as costas e tinha acabado de colocar
a mão sobre a maçaneta da porta. Lentamente, virou a cabeça e cravou os olhos em
Lebendig. Os músculos de seu rosto pareciam petrificados, mas o fogo que suas pupilas
lançavam deixava claro que seu interior era cenário de uma tensão sem precedentes.
— Este bem, Lebendig, está bem — disse enquanto empurrava a maçaneta e a
porta se abria. — Venha comigo e não percamos mais tempo.
Vinte e um
Do caderno de estudos científicos do professor Lebendig
19
Nome mitológico do Inferno.
Vinte e três
Do caderno de estudos científicos do professor Lebendig
20
Lei promulgada em 1356 pelo imperador alemão Carlos IV.
— Herr Koch, chefe de polícia de Ingolstadt — anunciou o mordomo — e
herr Lebendig, sábio e erudito.
Lebendig reprimiu um sorriso quando ouviu a descrição que aquele criado
tinha lhe atribuído. Nunca lhe teria ocorrido pensar que era um erudito e muito menos
um sábio, mas — tinha que reconhecer — as pessoas costumavam fazer idéias um tanto
extravagantes dos outros, principalmente quando eram diferentes.
O Eleitor ergueu os olhos da primorosa escrivaninha em que estava sentado.
Abriu um sorriso agradável, acolhedor; pousou uma pena de brancura impecável sobre
uma bandejinha adornada com desenhos graciosos, fechou um tinteiro de prata e vidro e
se pôs de pé.
— Meus caros amigos — disse enquanto contornava a mesa e se dirigia de
mãos estendidas até os recém-chegados. — Meus caros, leais e tão admirados amigos.
O mordomo se inclinou e começou a caminhar para trás procurando não dar as
costa a seu amo. Koch e Lebendig fizeram uma reverência.
— Nada de cerimônias — protestou cordialmente o Eleitor. — Nada de
cerimônias. Este não é um ato oficial. Esta é uma reunião de um modesto servidor do
povo com dois de seus melhores colaboradores. Bitte, bitte, sentem-se.
Os dois homens se acomodaram num canapé de seda branca e azul, bordado a
ouro. Não era um móvel muito espaçoso, mas o conforto que transmitiu às suas nádegas
era realmente invejável.
— Gostariam de fumar? — perguntou o Eleitor, que tinha se sentado numa
poltrona forrada com o mesmo tecido do móvel em que Koch e Lebendig estavam.
Enquanto formulava a pergunta, o Eleitor apanhou uma caixinha de madeira de
mogno marchetada e a abriu. Em seu interior, descansavam alguns charutos de tamanho
considerável.
— Eu os mando trazer da América espanhola — disse sem abandonar seu
sorriso cálido. — Às vezes, acho que esses espanhóis nunca chegam a ter consciência
do que têm de bom. Seus vinhos, seu tabaco, seu açúcar, sua porcelana... a até, como
estamos entre homens, suas mulheres. Tudo excelente, mas... ah, parece que têm certa
incapacidade para serem felizes. Talvez seja o excesso de sol.
Koch observou a caixa. Não podia negar que a disposição dos charutos era
exemplar, realmente primorosa.
— Estes charutos são provenientes de um tabaco cultivado em Cuba, mas
cortado e elaborado em Sevilha.
Lebendig estendeu a mão, pegou um dos charutos, girou-o entre o indicador e o
polegar e disse:
— Realmente excelente.
— Danke, danke, sehr — disse satisfeito o Eleitor. — Pelo que estou vendo, o
senhor é um autêntico connoisseur.
Lebendig não respondeu ao elogio, enquanto Koch se perguntava como nunca
tinha visto o erudito fumar e até contava com vários relatórios que Steiner tinha
elaborado afirmando taxativamente que ele não consumia nenhum tipo de tabaco. Será
que seu ajudante tinha se enganado na hora de vigiá-lo? Talvez... talvez porque só se
entregasse àquele vício sujo e malcheiroso quando o material consumido fosse da
qualidade daquele que o Eleitor estava lhes oferecendo, ou talvez simplesmente porque
não se atrevia a recusar a oferta.
— Danke, eu não fumo — disse Koch enquanto observava, profundamente
surpreso, como Lebendig cortava o charuto, aplicava-lhe uma pequena chama que o
Eleitor acabava de lhe oferecer e, depois de aspirá-lo com deleite, lançava no ar uma
espiral de fumaça azulada.
— Preferiria um chocolate, um café, talvez um chá? — perguntou solícito o
Eleitor. — Eu vou tomar café.
— Sim, danke, vou tomar café — respondeu o policial.
— Magnífico — exclamou em tom jovial o Eleitor, ao mesmo tempo em que
estendia a mão até uma sineta, que repousava reluzente sobre a mesinha, e a tocava.
Como se estivessem esperando a ordem, dois lacaios abriram a porta dupla e
entraram no aposento carregando uma bandeja com um serviço de café completo e outra
com alguns doces. Em absoluto silêncio, depositaram sobre a mesinha os conteúdos
tentadores e se retiraram sigilosamente e sem voltar as costas.
— Bem — disse o Eleitor assim que seus convidados provaram o café. —
Chegou o momento de lhes explicar o motivo de ter-lhes pedido que viessem ao palácio.
Koch se sentiu um tanto incomodado quando ouviu a palavra "pedido". Teria
sido mais apropriado, mais correto e mais adequado empregar o termo "ordenado" ou
até "requerido", mas "pedido"... "pedido" lhe parecia excessivo e, por sua própria
natureza, ele desconfiava dos excessos.
— Trata-se de um pedido — disse o Eleitor insistindo em sua solicitude —
mais do que justificado. O serviço que os senhores prestaram ao Estado da Baviera foi...
como poderia dizer?, incomparável. Sim, incomparável. Nosso amado Estado estava na
mira de uma grave conspiração. Era grave não só porque pretendia acabar com a ordem
social, mas principalmente porque partia de alguns princípios... dissolutos, sim,
completamente dissolutos. Não porque eles desejassem aniquilar com a nobreza e a
monarquia, o que já é bastante grave, mas porque tinham a intenção de destruir as raízes
sagradas da ordem e depois espalhar a desgraça em outros reinos. Sinceramente, não sei
se o ser humano se deparou com uma soma de maldades como esta nos últimos anos.
Fez uma pausa, deu uma tragada no charuto, expeliu de forma lenta e prazerosa
a fumaça e levou a xicrinha de café aos lábios.
— Certamente, um trabalho dessa natureza merece uma recompensa...
Os dois convidados tentaram protestar, mas o Eleitor estendeu a mão direita
num gesto destinado a lhes impor silêncio.
— Já sei. Já sei de sobra. Não realizaram esse trabalho ambicionando qualquer
prêmio. Sei que os senhores são súditos realmente exemplares, mas... bem, eu seria um
ingrato se não lhes desse alguma paga. E insisto nisso. Com o serviço que prestaram à
Baviera, qualquer coisa que lhes entregar há de me parecer pouco.
— Herr Eleitor — começou a dizer Koch —, nossa maior...
— Não, não — voltou a interrompê-lo o nobre. — A decisão está tomada. O
senhor, herr Koch, passará a ser o chefe de minha guarda florestal. Terá que esperar até
a Páscoa, mas quero perto de mim um homem de tanto valor. Quanto a herr Lebendig...
Aí a questão é mais difícil. Se fosse católico, eu me encarregaria pessoalmente de que
lhe dessem uma cátedra em nossa universidade. Ganharíamos um sábio do qual, digo
isso sinceramente, estamos tão precisados. Mas, por motivos que nos escapam e nos
quais não quero respeitosamente me intrometer, herr Lebendig é protestante. Resolvi
por isso redigir algumas cartas de recomendação dirigidas a diferentes soberanos
alemães de sua mesma fé na certeza de que encontrarão um lugar digno de seus méritos
em algum de seus reinos. A divisão do cristianismo provocou um dano enorme ao longo
da História. Não estou pretendendo comparar esses desastres com meu destino, mas,
com toda a dor de meu coração, vai me custar muito perder um erudito de sua
envergadura. Deus, em Sua infinita sabedoria, saberá por quê.
O Eleitor se calou. Voltou a sugar o charuto, expeliu a fumaça azulada e se
deleitou com um novo gole de café. Dificilmente seria possível negar que seu rosto
rosado era uma expressão encarnada da satisfação. Esse era justamente um sentimento
que brilhava por sua ausência nas faces dos dois visitantes. Embora por razões
diferentes, nem Koch nem Lebendig tinham naquele momento o menor interesse em
receber honrarias, e principalmente, não as queriam se elas fossem se traduzir, de forma
imediata, em seu afastamento de Ingolstadt. Por mais palavras, sorrisos e movimentos
das mãos a que o Eleitor recorresse, por mais charutos, xícaras de café ou doces que
lhes pudesse oferecer, os dois tinham chegado, sem trocar uma única frase, à mesma
conclusão. Koch iria se ver arrancado das ruas para, em troca de uma boa renda, isso
sim, dedicar-se a vigiar para que nenhuma pessoa furtiva caçasse os veados ou os
faisões do Eleitor. Quanto a Lebendig, teria que partir para o exílio, um exílio talvez
bem remunerado e ligado a uma boa posição, mas exílio no fim das contas. A
recompensa por ter desarticulado uma conspiração que o Eleitor tinha classificado como
extremamente perigosa era, trocando em miúdos, tirá-los de circulação.
— Herr Eleitor — começou a dizer Koch em tom cortês, mas inegavelmente
frio —, nós nos sentimos aflitos com sua generosidade.
— Vamos, não é nada, não é nada, meu querido herr Koch.
— E nos sentimos tão aflitos — continuou o policial, disposto a que ninguém o
interrompesse — que nos permitiríamos, bem eu me permito a ousadia de lhe
perguntar... de lhe implorar que nos diga o que vai acontecer com os culpados pela
conspiração.
Pela primeira vez desde o início da conversa, o sorriso desapareceu do rosto do
Eleitor. No entanto, foi um gesto passageiro, rápido, quase imperceptível. Tanto que
Lebendig não soube direito se aquilo tinha acontecido de fato ou se ele tinha sofrido
uma enganadora ilusão de ótica.
- Os crimes cometidos são de uma gravidade enorme - começou a dizer o
Eleitor, num tom de severidade calma e convicta. - De enorme importância. Tanto que,
não vou esconder, as penas serão proporcionais à maneira como a lei foi violada.
— Por acaso seria muito indiscreto se pudéssemos saber quais? - perguntou
Koch, enquanto Lebendig tinha uma incômoda sensação de peso no peito ao ouvir
aquilo.
— Não, não, certamente, herr Koch — respondeu o Eleitor, cujo sorriso
continuava bamboleando jovial nuns lábios finos e pálidos. — Os senhores sabem
perfeitamente que as faltas cometidas são de uma gravidade sem par. Os castigos não
poderiam ser diferentes.
— Não nos resta a menor sombra de dúvida - disse Koch assim que o Eleitor
terminou de falar. — lustamente por isso nós lhe agradeceríamos, se fosse possível, se
nos informasse a esse respeito. É um favor que me atrevo, falo por mim certamente, a
lhe suplicar.
O Eleitor deu uma nova tragada no charuto e agora expeliu um círculo de
fumaça que subiu, sólido e compacto, pela atmosfera do cômodo.
— O principal responsável por tudo isto — começou a dizer — é o professor
Weishaupt. Até agora ele ocupava uma cátedra de direito na universidade, a mesma
universidade que em seu tempo a Companhia de Jesus dirigiu. Certamente, essa
situação não pode se prolongar. É completamente intolerável que alguém dedicado a
destruir nossa sociedade possa continuar formando mentes juvenis e as desviando para
abismos pervertidos. Essa situação acabou. Weishaupt perdeu a cátedra. E não foi só
isso. Além disso, será conduzido até a fronteira da Baviera e exilado. Sei que o castigo é
severo, mas será cumprido sem contemplações.
Lebendig aproveitou que estava levando o charuto até a boca para olhar para
Koch de relance. O rosto do policial tinha se transformado numa esfinge dura, pétrea e
fria.
— Desconfio que o juiz Zwack também será objeto de um castigo severíssimo
— disse Koch num tom de voz neutro.
— Zwack é um homem de notório prestígio — começou a dizer o Eleitor. —
Durante anos prestou à Baviera serviços de enorme relevância mas... não preciso
explicar isso ao senhor, herr Koch, a lei é a mesma para todos e a obediência anterior
não desculpa a violação de hoje. Posso lhe dizer, confiando que estamos entre
cavalheiros, que a sanção teria sido maior se o senhor não tivesse... se excedido quando
entraram na loja Theodore. Um homem com a boca machucada sempre inspira piedade.
Apesar de tudo, posso lhe garantir que a pena há de ser severa. Ele não será suspenso de
seu trabalho por menos de seis meses. Pior: eu não me espantaria, inclusive, se a
suspensão chegar a um ano.
— E o que acontecerá com o barão Von Knigge? — perguntou Koch
gelidamente.
— Pobre barão! — disse o Eleitor depois de beber todo o café da xicrinha. —
Von Knigge sempre foi um pouco... cabeça oca. Bom homem, amante da Baviera, mas
um pouco esquisito. Desde jovem cismou com essa superstição idiota das ciências
ocultas. Deus sabe lá o dinheiro que deve ter gasto em livros desse teor e os desgostos
que deve ter dado à família. O fato é que conheceu Weishaupt porque os dois
freqüentavam a mesma loja maçônica. Parece que, num primeiro momento, Von Knigge
achou que Weishaupt poderia ajudá-lo a aprofundar seus conhecimentos de ocultismo.
Quando descobriu que não era bem assim, manteve certa distância. Já faz bastante
tempo que deixou suas terras para viajar para fora da Baviera e, certamente, demorará a
voltar. A inconsciência, como o senhor bem sabe, não é uma virtude, mas também não
pode ser punida quando não reverte em prejuízo para alguém, e o pobre barão não fez
mal a ninguém.
— Estou entendendo — disse Koch —, estou entendendo... perfeitamente.
Quanto aos Minervais...
— Quanto aos Minervais — interrompeu o Eleitor —, acontece a mesma coisa
que com o barão. Eu mesmo os interroguei ontem. São uns pobres de espírito. Nada
mais do que pobres de espírito. Têm a cabeça cheia das minhocas típicas da maçonaria.
Que a fraternidade universal isso, que o conhecimento secreto aquilo, que esta tolice e
aquela outra... Tudo isso é indiscutível, é verdade, mas, no fundo, inofensivo. Depois da
repreensão que receberam ontem, não tornarão a se meter em confusões. Mais ainda,
herr Koch, eu não me espantaria se viesse a saber que vários deles acabarão deixando a
loja maçônica como o gato escaldado que foge da água fria.
Um silêncio denso como a névoa que no inverno emana da orla de um rio
caudaloso se espalhou pela sala. Ainda que ninguém fosse dizer isso, tanto Koch quanto
Lebendig sabiam que tinham chegado ao final da audiência. Só lhes restava se levantar,
agradecer e se preparar para adentrar num futuro que desconfiavam ser ingrato.
— Há uma última questão que gostaria de comentar com vocês -disse
inesperadamente o Eleitor. — É um assunto delicado, mas devo lhes dizer que o tomei
como uma questão realmente pessoal. Estou me referindo, como talvez já imaginem, à
sua entrada na loja Theodore. Graças a esse fato, acabou-se com a conjuração de
Espartaco, mas, nem preciso lhes explicar, os estragos causados durante o episódio não
foram pequenos e os membros da loja, pessoas decentes e respeitadores da lei, entraram
com um processo civil contra os senhores.
Lebendig voltou a olhar de soslaio para Koch. Os olhos do policial tinham sido
reduzidos a duas rugas quase fechadas que lhe davam uma aparência quase oriental.
— Em resumo — prosseguiu o Eleitor —, resolvi estender sobre os senhores,
permitam-me a expressão, meu manto protetor. Justiça seja feita, não poderia fazer
menos do que isso por duas pessoas tão dedicadas ao bem-estar da Baviera. Dei ordem a
meus advogados que entrassem em contato com os representantes legais da loja e, devo
lhes dizer com satisfação, conseguiram fazer um acordo com eles. Estão dispostos a
aceitar que os senhores paguem pelos danos de forma parcelada. Não os incomodarão. E
agora...
Koch e Lebendig se levantaram ao mesmo tempo em que o anfitrião.
— Não é o usual — disse o Eleitor —, mas acho que deveríamos nos despedir
com um aperto de mão.
Koch titubeou por um instante enquanto o Eleitor lhe estendia a mão direita.
Por um momento, Lebendig prendeu a respiração com medo de que ele a recusasse. Não
foi o que aconteceu. Sem tirar um minuto os olhos do rosto do Eleitor, o policial apertou
sua mão. Lebendig fez o mesmo.
— E agora, meus caros amigos, vão com Deus — disse sorrindo o Eleitor, ao
mesmo tempo em que tocava a sineta.
Caminhando para trás, com lentidão e procurando não tropeçar em nenhum
móvel, Koch e Lebendig chegaram até a porta, que dois criados de libré abriram às suas
costas. Ainda olhavam para a frente quando a folha dupla de madeira os separou para
sempre do Eleitor da Baviera.
Vinte e cinco
Baviera, 1788
INTRODUZIU O FIO DO ESTILETE no fio estreito que se estendia entre a folha da porta
e o umbral. Depois foi descendo o instrumento lenta e cuidadosamente até que sua
ponta encontrou a fechadura. Bem, agora era mais uma questão de destreza do que de
força. Pressionou de forma suave e lenta, com a segurança que a prática proporciona.
Um leve estalo anunciou de forma quase silenciosa que tinha acabado de alcançar seu
propósito. Apoiou as pontas dos dedos na porta e empurrou com cuidado. Ela cedeu
sem fazer barulho. Felizmente, as dobradiças estavam lubrificadas. Bom. Colocou agora
as duas mãos sobre o gume da porta e a deslocou pouco a pouco até que ela se abriu o
suficiente para permitir que ele entrasse.
Um cheiro estranho, misto de incenso, chá rançoso e alguma coisa indefinida
que não conseguiu identificar feriu suas narinas. Não lhe pareceu agradável, mas
também tinha que admitir que, ao longo da vida, já tinha cheirado coisas piores. Piscou
algumas vezes à espera de que seus olhos se acostumassem com a penumbra. Foi uma
questão de instantes. Bem rápido, conseguiu distinguir os contornos dos objetos e,
principalmente, das portas. Instintivamente, levou a mão até o cabo da pistola,
acariciou-o levemente e se dirigiu para o primeiro aposento.
Não estava trancada a chave e ele conseguiu abri-la sem nenhuma dificuldade.
Era uma simples e modesta despensa. Franziu os lábios decepcionado e deixou o
cômodo. Tinha acabado de entrar no quarto aposento quando um clarão, primeiro
azulado, depois vermelho-escuro, ofuscou sua vista. Era uma chama que, mal
iluminando a concha de uma mão, pousou por fim sobre uma vela para se transformar
numa luz clara e amarelada que se espalhou pelo ambiente.
— Estava à sua espera, herr Koch.
O policial levou a mão à pistola que carregava na cintura.
— Não faça isso — disse o homem que tinha acabado de acender a luz.
— Estou com uma arma apontada para o senhor e não teria o menor problema
em disparar se achar conveniente. Com dois dedos, dois dedos apenas, tire a arma do
cinturão. Não faça besteiras. Ao menor movimento suspeito, eu dispararei.
Koch aproximou o polegar e o indicador do cabo da arma. Puxou-a e a tirou da
cintura.
— Perfeito. Agora, sem fazer nenhuma besteira, deixe a pistola sobre a mesa.
Bom. Isso, isso. E agora, com a ponta dos dedos, empurre-a na minha direção. Com
cuidado. Lembre-se de que estou apontando uma arma para o senhor.
O policial obedeceu e a pistola chegou, deslizando sobre a superfície da mesa,
até o homem que apontava a arma para Koch.
— Imagino que o senhor saiba que acaba de cometer um crime de invasão de
domicílio...
Koch ficou em silêncio.
— Em qualquer outra pessoa, semelhante infração da lei seria imperdoável,
mas no futuro chefe da guarda florestal do Eleitor da Baviera... bem, é quase obsceno.
O policial apertou os lábios. Que o homem que o estava ameaçando soubesse
do destino que a autoridade máxima da Baviera tinha-lhe reservado não o surpreendia.
Na verdade, confirmava suas piores suspeitas.
— O senhor pode muito bem me denunciar à polícia, Weishaupt — disse
Koch, num tom seco.
— Não, não... — respondeu Espartaco com a voz carregada de ironia.
— A polícia de Ingolstadt não me inspira muita confiança. Às vezes entram
nos locais mais respeitáveis e começam a distribuir tabefes sem mais nem menos. Como
verdadeiros bárbaros. E isso sem falar nas vezes em que conduzem à presença do juiz
pessoas contra as quais não existem provas.
— O senhor sabe perfeitamente que esse não é o seu caso — disse Koch. —
Von Knigge, Zwack, Hans, o senhor mesmo, estão implicados em ações repugnantes,
inclusive estupro e morte de um infeliz e no assassinato de Steiner.
— Repugnantes? Não, não acho que essa seja a palavra exata. No máximo,
pode-se dizer que foram erros lamentáveis. Pessoalmente, acho que nunca deveriam ter
sido cometidos, mas não se pode fazer uma omelete sem quebrar os ovos. Nossas metas,
nossos objetivos, nossos propósitos são tão nobres que não ficam empanados, nem
mesmo ofuscados, por ações conjunturais.
Koch apertou os punhos até que suas unhas ficaram brancas. Que Weishaupt
classificasse de ação conjuntural a morte de Steiner tinha exacerbado a fúria que tinha
se apoderado dele, de maneira irresistível, durante o encontro com o Eleitor. Antes de
deixar o palácio, já tinha resolvido ir à procura de Espartaco, custasse o que custasse.
— Weishaupt — disse Koch fingindo uma segurança que não tinha —, você
jogou e perdeu.
— O senhor acha? — perguntou brincalhão o antigo catedrático. — Por que
está tão certo disso?
O policial olhou para a mesa. A meio caminho entre o candelabro e o lugar
onde estava parado, havia um tinteiro. Se pelo menos conseguisse chegar até ele...
— Sabe disso tão bem quanto eu — começou a dizer Koch. — Não, melhor,
muito melhor do que eu. Seus Illuminati não assumiram o governo da Baviera como
pretendiam. É bem provável que ainda tenham simpatizantes em Ingolstadt e, sem
dúvida, seu castigo foi brando demais, mas... mas esta vaza foi nossa. Você mesmo terá
que ir embora daqui. Eu fico e posso lhe garantir que estou muito longe de achar que
este assunto esteja encerrado.
Weishaupt abriu os lábios numa careta larga que pretendia ser um sorriso.
— Está enganado quando diz que não está encerrado, Koch — disse. — Para o
senhor, está.
O policial compreendeu naquele momento que Adam Weishaupt, Espartaco, o
criador dos Illuminati, iria disparar contra ele. Apoiou as mãos sobre a mesa e tentou
impulsionar-se com a força suficiente para alcançar o tinteiro e atirá-lo contra
Weishaupt. Só conseguiu aumentar em alguns dedos sua estatura. Não pôde ir mais
além. Primeiro, viu o clarão da pistola de Espartaco; imediatamente, sentiu como se um
coice de fogo o tivesse atingido na barriga; ato contínuo, viu-se impelido
irresistivelmente para trás e caiu de bruços. Depois veio a escuridão, uma escuridão
profunda e completamente isenta de sensibilidade.
— Policial estúpido — disse Weishaupt enquanto se levantava da cadeira. —
Poderia ter sido um dos nossos ou, pelo menos, manter-se à margem, mas tinha que
meter o focinho onde não era chamado.
Venceu a distância que separava a mesa do corpo que jazia inerte no chão.
Uma mancha da cor carmesim crescia, como se fosse de óleo, sobre o colete do policial.
— Assunto encerrado — resmungou com desprezo.
Estava se encaminhando até a porta quando ouviu alguns passos. Eram
discretos, sem nenhuma sombra de dúvida, mas não tão silenciosos que não pudessem
ser percebidos. Aborrecido, examinou a pistola que ainda fumegava em sua mão. Não
tinha tempo para recarregá-la, mas a arma do policial poderia servir. Retrocedeu alguns
passos com rapidez, agarrou a arma que Koch tinha deixado sobre a mesa e apagou a
vela com um sopro. Dificilmente, poderia ter agido de maneira mais oportuna. Na porta,
perfeitamente visível apesar da escuridão, tinha acabado de se recortar o perfil de um
homem que segurava uma pistola na mão direita.
TERCEIRA PARTE
Nêmesis
Um
Paris, 26 de julho de 1794
KARL SENTIU UMA DOR FORTE na cabeça quando a luz do sol, desagradavelmente
brilhante, bateu em seus olhos. Instintivamente, levou a mão ao rosto e procurou se
proteger. Não foi possível. O sans-culotte puxou-o pela manga suja e tornou a deixar
seu rosto exposto aos raios impiedosos.
— Ponha-lhe os grilhões — disse um dos sans-culottes que o haviam tirado da
cela. — Se ele escapar, nós é que vamos pagar o pato.
A partir do momento em que ouviu o estalido sobre seus pulsos, perdeu a
esperança de poder proteger os olhos daquela luz ardente. Num esforço desesperado
para não ficar cego e evitar a dor, abaixou a cabeça. No entanto, a única coisa que
conseguiu foi que suas pálpebras se enchessem de lágrimas, umas lágrimas abundantes
e cálidas, que transbordaram e desceram pelas suas faces.
— Vamos. Não demore, seu porco — resmungou um dos sans-culottes ao
mesmo tempo em que puxava a corrente que prendia Karl. — Estamos com pressa.
Depois de atravessar um corredor estreito e subir uns dois lances de escada,
ainda meio às cegas, Karl cruzou o umbral do prédio onde o tinham confinado e saiu em
uma rua que lhe pareceu insuportavelmente barulhenta. Sem poder levantar a vista do
chão, para assim proteger seus olhos, procurou contornar os obstáculos que, rápidos e
perigosos como ratazanas, cruzavam em seu caminho. Nunca tinha gostado de Paris.
Seus habitantes sempre tinham-lhe parecido altivos, distantes, mal-educados e, quanto a
suas ruas, achava-as frias, impessoais, cinzentas e fedorentas. E, como se não bastasse,
Karl sempre tinha visto os intelectuais como um bando pedante e pretensioso de cínicos
sem moral.
Voltaire tinha enriquecido com o tráfico de escravos; Rousseau vivia às custas
das pobres viúvas idosas de quem arrancava dinheiro; D'Alembert não escondia o
desprezo que sentia pelos povos africanos, para os quais, na sua opinião, a escravidão
era um benefício... Tinham-lhe provocado sempre um profundo desagrado, mas, era
justo admitir, jamais tinha imaginado até que ponto suas idéias, típicas de uma elite
ambiciosa, acomodada e desejosa de substituir os clérigos na orientação da espécie
humana, poderiam acabar desencadeando aqueles efeitos. Embora, para falar a verdade,
quem tinha desencadeado o quê?
Desviou-se como pôde de uma enorme ratazana cinza que tinha acabado de sair
de um esgoto, provocando a gritaria de alguns parisienses famélicos. Com toda a
certeza, se o roedor não corresse muito, aquela noite seria a comida de vários estômagos
esfomeados. Porque a verdade era que nunca tinha assistido a tanta fome, tanta sujeira e
tanta miséria na capital da França como as trazidas pela vitória da revolução.
Não conseguiria dizer por quanto tempo foi obrigado a se locomover por
aquelas vielas sujas, malcheirosas e desagradáveis, mas quando, finalmente, pararam
diante de um prédio de grandes dimensões, seus olhos já tinham se acostumado à luz do
sol.
— Este é aquele que vocês estavam esperando — disse o sans-culotte a uma
das sentinelas. — Aqui estão os documentos.
O guarda deu uma olhada num escrito que mal conseguia decifrar. Dele se
poderia afirmar que era um revolucionário convicto, que não demonstrava qualquer
piedade pelos aristocratas e que tinha dado provas em mais de uma ocasião de sua
capacidade para eliminar, com as mãos se fosse preciso, qualquer inimigo do povo.
Pedir-lhe, ainda por cima, que soubesse ler e escrever era, sem dúvida, um exagero.
Depois ele virou o papel, fingiu decifrá-lo e em seguida, com um gesto displicente,
afirmou:
— Podem passar.
Um empurrão na altura da omoplata esquerda foi a tradução, no corpo de Karl,
da autorização que o sans-culotte tinha acabado de dar.
A passos largos, percorreram a distância entre a entrada espaçosa e uma escada
destrambelhada, de dimensões notáveis. Depois, como se conhecessem perfeitamente o
lugar, os sans-culottes começaram a subida aproveitando para estimular Karl com uma
coronhada no flanco e alguns socos na altura dos rins. Com a graça de Deus, pararam
quando chegaram ao primeiro andar. Àquela altura, Karl estava completamente exausto
e as pancadas não o estavam propriamente ajudando a recuperar as forças drenadas pela
falta de comida e de sono.
— Ele está esperando vocês há um bom tempo, cidadãos — disse-lhes um
tenente que cruzava o patamar da escada com grandes passadas ao mesmo tempo em
que fumava um cachimbo comprido. — E já sabem que ele não gosta de perder tempo.
Não havia o menor tom de censura naquelas palavras, mas os sans-culottes não
puderam evitar que um calafrio percorresse sua espinha dorsal.
— Venha, não vamos mais perder tempo — continuou o oficial enquanto se
encaminhava para uma grande porta e batia de maneira firme mas respeitosa.
Decidido, o oficial abriu a porta, avançou uns dois passos e disse:
— Cidadão, aqui está o prisioneiro.
Karl não pôde entender a resposta. Talvez tivesse se limitado a um simples
gesto, a uma careta habitual, a um aceno.
— Entre — disse então o tenente cravando os olhos em Karl. — Depressa.
Aquela sala tinha conhecido, sem dúvida, dias melhores. Continuava sendo
ampla e espaçosa, mas nelas os vestígios da revolução abundavam. No piso de madeira,
sem dúvida esplêndido em outros tempos, tinham acendido pelo menos uma fogueira de
dimensões nada modestas, as paredes denunciavam os vazios deixados por quadros que
tinham sido roubados ou destruídos, o revestimento das paredes estava descolado em
vários pontos e também era fácil perceber manchas de gordura, de vinho e de mãos,
como se uma varíola de imundície tivesse se propagado pela superfície antes rutilante
daquele aposento.
De costas para os recém-chegados, colado a uma janela não inteiramente
limpa, um homem de estatura mediana observava a rua. Sua casaca azul, adotada pelos
oficiais revolucionários, tinha um bom corte, quase se podia dizer que era de confecção
aristocrática. Não teria sido justo dizer a mesma coisa em relação às calças riscadas que
saíam dela e acabavam enfiadas numas botas de montaria reluzentes, que levaram Karl a
se perguntar quem poderia lustrá-las sem apelar para um empregado. Não usava peruca.
Pelo contrário, acompanhando a moda que ia se impondo em toda a França
revolucionária, seus cabelos eram longos e estavam presos por um laço amarrado à
altura da nuca. Como se estivesse particularmente absorto no que estava acontecendo na
rua, ele não se virou quando os passos dos sans-culottes anunciaram sua chegada.
— Podem se retirar — disse sem se virar.
— Cidadão... — atreveu-se a balbuciar o chefe dos sans-culottes —, não quer
que a gente fique para vigiar o prisioneiro?
— Não. Vão embora e não se esqueçam de fechar a porta.
Só quando o chiado de umas dobradiças mal lubrificadas e a batida da porta
contra o umbral indicaram que ela estava fechada, o oficial girou sobre os calcanhares e
se virou para Karl.
Bastava observar as duas pistolas que estavam presas por uma faixa vermelha à
sua cintura para perceber que a ordem dada aos sans-culottes para que deixassem o
aposento não era nenhuma imprudência. Com uma daquelas armas, ele poderia enviar
Karl para o outro mundo em questão de instantes.
— Foi difícil me encontrar? — perguntou num tom frio ao mesmo tempo em
que se sentava. — Ah, desculpe meus modos revolucionários. Sente-se, por favor.
Karl se aproximou de uma cadeira sólida, embora um pouco bamba, e largou o
corpo sobre ela. Estava realmente exausto e a sensação de conforto que aquela cadeira
transmitiu a suas nádegas e suas costas o levou a pensar que poderia dormir a qualquer
momento.
— Vejo que está cansado. Quer tomar um copo d'água?
— Não foi difícil encontrar você — disse de repente Karl, respondendo à
primeira pergunta de seu interrogador —, e, cíaro, agradeceria muito um pouco de água.
O oficial deu meia dúzia de passos até parar diante de dois copos e uma jarra.
Com cuidado, virou o líquido num dos recipientes. Depois, tornou a se aproximar da
mesa diante da qual Karl estava sentado para depositar o copo a uns dois palmos do
prisioneiro.
Um verdadeiro oceano de sensações se abriu na boca de Karl quando provou a
água. Primeiro, foi como se sentisse dissolver toda a sede salina que tinha ressecado sua
boca, acompanhado por uma experiência tão gratificante de uma estranha sensação de
alívio e frescor. Depois, o sabor lhe pareceu estranho e suavemente doce, como se fosse
um néctar nunca saboreado antes. Finalmente, de uma forma completamente
inexplicável, percebeu que uma cadeia tão gratificante de prazeres rompia a barreira da
boca e, descendo pelo peito, espalhava-se pelos braços até as pontas dos dedos e pelas
pernas até os joelhos.
Um sorriso de potência e domínio se desenhou no rosto do oficial, que tornou a
encher o copo de Karl. Encheu-o ainda duas vezes antes de se sentar em frente ao
prisioneiro.
— Como soube que eu estava em Paris — perguntou enquanto tirava as
pistolas da cintura e as colocava na mesa ao alcance das mãos.
Karl umedeceu os lábios com a ponta da língua, uma língua que tinha perdido
as terríveis características dos últimos dias e que, embora inchada, voltava a salivar
normalmente.
— Tive a certeza quando condenaram Luís XVI à morte — respondeu.
— Ora, puxa vida — disse o oficial com um sorriso de satisfação mal
disfarçado. — Então chegou à conclusão de que a revolução tinha estourado na França
por minha culpa?
O silêncio de Karl poderia ser interpretado como uma resposta afirmativa.
— Há alguma verdade nisso. Não vou negar, mas... como posso dizer? A
França já estava madura quando eu cheguei. Certamente, a aristocracia, os burgueses e
os professores eram nossos fazia muitas décadas, mas o fato é que até o clero já estava
acreditando em nossas idéias. Faz quase vinte anos a loja maçônica da Perfeita
Inteligência em Lieja já tinha entre seus membros o bispo, a maioria da cúpula da
catedral e boa parte dos padres da cidade. Não era uma exceção. Há quatro anos, o bispo
de Autun tinha se transformado num dos postos mais importantes de uma loja maçônica
desta cidade, e o abade Siéyes, que escreveu aquele livreto tão sugestivo sobre o
Terceiro Estado... bem, ele é membro da loja Filaletes de Paris. Se até Voltaire foi
iniciado na fraternidade por um bispo! Não, meu caro amigo, minha participação na
empreitada da revolução foi relevante, não vou negar por falsa modéstia, mas foi muito
menor do que você possa imaginar.
Karl ficou calado. Àquela altura, sabia o suficiente para se atrever a negar uma
única das informações apontadas por seu interlocutor.
— O avanço da revolução, da nossa revolução, é absolutamente incontrolável.
Eu sei disso e você, queira ou não, também sabe. Certamente, como em todos os
processos humanos que conduzem ao progresso, às vezes podem ocorrer retrocessos,
obstáculos, demoras, mas, não vamos nos enganar, se retrocedemos meia dúzia de
passos é apenas para ganhar fôlego e avançar de um salto outros cinqüenta. Você
deveria estar consciente disso.
— Não sinto que na Baviera tenham avançado muito nestes anos... Os olhos do
oficial se franziram como se ele tivesse recebido o impacto de um soco no fígado e
quisesse fingir que não tinha doído.
— Foi uma pena que eles tivessem nos descoberto — disse com uma voz que
pretendia se mostrar tranqüila. — Isso eu não vou negar. Tudo caminhava
perfeitamente. No entanto, como você pode ver por estas ruas, no fim das contas, o
resultado foi ainda melhor. Da França, de Paris, espalharemos a chama da revolução
pelo mundo inteiro. No fundo, por mais incômodo que possa parecer, a verdade é que
vocês tiveram um enorme trabalho e, como se pode ver, foi apenas um contratempo
facilmente superável. Foi um acidente que pode ser reparado.
— Você tem certeza do que está dizendo, Weishaupt? — perguntou o
prisioneiro com uma voz que ecoou inusitadamente firme.
— Claro, herr Lebendig, claro — respondeu com um sorriso o irmão
Espartaco.
Dois
Baviera, 1788 - Paris, 1794
OBSERVOU O HOMEM QUE, com o ombro, o braço e a perna despidos, tinha acabado
de concluir o ritual de iniciação. Pálido, magro — quase se poderia dizer esquálido —
com cabelos compridos e olhos negros e penetrantes, mal conseguia esconder sua
emoção. Não deixava de lhe chamar a atenção como uma cerimônia tão suntuosa - sim,
por mais simbolismo que tivesse era suntuosa — emocionava alguns irmãos.
O rapaz parecia vivaz. Silencioso, reservado, até taciturno, mas esperto.
Certamente, tirariam dele um excelente proveito. Não se poderia saber quanto no
momento, mas, com certeza, seria magnífico. Durante a revolução, tinha dado sinais de
um talento nada comum e, principalmente, de um espírito resoluto e decidido. Na hora
da verdade, essa qualidade era superior à inteligência. Um gênio indeciso podia ser
derrotado com relativa facilidade por um indivíduo audaz.
A falta de decisão tinha colocado Robespierre a perder. O grande imbecil,
justamente no auge do terror, tinha se assustado e chegado a fazer contato com os
inimigos da revolução. Pelo visto, o sangue o assustava. Ah! Deveria ter sentido muito
medo quando se permitiu entabular negociação com a monarquia e inclusive se ofereceu
como regente de um menino Capeto. Tinha tido tudo ao alcance da mão e, no momento
decisivo, tinha se deixado arrastar pelas dúvidas, pelos escrúpulos, pela tentação de se
restringir ao que parecia possível. Idiota! E o pior eram as pessoas — pessoas
excepcionais, aguerridas, com a cabeça no lugar - que ele tinha arrastado em sua queda.
Respirou fundo com a intenção de dissipar uma incômoda nuvem de ansiedade
que tinha descido, repentinamente, sobre seu peito. A lentidão de Robespierre e a
estupidez dos que tinham tentado corrigi-la poderia ter-lhe custado a vida. Um
movimento em falso, um passo mal dado e poderia ter acabado no cadafalso. Só de
lembrar o quanto tinha estado perto da morte, ele começava a suar. Bem, o importante é
que tudo já tinha passado. Mais do que isso. Na verdade, tudo continuava, prosseguia,
progredia... e seguia de acordo com o plano preestabelecido.
Que papel poderia ter no plano aquele rapaz que tinha acabado de ser iniciado?
Bem, isso dependeria do que ele desse de si. Não lhe daria nada de graça, mas sem
dúvida o apoiaria se ele merecesse. Além do mais, um homem tão jovem deveria ter,
por razões naturais, uma vida inteira pela frente.
Observou a forma como os diferentes irmãos se adiantavam para abraçar o
recém-iniciado. Eles o apertavam entre seus braços, estendiam-lhe a mão, sussurravam
algumas palavras de estima em seu ouvido. Era o normal. Ele não poderia fazer menos
do que isso.
— Sou o irmão Espartaco — disse apertando contra seu peito o iniciado —,
Adam Weishaupt para as pessoas de fora.
O homem de olhos profundos e cabelos compridos lhe dirigiu um olhar a meio
caminho entre a gratidão e a surpresa.
— Meu nome é Bonaparte... — informou o recém-iniciado. — Napoleão
Bonaparte.
Adam Weishaupt sorriu com ar paternal. Enchia-o de satisfação ver como o
sangue novo vinha se somar à causa do progresso, do avanço da Humanidade, da
iluminação. Aquela era a prova mais consistente, mais evidente e mais indiscutível de
que, apesar de ligeiros contratempos, a História se deslocava, segura e indubitável, na
direção que eles, os Illuminati, tinham determinado.
— Tenho certeza, irmão — disse quase com prazer Espartaco —, de que um
grande futuro o aguarda.
...o próprio Satanás se disfarça de anjo de luz. De maneira que não é nada
demais que seus agentes se disfarcem por sua vez de agentes da justiça.
ENFIOU UM CORDÃO DE COURO entre as páginas do livro que estava lendo para
marcar a página em que tinha parado. Olhou à sua frente, o mar de Torrevieja, a praia
salgada onde tempos antes tinham fundeado tantos barcos provenientes de sua cidade
natal, Havana. Ali o mar não era azul-esverdeado nem prateado ao entardecer como à
beira do Malecón; o mar de Torrevieja é um mar densamente azul, pensou, de um azul
como que saído de uma pequena pintura européia do século XIX.
Examinou a imagem da capa do romance que estava lendo, A mulher justa, do
húngaro Sandor Márai. Um bonito retrato da atriz Amira Casar anunciava o tema do
romance: os amores perdidos ou nunca encontrados porque não foram necessários.
Sandor Márai se suicidou um dia antes da queda do muro de Berlim, Lola não sabia se
era uma forma poética ou desatinada de desaparecer, talvez um pouco antes do tempo
exato em que a liberdade se definia. Sua definição também durou muito pouco.
Lola tinha começado a leitura ao chegar à beira da praia, de manhã bem cedo,
quando não havia ninguém; gostava de se deitar sozinha à beira do mar. Não levantou
os olhos das páginas até que o sol começou a bicar sua pele, com uma ardência
arrebatadora. Ergueu as pupilas: o sol resplandecia bem no centro do céu e o
caleidoscópio a cegou.
Àquela hora estava rodeada por famílias de banhistas. As risadas das crianças a
deixaram melancólica: era jovem, fazia pouco tempo que também ela ria com a mesma
inocência. Levava outro livro para alternar; tirou da bolsa o Diário de José Marti22.
Observou indiferente as poucas pessoas que também liam à sua volta: os que não
seguravam entre as mãos Harry Potter se agarravam a O código Da Vinci. Sentiu-se um
"objeto anacrônico". O mundo se divide, ironizou para si mesma, entre os que lêem O
código Da Vincie os que labutam com cada aventura de Harry Potter. Untou a pele de
bronzeador, a região das axilas ardia, mas não pôde impedir de ficar tranqüila e retomar
a reflexão: o mundo tinha se transformado naquilo, pensou, numa cópia ruim de si
mesmo. As pessoas não viviam, as pessoas "mundeavam". Viver não tinha importância,
22
José Marti (1853-1895): escritor e político cubano, considerado mártir da
independência de Cuba e símbolo da unidade hispano-americana.
o que importava era figurar neste planeta, em um ou outro bando. Porque os dois bandos
existiam, sem dúvida, e ambos não paravam de tagarelar sobre invenções
incompreensíveis, pura demagogia. Disse a si mesma que se inscrever em qualquer dos
dois bandos era insuportavelmente traiçoeiro, o que lhe coube tinha sido pior: nascer
numa ilha pobre e contestadora. Quis interromper o pensamento, com medo de se tornar
ainda mais indiferente, quer dizer, cínica.
No fim das contas, ela estava agora naquela praia; fazia dez anos que sabia
apenas viver o momento, e nada mais, sem projetos posteriores, sem futuro. Chegou a
Torrevieja e ali ficou, à espera. A única coisa que lhe dava alguma ilusão era esperar: no
inverno trabalhava como professora de canto e além disso se preparava, ela também,
para cantar habaneras, no verão participava como espectadora do concurso quando não
trabalhava à noite como garçonete num restaurante para fechar as contas do mês. Pelas
manhãs, dava aulas, menos às quartas-feiras e fins de semana, quando se instalava nas
dunas salitrosas para ler e cochilar. Mal comia, perdeu o apetite nas semanas em que foi
contratada no restaurante; constatar o desperdício de alimentos lhe dava ânsia, náuseas,
vomitava só de pensar que em seu país as pessoas não podiam sequer sonhar em provar
as sobras que outros deixavam intactas no prato.
Tinha chegado até ali acompanhando seu marido, um pedreiro que não era
pedreiro: era pianista antes que ela o conhecesse, mas tinha se visto na obrigação de se
meter na construção civil para poder ganhar a vida. Começou a desconfiar que ele a
enganava quando o homem começou a vestir terno e se perfumar antes de ir para a obra:
— Que novidade é essa de se perfumar para ir colocar tijolos? — perguntou
sem se alterar.
— Tento causar uma boa impressão — respondeu ele.
Num belo dia, resolveu ir vê-lo na obra. Fazia meses que já não trabalhava lá,
confirmou o mestre de obras. Naquela tarde não preparou o jantar: ligou para seu celular
e lhe pediu para ir jantar no restaurante onde ele costumava tomar café, o daqueles
conhecidos cubanos... Ele aceitou titubeante, porque ela nunca lhe pedia para convidá-la
para jantar. Lola, só de observar o gesto da garçonete, desconfiou que a amante poderia
ser ela. No entanto, preferiu deixar o ciúme de lado e esclarecer a dúvida que mais a
atormentava desde que tinha retornado de cabeça baixa sob um sol que lhe lembrava
com insistência excessiva aquela ilha:
— Quis lhe fazer uma surpresa e quem teve a surpresa fui eu...
— Já estou sabendo, você esteve lá; Luís me telefonou em seguida para me
contar que você tinha estado lá me procurando... Consegui dar aulas de piano, não
queria lhe adiantar nada até que o assunto fosse mais sério... Não me olhe desse jeito,
Lola, por favor.
— Não estou olhando de nenhum jeito. Não entendo por que não me falou com
sinceridade.
— Não sei.
Houve um longo silêncio. A frase curta e o longo silêncio convenceram Lola
de que tudo tinha acabado entre eles, mas ela o amava, e precisava se agarrar à sua idéia
altruísta do amor, acreditar que o amor cura, apaga qualquer desavença e devolve a
esperança de que é possível salvar a humanidade do ódio. Sentia um medo enorme só de
pensar que ele a abandonaria; sentia-se invadida por uma inquietação que estragava seu
estômago, uma tristeza amarga e daninha. Tinha medo de afundar na má vontade, como
os outros, como o resto.
— Lembro-me tanto dos cheiros, dos barulhos de Cuba, então fico tão triste...
— ocorreu-lhe murmurar.
Depois jantaram em silêncio. E o silêncio se estendeu, instalado em todos os
espaços, semeado neles, até o dia em que abriu a porta e o achou muito nervoso, diante
do computador, que tinha acabado de ligar.
— Você acabou de chegar? — ela tratou de conferir, e confirmar a si mesma. -
Pelo visto sim, claro, você chegou agora mesmo.
— Você também.
— Claro. "Claro, a censura como bumerangue", resmungou Lola. Foi para o
quarto; só teve tempo de colocar as chaves na pequena escrivaninha. Ouviu soar o
alarme anti-roubo instalado pelo marido.
Ele abriu a porta, tornou a fechá-la. Então Lola sentiu um perfume estranho,
diferente e doce, que emanava do banheiro até a saída do apartamento. Alguém tinha se
escondido ali, e conseguiu escapar no instante em que ela tinha entrado no quarto. Não
disse esta boca é minha, e durante semanas e meses ficou com a incerteza corroendo
suas entranhas. Em alguns momentos dizia a si mesma que não podia continuar assim,
na insegurança permanente, no rancor que já começava a tomar o lugar da dúvida. Na
noite do ocorrido fingiu não ter percebido nada; só se despiu no escuro, no quarto dos
dois, deitou-se, chorou baixinho, com os olhos fixos nas sombras. Ele dormiu no sofá da
sala.
No dia seguinte enfiou o Diário de José Marti na bolsa; desde então, não se
separava daquele livro. Não conseguia explicar, mas encontrou na velha edição uma
espécie de amuleto que a reconfortava sempre que a solidão emparedava seus
sentimentos, ou seja, na maioria das vezes, quando tinha preferido se calar, ficar na
expectativa. Então folheava suas páginas, recitava uma frase em ladainha, como numa
espécie de oração que lhe dava energia:
Ela se chamava Lola, tinha nascido em 9 de abril de 1985. José Marti tinha
escrito aquelas palavras em 1895. Gostava das combinações de números, mais do que
dos jogos de palavras.
Àquela altura, na praia, percebeu que tinha perdido todos os seus amigos, que
não tinha ninguém; dois anos de casamento tinham sido suficientes para exterminar seus
relacionamentos. Não via mais ninguém além do marido. Ele, pelo contrário, cada vez
conhecia mais pessoas, cada vez se integrava mais na cidade, e ela se afastava, se
isolava, refugiando-se nele, guardava cada uma de suas palavras para conversar com
ele. As horas iam passando, e ela só abria a boca para cumprimentar, para cantar com
seus alunos e anotar os pedidos dos fregueses no restaurante.
Reparou que um grupo que integrava um dos coros participantes do Concurso
de habaneras se instalou perto dela, na praia. A diretora entregou as pautas e eles
entoaram a melodia:
Em Cuba,
a ilha bonita do ardente sol,
sob seu céu azul,
adorável triguenha,
de todas as flores
você é a rainha.
Em seu coração
guarda o fogo sagrado
e a alegria que foi
dada pelo céu claro.
E em seus olhares
Deus misturou
a noite de seus olhos
e os raios de sol.
As vozes a fizeram evocar as viagens, na infância, com sua avó aos povoados
23
Jolongo: espécie de mochila rústica, típica do Caribe.
de Casablanca e Regia, do outro lado da baía. A igreja da virgem negra, a de Regia,
estava deserta; de repente, o coro de anjos, as crianças do catecismo, entoou cânticos
religiosos mas compassados disfarçadamente pelos tradicionais ritmos cubanos. Não se
escutava a habanera em Havana, nem em nenhum lugar de Cuba. A habanera pertencia
a Torrevieja, o gênero é de quem o cultiva, afirmou com seus botões.
A palma
que na floresta balança suave
e teu sonho embalou...
Por mais que quisesse, não conseguia ficar fria diante das palavras que
acompanhavam a melodia; aqueles versos a tocavam bem fundo, e por mais que durante
muitos dias seu espírito se endurecesse devido ao sofrimento, este tipo de encontro, o
encontro com seu país, conseguia fragilizá-la, extenuá-la. Recostou-se numas pedras, e
ali colocou todo o seu passado sobre a toalha imaginária; embaralhou as cartas da
memória e via o rosto de sua mãe aconselhando-a a não se casar com aquele homem,
principalmente com ele:
— Um homem que faz as coisas que ele fez no dia em que sua primeira mulher
deu à luz, lembra? Foi almoçar com uma antiga namorada. Não acredito que vá ser
melhor com você — sublinhou sua mãe. — De qualquer forma, os homens não amam
como nós mulheres amamos, não se esqueça; não gostam das situações amorosas com a
mesma profundidade com que nós gostamos. E sobre este, minha filha, o que você quer
que eu lhe diga? Salta aos olhos, ele tem malícia demais.
...um beijo da brisa
ao cair da tarde
te acordou.
Doce é a cana,
mas tua voz é bem mais,
porque espanta o
amargor do coração.
E ao te contemplar
suspira meu alaúde
bendizendo-te, beleza sem par,
porque Cuba és tu.
Mas Lola não deu atenção à sua mãe, nem a ninguém. Os amigos da família, os
vizinhos, as pessoas que gostavam dela, animavam-na a esperar, a não se casar tão
jovem, a não ir embora com ele. Ela estava apaixonada, acreditava nele, e
inevitavelmente, quando uma mulher se apaixona e acredita no homem que ama, na
maioria das vezes comete não só a estupidez de se casar, mas além disso a tolice de se
afastar do lar materno e cortar com os amigos. Lola se afastou, escapou para longe
demais; de fato, dez anos se passaram sem que tivesse conseguido retornar a seu país,
nem sequer pôde juntar o dinheiro necessário, uma soma expressiva, para convidar sua
mãe. Agora, entre a vergonha e a vontade de vê-la, o pudor falava mais alto.
Pestanejou, porque um garotinho molhado passou correndo a seu lado e a
salpicou de água do mar; resolveu dar o último mergulho, recolher suas coisas e voltar
para casa. Sempre que dizia essa frase, "voltar para casa", pensava no pequeno
apartamento alugado de Torrevieja que dividia com o marido. "Voltar para casa" em
outros tempos teria provocado nela a maior alegria do mundo, principalmente quando
significava realmente voltar para sua casa, para seu país.
Cubanos:
Ecoa do céu uma voz
para nos dar coragem
na luta terrível
que o sábio patriota
com glória empreendeu.
Martí, teu nome
venerado será
quando a história
não possa te mostrar.
As vozes foram se afastando às suas costas. Lola caminhou durante quase todo
o resto do dia, faltou a seus compromissos, não apareceu nas aulas, não pensou nem
mesmo no restaurante, olhava para frente e sorria, caminhou até chegar em casa,
inclusive passou direto, ensimesmada em seus pensamentos, teve que retornar e fez isso
decidida, não se sentia cansada. Não pegou o elevador, subiu as escadas correndo.
Como sempre, viu-se sozinha no apartamento, mas nem sequer reparou nisso. Bebeu um
copo de leite, tomou uma ducha. Abriu o armário, dobrou algumas roupas e guardou um
maço de fotografias num bolso externo da maleta, apanhou o passaporte espanhol numa
gaveta e o enfiou no bolso interno da bolsa de mão. Hesitou antes de ir embora,
escreveria uma carta para ele, um pequeno bilhete, ou nada? Nada. Bateu a porta.
Pediu ao motorista de táxi que a levasse ao aeroporto de Alicante. Ali comprou
uma passagem para Madri; em Barajas gastou todas as suas economias em outra
passagem para a China. Algum dia regressaria a Torrevieja, era o lugar mais tranqüilo
que tinha conhecido na vida, e tinha certeza de que no futuro teria saudade, de forma
benéfica, da verdadeira terra das habaneras, não como sentia saudades de Havana, sua
cidade, mas com grande paixão.
Bem que teria gostado de fugir de barco, imitar os antigos marinheiros, afastar-
se e contemplar como o horizonte ia ficando pequeno. Preferia as ondas às nuvens.
No avião ela abriu o livro:
Nesse dia estava fazendo vinte e um anos. Seu marido tinha saído muito cedo,
como sempre, bem vestido, perfumado; desapareceu de casa sem um beijo, era a
primeira vez que esquecia de lhe dar os parabéns no aniversário. Engoliu em seco, os
olhos úmidos de lágrimas. A saliva e as lágrimas continham o gosto salgado das
reverberantes dunas de Torrevieja.
Orelha do livro:
Uma conspiração para unir sabedoria oculta com dominação
política. Uma trama envolvendo uma sociedade secreta disposta a
tudo para conquistar o poder. Baviera, final do século XVIII, o
metódico e obstinado inspetor Kohn se une ao erudito grafólogo Karl
Lebendig. Uma parceria improvável, mas com ótimos frutos para a
justiça local, sendo colocada à prova quando uma carta de um
maçom auto-intitulado Espartaco chega às mãos de Kohn,
provocando a retomada das investigações de um antigo assassinato
ainda sem solução.
Sobre o autor:
Este livro foi digitalizado e distribuído GRATUITAMENTE pela equipe Digital Source
com a intenção de facilitar o acesso ao conhecimento a quem não pode pagar e
também proporcionar aos Deficientes Visuais a oportunidade de conhecerem novas
obras.
Se quiser outros títulos nos procure
http://groups.google.com/group/Viciados_em_Livros ,
será um prazer recebê-lo em nosso grupo.
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