Capítulo I
Lá estava Eduardo, sentado na mesa da copa, tremendo e babando de tão fulo que se
sentia. Raiva pura. Sabe quando bate o mau humor destampado e não tem jeito de
desamarrar a cara? Pois é, igualzinho ao que Eduardo experimentava, imprecando
sentado. E as palavras iam de “bastardo” até “diabo”.
A mãe do rapaz também estava na mesa.
Ela num canto e ele no outro.
A mulher, que beirava os cinqüenta anos, conservara muito de sua beleza juvenil e
aprendera a ser paciente também. Pelo menos disso ela poderia tirar vantagem agora,
Eduardo parecia estar impossível e ela sabia que se seu filho chegasse em casa desse
jeitinho e fosse direto sentar-se na mesa da copa como havia feito, voando feito um
furacão, passando, destruindo, arrasando e ignorando tudo pelo caminho, era sinal
evidente de que algo não estava bem. Desde pequenino ele tinha esse gênio forte.
E ela, a mãe, teria que escutar horas e horas de lamentação.
Tempestade na certa.
E o garoto bufava agora:
- Foi ele mãe!!! Foi ele!!! Foi aquele cachorro! Maldito! Ai que ódio! Juro que um dia eu ainda me vingo daquele
desgraçado! Se eu o pego de jeito... ah! Ele vai ver só! Torço o pescoço do infeliz e quero ver! – Eduardo
tremia de raiva. Tinha o rosto tão vermelho que poderia ser confundido com um veranista descuidado. Seus
braços estavam cruzados, como uma criança que faz birras, carantonhas e depois emburra – Ele implica
comigo! Arranja sempre um jeito de me arruinar o dia!
- Quem? – Perguntou Sônia, a mãe de Eduardo, lixando as unhas da mão, com a pose muito ereta, sentada do
outro lado da mesa, tentando aparentar altivez e um pouco de descaso para amenizar a situação e quem sabe
tentar deixar o problema do filho não parecer grande coisa. Armada com um estoque de paciência foi logo
indagando – O que aconteceu?
O garoto estava descontrolado, sua cólera era tamanha que não podia nem raciocinar direito. Dona Sônia
estava acostumada com as explosões de seu filho e antigamente nem dava tanta importância para os
“barracos”. Mas Eduardo andava muito estressado por causa do vestibular, então por mais fútil que fosse o
motivo da irritação, ela procurava ajudar da melhor maneira possível.
Mas sabia que não havia de ser nada de importante.
Provavelmente bobagem e pura ladainha.
Na maioria das vezes era.
Eduardo era um belo rapaz. Tinha a pele lisa e bem branca, pura culpa da falta de sol e excesso de chuva que
Curitiba costuma ter. Possuía olhos negros ladeados por pestanas longas e sobrancelhas oblíquas. Seu nariz era
do tipo normal, mas seus lábios... eram coisas de outro mundo. Naturalmente rubros e úmidos. Sem contar
seus dentes que eram perfeitos e muito brancos.
Seus cabelos contrastavam com o branco da cara, pois eram de uma coloração negra reluzente como piche e
escorriam pela testa de tão lisos que eram.
Não havia melhor moldura para uma face tão bela.
Seus traços eram delicados, porém marcantes. A barba ainda não começara a crescer e ajudara para manter
seu aspecto de menino, apesar de ter dezenove anos.
Eduardo também possuía o porte atlético. Não chegava a ser musculoso, mas era bem forte, tendo as coxas
grossas, tórax delgado com os músculos do peito desenvolvidos.
Era orgulho do papai e da mamãe e dos quatro avós.
Garoto prodígio, filho único, tocava violão, se destacava nos esportes, colecionava medalhas e troféus de
campeonatos que participara na época de colégio, sem contar que sempre fora um dos melhores alunos da
instituição tendo sempre as notas impecáveis. Tirar algo abaixo de noventa era um absurdo e motivo para
desconfiar que Eduardo estava doente.
Mas doente ele nunca ficava.
Tinha a saúde de ferro instalada em um corpo de aço.
Seu sorriso perfeito derretia corações à distância. Causava sérias emoções quando passava perto das garotas
do cursinho, lugar onde ninguém conhece ninguém e todos especulam da vida de todo mundo.
“...ouvi dizer que ele tem namorada...”, uma cochichava, “...a Fernanda já conversou com ele e contou que ele
é vesgo, mas só dá para perceber se você olhar bem de perto...”, outra dizia, “...o nome dele é Edmundo, ou
Eduardo... sei lá, algo parecido e que comece com Ed...”, ao passo que outra garota confidenciava
misteriosamente, “...eu já ouvi falarem que ele é casado, pois a minha amiga conhece um primo do amigo dele,
aquele que foi na festa da Silvana...”.
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Comentários à parte, Eduardo era reparado, tanto pela sua beleza, quanto pela sua estatura, uma vez que
tinha um metro e oitenta e nove.
E não era vesgo.
Sabia-se notado, e por isso gostava de andar sempre arrumado. Trazia seus cabelos negros alinhados e suas
roupas impecáveis.
Não que fosse meticuloso e todo certinho como um compulsivo paranóico, isso não era, mas andar feito um
favelado estava fora de cogitação! Certa vez tentara aderir à moda grunge, meio skatista, mas não deu certo,
pois tinha que andar todo largadão e isso acabou lhe dando nos nervos.
Era bonito, era, sem dúvida alguma, mas tinha esse gênio ruim que azedava até Madre Tereza de Calcutá!
Não havia quem dobrasse esse gênio ruim de cabeça dura. Tão teimoso que era, tão peste que não adiantava
rezar nem fazer novena para o mais poderoso de todos os santos do céu que Eduardo não cedia nunca e nem
dava o braço a torcer. Ou era ficar do lado dele, ou ficar quieto. Ai de quem ousasse ir contra, arrumava dor de
cabeça na certa. Os pais sempre pegavam leve quando iam dizer alguma coisa que poderia, talvez, resultar em
chateação. Mas felizmente, o garoto respeitava muito os pais e jamais iria contra qualquer uma de suas
vontades.
Mas fora isso, quem não o conhecesse de longa data iria querer esganá-lo quando o encontrasse nesta fase
horrorosa de gênio destampado em ebulição máxima.
Mas mesmo que sua índole fosse belicosa, ele não era um rapaz ruim.
Era só o seu jeito.
No mais estava sempre de bom humor, sempre sorrindo.
Adorava o barulho da chuva caindo. Podia ficar horas na janela vendo toda a poesia que um temporal traz
consigo. Todos aqueles pingos, todos os movimentos e as gotículas achando rumo no vitral. Às vezes apenas
encostava a cabeça no parapeito e fingia que a chuva caía dentro de seu corpo e em questão de instantes em
seu interior tudo se punha a dançar.
Ficava sempre emocionado ao final dos filmes, até dos de gosto e produção duvidosos.
Era um rapaz prestativo e sem medo de trabalho. Irresponsabilidade passava a quilômetros de distância. Certa
vez até trabalhara como voluntário em pleno inverno distribuindo agasalho e comida para desabrigados.
Mas no momento... o inferno era formiga perto da revolta elefanta que o rapaz sentia.
E Eduardo seguia resmungando sentado em sua cadeira, com o sangue fervendo:
- É sempre assim... Sempre! Basta eu passar perto que isto acontece! Parece que eu fui o escolhido daquele
imbecil. Parece que eu sou a única diversão que aquele sádico tem!
Descruzou os braços e bateu com os dedos na mesa, enquanto balançava a cabeça em indignação. Xingava
com a boca cheia:
- Idiota infeliz! Que ódio! – e jogava a cabeça para trás loucamente feito um Judas sendo malhado, fazendo-se
de vítima maior do sofrimento existente na face da terra – mas ele vai ver! Um dia aquele cachorro me paga!
Ele há de ter o que merece!
- Ele quem meu filho? – a mãe insistia – É alguém do cursinho? Um garoto da sua aula de redação? É o
garoto...
Eduardo interrompeu a mãe com violência:
- Garoto? Mãe, quem falou em garoto aqui? Que garoto que nada! Eu já tô dizendo faz meia hora que foi aquele
cachorro maldito!
- Ca-ca-cachorro? – indagou a mulher, que agora estava confusa. Dona Sônia já sentia uma dorzinha de cabeça
surgindo do além. Arrumou sua postura e continuou – Que cachorro meu filho?
- Oras! – fez Eduardo, como se fosse a coisa mais óbvia do mundo – Como assim que cachorro??? – indignou-
se mais ainda o rapaz, que a esta altura já estava batendo as mãos em suas coxas de tão nervoso. Completou
– Aquele cachorro daquela casa...
Sônia interrompeu:
- Casa? Cachorro?
- Ih... embestou é? O cachorro mãe! – Eduardo admirou-se da súbita lerdeza que a mãe apresentava e foi
explicando como alguém que explica algo a uma criancinha de dois anos – Cachorro! Sabe? – e completou com
a alma carregada de ironia – também conhecido como “o melhor amigo do homem”, aquele bichinho babão que
anda com quatro patinhas, abana o rabinho e é besta pra dedéu... caninos...
Sônia ficou no ar.
Não sabia o que falar.
Pensara, na certa, que era um probleminha banal... mas não tão banal quanto um cachorro! Aliás...
– Que cachorro? – quis saber a mulher, que a esta hora já havia se esquecido totalmente de lixar as unhas e
encarava o filho com ar de intriga.
- Aquele do começo da rua – explicou Eduardo, apontando com o indicador a direção – aquele daquela casa
misteriosa – disse ele abaixando o tom de voz.
Referiu-se à casa “misteriosa” como alguém que confia segredos cabeludos. Havia um grande enigma
envolvendo a casa do começo da rua e era sempre assim que as conversas ficavam cada vez que o local se
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tornava parte delas.
Era o seguinte: fazia tempo já, quase dez anos, que uma família mudara-se para lá, mas depois disso, ninguém
jamais viu um morador de perto. Nas raras vezes que alguém os via, faltava coragem ou assunto para
aproximações. Logo, não havia quem soubesse como eram estas pessoas, o que faziam, aonde iam e porque
sumiam.
Era verdade que eles não davam sinal de vida.
Poderia até se afirmar que o local estava vazio, se a casa não estivesse sempre bem conservada, se não
fossem as luzes acesas de noite, ocasionais aparições nas janelas e raríssimas, mas raríssimas vezes em que
alguém saía para o jardim da frente durante o dia.
Tamanha falta de sociabilidade gerava uma curiosidade geral naquela rua.
Quem seriam os moradores da casa do começo da rua?
- O cachorro daquela casa? – indagou Sônia muito pasma. Agora sua curiosidade fora aguçada... o interesse
era muito quando se tratava da casa do começo da rua.
- É! – respondeu Eduardo curto e grosso.
- Ah bom! – disse a mulher, que depois parou refletindo, franziu o cenho e comentou decepcionada – Mas...
meu filho... aquele cachorro é um pequinês!!! Um pequinês!!!
O rapaz ficou ainda mais vermelho:
- Um pequinês... um pequinês!!! – arremedou o garoto imitando a voz da mãe em tom de mofa. Depois
completou sério – É! Um pequinês que quase me atorou a perna fora! Se não fosse a minha esperteza eu tinha
morrido ali no meio da rua!!!
Dona Sônia nem respirava mais de tão impressionada que estava com o dramalhão que o filho estava
aprontando. Olhava para o rapaz – que não olhava de volta para ela.
A mulher parou com tudo e tentou imaginar a cena.
Tentava imaginar o pequinês correndo atrás do filho como um animal feroz.
Não conseguia formar essa imagem de jeito nenhum.
Achou graça até.
Finalmente sorriu e discordou do filho:
- Oras... É um cachorrinho tão bonitinho, tão pequenino que duvido que faça mal a uma mosca! – voltou a lixar
as unhas e continuou a falar incrédula – onde já se viu um pequinês causar risco de vida? Um bichinho tão
fofinho... com um focinho tão delicado, aposto que ele é tão frágil quanto um cristalzinho!
Eduardo se contorceu inteiro. Segurou-se ao máximo para não xingar a mãe, tremia tanto que fazia os bibelôs
da mesa trepidarem, quase trazendo abaixo o arranjo de flores:
- Isso é o que você pensa! – retrucava indignado – Aliás, isso é o que ele quer que vocês todos pensem! –
completava parecendo um louco – Mas a mim ele não engana! Ele já mostrou quem ele é! – e o rapaz seguia
fazendo gestos – Aquela bocarra enorme cheia de dentes! É um bicho do mal! É uma besta satânica!!!
- Nossa! – exclamou a mãe do garoto, que a esta hora já estava ficando farta de ouvir tamanhas besteiras –
Que exagero Eduardo! Que drama! Onde já se viu eu já perguntei!? Coitado do cachorrinho! – e gralhava com o
filho, até que perguntou, só para desencargo de consciência – Que mal ele te fez? Ele te mordeu?
O garoto que já ia reclamar parou com a boca aberta e dedo a caminho de ficar em riste...
Putz!
Eduardo crescera feliz naquela rua. Tivera muitos amigos de infância, mas todos agora já eram crescidos e não
brincavam mais. Logicamente Eduardo não queria brincar de queimada nem esconde-esconde, mas sentia que
era uma pena a turminha da rua ter se dissolvido assim que a puberdade veio alcançando todos.
Puderam perceber que estavam mudando quando as brincadeiras de “casamento atrás da porta” já não eram
tão inocentes quanto eram em tempos idos. E pouco a pouco, as meninas, que sempre amadurecem antes dos
garotos, não se permitiam mais participarem de todas as ações conjuntas da galerinha da rua.
Poderiam ainda estar amigos hoje e formar uma trupe legal, armando churrascos de fim de semana, fazendo
festas e agitando por aí.
Mas... cada um se arranjou como pôde e já não batiam um à porta do outro como antigamente para fazer
qualquer coisa, nem para conversas.
Realmente era mais uma dessas boas fases da vida que tinham se acabado.
Eduardo arrumou sua turma no colégio e no time de futebol da escola.
Desta época, sobraram apenas alguns poucos amigos e muitos apelidos em seus ombros, como Duda, Dudú,
Ed, Eddie, Dú, Edú ou o que ele mais odiava: Dado.
Essa sua turma o tinha acompanhado pelo segundo grau, até que ao término deste, todos tentaram vestibular,
inclusive Eduardo.
A maioria não obtendo êxito, entrou no cursinho.
Combinaram todos de entrar na mesma sede, para não se separarem e para poderem formar grupos de
estudos (que, diga-se de passagem, nunca chegaram a ser formados devido à falta de interesse dos colegas de
Ed).
Alguns de seus amigos do colégio antigo caíram na mesma sala que ele, e ali compartilhariam juntos mais um
ano de estudo e sofrimento. Encarar todas aquelas matérias em ritmo de cursinho e suportar toda a pressão
externa e interna não seria nada fácil!
O seu melhor amigo, Fábio, também ficara na mesma sala e com isso Eddie se alegrava, pois sabia que se
alguma vez chegasse a se abater, Fábio logo viria lhe dar uma boa injeção de ânimo. Verdade era que Fábio
andava um pouco distante, mas ainda sim Ed via no garoto um grande amigo.
Mas Eduardo até que estava indo bem.
Ficava sempre entre os cinco primeiros colocados nos provões e simulados que seu cursinho promovia. Achava
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isso bom, mas não excelente. Sabia que se estudasse mais e mais poderia galgar os degraus dourados que
levavam ao primeiro lugar do podium.
Tinha certeza que todo sacrifício teria sua recompensa e era isso o que ele esperava por tanto empenho: passar
na UFPR, que apesar de andar capengando, ainda tinha prestígio e fazia parte do sonho de cada vestibulando
de todas as sedes de Curitiba.
Ficou revisando as matérias do dia e conferindo as da véspera enquanto o cheiro do almoço quase pronto vinha
invadindo o quarto.
Sabia que não demoraria muito e a mãe iria vir chamá-lo para almoçar, estava com uma bruta fome, mas
pensara em não descer, só para provar como era fodão, birra pura, mas já que a mãe não havia dado
importância ao fato do cachorro lhe avançar, poderia muito bem não dar importância para o almoço também!
O estômago roncou alto. Decidiu que era melhor não fazer isso.
Fechou as apostilas e ficou só aguardando.
Seus pensamentos começaram a fluir, sua imaginação era poderosa e ganhava asas até mesmo quando
Eduardo não queria.
Mas desta vez ele queria.
Estava lembrando de algo que ocorrera havia uma hora apenas e fora muito curioso.
Depois da saída do cursinho Eduardo pegou o ônibus para voltar para casa como costumava fazer todos os
dias, e estava muito tranqüilo imerso em pensamentos, quando, subitamente, percebeu um garoto o
encarando.
Encarando mesmo, na cara dura.
Olhou em volta para ver se não estava enganado, mas não estava, eram dirigidos a ele os olhares do garoto.
Que será que o rapaz queria?
Eduardo pôs-se a pensar e chegou à conclusão de que o garoto só podia mesmo era estar o confundindo com
alguém. Uma força nova vinda de não se sabe onde fez Eduardo levantar bem a cabeça e retrucar o olhar.
Talvez estivesse por demais intrigado pelo olhar perfurante e convicto do outro rapaz que quisesse descobrir
quais seriam as verdadeiras intenções por detrás dele. Estaria o garoto com vontade de lhe falar alguma coisa?
E Eduardo não desviou os olhos.
Resolveu continuar encarar o rapaz, que a esta hora, já estava sorrindo.
Sorria com certo nervosismo, mas sorria.
Eduardo achou o rapaz muito simpático, sorrindo daquele jeito, mas não sorriu de volta.
TRRRRIIIIIMMM!!!! TRRRRIIIIIMMM!!!!
Na mesa da cozinha, lugar onde geralmente a família Braschi almoçava, a conversa girava em torno de
Eduardo.
Como sempre.
Talvez para fazer graça, a mãe de Eduardo mudou o rumo da conversa que levavam, comentando em tom de
troça:
-Pois é... seu filho agora deu para ter medo de cachorrinhos... – comentou dona Sônia para o pai de Eduardo,
seu Antônio – diz ele, que o cachorro da vizinha quase arrancou a perna dele fora...
Eduardo olhou para a mulher com uma cara de “pára mãe!”, ao que o pai do rapaz comentou:
-Bem, confesso que até eu ficaria com medo se aquele monstro viesse para cima de mim – disse o pai
defendendo o rapaz – me passe o arroz, sim? – pediu o simpático homem à mulher, que alcançou a travessa
com arroz para o marido que acrescentou – mas eu pensei que os Souza mantivessem aquela fera presa no
canil...
-Ah não! Não! – exclamou a mãe de Eduardo – Não é o cachorro dos Souza! É o cachorro da casa do começo da
rua – corrigiu e depois acrescentou no mesmo tom de voz que Eduardo usou para referir-se ao local – aquela
casa, onde parece que não mora ninguém...
O marido entendeu:
-Aaahhhh... o cachorro daquela casa! – e voltou a comer. Depois de certo tempo, parou com os talheres no
prato, num momento de reflexão e exclamou – Mas aquele é um pequinês!!!
-É disso que estou falando! – continuou a mulher – Nosso filho tem medo daquele cachorrinho.
Seu Antônio olhou para o filho. Indagou:
-Isso é verdade?
-Não... – esquivou-se Eduardo – não é bem assim... é só que... que... aquele cachorro me avança sempre.
Cada vez que eu passo na frente do portão, ele vem e me avança. Não tem uma única que vez isso não
aconteça. É perigoso, não acha? Ele pode ter raiva, me morder...
-Aquele cachorrinho?
-É... – confirmou Eduardo totalmente sem jeito.
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-Impossível! – exclamou o pai totalmente incrédulo – Ele é bem cuidado. Não se parece em nada com um cão
de rua, que pode ter doenças e tudo mais. Aposto que tem todas as vacinas em dia! E não é nada feroz.
Sempre que vou e volto das minhas caminhadas diárias pelo bairro eu passo ali e o bichinho até me abana o
rabo, tão belo cãozinho! Ele vem todo contente pedir agrados...
-Mas pai... é verdade o que lhe conto! – defendeu-se o garoto – Ele gosta de todo mundo, menos de mim!
-Filho... – disse o pai sério – ...você anda tomando drogas?
O pai de Eduardo era um senhor de cinqüenta e quatro anos, mas ainda com a aparência muito jovem.
Costumava caminhar todos os dias depois que voltava do trabalho.
Ele era sócio-presidente de uma empresa de arquitetura que não ficava muito longe do bairro onde moravam.
Por isso sempre vinha almoçar em casa e depois voltava para o serviço.
Não era liberal de todo, mas também não era muito severo, cobrava apenas os bons valores morais que todos
os pais cobram dos filhos.
Era simpático, sim, mas somente porque sua feição italiana lhe dava a simpatia plástica. Em seu interior a coisa
devia ser lapidada e seu coração conquistado para poder se mostrar dócil.
Costumava dar liberdade para Eduardo e Sônia agirem do jeito que bem entendessem, mas se fizessem alguma
coisa errada... se andassem fora da linha... bem... eles que arcassem com as conseqüências depois.
Mas era um homem com o coração imenso e bondoso.
Detestava injustiça e se orgulhava de ter passado muitas das suas características “marcantes” para o filho. Se
Eddie cortava o joelho, era ele que sentia a dor e o garoto tinha que confortá-lo dizendo: não foi nada pai! É só
um arranhãozinho à toa! Já passa, ta vendo?
Antônio conhecia bem as pessoas a sua volta.
Bastava olhar para elas para saber se algo ia bem ou não. Muitas vezes seu sentido materno era mais aguçado
que o paterno. E cada vez que o filho aparecia com uma atitude diferente, uma faceta meio desconhecida, ou
apresentava uma idéia diferente do comum, seu Antônio logo lhe perguntava se ele estava tomando drogas.
Eduardo já estava habituado a toda esta cena:
-Não pai... eu não estou tomando drogas... – respondeu o garoto, revirando os olhos, respirando fundo e
rodando a comida com o garfo de um lado para o outro no prato.
-Então – disse o homem, que cortava um bife, deixando grãos de arroz besuntados com molho caírem na
toalha sob os olhares da mulher que teve ímpetos de gritar “minha toalha que acabei de lavar!” – meu filho, de
onde você tirou a idéia de que aquele cachorro poderia te atacar?
-Olha pai, eu não tirei a idéia de lugar nenhum. Aquele cachorro avança em mim e pronto! Se não querem
acreditar, não acreditem!
-Ah... tá! – concordou a mãe, que juntou os grãos de arroz da toalha e recolocou no prato do marido.
Para mudar de assunto, ela indagou:
-Quem era no telefone?
-Quem poderia ser? – retrucou Eduardo tendo certeza de que a mãe sabia e muito bem quem era.
-Camila, né?
-É!
-E o que ela queria?
-Nada. Só queria saber das novidades.
-E de onde ela quer que você as tire? – indagou a mãe, que apesar de gostar muito da namorada do filho e
achá-la um doce de pessoa, não sabia porque a garota ligava tantas vezes todos os dias.
-Boa pergunta mãe.
-De onde vocês tanto tiram assunto? – quis saber o pai.
-E quem disse que eu tiro assunto de algum lugar? Eu quase nem falo. Acho que ela confunde telefone com
microfone, porque cata o aparelho e fala, fala, fala. Aquela menina parece que engoliu um rádio, sei lá... –
respondeu o filho.
-Não fale assim de sua namorada – o pai advertiu.
-Não é por mal pai...
-Você bem sabe o gênio “bom” que ele tem, né? – Sônia tentou ajudar o filho e ainda acrescentou, apontando
para o prato do garoto – Eduardo Braschi, pare de brincar com a comida!
O rapaz revirou os olhos novamente:
-De qualquer modo, eu disse que ligava para ela depois...
-Sei... – concluiu o homem, que já terminava de comer.
Assim que todos almoçaram, Antônio foi para a sala e Sônia ficou arrumando a cozinha. Eduardo subiu as
escadarias e se jogou na cama.
Ficou olhando para o teto durante um bom tempo.
Se concentrou tanto no nada que chegou a sentir-se capaz de levitar.
Se pudesse, o faria. Iria voando para longe, esfriar a cabeça.
Não estava afim de ver nem falar com ninguém.
Não era de descumprir palavras, mas não queria telefonar para Camila.
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E não o fez.
Não ligou.
Nem para Camila, nem para Tiago.
Eram seis e meia da manhã e Eduardo já estava de pé e pronto para ir pro cursinho. Tinha que levantar cedo e
pegar o ônibus, pois o pai não o levava, uma vez que a empresa onde trabalhava ficava no bairro vizinho e em
direção oposta.
Mas Eduardo nem ligava, já estava acostumado com esta rotina.
Desde que fizera treze anos andava de ônibus para cima e para baixo. Melhor assim, aprendera a se virar e
saber ser menos dependente dos pais no quesito “deslocamento”. Sabia o nome das ruas da cidade de cor e
salteado e jamais se perdia. Quando a mãe ou o pai precisava achar alguma localidade, pediam à Eduardo se
ele não podia ir junto.
Logicamente Eduardo queria ter o seu próprio carro.
O pai já havia prometido um para quando ele completasse dezoito anos, mas o garoto recusou. Disse que
queria que fosse um presente por algo bom que ele fizesse, e não apenas por uma data. O pai achou estranho,
mas concordou.
Ficou combinado que o garoto ganharia o carro se passasse no vestibular da Federal, e desde então o garoto
tinha um motivo a mais para continuar estudando com tanto afinco. Cumpria seus deveres com severidade.
E lá estava Eduardo, em frente ao espelho do seu quarto, mirando-se para ver se a roupa estava legal. Usava
uma calça jeans que valorizava as formas das pernas e deixava a bunda marcada, uma camiseta preta justa e
tênis preto.
Bem normal, porém, insinuante.
Rumou para o banheiro, iria escovar os dentes e arrumar o cabelo. Olhou para o espelho e fez uma careta.
Enquanto escovava os dentes, organizava seus horários do dia como se fossem tópicos em uma mesa de
reunião.
Iria para o cursinho... ia ficar pelo centro durante à tarde e à noite estudaria as matérias. Tirou vantagem por
ser sexta-feira e as matérias serem fáceis. Além do mais, se não terminasse de estudá-las, poderia continuar
no dia seguinte pela manhã.
Ajeitou o cabelo e saiu pro corredor.
Deu de cara com um vulto vindo em sua direção, todo de branco, com cara de buldogue, cabelos desgrenhados
e andar de morto-vivo.
-Bom dia mãe! – cumprimentou o rapaz.
-Hum... – balbuciou a mulher, que estava com muito sono para responder qualquer coisa que fosse.
-Nossa! Parece que tá de ressaca!
-Hum... – fez ela novamente meia zumbi.
-Bem... hoje vou ficar de tarde no cursinho. Se você for para o centro, eu vou almoçar no mesmo local de
sempre. Se quiser passa lá. Mas deixa eu ir, senão chego atrasado! Vem cá me dá um beijo!
Avançou para a mãe e a beijou na face com tanta rapidez, que a mulher quase tombou para trás. Eduardo
correu para o quarto, pegou a mala do cursinho e voou escadaria abaixo. Não quis nem tomar café da manhã.
Comeria algo na hora do intervalo maior.
Ao sair para a rua, constatou que caía uma garoa finíssima, mas não quis voltar para se agasalhar nem pegar
guarda-chuva. A garoa era comum nesta época do ano em Curitiba e logo iria passar.
Para chegar no ponto de ônibus Eddie subia a rua e depois virava à esquerda.
Pelo menos esta vantagem ele tinha. Não precisava correr feito louco para alcançar o veículo, pois a parada
ficava quase em frente da sua rua. Mas se perdesse esse ônibus não precisava nem entrar em pânico, pois
naquele horário passava um atrás do outro de maneira que ficava difícil chegar atrasado.
.....
Dentro do ônibus, que ia lotado de trabalhadores já a esta hora, Eduardo mergulhava em pensamentos
novamente. Devaneava com facilidade incrível e estava a pensar se o garoto do bilhete, o Tiago, estaria no
ônibus de novo, ao voltar para casa.
Se estivesse, o que faria Eduardo?
Qual seria a reação dele ao vê-lo?
Ah não, não iria vê-lo hoje, pois ia ficar pelo centro mesmo... mas... e nos resto dos dias? Com certeza iria vê-
lo algum outro dia por aí... e o que faria?
Não conseguia formular plano algum.
Não saberia se seria capaz de reação qualquer.
O que diria à Camila? Ela iria perguntar na certa se Tiago voltou no mesmo ônibus que o namorado. Sim, tinha
este detalhe.
A namorada.
Eduardo não sabia explicar ao certo o que estava acontecendo, mas começara a sentir repulsa pela namorada
havia já uns três meses. Não se conformava de sentir isso, pois gostava muito dela, mas o caso é que ele não
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suportava mais ouvir a sua voz, sentir o cheiro do perfume que ela usava e ter que agüentar a sua presença,
grudada o tempo inteiro cada vez que se encontravam.
Sem contar nos inúmeros telefonemas, que obviamente irritavam-no de tal modo que só faltava explodir!
Sentia-se culpado por isso, pois não havia nada que a garota tivesse feito de errado para ele ter o sentimento
diminuído. Ela não tinha nenhum defeito grave para ele por a culpa em cima. Ficaria tudo tão mais simples se
ela tivesse cometido algum deslize.
E nada tirava de seus ombros a sensação de que ele estava errado, de que ele era ruim e que estava sendo
egoísta.
Acabar o namoro?
É lógico que ele já pensara nisso milhares de vezes nestes últimos meses, mas... apenas pensara. Não sabia
nem como expôr esta idéia para Camila, pois tinha certeza, que a menor sombra do que ele planejava para a
relação, a garota sucumbiria. Sabia que a namorada gostava muito dele e que crime maior não poderia ser feito
contra uma pessoa tão boa, só por causa de um sentimento que ele nem sabia de onde estava vindo.
Um sentimento que ele devia tentar ignorar...
...mas não conseguia.
Era bem mais forte.
Por mais que Eduardo gostasse de Camila, ele jamais conseguiria retribuir tanto afeto do modo que ela queria.
Não poderia oferecer mais que afeto fraterno. E fora assim desde o princípio do namoro. Considerava-a sua
melhor amiga, uma pessoa formidável a quem ele sempre poderia recorrer.
Nunca se excitara ao beijá-la.
Beijava-a apenas por imitação, como uma criança se habitua a brincar de casinha por considerar que é esse o
exemplo certo a seguir.
Nunca tivera vontade de transar com ela, o que era estranho demais para um garoto da sua idade.
Camila já havia tentado de todos os jeitos chegar nos “finalmentes” com o namorado, mas ele sempre a
impedia e dizia que tinha que ir embora, tinha que ir ao banheiro, desconversava... e essas atitudes
preocupavam demais a garota. Agora ele estava usando o vestibular como desculpa.
-Não posso te ver, tenho que estudar...
Ou:
-Não posso ficar mais Camila, ainda tenho os exercícios da apostila para completar...
E assim ia. Mas e depois?
E depois do vestibular?
Que desculpa viria? Que artifício usaria para evitá-la como vinha fazendo durante todo esse tempo?
Um dia, bem um mês antes de fazerem um ano de namoro, Camila encheu-se e cobrou:
-Por que isso Eduardo?
-Por que isso o quê? – perguntou ele de volta com cara de santo, fingindo-se de besta surda, muda e cega.
-Você sabe muito bem! – disse a namorada, muito séria. Camila olhava para o garoto como um delegado de
polícia olha um marginal – Não é de agora que eu percebo que você evita!
-E-evito? – gaguejou nervoso.
-É! – desembestou Camila – Você evita me tocar, evita continuar carícias... quando tudo está no bem bom...
quando tá esquentando... você me afasta ou se afasta, sei lá!!! Porra Edú! – a garota explodiu – quero saber
porque você evita transar comigo!
-E-eu? – e apontou para si mesmo.
-Bem o senhor! – dizia ela dando de dedo no focinho do rapaz – Eduardo, nós já temos quase um ano de
namoro... e você até agora... nada! – e bateu uma mão na outra para concluir – Puxa! Eu tenho necessidades
também!!!
O garoto ficou mudo.
-O que é? – indagou a namorada – Qual é o problema?
-Não... não tem problema... – esquivou-se.
-Então porque até agora nada?
-Camila, você é muito nova! É uma criança ainda!
-Eu não sou mais criança! Mas mesmo assim, e daí? Eu me sinto pronta e segura. É uma coisa que eu sei que
quero fazer! – e ela passou a mão no rosto do namorado, com os olhos carregados de ternura – ainda mais
com você, que é quem eu mais amo nessa vida.
-É que... é que... – ele estava tentando achar uma desculpa convincente – ...é que eu pensei que você não
queria!!!
A garota torceu a cara, duvidando:
-Pensou que eu não queria? – deu um pausa e continuou – Impossível Eduardo, eu dava todos os sinais, só um
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burro não ia perceber...
-É! Talvez eu seja um burro mesmo. Mas é que mulher é um bicho complicado, sabia? Nunca a gente sabe o
que vocês querem! Vocês podem dar um mísero sinal, mas que pode significar milhares de coisas... eu, por
exemplo pensei... – e desculpou-se – ...puxa, eu queria te respeitar... sabe? Perder a virgindade... é
complicado...
-Mas eu sei que eu quero! – disse a garota em verdadeira convicção – Eu quero fazer isso com você!
-Melhor esperar... pensar bem...
-Mas... eu tenho certeza!
A verdade era que o “negócio” não funcionava com a namorada.
Cada vez que a tocava, intrigava-se com o fato de sentir-se pecando, como se tocasse na mãe, ou em uma
irmã, pois era o que ele considerava que Camila fosse: uma irmã para ele.
E com irmã não se transa.
Sentia-se profundamente estranho com isso.
Sua cabeça fervilhava de grilos por conta deste problema.
-Veja bem: eu te amo – explicou Edú – e quero que o momento seja muito especial para nós dois. Eu também
tenho que estar preparado sabia?
-Você? – estranhou a garota – ...preparado? Prá quê?
-Prá... prá... – o rapaz gaguejou sem graça – ...ah! você sabe... – e ficou vermelho. Não gostava desse tipo de
conversa e ficava embaraçado com facilidade.
Neste ponto, a namorada, que olhava para ele, sorriu:
-Ohhh... que bonitinho! Você está planejando um momento especial para nossa primeira vez, não é? – e beijou
o namorado – Que tola eu fui apressando as coisas!
O rapaz sorriu e a namorada ainda suspirou:
-Você é perfeito meu amor! É tão romântico.
E a conversa ficou por isso mesmo.
Mas passado uns três meses Camila viu que tudo continuava do jeito que estava e Eduardo não apresentava
planos de mudanças, então a cobrança reapareceu.
A garota ficou insinuando... bem sutil, como quem não quer nada... e Eduardo seguia fingindo que não via
nenhum dos sinais e não entendia as indiretas.
Toda vida Camila o convidava para ir dormir na casa dela.
Ela tinha uma avó muito doente que morava em Campo Largo e seus pais iam para lá quase todos os finais de
semana, para fazer uma dessas visitas de rotina.
Camila tinha uma irmã de vinte e um anos chamada Franciele e nenhuma das duas costumavam ir junto com
os pais para Campo Largo. Iam muito de vez em quando. Logo, Camila sabia que iria ficar sozinha durante os
finais de semana, ao menos enquanto a avó se mantivesse viva e por isso sempre rezava para a velhota resistir
firme e forte.
Mas Eduardo sempre recusava os convites da namorada para ir “dormir” em sua casa.
Para isso Edu tinha um esquema: ficava sábado o dia inteiro com a namorada, mas quando ia caindo à noite,
ele picava as mulas. Dizia que tinha que estudar, que tinha provas e etc., e saia de fininho.
A namorada ficava revoltada com tudo isso, mas engolia e levava em frente, pois gostava de Eduardo de tal
modo que sexo não era tão importante assim...
Edu desceu do ônibus e pisou em uma poça d’água, formada pela fina, mas constante garoa:
-Merda! – o rapaz praguejou – Era tudo o que eu precisava! – e se pôs a balançar a barra da calça.
-Olha a boca mocinho! – uma beata que ia passando advertiu e comentou com a amiga mais carola ainda –
Essa juventude de hoje não tem mais respeito mesmo! Tá tudo mudado!
-É – a outra concordou gesticulando – viu só o palavreado desse menino?... uma pena, tão bonito e falando
essas coisas...
Ao que a outra beata exclamou:
-Aposto que anda tomando drogas!
Eduardo parou de balançar a calça imediatamente.
.....
Eduardo sentia falta do tempo em que podia ficar horas na casa do amigo, só jogando papo fora sem
preocupar-se com estudo, garotas, dinheiro, futuro ou qualquer outra coisa.
Sentia falta do tempo em que o amigo ia dormir em sua casa e ficavam vendo filmes até de madrugada. Certa
vez Fábio apareceu com uma fita pornográfica, mas Eduardo, com muito medo de aparecer alguém e pegá-los
vendo uma coisa tão feia, não quis ver.
Era uma amizade boa.
Volta e meia dona Sônia estranhava a ausência do rapaz e perguntava de Fábio, ao que Dudú apenas respondia
– vai bem...
Será que ia?
Eduardo desejava que sim.
Já era sexta-feira e Fábio não tinha nem pisado no cursinho a semana inteira. O que fazia tanto Fábio que não
podia contar nada para ninguém, nem para Eduardo, o seu melhor amigo? Isso estava extrapolando e Eduardo
estava decidido a ligar para Fábio e pedir explicações. É!
-É o que eu vou fazer! – o rapaz exclamou extasiado.
-O quê??? – perguntou Marcos intrigado.
-Ãh?! – acordou Eduardo de seu devaneio – Nada! Nada não!
Os colegas ainda o olhavam em silêncio.
-Vamos subir para a sala? – propôs Eduardo.
E foram-se todos escadaria acima, para terem as aulas de sexta.
.....
Na hora do intervalo, Eduardo, que geralmente ficava na sala de aula, resolvendo os exercícios com um grupo
de estudo, decidira descer para comprar lanche, pois saíra de casa sem tomar o café da manhã.
Assim que pisou no pátio, seus colegas o chamaram:
-Eduardoooooooo!!! – fez o coro de vozes masculinas.
Eduardo apenas olhou e fez um gesto como quem diz, "já vou".
Rumou para a cantina e pediu um misto quente com guaraná.
Tratou de comer tudo antes de voltar para o grupinho de amigos, pois não estava nada a fim de dividir seu
desjejum com um bando de marmanjos que com certeza devorariam o seu café da manhã em um segundo.
Enquanto mordia o pão, uma garota se aproximou dele e perguntou:
-Você é o Eduardo, não?
Ele concordou balançando a cabeça.
-Eu sou Rose.
Novamente balançou a cabeça para dizer “muito prazer”.
A garota prosseguiu:
-Eu sei que você é amigo do Marcos. Eu queria saber... ele tem namorada?
Eduardo fez que não com a cabeça e a garota virou puro sorriso e saiu de perto sem ao menos agradecer a
informação.
“Garota estranha...” Eduardo pensou com seus botões enquanto engolia o lanche.
-Pois é Eduardo... o meio do ano já está quase chegando... – disse Marcos, com sua cara irremediavelmente
estúpida, assim que Eduardo entrou na roda – ...e a galera tá afim de ir viajar nas férias.
-Viajar? Prá onde? – quis saber Eduardo.
-Para Quatro Barras – informou Carlos.
-Como? – Eduardo riu com desdém – Quatro Barras??? No inverno??? – e conclui como se os demais fossem
loucos – Não, eu não vou! – disse bem com tom de reprovação afim de deixar bem clara a sua vontade de ficar
em casa e quente durante Julho.
-Ah! Cara, deixa de ser embação! – protestou Marcos – A gente vai fazer camping durante quase um mês
inteiro. Vai ser demais!
-Nem vou...
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-Putz cara! Já não basta o Fábio não dar mais nem sinal de vida, você também vai abandonar a gente? Como
vai ficar nossa gangue? – reclamou Marcos, que queria porque queria que Eduardo fosse acampar com o povo –
vai ser que nem nos velhos tempos de colegial. Lembra?
Mal soou o sinal de saída, a maior parte dos alunos se levantou. Todos pareciam desesperados para ir embora e
curtir o final de semana de uma vez. Parecia fim de catequese, com as crianças loucas e impacientes que ficam
olhando o sol brilhando pela janela mas nada podem fazer a não ser esperar para estarem livres.
Eduardo ainda guardava seu material.
Não estava com muita pressa, pois como havia feito o roteiro do seu dia logo pela manhã, tinha tudo
programado na cabeça e sabia que tinha tempo de sobra para guardar o material, desguardar e guardar de
novo.
Ia almoçar pelo centro e pegar as aulas de revisão durante a tarde.
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Sempre que podia fazia isso, pois revisava os tópicos de maior importância que foram expostos no decorrer da
semana. Tinha a vantagem de fazer isso porque os alunos que iam a essas aulas estavam interessados em
aprender de verdade, então a sala não ficava tumultuada.
Assim que acabou de guardar tudo, ficou observando as pessoas saírem e a sala ir se esvaziando. Observou
que poucos permaneciam sentados como ele, aguardando a multidão desaparecer. Dentre os que ainda se
encontravam em seus lugares, estava Henrique.
Provavelmente esperaria até a última pessoa sair e tudo ficar parecendo-se com um deserto, a fim de evitar
qualquer tipo de comentário.
Eduardo ficou o observando.
Sim, Henrique tinha trejeitos efeminados, mas nada que o garoto fizesse tornava evidente a sua opção sexual.
Achava babaquice o que faziam com ele e não via motivo para tratá-lo com tanto preconceito.
Era um garoto magro, feio, de cabelos escuros bem curtos e olhões pretos brilhantes. Talvez fosse por conta de
sua aparência frágil que todos se aproveitassem para humilhá-lo. Se fosse alto e forte, a história poderia ser
diferente...
-Bando de covardes... – sussurrou Eduardo mordendo os lábios.
A sala já estava quase vazia.
Sobrara apenas Eduardo e Henrique, que continuava sentado.
Eduardo foi caminhando para a porta, até que parou e perguntou:
-Você não vai embora?
Os assustados olhos negros fitaram Eduardo.
-Daqui a pouco – disse Henrique timidamente, que de pronto desviou o olhar para as mãos – eu sempre espero
todo mundo ir embora.
-Pois é. De vez em quando eu também faço isso. Quando fico pelo centro não tenho pressa. Meus amigos,
alguns deles, ficam comigo também de vez em quando, mas muito de vez em quando, só quando eu aviso que
tal matéria é importante e vai cair com certeza na prova do fim do ano.
Henrique estava mudo.
-Eles não ligam para os estudos – foi dizendo Eduardo – e acho que tampouco se preocupam por ser ano de
vestibular. Tudo o que querem é fazer festa. Talvez por isso esse comportamento.
Silêncio.
-Imagine você que eles querem acampar em Quatro Barras em Julho!!! – Eduardo confidenciou.
-Quatro Barras no inverno? – admirou-se Henrique – Por acaso seus amigos são loucos?
-São – o rapaz concordou – E querem que eu vá junto.
-E porque não? Se são seus amigos, vai ser divertido...
-Acontece – explicou Eduardo – que eu não gosto dos meus amigos realmente. É um bando de imbecis. Parece
que ainda têm quatorze anos. Não amadureceram e nem querem amadurecer. Isso me deixa muito revoltado.
-Eu tô vendo! – exclamou o rapaz.
Eduardo olhou ao redor. Apurou os ouvidos:
-Bem, acho que o colégio inteiro já saiu – disse Eduardo, que depois olhou para o garoto sentado e convidou –
Vamos?
Henrique olhou para Eduardo, que estava perto da porta de saída da sala e tinha uma expressão curiosa na
cara. Não acreditava que um hetero estaria sendo legal com ele, pois todos os garotos que lhe dirigiam a
palavra o faziam com o intuito de lhe ferir.
Mas Eduardo tinha a face tranqüila, expressão pura e natural de quem simplesmente está esperando pelo
amigo.
Henrique sorriu internamente, pegou a sua mala de cima da carteira e dirigiu-se para a porta.
-Eu sou Eduardo – apresentou-se.
-E eu sou Henrique.
-É, eu sei – Eduardo comentou sorrindo – você é bem famoso aqui no cursinho.
Eduardo referia-se ao fato de todos pegarem no pé do pobre garoto. Fizera o comentário sem nenhum veneno
na voz. Disse como quem está ciente da situação, como quem sabe que existem inimigos, mas é do partido
aliado.
-Cambada de idiotas. Mas eu não ligo.
-Claro! Quem não deve não teme!
-Não é esse o caso. Eu apenas não ligo. Finjo que não é comigo, pois se desse trela só iria me estressar a cada
provocação que recebo.
-Faz bem – ponderou Eduardo.
Henrique soltou uma risada de escárnio:
-Faço? – indagou em tom irônico – De vez em quando eu não acho que a coisa certa a se fazer é ficar calado.
Tem vez que eu quero é meter um soco na cara dos filhos da mãe!
-E porque não faz então?
Henrique olhou para Eduardo e indagou:
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-Por acaso tá escrito super-homem na minha testa?
.....
Eduardo ia descendo a rua de casa, em passos lentos.
Acabara de assistir as aulas vespertinas e agora o grande sol vermelho já estava se pondo, deixando o céu
nublado com um tom púrpuro, como se um grande manto de veludo alaranjado manchado com vinho tivesse
sido jogado em cima da cidade.
O garoto andava e lamentava que as réstias de sol do outono não estivessem ali para iluminar a rua com
poesia. Era tão belo quando a vida parecia uma pintura renascentista. E do modo que Eduardo estava se
sentindo, meio melancólico, talvez o verde das folhas com gotas de sol pudessem se refletir em seu interior
acalentando-o.
Não conseguira prestar muita atenção no conteúdo das aulas, pois ficara pensando em Henrique.
Sentia pena por ele – e não dele.
Era um sentimento estranho, que começava pontiagudo e terminava arredondado, talvez fosse a conformidade,
tão temível por Eduardo mas latente na situação, pois o que poderia ele fazer?
Que tinha ele a ver com a vida de Henrique?
Mas de qualquer modo, aquilo incomodava.
Não conversara muito com o garoto, que foi logo embora para casa, mas constatara que ele era gente boa prá
caramba.
Não merecia estar passando o sofrimento à que o estavam submetendo.
Eduardo pôs-se no lugar do pobre rapaz e chegou à conclusão de que se fosse com ele, já teria explodido há
séculos. Não sabia como Henrique suportava aquela situação.
Capítulo IV
Em seu quarto, de banho tomado e já vestido, Eduardo arrumava uma mochila com itens de sobrevivência para
levar para casa de Camila. Levava pijama, escova de dente, pente, e o principal: suas apostilas do cursinho.
Iria ignorar a namorada estudando, ou pelo menos fingindo que estava fazendo isso.
Deitou-se na cama e pegou o telefone. Discou rapidamente os números.
- Alô? O Fábio está? – Eduardo foi perguntando assim que atenderam.
- Eduardo? – perguntou a voz do outro lado.
- Oi Fábio! Puxa, tudo beleza? – indagou Eduardo super animado ao reconhecer a voz do amigo.
- Diga aí seu Eduardo! – festejou Fábio, igualmente feliz.
- O que aconteceu com você? Andou sumido a semana inteira!
- Pois é... andei ocupado... – o tom da voz do amigo era do tipo “sim, andei fazendo mil e uma coisas, mas, por
favor, não me faça falar delas...”.
Eduardo resolveu passar por cima disso:
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- Ocupado com o quê?
- Com uns negócios aí... – esquivou-se o rapaz. Obviamente não queria comentar nada, e isso, de certo modo
incomodava Eduardo, que estava com a pulga atrás da orelha. Porque o amigo agia deste jeito?
- Porque isso Fábio? – perguntou Eduardo.
- Porque isso o quê? – Fábio deslavadamente rebateu a pergunta com outra. Coisa típica dele quando queria
fazer-se de inocente. Mas Eduardo não caía nessa, pois lançava mão deste mesmo artifício quando as coisas
iam apertando ao seu redor. Talvez tivessem desenvolvido a técnica juntos.
Perguntou:
- Porque você anda misterioso? – em sua voz, fazia-se nítida a exigência de uma resposta plausível. Mais nítida
ainda era a impossibilidade de uma desculpa esfarrapada ser engolida facilmente. Fábio teria que se explicar –
e muito bem! Afinal Eduardo era o seu melhor amigo e sentia-se no direito de saber de seus passos – Faz
tempo que a gente não têm uma conversa decente. Faz tempo que você deixou de me contar as coisas. O que
foi? – indagou como uma mulher rejeitada que pergunta “o que aconteceu? Eu não te atraio mais? Estou caída?
Você tem outra?”.
- Foi nada não – respondeu Fábio, cruzando a linha vermelha – É só que não tenho novidades.
- Não Fábio – indignou-se Eduardo – Você sabe que não é isso. Não se faça de palhaço e não me venha com
desculpas.
Fábio estava mudo. Eduardo continuou:
- Você tá sabendo que a turma quer ir acampar no meio do ano?
- Não – o amigo respondera sinceramente. Realmente ignorava o fato. Agora, mesmo sabendo do plano dos
amigos, tampouco se animara com a idéia – Quem vai? – o desinteresse era claro em sua voz.
Eduardo, sem graça, respondeu:
- A galera... – e foi citando os nomes – O Marcos, o Lucas, o Jorge, o Carlos, o Rodrigo e mais uns outros. Eles
pretendem se divertir prá caramba!
- Ah... – fez Fábio, como se raciocinasse algo a respeito do que se falava – o povinho de sempre!
- E aí? – perguntou Eduardo, com entusiasmo teatral. Sabia que Fábio já não demonstrava o mínimo interesse
pelo que se passava com a “turma” fazia bom tempo.
Talvez como Eduardo, Fábio já devia ter percebido o quão enfadonho era o grupo de “amigos” com que
andavam. A única diferença, porém é que Fábio já havia começado a fazer o que Eduardo queria ter feito faz
tempo: o afastamento do grupo.
- Nem estou afim... – respondeu o amigo, cuja resposta não surpreendera em nada Eduardo. Já esperava por
algo assim. Foi o que ele fez ao recusar diretamente ao grupo.
- Não quer nem saber onde vai ser? – tentou novamente, revestindo o remédio intragável com uma camada de
mel.
- Diga.
- Em Quatro Barras.
Fábio se espantou:
- E você vai???
- Eu não! – exclamou prontamente Eduardo, como se só a idéia de ele ir fosse absurda.
- Então porque me chamou? – quis saber o amigo, encurralando o outro contra a parede.
“Não está sendo algo muito agradável falar com Fábio” pensou Eduardo, mas este apenas se defendeu:
- Eu não chamei, só perguntei se você sabia do acampamento.
- Ah...
A conversa não estava levando ninguém à lugar algum.
Depois de um momento de um silêncio – de péssima qualidade – Eduardo mudou o tom de voz e dessa vez
perguntou super animado e carregado de interesse:
- Mas e aí Fábio? O que você tem feito de bom e proveitoso que possa ser comentado?
- Nada demais... – disse Fábio com naturalidade – saio de vez em quando, vejo um pessoal por aí e pronto!
- A turma tá dizendo que você tá envolvido com drogas – desabafou Eduardo, que já não agüentava mais de
tanta preocupação com o amigo.
- Há, há, há, há! – riu gostosamente – Disseram mesmo?
- É! – afirmou Eduardo.
- Não, eu não estou envolvido com drogas – explicou o amigo, ainda rindo e depois esclareceu – Mas confesso
que já experimentei.
- Eu sei, seu mané! – comentou Eduardo – Eu lembro! Você me contou!
- Pois é! – e curioso indagou ainda – E o que mais o povo disse?
Eduardo sem rodeios:
- Que talvez suas saídas misteriosas escondam um belo par de pernas...
- Saídas misteriosas? Belo par de pernas???
- É isso aí! – afirmou Eduardo – Dizem que você tem namorada ou é amante de alguma coroa! Pior, já até rolou
comentário que você engravidou uma mina por aí... Fábio, todo mundo morre de curiosidade para saber aonde
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você vai nos finais de semana, que não conta para ninguém!
- Ah, é? Ôrra, eu não sabia que era um mistério. Mas não sabem porque não querem. Ninguém pergunta
diretamente... – Fábio comentou com descaso.
- Ah é? Então não seja por isso. – Eduardo iria aproveitar a brecha que o amigo lhe abria – Aonde você vai
tanto?
Com naturalidade, o amigo lhe contou:
- Em boates gays!!!
Eduardo ficou paralisado.
Silêncio.
Não podia acreditar no que ouvira. Aquela notícia tinha caído feito bomba em seus ouvidos, que agora zumbiam
e incomodavam. Começara a sentir certa vertigem, quando, do outro lado da linha Fábio explodira em
gargalhadas:
- Há! Há! Há! Há! – e chorava de tanto rir – Eu tô brincando seu mané!!! Há! Há! Há!
Sem ao certo saber porque, uma sensação estranha percorreu a espinha de Eduardo. Era forte e carregada com
um misto de alívio e decepção.
Alívio porque seu melhor amigo não era gay.
De certo modo Eduardo já sabia que Fábio não era, pois inúmeras vezes dormiram na casa um do outro.
Nadavam juntos e trocavam de roupa um na frente do outro. Tomavam até banho juntos e Fábio jamais viera
de papo-aranha para cima de Eduardo. Sem contar que em cada festa que iam, Fábio agarrava praticamente
todas as minas do pedaço.
Mas ainda não sabia porque se sentiu estranho ao ouvir tamanha brincadeira de mau gosto.
O que o incomodara? Aliás, porquê o incomodara?
Perdera a fome instantaneamente! Embora até um cachorro com síndrome de down pudesse entender a
indireta, Eduardo resolvera fingir que não havia entendido.
- Mas o que é isso Camila?? Eu não sou egoísta! – o rapaz fez a comida entalada descer pela garganta – Deixa
de ser boba! – e olhou solícito para a irmã da namorada – Fran, se você quiser eu divido a sobremesa com
você!
.....
Terminada a janta, todos conversaram um pouquinho ainda à mesa, até que Camila se levantou e chamou o
namorado, ela tinha que arrumar um local para Eduardo dormir. Fran ficou lavando a louça, enquanto Camila e
Eduardo foram providenciar isso.
- Me ajuda aqui Dudú! – pediu Camila, puxando o colchão de dentro do armário da irmã.
O garoto foi para o lado da namorada e puxou o colchão de uma vez só. Com a força que tinha, acabou
puxando junto quase todo o conteúdo do armário. Algumas revistas caíram de dentro e foram se espatifar no
chão.
- Ahá! – fez a garota, como se desvendasse um mistério – Então é aí onde minha irmã as esconde!!! –
exclamou Camila olhando para as revistas espalhadas pelo chão – Venha amor, vamos olhar algumas!
- Nem tô afim... – respondeu Eduardo, olhando sem interesse algum para os exemplares – São só revistinhas
de moda!
- Ah é? – fez Camila – Olha só! – e puxou do meio das revistas uma com a capa bem diferente das capas das
demais. Era uma revista de homens pelados – Veja só que pervertida minha irmã é!!!
Eduardo arregalou os olhos. Fran não parecia ser do tipo...
Camila sentou-se na beira da cama da irmã e convidou Eduardo a fazer o mesmo. Assim que o garoto sentou, a
namorada abriu a revista e exclamou:
- Isso deve ser muito engraçado! – e riu – Veja! – e apontou para o primeiro modelo – Olha só esse cara! Que
gostoso!
Era um homem, expondo tudo de fora, com o pintão duro em uma pose sensual debaixo de um chuveiro ligado.
Parecia um operário de mão-de-obra pesada tirando o cansaço e o suor depois de um árduo dia de trabalho.
- Não vejo nada de mais! – disse Eduardo, chacoalhando os ombros em fingido desdém – Que que esse cara
tem de gostoso? Ele é feito de morango por acaso??? – e continuava tentando colocar apatia em sua voz e
demonstrar desinteresse.
A realidade era a seguinte: achara a foto um tanto quanto atraente.
Nunca havia visto nenhuma revista de mulher pelada, muito menos de homem. Parecia que estava fazendo
algo feio, algo estranho... ilícito! E aquela sensação, embora fosse muito estranha, era de certo modo excitante.
- E olha esses dois! – ria-se Camila, virando a página – Que horrorosos!!! Se bem que a bundinha desse...
Eduardo viu a foto.
Tratava-se de dois caras, conversando por cima de um muro. Um estava de costas e outro de frente.
Realmente os caras eram horríveis, mas os corpos deles... eram maravilhosos.
Eduardo não queria admitir, mas reconhecia a beleza deles.
À medida que as páginas iam revelando novas fotos, novos lugares e mais situações insinuantes, Eduardo ia
fixando o olhar nas faces perfeitas dos modelos, com seus corpos esculturais e semblantes de deuses gregos.
Toda aquela beleza, aquela situação da nudez encarada na boa pelos modelos, como se fosse algo natural e
agradável, fizera com que uma fagulha se acendesse no interior de Ed.
Não sabia bem ao certo porque, mas estava se sentindo atraído pelos corpos definidos, bronzeados e
totalmente másculos.
Algo mexia com ele.
E agora... isso!
Ele estava sentindo tesão em ver homens pelados na revista quando na verdade devia era estar sentindo nojo
ou qualquer outra aversão pelo mesmo sexo.
...mas não estava.
Muito confuso, Eduardo tirou a revista das mãos da namorada e indagou:
- Puxa... amorzinho, vamos parar logo de ver isso e voltar a arrumar minha cama, ok?
- Não Eduardo! – protestou a namorada tentando pegar a revista de volta – Eu quero ver! Me devolve isso aqui!
- Não! Não devolvo não! Tá pensando o que da vida? Acho que não é legal você ficar vendo esta baixaria! – o
garoto coçou o olho direito, pigarreou e completou sem muita firmeza – Esta pouca vergonha!
A garota revoltou-se:
- O quê??? Você não acha legal? Escuta aqui Eduardo, senhor bam-bam-bam, nós mulheres também temos o
direito de ver homem pelado, tá? Se a mulher pode mostrar tudo pro homem ver, porque o mesmo não poder
acontecer ao contrário? Me diga!!!
- É que... – Eduardo tentava argumentar sob o olhar inquisidor da namorada – veja bem, sob o ângulo da
moral... bem... é que...
- É que o quê???
- Não... não é nada... é só que não concordo com isso e pronto! – o rapaz desembuchou tais palavras com as
bochechas tão vermelhas quanto um tomate bem maduro.
- Ah é? Então só a mulher que tem que posar nua, aparecer pelada na televisão nestes programinhas de
auditório e só as mul...
- Não – Eduardo interrompeu – eu estou falando que eu não concordo tanto com o homem quanto com a
mulher. Nenhum dos dois precisa ficar se mostrando, ficar se vendendo vulgarmente. É disso que eu não gosto!
De vulgaridade!!!
Camila ficou olhando para o namorado sem dizer palavra.
Eduardo tornou a indagar:
- Agora, por favor, podemos arrumar a minha cama?
.....
Deitado em seu colchão, à meia luz, enquanto esperava Camila terminar de se trocar, Eduardo pensava nas
fotos que acabara de ver e na sensação que elas tinham despertado nele.
A cabeça estava que era um nó que ia se apertando cada vez mais.
- Eu achei homem bonito... eu achei homem bonito... – o garoto balbuciava como se estivesse delirante e com
febre.
- O quê? – perguntou Camila indo se deitar.
- Nada não...
- Ãhn... – fez Camila que agora se encontrava deitada também, mas sem cobertas e com uma mini camisola.
Passado um momento de silêncio, a garota perguntou toda doce:
- Eduardo... posso apagar a luz do abajur?
Eduardo arregalou os olhos, levou a mão na testa e pensou “pronto, começou!”. Tentou se safar:
- Não sei... eu estou querendo dar uma estudada...
- Ah... estudar? Essa hora da madrugada?
- É.
Novo silêncio.
- Oras... pensando melhor... pode apagar a luz sim Camila, que eu não vou estudar! – resolveu enfim o garoto.
- Ok.
Quando o quarto ficou escuro, a namorada tentou jogar mel, justamente como Eduardo havia previsto:
- Puxa amor... tá tão friozinho aqui né?
Ele, com a delicadeza de um Jeca respondeu:
- Se cobre, ué!
- Mas... eu tava pensando... bem... – ela estava totalmente sem graça – ...eu tava pensando Duduzinho... que
talvez você pudesse... você sabe... vir deitar aqui comigo...
Eduardo já ia respondendo “Deus me livre”, quando uma idéia se passou em sua cabeça.
Agora era a hora.
27
Com certeza!
Ela já estava tentando seduzi-lo e ele... bem, ele poderia deixar se seduzir.
Afinal, era homem, era macho e seu tesão tinha que ser por fêmea!
Nada dessa história de ficar excitado vendo revistinhas de homem pelado... não, não! Se era mesmo homem, a
hora de provar isso tinha chegado e era AGORA!!!
E não tinha desculpas!
Sem nada dizer, passou para a cama da garota num pulo.
- Amor!!! – ela exclamou praticamente incrédula e com um baita sorriso esculpido em seus lábios.
Eduardo começou a beijá-la, a abraçá-la, a se esfregar contra o corpo da namorada, tentando por em prática o
que seus instintos naturais lhe pudessem oferecer para a realização da “missão”.
Tirou a camisola de Camila, tirou seu pijama, ficaram os dois apenas com suas roupas íntimas e Eduardo
continuou acariciando a namorada. Continuou tentando... tentando... mas...
...nada acontecia.
O “negócio” simplesmente não funcionava.
Prosseguiu durante mais algum tempo, mas acabou desistindo.
- O que foi? – quis saber Camila que estava adorando, pra lá de excitada e pensando “oba! É hoje!!!” – Que há
de errado?
- Não... não é nada... – desculpou-se Eduardo.
Agora sim sua cabeça estava latejando tamanha era sua preocupação.
Como aquilo podia estar acontecendo? Como ele podia não funcionar com uma garota tão bonita quanto a que
ele tinha? Uma garota que se encontrava quase nua, disposta a ir até o fim, em uma cama, no escurinho? Uma
garota que era dele, só dele?
- Se não é nada... então porque parou? – indagou a garota, ofegando.
- Porque... isso não parece certo!
- Amor, o que não parece certo?
- Eu não sei... – e ele realmente não sabia – só não parece ser.
- Mas porque?
- Ah Camila... – e o rapaz foi tratando de arranjar uma desculpa – você é ainda tão jovem...
- E que tem isso demais? Você também é!
- Puxa! Eu sei! E é justamente isso! Vai que acontece alguma besteira? Vai que sai algo errado? Eu não quero
que você tenha traumas...
- Dú... – Camila passava as mãos pelos cabelos do namorado com muito carinho e sussurrava – ...a gente já
conversou sobre isso antes... você sabe muito bem o que eu penso! Amor, eu estou pronta, eu quero!
A confusão era tamanha, que o garoto se sentia encurralado.
Não sabia o que fazer. Aquilo era por demais horrível para ser encarado na boa de uma hora para a outra. O
turbilhão em sua cabeça fazia uma pressão tremenda.
Não demorou, o garoto explodiu em lágrimas.
Apenas respondeu:
- Mas eu não estou pronto, eu não quero!
E escorreu para a sua cama no chão.
fim do mistério - Os anjos também se enamoram
13.04.2004
Eduardo conhece o garoto do início da rua e acaba em seu quarto...
Capítulo V
O rapaz tomava muito cuidado para não acordar Camila, que ainda estava
deitada, toda encolhida, virada para a parede.
Era meio como se tivesse sido pego com a boca na botija, um ladrão na
iminência de deixar a cena do crime de modo desonrado, covardemente após
o delito.
- É... eu sei.
O garoto.
29
A garota.
O silêncio.
Camila era apaixonada por mitologia e vivia contando lendas para Eduardo, mas
ele não estava muito certo se sabia com exatidão quem Pan era,
tinha apenas uma vaga e incerta lembrança.
- Pois Pan era muito feio. Nenhuma das musas o desejava. Um dia, Afrodite, a
deusa do amor, deu-lhe uma flauta encantada. Disse lhe que cada vez que tocasse
o instrumento, as musas o desejariam. E Pan tocava a flauta – Camila foi
dizendo – para as suas musas... e elas se encantavam... se enamoravam
dele, mas ele a nenhuma queria...
- Como poderia...
- Afrodite não havia explicado... quando um ganha, outro perde. Ele perdia
interesse quando as musas os procuravam. Então, um dia as belas entidades
se revoltaram e roubaram a flauta de Pan enquanto ele dormia. Em vingança,
retiraram uma nota musical do instrumento. Quando Pan despertou, foi tentar
tocar sua flauta para encantar as musas e descobriu que ao invés delas
se apaixonarem por ele, eram os anjos que acabavam sob o seu encanto.
- Mas...
- E foi assim. Cada vez que Pan tocava sua flauta, fazia os anjos caírem...
Camila narrava a história de tal modo que parecia que ela mesma tinha
participação neste mundo mitológico. Parecia querer passar
um recado como quem diz “eu tenho medo de cair morta também”.
Cedo ou tarde alguém ia sofrer por conta disso. Ele demorou ainda um
pouco para quebrar o silêncio, mas finalmente indagou:
- Deixa de bestei...
- O quê?
O garoto nada pode dizer. Não podia procurar dentro de si palavras seguras
e honestas para falar, pois se o fizesse, magoaria mais ainda a namorada, preferiu
ficar calado, forçando sua natureza madura se calar, e isso lhe consumia
tanta energia que tremia inteiro.
- Nada... tchau.
.....
No caminho de volta para casa, Eduardo desejava não ter sentimento algum.
Nem bondade, nem ruindade, nem alegria nem tristeza, nem sensação
de fome nem de saciedade, nem plenitude, nem solidão. Seria mais tão
mais fácil ficar neutro. Iria parar de machucar os outros com sua cabeça
dura e também iria parar de se machucar.
Caminhava rua abaixo, tomando o rumo de casa, arrancando folhinhas dos álamos
de copas gordas e verdejantes. Além de ter aquele maldito nó em
sua cabeça, ainda se preocupava em bolar uma desculpa convincente para
apresentar aos pais, que certamente iriam estranhar a sua presença de
volta em casa tão cedo.
PIMBA!
O chute que deu fora com mais gosto do que se fosse uma bola na mira exata
do gol. Deu um bicudão bem na ponta do focinho do animal que voou para
longe com o impacto. A trajetória que o cachorro descreveu no ar fora
a mais desajeitada o possível, o bicho mais parecia um saco de batatas
todo desconjuntado do que um ser vivo.
- Besta demoníaca...
Resolveu investigar...
Estava intacta.
Como podia ter matado o cachorro com apenas um pontapé? Será que
o bicho tava se fingindo de morto. Era bem capaz do jeito que o cão era
ruim feito a peste... Eduardo estava perplexo.
E agora?
O que faria?
Ele podia muito bem ir para casa e deixar o incidente morrer por ali mesmo,
uma vez que não existiam testemunhas. Podia ainda dar sumiço do
cachorro, assim seria apenas mais um bichinho que saiu de casa e não
voltou mais.
Eduardo podia falar com os donos do bicho e inventar uma desculpa qualquer e
pelo menos... tentar se safar dessa...
Bem, o correto Eduardo sabia muito bem o que era, mas simplesmente não
o podia por em prática. Nunca teria coragem de tocar a campainha e dizer:
- Oi! Sabe o que é? Eu estava descendo a rua para ir para casa, pois eu
moro logo ali no retorno – e teria que dizer com a maior cara de pau –
quando dei um chute no seu cachorro e o matei!
.....
Ao tocar a campainha, Eduardo suava frio nas mãos. Esfregou uma na outra
e estufou o peito.
Estava ali parado diante da porta sem ao menos ter bolado uma desculpa decente.
Ia apenas inventar na hora, pois sempre que bolava algo para ser dito, acabava
dizendo tudo ao contrário.
Quem a abria era um rapaz de aproximadamente vinte anos, com uma toalha enrolada
na cintura. Tinha os cabelos encharcados e o corpo molhado ainda.
O garoto daquela casa se parecia muito com um dos modelos da revista que vira
na casa de Camila.
33
Ed tinha certeza que aquela toalha branca e felpuda escondia um par de pernas
fantásticas, com coxas poderosas...
...o garoto não queria nem pensar nisso! Era como se algo de maléfico
voltasse para sua cabeça, algo que simplesmente não podia ser,
como um anjo vingador trazendo sofrimento aos pecadores.
Tratou de desviar o olhar, virar a cara para outro canto qualquer e falar:
- O-oi! Sabe o que é? É... e-eu estava descendo a rua para ir para
casa, pois eu moro logo ali no retorno – disse Ed, totalmente sem jeito
– quando de repente passou um cara em uma bicicleta que passou por cima
do pescoço do seu cachorro!
- Mas você viu quem era o cara? – indagou o rapaz sem mostrar muita
preocupação na voz.
- Ro-roupa?
- Vi sim! Ele tava usando uma calça jeans bem velha, uma camiseta preta
e chinelos tipo havaianas...
O rapaz sorriu segurando a porta, enquanto seu cabelo pingava pelo rosto de
pele clara:
- Você reparou tudo isso... – fez uma pausa ainda sorrindo e foi
logo jogando verde – ...e não viu como era o homem?
- Ah! – fez Eduardo como se finalmente entendesse uma conta muito difícil
– Sei... sim, Fred... – fitou o vazio lembrando em flashback a cena
do chute e afirmou sem o mínimo tato – É... seu cachorro
morreu sim... tá ali na grama...
- É?
.....
Não que fosse tarado, mas uma força de natureza misteriosa obrigava
os olhos do rapaz a ficarem grudados na traseira do outro. Alguém de
fora precisaria deixar a vulgaridade indiferente e reparar na beleza escondida
por detrás daquela cena. Apreciação total que Eduardo tinha.
- E eu o Rodrigo!!!
O garoto de toalhas sorriu e saiu do quarto, deixando Eduardo com seus pensamentos.
De algum modo aquilo parecia errado, embora não existisse ali nada que
dissesse que aquilo era errado. Não havia nada de anormal, afinal, já
estava bem acostumado a esperar amigos saírem do banho. Era normal após
o esporte, era normal quando iam a festas. Esta mesma situação
já tinha se repetido umas mil vezes com Fábio e nunca tivera a
conotação que agora tinha...
37
...o que seria isso que tornava a estada ali naquele recinto tão inquietantemente
errada? Aliás, tão deliciosamente errada?...
Era uma peça, que embora meio desordenada, acalentava muito aconchego
e dava um toque displicente ao recinto.
O quarto tinha um cheiro que muito agradou Eduardo. Não sabia distinguir
aquele cheiro, não sabia que estranho odor era, mas acalentou-se e sentiu-se
bem por estar naquele ambiente.
Havia uma estante onde diversos troféus estavam expostos. Eram de muitos
tamanhos, com inúmeras medalhas ao redor do pescoço de estatuetas
ora prateadas, ora douradas.
O rapaz ainda estava com uma toalha enrolada na cintura, mas já era outra
e desta vez, não pingava. Acabara o banho e se secara, penteara os cabelos
e cheirava muito bem.
- Ok... – fez Eduardo não para apoiar a frase de Rodrigo, mas sim
para não se parecer como uma múmia que não interage na
conversa.
Ficou nu em pêlo.
Rodrigo fez isso com estudada naturalidade, pois percebera o quanto Eduardo
tinha se incomodado com o modo com que ele havia atendido a porta e queria levar
aquilo um pouco mais longe.
Sabia que Eduardo sentia-se desconfortável, mas queria estudar a sua reação.
Travou conversa antes de se vestir:
- Que curso você pretende fazer?
- E-eu? – gaguejou Eduardo com muita vergonha, sem olhar para o corpo do
rapaz.
Que situação chata.
Eduardo já tinha passado por isso nos vestiários de clube,
colégio, na casa dos amigos, mas era tão diferente naquela época,
e agora... argh! Algo acontecia ali!
Aquela nudez incomodava.
Incomodava porque Eduardo queria olhar, mas não podia, se pudesse teria
que ser natural, mas se olhasse jamais seria natural. Algo muito confuso, mesmo
assim, Eduardo lutava para se expressar de maneira adequada e não transparecer
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em sua voz esse fascínio às avessas:
- E-eu quero fazer medicina...
- Na Federal?
- É...
- Puxa! – admirou-se Rodrigo, que se aproximou de Eduardo, com aquele “negócio”
solto, balangando no meio das pernas – Tem certeza que você quer
medicina na Federal?
- Te-tenho! – acanhou-se Eduardo, que a esta hora, olhava para qualquer canto
do quarto em que Rodrigo não estivesse.
- Ah! – exclamou o garoto nu, e como se fosse um velho amigo, aconselhou
– Se é isso o que quer de verdade... então vá em
frente! Estude mesmo!
- É! – fez Eduardo, diante do incentivo.
- Meus pais são médicos, sabe? – falou Rodrigo como se falasse
ao acaso.
- Mesmo? – interessou-se Eduardo.
- É! – respondeu Rodrigo, agora pegando a camiseta de cima da cama
– Meu pai é especialista em fraturas e minha mãe é
clínica geral – vestiu a peça.
- Nossa! – maravilhou-se Eduardo – deve ser formidável
ter dois médicos em casa!
- É... – Rodrigo concordou descordando – você não
imagina o quanto!
- Porque o desânimo? – quis saber Eduardo que não pôde
deixar de notar a ironia na voz do garoto, que agora já vestia a cueca.
- Porque nunca tive a presença dos meus pais. Tive apenas vultos deles.
- Você cresceu separado de seus pais? – indagou Eduardo, penalizado.
- Não! – disse o garoto imediatamente – Não cresci,
mas desde pequeno, eles trabalham à noite. E eu estudo de dia. Então,
quando estou em casa durante a noite, estou dormindo e eles estão fora.
Quando chegam, eu é que saio. Quando chego à tarde, eles estão
dormindo para irem trabalhar à noite.
- Puxa... – fez Eduardo, com dó do novo amigo – ...eu entendo...
que saco! Deve ter sentindo muito a falta deles.
- É! – fez Rodrigo como quem não se importa e sorriu novamente
– Imagina como não eram minhas festinhas de aniversário!
Mas eu me acostumei! Lá por volta dos treze anos eu já achava
isso normal!
- Certo... – aliviou-se Eduardo – mas eu acho que não ia me
acostumar não. Principalmente pela minha mãe, sou muito apegado
a ela. Não ia achar normal isso não.
- Ah é? – indagou o garoto, que colocava a bermuda. Resolveu instigar
o vizinho novamente – E o que mais não acha normal?
- Eu? – perguntou Eduardo, apontando o indicador para o próprio
peito, esperando uma confirmação.
- É! – confirmou Digo.
- Não entendo o que você quer dizer com isso... – resmungou
Eduardo, meio perdido, meio sabendo.
- Sabe sim... – afirmou Rodrigo – o que esta foto lhe diz? –
pegou o porta-retrato de cima da cabeceira da cama e o mostrou para Eduardo.
Era a foto em que o bando de amigos se abraçava, tendo muita diversão.
- Nada! – disse Eduardo observando a foto – É normal tirar
foto! Completamente normal ter amigos!
- Sim! Claro... – concordou o rapaz – natural lá isso é!
Mas este local... você sabe onde é? Ou melhor, você sabe
o “quiéquié”?
- Não... – disse Eduardo.
- É uma boate!
- Boate?
- É!
- E o que isso tem de anormal? – quis saber Eduardo – eu mesmo já
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fui em boates, dancei a noite toda com a galera, isso é completamente
comum para quem curte balada.
- Ahhh... Mas essa não é uma boate comum... é a GrooveLandS.
Eduardo arregalou os olhos.
A GrooveLands!!!
Já tinha ouvido falar naquele lugar diversas vezes.
Todo mundo já tinha. Não ter escutado histórias sobre esse
local era a mesma coisa que achar perna em peixe – impossível!
- Aquela boate gay???
- Isso! – confirmou Rodrigo confirmando com sorriso de canto de boca –
Todos nessa foto são gays! – e inclinou-se para Eduardo –
Você acha isso normal?
O garoto tomou o retrato em mãos. Parecia embasbacado.
- Você tem amigos gays? – quis saber Eduardo, num misto de nervosismo
e curiosidade.
- Claro! – afirmou o rapaz e acrescentou com muita naturalidade –
Eu sou um deles!
- Você é gay??? – espantou-se Eduardo.
Rodrigo riu gostosamente.
- Como se você não soubesse!
- Eu? – admirou-se Eduardo – E porque haveria de saber???
- É claro que você sabia. Desde o momento em que atendi a porta.
Ah! – fez Rodrigo – Você sabe, né? – e explicou
– É aquele lance de... digamos... indivíduos de mesma espécie
se reconhecerem mutuamente...
- Indivíduos de mesma espécie? – perguntou Eduardo confuso.
- É! – confirmou o rapaz, que concluiu faceiro – Se reconhecem
de longe!!!
Neste ponto Eduardo ficou vermelho e indignou-se:
- O quê??? – e atropelava as palavras por dizê-las muito rápido
– Você acha que eu... Você quer dizer então que, você
acha que eu sou, como pode dizer, digo, como ousa...?
- Calma! – interrompeu Rodrigo – Calma! Você não precisa
ficar nervoso que eu não...
- Mas isso é um absurdo! – Exclamou Eduardo, como se explodisse,
interrompendo o outro garoto por sua vez – Não tem lógica
mesmo!
- Não Eduardo, é que... – o outro ia dizendo calmamente.
Mas Eduardo não ouvia:
- Oras! E veja se tem cabimento! – o garoto chacoalhava a cabeça
do jeito que fazia quando algo o deixava fulo. Queria atacar o outro –
Desde lá de fora eu já tinha percebido que você não
batia bem das bolas!!! Imagina, rir daquele jeito com o cachorro morto! E agora
mais essa! Bem se vê que você não regula das idéias!
Achou que eu fosse boiola? Achou que eu fosse o que? Nem me conhecia e disse
para eu entrar...
- No entanto... – disse Rodrigo, calmamente, rebatendo a tentativa de ofensa
que Eduardo lhe fazia – ...você entrou!
- Mas é que... – Eduardo deteve-se. Não tinha o que responder.
Não tinha desculpas. Entrou porque quis mesmo – é que...
Rodrigo olhava com ar de troça para Eduardo.
Esperava ansioso por uma desculpa qualquer para poder se rir do moleque, que
estava totalmente sem defesas. Eduardo tremia o queixo tamanha a raiva que sentia.
- Oras! Oras! – explodiu novamente enfiando o dedo no meio da cara do outro
garoto – Eu não devo satisfação nenhuma para você!
Rodrigo riu alto e gostoso.
Eduardo revoltou-se ainda mais.
- Passar bem!
E saiu bufando pelo mesmo caminho que fez para chegar no quarto do rapaz.
Rodrigo ainda gritou lá de dentro:
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- Ei! Devolve a minha foto!!!
.....
.....
.....
- Mas não foi por querer benhê! Você viu o estado que o menino
ficou!
- É! Eu vi, mas não posso admitir isso. Imagina, matar um cachorro!
- Mas foi sem querer!
- Quer parar de repetir isso?
- Desculpa, foi sem querer.
- Já disse prá parar! No meu tempo de moleque, quando eu era escoteiro,
tinha que fazer boas ações e tudo mais. Eu tinha é que
ser muito do bom para com os animais... eu disse que era para nosso filho ter
sido escoteiro. Eu bem disse! Daí ele não ia fazer essas barbaridades!
- Ai... esquece isso Antônio... e vem cá...
Sônia passou os braços ao redor do pescoço do marido, tentando
refazer o clima romântico que pairava no ar antes do filho chegar em casa
feito um jegue. Ia beijar o marido quando a campainha tocou.
- Será que eu devo ver quem é? – a mulher indagou em tom
manhoso para o marido, que ainda soltava fagulhas pelas ventas.
O homem, sem paciência, respondeu curto e grosso:
- Você é quem sabe!
- Então eu não vou... – e deu um beijinho na bochecha do
marido.
De repente, tanto o homem quanto a mulher escutam Eduardo berrando lá
de cima:
- MÃÃÃEEE!!! ATENDE A PORTA!!!
A mulher revirou os olhos e depois de um pesado suspirar, levantou-se, arrumando
a roupa:
- Já volto! – disse ela, jogando charme para Antônio –
Não me saia daí!
E sumiu para o hall da entrada. Ao espiar pelo olho mágico, não
reconheceu o rapaz que ali estava e perguntou, desconfiada, por trás
da porta:
- Quem é?
- Sou o vizinho... Rodrigo! – disse o rapaz, sorrindo e falando com o furinho
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de vidro na porta...
- Ah! Sim! – fez Sônia, que abriu a porta segundos depois –
O que quer?
- É que seu filho foi lá em casa agora há pouco e...
Antes que o rapaz tivesse a oportunidade de continuar a frase, a mulher já
foi se desculpando:
- Ah... aquele moleque!!! Não liga não, que ele sempre foi assim
desde pequeno, sabe? Tem um gênio muito ruim o meu filho, às vezes
nem eu agüento... e olha que paciência de mãe é coisa
que...
Rodrigo interrompeu a mulher que falava em espetacular afobação:
- Não minha senhora! Seu filho não fez nada demais! Fez até
uma gentileza em avisar que o Fred, nosso cachorrinho, morreu. Imagine... o
que é que ele tinha a ver com isso?
“Tudo...” pensou a mãe de Edu sorrindo amarelo.
Rodrigo continuou:
- E então eu fiquei nervoso, pois gostava muito daquele bichinho –
mentia deslavadamente, é claro – e acabei descontando em seu filho.
- Entendo...
- E fui injusto. Gostaria de falar com ele para me desculpar.
- Mas é claro! – sorriu dona Sônia, que achara o rapaz muito
simpático e educado logo de cara – Queira fazer o favor de entrar,
sim? Eu sou a Sônia, mãe de Eduardo.
- É! – riu-se o rapaz – Eu já percebi. Com sua licença
– e Rodrigo entrou.
- Por aqui – e a mulher o conduziu escadas acima.
Ao chegar na porta do quarto do filho, bateu de leve e o chamou.
Olhou para Rodrigo e sorriu:
- Agora vou descer – desmanchava-se em mel e recomendou – Vocês
dois se entendam, ok? Boa sorte com o cabeça dura do meu filho!
- Tá legal! – disse Rodrigo, sorrindo de volta para a mulher.
Sônia desapareceu escadaria abaixo e instantes depois a porta do quarto
se abriu.
.....
Capítulo VI
Nem o Diabo em pessoa, queimando no fogo do inferno com o seu tridente mirado para Ed poderia ter parecido
tão demoníaco quanto o pai parecera com o seu garfinho de churrasco ao lado do fogo da churrasqueira...
É... o clima ainda pesava por ali...
.....
- Alô? – fez Eduardo assim que atenderam o telefone – Fábio?
- Oi Edú! – alegrou-se o amigo – E aí? Você vem?
- Nem vou... que saco! A coisa ainda está preta por aqui!
- Hum... a história do cachorro, né? – Fábio concluiu.
- É! – Eddie confirmou – Um porre!
- Ah! Nem tem problema! – o amigo disse em tom animador – Pelo menos você vai se livrar daquela chatice
toda!
- Nem fale... – Edú concordou. Realmente, vendo por este lado o castigo era coisa boa, pois pelo menos esta
desculpa ele tinha, por outro lado... – Mas, puxa cara, eu queria te ver, né? Faz tempo que nós não fazemos
nada juntos!
- É verdade... – Fábio ponderou – Quisera eu ter um cachorro para matar... – e pôs-se rir com a brincadeira.
Eduardo também achou graça.
- É... assim você também se livrava, não é mesmo? – e indagou ainda, sem interesse, mas com educação – Já
chegou alguém aí?
- Ainda não, mas devem estar chegando em bloco lá pelas duas... – Fábio informou, sem interesse também e
quase sem paciência – Eu não sei o que eu vou fazer!
- Puxa... ataque em bloco da velha guarda... – e indagou, sem pistas – mas ainda não entendo o que te fez
liberar a casa para este churrasco. É como um padre liberando a igreja para uma festa satânica.
- Credo Eduardo!!! Não fala desse jeito. Mas... devo admitir uma coisa para você, é mais ou menos por aí... –
lamentou-se em tom de profundo desânimo – sabe Dú... eu me sinto um peixe fora d’água no meio desse
povo... é um sem graça sem fim.
- Meus pêsames! – o rapaz recomendou honestamente. Sabia bem do que o outro falava, pois começara a se
sentir assim fazia um bom tempo já.
- Nem diga! Estou morrendo de vontade de ligar pro povo e desmarcar – o amigo reclamou sem alterar a voz,
mantendo a calma daqueles que não se abalam por nada – Isso é um porre! A idéia nem foi minha! – e Fábio
em sua calma deixava Eduardo reconhecer o que se passava por dentro, pois esse pegava de longe e
perfeitamente o tom de revolta na voz inalterada do amigo.
- E de quem foi a idéia? – Duda quis saber.
Como se fosse óbvio, Fábio respondeu:
- Do Carlos, de quem mais?
- Ah, é! – Ed deduziu, realmente percebendo a trivialidade da situação. E completou ainda em tom de mofa –
Novidade...
- Será que eu faço isso? – Fábio indagou.
- O quê? Desmarcar? Ih... acho que não, hein? – Eduardo aconselhou – Eles iriam ficar putos e como já falam
que você sumiu, que não é mais o mesmo... aí sim, te excluiriam do grupo de uma vez por todas.
- É... você tem razão... – disse Fábio concordando com a observação do amigo.
.....
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Por volta de três horas da tarde, Fábio apareceu na casa de Eduardo.
- Então você cancelou mesmo o churrasco? – disse Eduardo, admirando a coragem do amigo. Estavam ambos
deitados na cama, de papo pro ar, olhando um ponto vago no teto, como costumavam ficar quando filosofavam
ou quando ficavam à toa mesmo.
- É! – Fábio confirmou – Tô fudido agora!
- Tá mesmo! – Eduardo riu da cara do outro.
Nem sabia porque ria, pois analisando mais a fundo a situação, era bem mais complicada e séria do que
parecia. Dar essa falta para com a turma era como se fosse finalmente oficializada a ruptura do passado.
Como desejava ele, Eduardo, que aquilo se desse também em sua vida
- O que é que o povo falou?
- Nossa! – e Fábio levou as mãos à cabeça – Me xingaram um monte! O Carlos foi o que mais gralhou comigo.
Eles ficaram muito indignados!
- É, eu imagino. – Ed riu-se novamente. E observou inutilmente – Considere-se fora do grupo daqui em diante.
- Eu sei... – o amigo murmurou, para depois explodir em felicidade – Viva!!!
Quem os ouvisse falar, pensaria que a velha guarda era constituída por alguns monstros, senão por um bando
de mortos-vivos tarados sexistas trogloditas de caverna. E na verdade pura, ia levar bem mais do que se falava
para tornar um pingo sequer de todo aquele oceano em verdade.
Mas na cabeça dos garotos deitados na cama era essa a tempestade que se passava. A convivência com aquela
turma era bem pior do que viver entre traficantes barra pesada de boca de morro.
Tal exagero levou Ed a desabafar:
- É! Que sorte você tem meu caro amigo! Eu já não agüento mais ficar com eles na hora do intervalo e ter que
falar sobre todas aquelas besteiras e futilidades que eles falam – e como se confidenciasse algo indizível,
abaixou o tom da voz o mais que pôde e disse – Eu devia ter feito como você e ir caindo fora aos poucos...
creio que agora seja tarde demais...
- Nem é! – disse Fábio para encorajar o amigo – E para falar a verdade, você nem deve satisfação nenhuma
para qualquer um daqueles caras lá! Se afaste e pronto! Afinal você é homem ou não?
Eduardo nem sabia ao certo... titubeando respondeu:
- Sou... – e preparou uma avalanche de desculpas – ...mas você tem que considerar o fato de que eles são os
meus amigos.
- E daí?
- E daí que com eles não tem esse negócio de “caiu fora, tudo bem”. Se eu pisar na bola, como devem estar
pensando que você pisou, eles já me passam do roll dos amigos para o dos inimigos.
- Que exagero! – Fábio observou.
- Não é exagero e você sabe muito bem disso! Com eles não tem meio termo! Ou é oito ou oitenta. Ou você
está com eles ou está contra eles!
Ponderando, o amigo respondeu:
- É verdade... e quer saber? Eu estou contra!!!
- Que inveja! – fez Eduardo, forçando a voz, como uma Maria fofoqueira.
Ontem não pude escrever em ti... estava muito puta para fazer isso!
O Eduardo me deixou sem paciência.
E hoje... fiz tanta coisa que não poderia nem listar aqui tudo o que fiz. Acho que é mais fácil anotar o que eu
não fiz, que foi falar com o meu Eddie.
Tão estranho sofrer por uma coisa que nem se sabe o que é! Injusto esse lance todo! Que saco! Se ele tem um
problema, porque não se abre comigo que sou a pessoa em que ele mais deveria ter confiança???
Sabe o que é mais foda?
É que tenho que ficar uma semana inteira sem falar com ele! Burrice minha que inventei isso!
...mas eu vou agüentar!!! Vou sim!
Agora vou dormir. Tenho aula amanhã cedo!
Boa noite!”
.....
Segunda-feira, no cursinho, Eduardo passava por entre as pessoas como se não as enxergasse. Chegara a
esbarrar em uma ou duas. E nem pediu desculpas, apenas continuou andando. Será que um dia voltaria a ser
como era antes de toda essa confusão aparecer?
O rapaz acordara com um sentimento estranho.
Pensava em tanta coisa ao mesmo tempo que no fim das contas já não raciocinava direito. Todas as idéias
colidiam e repartiam-se em milhares de pedaços que não se juntavam e nem tinham lógica nesse enorme
quebra-cabeça mental.
Estava fora de órbita e via-se isso em sua fisionomia.
Tanto foi que nem o grupinho da velha guarda, reunida na entrada da sala de aula esperando o sinal tocar,
conseguiu tirar Ed de seu estado.
- Deixa quieto! – disse Jorge para Carlos, que ainda estava revoltado com Fábio e por troco de nada começaria
uma confusão.
- Vai ver que o cérebro dele já está começando a derreter de tanto que ele estuda e sobrecarrega o coitado –
Marcos brincou, olhando em volta esperando aprovação geral do grupo.
E Carlos disse:
- É cara... sinto em informar que quem estuda demais acaba virando um Nerds com impotência sexual...
E Eduardo, sem um pingo de paciência exclamou em tom de ameaça:
- Não enche o saco, falou? – e retirou-se dali.
Ao entrar na sala, foi direto para o seu lugar.
Tirou a apostila de dentro da mala e pôs-se a revisar a lição trinta e quatro de física. Fora a que mais lhe dera
trabalho e queria ficar craque na resolução daquele tipo de problemas.
Estava desligado do mundo exterior, tamanha sua concentração, que levou o maior susto quando lhe tocaram
no ombro. Era Fábio, que finalmente aparecera na aula.
- E aí cara? Beleza? – Fábio perguntou – desculpa te assustar, não foi a minha intenção!
- Não foi nada! – disse o garoto que ainda se recuperava do sobressalto – tá tudo beleza sim! E você?
- Eu estou morrendo de sono, mas fora isso tudo legal.
- Ótimo.
De pé, ao lado da carteira de Eduardo, Fábio fez um ar de machão e indagou:
- Viu os guarda costas na entrada da sala?
- É, vi! Inclusive já disse para o Carlos não me encher o saco.
- Já para mim não disseram nada. Apenas me olharam passar. Aos outros acredito que me tenham indiferente
em seus conceitos, afinal eu só não pude liberar a casa pro churrasco... mas o Carlos me deu um olhar
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cancerígeno! Acho que me enchi de tumores por dentro!
E riram.
- É sério! Me olhou como quem diz “te pego lá fora, babaca!” – e rindo, depois de imitar a voz de Carlos,
completou encenando histerismo debochado – Ai!!! Que medaaa!!! Ele deve realmente achar que bota medo
em alguém. Se ele não fosse tão baixinho eu até topava brigar, mas isso é covardia!
- Com certeza!
- É, mas do jeito que ele é esquentado, é bem capaz de querer arranjar confusão. E se ele vier cantando de
galo eu não vou agüentar não. Vou para cima dele.
- Não! Eu creio que ele não vá querer chegar a esse ponto...
- Ele que tente!
- Mas que vai tentar arranjar arruaça de outro modo, isso ele vai!
- Pode tentar fazer o que quiser, que ele vai ver o bom dele!!!
E o sinal tocou.
Inquietação geral enquanto os alunos iam subindo as escadas e entrando na sala de aula como uma horda de
jovens com cara de sono. Segunda-feira era o dia mais foda de adaptar a vida desregrada de um final de
semana ao cotidiano do vestibulando.
Eduardo prestava atenção à massa que adentrava o recinto.
Viu Henrique entrar, como sempre, muito hábil em passar no meio das pessoas com a sua cabeça baixa em
constante sinal de covardia. Era a admissão de que era vulnerável e que facilmente seria esmagado por todos
em sua volta se assim o desejassem.
Para tamanho horror não ocorrer, Henrique se fazia invisível.
Henrique se anulava debaixo do seu lençol de medo.
E Eduardo, novamente, sentiu pena por ele.
Capítulo VII
O Capítulo Entrecortado, como a Alma de Eduardo.
Sem contar que Fábio sempre ficava com as mais poderosas beldades.
Sempre se saía bem em tudo.
Ele, Eduardo, também tinha este poder... se dava bem e tinha o mesmo sucesso... mas... e daí? De que lhe
adiantava tudo aquilo se agora estavam danificados os alicerces nos quais ele construíra toda uma vida? Que
tipo de segurança teria em viver dentro dessa casinha frágil?
Ele que sempre fora tão forte, chegara em um momento em que duvidava da própria força.
E agora? Que caminho seguir?
Do outro lado da cidade Camila fechou o grosso diário e ficou deitada na cama, apoiada sobre os cotovelos. Não
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tivera vontade de ir para a escola.
Simplesmente não tinha ânimo.
Estava morrendo de saudades do namorado. Queria ligar para ele e falar qualquer coisa... mas acabaria soando
patética. Não queria dar o braço a torcer nem se parecer como um cachorrinho abandonado...
...mas era mais ou menos assim como se sentia agora.
.....
Os garotos da velha guarda estavam reunidos num canto do pátio do cursinho. Faziam piadinhas e falavam
bobagens.
Carlos ficara num lugar estratégico, de onde podia observar Fábio e Eduardo nos mínimos detalhes. Já fazia um
bom tempo que estava disperso nessa atividade que nem prestava atenção ao que os seus colegas diziam.
- O que foi? – indagou Jorge observando a abstração do colega.
- Não sei... – disse Carlos, deixando os olhos semicerrados – ...mas que tem coelho nesse mato... isso tem... –
e apontou com o queixo, numa esticada de pescoço sutil o local onde Ed e Fábio estavam.
.....
Fábio ainda estava quieto.
Eduardo ainda olhava para o chão.
- Ei... Eduardo, eu sou seu amigo, não sou? – disse Fábio finalmente rompendo o silêncio – Pode ficar calmo.
Você não vai acabar ficando sozinho. Eu não vou sumir da sua vida porque você é meu melhor amigo.
- Eu sei, mas é que... – Edú parou de falar.
.....
Na sala de aula Henrique escrevia em seu fichário algumas frases desconexas. A maior parte delas era trechos
de música. Gostava de ficar sozinho na sala durante o intervalo. Gostava de ver todas aquelas carteiras vazias.
E quando nenhum grupo de estudo ficava lá dentro para resolver alguns exercícios, era melhor ainda. Era como
se todo o mundo tivesse morrido e ele se visse livre de pessoas mesquinhas e que lhe queriam fazer mal. Tinha
vez que ia até o grande quadro negro e apagava o que estava escrito nele, assim gostava de fingir que ele
eliminara todos os vestígios da humanidade.
.....
Capítulo VIII
Sentia que algo passava feito um ciclone dentro de si. Mas nem a mais tênue brisa lhe pareceria calma neste
instante. Queria conversar com alguém sobre isso. Queria poder contar para Fábio...
Oras! Que idéia é essa? É claro que você pode contar comigo!
E Eddie desejou que fosse tão fácil quanto parecia ser.
Assim que desceu do ônibus pisou num chão incerto, um chão que quase lhe faltou. Estaria ele vivendo em um
mundo paralelo? Levava um fora das circunstâncias cada vez que elas se apresentavam. Essa busca incessante
de uma certeza abria e fechava tantas portas. Abria e fechava.
“Quando um ganha, outro perde” a voz da namorada ecoava em sua cabeça e ele peneirava o que podia. As
coisas iam fazendo sentido pouco a pouco, bem de leve, como uma pintura ia ganhando vida a cada pincelada.
Tantas matizes para formar um quadro.
Tantas percepções para formar um caráter.
Ed percebeu que Rodrigo o decifrava em seu silêncio e se inquietou. Por falta de costume da situação,
esquivou-se:
- Porque não... oras!
- Mas é tão bom... – e as mulatinhas sorriram por saberem-se donas da circunstância.
- Isso é você quem diz! – ponderou Eduardo – Assim como alguns gostam de jiló, outros não. Entenda isso!
Não estou te criticando, mas é que para mim, na minha cabeça isso é errado.
- Como se fosse algo proibido? – Rodrigo quis saber, com um ar de malícia rodeando os lábios perfeitos.
- Lógico!
- Mas se é proibido é mais gostoso.
- Se é proibido é porque não é correto! – Ed bateu na cama ensandecido – pois isso vai contra tudo o que é
moral! A sociedade condena! A igreja condena!
Porque lutava?
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Sentia-se um imbecil por tentar levar adiante um papel que não lhe fora dado para interpretar.
- Oras, caros Eduardo, a sociedade e igreja são mais fortes do que a vontade pessoal, não é mesmo? – Rodrigo
subia o tom da voz sem perceber – E o que acontece com o livre arbítrio? O que acontece comigo quando eu
quero ser feliz e não posso por causa dos outros que acham que isso não está correto? O que acontece com
minha vida, minha liberdade de escolha, quando quero ser quem eu sou e gostar de todas as coisas que gosto,
mas não sou permitido fazer isso sem me achar um monstro, só porque os outros acham que isso não pode
ser?
- Puxa... olha Rodrigo, eu não quis colocar as coisas desse jeito... – Dudú desculpou-se – mas veja... tá escrito
na Bíblia! – e acrescentou sem pensar – É pecado!
Uma onda de calor varreu o corpo de Rodrigo, que avermelhou de tal modo que parecia que ia derreter. Saltou
da cama e começou a andar de um lado para outro.
Ouvir aquilo lhe fizera mal.
Algo como palavras em chamas entrando na cabeça e fazendo um incêndio de puro ódio.
- Pecado??? Pecado??? – Rodrigo gritava muito vermelho e soltando gotículas de saliva para todos os lados – E
quanto ao crime que a sociedade e a igreja cometem? Sim, pois eu considero um crime uma pessoa ter que se
anular para poder viver... aliás... a pessoa que se anula nem tem vida pois está sempre infeliz e desgostosa
com tudo! E sabe o que essa pessoa faz então? Começa a criticar os outros só porque eles não têm medo de
tentar buscar a felicidade! Eu acho que quem tanto critica e desdenha é porque bem na verdade queria era
estar fazendo a mesma coisa!!! – ele respirava rápido – Pecado??!! Eu já te digo o que é pecado!!!
E Rodrigo parou.
Bufava em contorção extrema de seus músculos da face e pescoço. Fitava Ed com os olhos injetados de
indignação. De dedo em riste, começou a fazer o discurso novamente.
- É isso o que sua queridinha sociedade faz! É isso o que sua adorada igreja faz! Mas EU é que não vou me
anular nunca! – e batia com força no peito tentando matar o dragão que cuspia ódio – Podem fazer o que
quiserem de mim! Podem me excluir da sociedade, podem me alienar, podem me excomungar de todas as
igrejas e templos do mundo, que mesmo assim minha cabeça vai estar erguida, pois eu sou o que sou e não há
crime nisso!
Olhou bem para Eduardo, cuja pele alva refletia o evidente espanto pelo rompante ensandecido de Rodrigo:
- Deus é maior que as intrigas dos homens. Se Deus perdoa branco e preto, se perdoa gordo e magro, se
perdoa hetero porque não iria perdoar homo??? Deus é pai! Ele tem perdão até de quem é ruim!!! Por dentro
somos todos iguais, mas só poucos assumem tudo o que sentem. Todos nós somos iguais! Você é normal, eu
sou normal! Você tem defeitos e eu também! O que muda é a capacidade de amar!
- Rodrigo, eu acho... – Eduardo tentava se desculpar. Mas não tinha jeito.
- Tá!!! – gritou o rapaz enlouquecido – Acontece que eu consigo amar outro homem, e daí? Cadê o erro nisso?
- Rodrigo eu... – Ed se viu chocado com a reação do amigo. Tentava acalmá-lo.
- Não Eduardo – e o rapaz lhe dava de dedo – Eu não escutei isso nem dos meus pais, porque vou ter que
escutar de você? Se é para eles que devo prestar contas, porque devo me importar com o resto do mundo e...
- Porque se importa então? – Eduardo interrompeu.
- É que... é que... – de repente toda eloqüência se foi. As palavras haviam se trancado em seu recanto mágico
e tudo o que os rapazes escutavam era o vento lá fora.
Rodrigo passou a mão pelas costas de Edú. Deslizou-a tão suavemente e com tanta ternura que ondas de calor
penetraram pelos poros de Eduardo, que recebeu o gesto de carinho sem achar aquilo uma “viadagem”.
- Você curte música eletrônica? – indagou Rodrigo.
- Claro! Na verdade eu gosto de todo tipo de música, contanto que não seja pagode ou sertaneja... o resto tá
valendo!
- Ok! O que acha desse CD? – Rodrigo levantou-se e ligou o rádio. Colocou um CD, apertou play e em instantes
o quarto estava inundado por um ritmo eletrônico alucinante.
- Uau! – Ed exclamou em êxtase – Que tesão de música!!!
Rodrigo sentou-se na cama e olhou para os lábios de Eduardo. Chegou um pouco mais pra perto do garoto e
indagou:
- Tá afim de ir num lugar onde só toca esse tipo de som?
Eduardo, começando a ofegar e sentir o seu sangue ferver de excitação quis saber:
- GrooveLandS?
.....
- Filho, como é lá dentro? – Sônia indagou assim que viu Ed entrar em casa. Estava pintando as unhas e deixou
tudo de lado para sondar informações sobre a grande casa onde Rodrigo morava.
- Normal mãe – o rapaz respondeu com descaso e já ia saindo de perto.
- Eduardo! – a mulher gralhou – Não faça isso com a sua mãe!!! – e levando a mão à testa, Sônia fez “a cena”
– Você sabe que eu morro de curiosidade para saber qualquer coisa que seja daquela casa, então não me seja
ingrato! Você viu os pais do Rodrigo?
- Não mãe, eu ainda não os vi!
- Que pena... – a mãe de Eduardo lamentou-se, inconsolável – ...mas perguntou alguma coisa para esclarecer o
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mistério?
Eduardo então resolveu contar o que sabia.
- Perguntei sim mãe.
- E não me disse nada???
- É que esqueci e não tive tempo, mas deixa que eu conto...
E Eduardo contou desde como era o quarto de Rodrigo, com seus troféus e medalhas até sobre o que faziam os
pais dele.
- Mas nossa! – exclamou a mãe toda feliz, concluindo – Então esse Rodrigo é uma ótima companhia!
No cursinho Eduardo rabiscava uma fórmula na carteira em plena aula de química, sabia a fórmula de cor, mas
tê-la fácil para visualização lhe causava maior segurança. Acabava de virar a página da apostila com os
exercícios da aula em questão, quando um bilhete miúdo chegou na sua carteira. Era um bilhete de Fábio:
Cara, você anda muito estranho ultimamente... caso você não tenha percebido, a sua blusa tá do avesso! Você
não é disso. O que tem acontecido? Tá precisando conversar? Algo aconteceu naquele rolo da Camila?
Seguinte: esse final de semana vai rolar uma festa tecno numa fazenda perto de São José dos Pinhais, tá afim
de ir? Vai estar cheio de gatinhas... de repente é bom para desvirtuar um pouco da Camila, já que vocês estão
nesse rolo... a gente se fala no intervalo!
Ed olhou para o amigo Fábio que ficara observando a leitura do bilhete o tempo inteiro. Sentiu-se reconfortado
de um mal que não existia e sorriu como quem diz “ok, a gente conversa depois!”.
Realmente Fábio era um dos únicos pontos que ele tinha para se firmar e não estava afim de perdê-lo de jeito
nenhum. Por essa razão Eduardo decidira que não iria contar nada para o amigo.
A certeza veio rápida como um raio na mente de Edú e incendiou seu interior. Sentindo a chama se espalhar
por seu corpo, Eduardo não se conteve e exclamou:
- Meu Deus!!! Eu sou GAY!!!
.....
Assim que tocou o sinal Eduardo desceu com Fábio para o pátio.
- Puxa cara... o que está acontecendo?
- Não é nada... – Ed ainda tinha sua certeza de não revelar nada ao amigo. Ainda mais agora que sabia de que
lado do muro estava.
- Nunca é nada pra você! – Fábio reclamou pela falta de confiança do outro rapaz, colocou a mão no bolso,
pegou duas balas, uma para si e outra que ofereceu a Eddie – Eu estou sabendo que algo acontece, só não sei
o que é! Eduardo, eu te conheço! Não adianta esconder porque hora ou outra eu vou acabar sabendo! Anda,
desembucha logo o que acontece!
- A- acontece? Que acontece o quê! Você está é viajando!!! – Eduardo disfarçava (e muito mal).
- Nem adianta Duda! Eu sei que tem algo de errado contigo! Anda sempre pensativo e nem parece mais ser o
mesmo! Cadê toda sua concentração na aula? Você acha que eu não reparei que você está disperso?
- É??? ... puxa! – Eddie admirou-se da perspicácia do amigo – Mas o que poderia ser?
- Deixa de ser enrolão Eduardo!!! – bronqueou o outro – Isso sou eu que te pergunto!!! Mas pelo visto você vai
me enrolar até a morte e não vai me contar nada! – Fábio exclamou desistindo – Ah! E sobre a festa... tô
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sabendo que vai rolar em alguma chácara. Talvez na Chácara Paraíso, não sei, mas vai estar o bicho! – e Fábio
olhava para o amigo como alguém que tem uma bóia e pode salvar um náufrago do afogamento.
- Pois é... não vai rolar... – Eddie desculpou-se, gentilmente recusando a bóia por saber nadar – ...é que eu
prometi que ia sair com os meus pais neste final de semana.
Fábio se espantou:
- Com os seus pais??? Você vai trocar uma festa rave que vai rolar numa chácara animal por um final de
semana com os seus pais??? Eu não acredito nisso!!!
- É... é que... – e a mentira veio vindo – ...bem... você sabe, né? Ano de vestibular... pais exigentes, filhinho
que estuda um monte e não tem tempo de visitar parentes... meus pais e eu vamos visitar a parentaiada!!! –
ao dizer isso Edú deu um sorriso tão amarelo que até um palmito teria mais charme e simpatia que ele (e
mentiria com mais eficiência).
- Eduardo esta é a desculpa mais esfarrapada que eu já ouvi! – Fábio exclamou indignado. Depois de um certo
tempo, resolveu deixar quieta a história que o amigo lhe contara e concluiu – Vou fingir que engoli essa
desculpa de visitar parente, ok? Só pra não criar caso!
E Eduardo ainda tentou se defender, jurando que estava ofendido:
- Mas não é desculpa...
.....
“Oi meu diário!
Hoje já é quinta-feira e resisti bravamente! Não liguei para aquele cachorro (e nem ele ligou pra mim... snif...
snif...).
Ocupei-me todo este tempo estudando e dançando. Já tenho calos em meus pés e a sensação de chifres na
cabeça!!! Ai, se o Eduardo aprontou ele vai ver só! Ai que eu saiba que ele andou olhando para outras garotas –
ou sequer ter pensado nelas!!!”
.....
E muito bem!
Capítulo IX
Assim que Eduardo apertou a campainha, Rodrigo abriu a porta. Parecia até que
estivera de vigília no patamar interno do hall de entrada, espiando pelo olho mágico.
Estava lindo.
Usava calça de risca de giz e blusa de lã gola alta, ambas pretas. Seu cabelo arrumado
de jeito casual, jogado para trás, lhe dava um ar de menininho. Sua pele firme e
corada contribuía para este aspecto se firmar.
O seu perfume invadiu Eduardo de tal modo que o rapaz mal podia pensar.
Eddie tentou evitar e disfarçar o máximo que pôde, mas não conseguiu, sorriu de
imediato e seus olhos brilharam.
- Oi Edú! – Rodrigo cumprimentou – Oi mãe e pai do Edú! Entrem por favor.
Eduardo também estava bem arrumado e sua beleza natural era reforçada pela
sobriedade da calça social e camisa pólo que usava.
Entraram todos e depois das apresentações serem feitas, reuniram-se na sala de
jantar da casa do começo da rua.
Os Braschi de um lado e os Toledo de outro.
A conversa estava animada.
As mães de Eduardo e Rodrigo se deram muito bem. Foram com a cara uma da outra logo do princípio. Mesma
coisa com seu Antônio e Dr. Luís, só que sem a empolgação feminina. Estavam engajados em conversa séria...
crise, tempos modernos... “no nosso tempo as coisas eram diferentes...”.
A mesa da sala de jantar estava muito bem servida e bonita. Os talheres de prata brilhavam com a luz
amarelada do imponente lustre de cristal que pendia do teto exatamente em cima da mesa. Havia dois tipos de
vinho no baldinho de com água gelada.
Rodrigo bebia largamente e soltava risadas enquanto se infiltrava na “conversa dos adultos”, dando palpite
aqui, palpite ali.
.....
Lá pelas quatro horas da manhã, Eduardo estava apertado e precisava usar o banheiro. Saiu da pista de dança,
onde estava dançando com Rodrigo e seus amigos e passou por um bando de garotas. Todas olharam
espantadas para ele e cochicharam entre si:
- Gente, eu não acredito! É o menino do cursinho! – uma das meninas cutucou a outra, de cabelos cor de fogo.
- Jesus!!! Ele é gay!!! – esta comentou.
- Que desperdício... – disse a que havia cutucado a ruiva, levando a mão à boca.
- Nem me fale! – disse uma japonesa.
- Coitada da namorada dele... será que imagina por onde anda o amado dela?
- Ele tem namorada? – todas se espantaram.
- Tem! – disse a ruiva.
- Ave Maria! Que cretino!
- Pode ser que ele não seja gay... ele tem namorada, ué! – disse uma garota mais gordinha e de bochechas
vermelhas.
- Se ele não fosse gay, o que estaria fazendo aqui? – quis saber a japonesa.
- A mesma coisa que nós, e nem por isso somos lésbicas! – respondeu em tom de defesa uma clubber que
estava na rodinha.
- Talvez ele esteja aqui com a namorada.
- É verdade! Ou vai ver ele é fashion!!! – concluiu uma loira.
Ao chegar no banheiro, Duda constatou que ele estava lotado. Resolvera então usar os do terceiro andar. Ao
subir as escadas, uma mão o puxou pelo braço:
- Eduardo???
Ele era o que ele era e nem por isso era má pessoa. Continuava a ser o mesmo Eduardo, que gostava das
mesmas coisas, que fazia tudo o que sempre fizera, que sempre tirou as notas boas, que sempre fez por onde.
Era o Eduardo solícito e querido da mãe, era o homem do pai.
Camila andava de um lado para o outro no quarto. Não estava conseguindo dormir. A luz da lua que entrava
em feixe pela janela, chegava entrecortada pelas folhas das árvores e se refletia pelo chão e no lençol,
repartida em milhares de gotas. Esta luz azulada emprestava um tom etéreo à pele de Camila, que parecia uma
estátua de mármore.
Já era tão tarde da noite e a garota era puro fantasma vagando.
Excomungava na penumbra:
- Diabos! Ai dele! Ai dele se ele estiver me aprontando alguma. Ele vai ver só!
E batia os pés no chão veementemente.
Seu sexto sentido lhe dava a certeza de que Eduardo não estava dormindo.
E nem estava em casa.
.....
- O jantar foi delicioso, não foi? – comentou dona Sônia, pendurando o casaco no cabide enquanto seu Antônio
se preparava para dormir.
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- Sim, os Toledo são gente muito agradável! – o homem concordava, abotoando o pijama e rumando para o
banheiro.
- Ai, estou tão feliz que finalmente conseguimos conhecer nossos vizinhos. Eu e Sílvia parecemos amigas de
anos!
- Nosso filho também ficou bem amigo do filho deles – seu Antônio observou.
- Formidável né? – disse a mulher, desmanchando o penteado na frente do espelho.
O pai de Eduardo lavava o rosto e analisava a face diante da pia. Pegou a escova de dentes, passou o creme
dental e comentou:
- São rapazes saudáveis, espertos, bonitos e gaudérios. Ambos têm temperamento e caráter sólido, podem ser
amigos para o resto da vida.
- Que ótimo! – comentou Sônia, muito feliz, retirando a maquiagem com o removedor líquido embebido no
disco de algodão – Tomara que vá longe mesmo!
Seu Antônio anuiu com um gemido.
Não podia falar porque estava a escovar os dentes.
Apenas escutou a mulher comentar:
- Ah! Eu vou precisar do seu cartão de crédito amanhã querido... vou no shopping comprar um lindo brinco,
cheio de brilhantinhos. Quero que tenha suporte dourado. Uma jóia.
O marido revirou os olhos, cuspiu na pia e indagou:
- Para que outro brinco? Você tem milhares deles!
- Não é para mim, é para Camila! – a mulher se explicou.
- Camila?
- Sim, ela estará de aniversário semana que vem.
- Ah é? – fez o homem preparando o gargarejo.
- É!
- Âhn... então tá... – Antônio resmungou, entendendo. E botou o líquido de gargarejo de uma só vez na boca,
como alguém que toma uma dose de tequila.
Capítulo IX
Já era segunda feira e Eduardo prestava atenção à aula, que muito lhe
interessava.
Foi quando um bilhete chegou em sua carteira:
“Oi Edú,
Se cuida, hein?
Ass: Fábio”
Eduardo sentiu um alívio na alma. Viu o quanto fora injusto com o amigo. Com o Fábio, que era o seu único e
verdadeiro companheiro, aquele que conquistara por ser especial.
Não poderia jogar fora uma amizade tão sincera como esta.
Suspirou e sorriu.
Devolveu o bilhete:
Quando subiram de volta para a sala de aula, Eduardo pegou a apostila. Um papelzinho caiu de dentro.
Havia caminhado um bom bocado até então para simplesmente não se dar conta que seria um fracassado se
desistisse do que queria.
Rodrigo colocou o telefone no gancho. Mal podia acreditar. Eduardo correspondia o sentimento sem sombra de
dúvidas, acabara de comprovar!
Levantou-se da cama e rumou para a cozinha. Pegou uma garrafa de champanhe que estava na geladeira e
abriu. Comemorava a vitória. Conquistara um rapaz maravilhoso em todos os sentidos. Eduardo era prêmio de
ouro.
Rodrigo também era.
Antes de tomar um gole da borbulhante champanhe, brindou:
- À você, meu amor.
.....
No outro dia, quando voltava do cursinho, Eduardo perdia-se em pensamentos dentro do ônibus. Tinha certeza
que Rodrigo o amava. Então porque diabos o rapaz não se aproximava dele? Afinal, era mais experiente nessas
coisas, seria muito mais descomplicado se Rodrigo tomasse a iniciativa...
Ou será que Ed estava só pirando? Será que Rodrigo queria só amizade?
Na cabeça de Eduardo, essas questões causavam grande dúvida que acabava virando angústia. Como queria
Rodrigo... o modo com que sentia o frio na barriga ao pensar no outro rapaz era estranho. Mas era bom.
Rodrigo continuou:
- Eu gosto muito de você! Tanto que às vezes eu até me sufoco só por estar em sua presença e não poder fazer
nada! Você não imagina a vontade que eu tenho de lhe tocar, de lhe fazer o bem. E acabo em desespero, pois
nada posso fazer, não posso forçar nada, não posso quebrar suas barreiras. Me faz bem estar com você, mas
me faz tanto mal não poder beijá-lo, nem tocá-lo e nem demonstrar todo o carinho que eu sinto por você.
- Rodrigo, eu... – Eduardo sentiu felicidade sem tamanho, queria falar, mas o outro rapaz impedia. Prosseguia
falando e dando a maior bandeira de seu desequilíbrio emocional, sua insegurança.
- Quando você fala Eduardo, sua voz me deixa hipnotizado! É seu cabelo, sua pele, seu caráter... é tudo isso
somado, isso me faz te querer tão bem, isso me faz te querer tanto! Isso me faz te amar desesperadamente.
- Go, eu...
- O que Eduardo? – o outro indagou, na defensiva.
Os pais de Rodrigo ouviam a discussão. Imaginavam o que se passava com os Braschi. Claro que
compreendiam o desespero. Sempre havia um choque.
Ao abrir a porta do hall de entrada, Camila sentiu o coração palpitar mais forte de tanta alegria, mas conteve-
se, tinha sentido muita saudade neste período em que estiveram sem se encontrar, mas não queria dar o braço
à torcer. Engoliu toda a felicidade, ruminou-a e a devolveu para a boca apenas transformada em branda
simpatia:
- Oi Dú, que bom que você veio. Já não agüentava mais todo mundo perguntando por onde você andava.
- Oi Camila! Feliz aniversário! – entregou o presente da namorada, dando-lhe um leve beijo nos lábios.
- Entra logo, a festa tá ótima! Tá quase todo mundo aqui.
- Que bom! – o rapaz olhou em volta e constatou que a casa de Camila estava cheia de gente conhecida,
repleta de amigos do colegial, várias pessoas da família e também amigos de Suzana. Tinha até algumas
pessoas que Eduardo não fazia nem idéia de quem fossem.
Todos os cantos da casa estavam cheios e o ambiente festivo entontecia o garoto. Sabia que o que viera fazer
ali era meio sujo e sentiu-se como um lobo vestindo pele de ovelhas a passear pelo rebanho.
- Camila, eu preciso falar com você...
- Agora não Eduardo... – respondeu a garota, ajeitando a presilha de strass que estava meio frouxa no cabelo.
- Mas Camila, a gente precisa conversar...
- Agora não Eduardo!
O rapaz irritou-se:
- Lembra que você combinou comigo que não ia falar até nosso trato acabar, bem, está quase acabado. O
prazo vence daqui a pouco, quando der meia-noite já vai ser outro dia, faltam minutos! Que diferença faz?
- Faz toda a diferença! – disse Camila apertando o pacote de presente contra o colo – Eu sou uma mulher de
princípios!
O rapaz suspirou de tristeza e olhou bem fundo nos olhos da namorada.
- Se você fosse ia notar que estou me sentindo mal e que eu preciso conversar com você. Uma pessoa de
princípios não iria ignorar isso jamais.
Camila fez um muxoxo, e exclamou deixando-se vencer:
- Ok! Certo, você tem razão.Vamos lá! Me conta.
- A-aqui?
- Que há de errado?
- Mas aqui tá cheio de gente, estamos no meio de uma festa. Eu quero falar com você num local mais
reservado.
A garota suspirou pesarosa. Pegou o namorado pela mão e levou-o até o jardim do quintal. Sentou-se no
pesado balanço de ferro branco e os elos da corrente de aço se fizeram ranger brevemente. A noite estava fria,
porém o céu estava pipocado de estrelas cintilantes.
- Como o céu está lindo – o rapaz exclamou.
- É, está mesmo, mas parece que vai chover.
- Não creio que isso aconteça.
- Também acho que é pouco provável, mas quando consultamos a metereologia nos informaram que por volta
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da uma da manhã o céu ia ficar nublado e podia chover. Por isso não fizemos a festa aqui fora.
- Ah, entendi.
- Todo cuidado é pouco.
Eduardo desviou os olhos do céu e mirou a garota. Abaixou-se nos seus joelhos e sentou-se no chão, perto
dela.
Não havia lua no céu.
- E então? – a garota indagou.
- Lembra que você me fez jurar que íamos contar um pro outro qualquer coisa que ocorresse durante o tempo
em que não nos estivéssemos falando?
- Lembro, claro.
- E você me fez prometer que ia ser sincero, que ia contar toda a verdade?
- Sim Eduardo, eu lembro. Fui eu quem propôs isso tudo.
- Pois então... – o rapaz ficou mudo. Ao fundo ouvia-se apenas as vozes abafadas e a música da festa,
chegando suavemente até o jardim.
- Então o que Dú? Você andou aprontando alguma coisa?
- Não... – ele ficou quieto. Depois olhou para um canto do jardim e falou – quero dizer, sim... mais ou menos!
- Mais ou menos? Como se apronta mais ou menos?
- Deixa-me explicar. Não foi nada planejado! Simplesmente aconteceu! Eu conheci uma pessoa...
Brusca e secamente Camila interrompeu:
- Você quer dizer que você ficou com outra garota?
- Não. Eu não fiquei com outra garota, mas eu estou te deixando...
- Você está me deixando? Você quer acabar comigo e tem a audácia de me dizer que não ficou com uma
sirigaita qualquer por aí?
- Já te falei Camila. Não conheci garota alguma.
- Ah é? E o que ocorreu? Quer fazer o favor de me explicar, porque eu sinceramente não sei como uma
pessoa...
Eduardo interrompeu o discurso:
- Eu fiquei com um garoto!
.....
Rodrigo andava de um lado para outro.
- Tomara que aquele moleque não apronte nada!
- Eduardo? – Sílvia perguntou, olhando para o filho enquanto derramava conhaque nos copos de uma bandeja.
- Claro! Eduardo, quem mais?
- Porque essa preocupação?
- Simplesmente porque ele é um cabeça dura, tem um gênio terrível! Ele tá na festa de Camila, e sendo do
jeito que ele é, é bem capaz que a esta hora já tenha contado tudo para ela! A esta hora a aniversariante tá
chorando de desgosto porque perdeu o namorado para um homem!
- Bobagem! – disse a mulher, que levava a bandeja com drinks aos amigos na sala de estar – O que há de ser,
será! Tente não parecer tão nervoso e venha para a sala comigo. Afinal, são os seus sogros que estão lá!
.....
- Garoto? – Camila perguntou, sussurrando, depois de uma eternidade de silêncio.
- Sim...
- Você ficou com um... um... – e uma expressão de nojo, misturada com indignação estampou-se na cara da
menina. Sua boca franzida cuspiu – como você pôde?
- Eu... eu não planejei nada disso, eu não entendia direito o que eu sentia. Não tive controle algum sobre a
situação...
A garota bateu uma mão contra a outra, como quem diz “eureka”.
- Por isso que nunca quis transar comigo! Você era gay desde o princípio!
- Não Camila, eu não...
- Oras... não me venha com essa! Você estava me usando como fachada! Um namoro de conveniência para
você!
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- Não Camila! Não pense isso! Jamais faria...
- Não te ocorreu durante nenhum momento que eu poderia me magoar? Eu também tenho sentimentos!
- Camila, eu já disse, eu não planejei nada disso. Mas, talvez você esteja com razão. Talvez tenha sido por isso
que nunca demonstrei vontade de transar com você...
- Ahá! Taí, eu sabia! Viu só?
- Mas para falar a verdade, eu também não tinha vontade de transar com ninguém mais! Nem com mulher,
nem com homem.
- Ah, tá! Como se eu fosse um cachorro com problema mental! Você acha que eu vou engolir essa história?
- Camila, por favor, é a verdade! Você me fez jurar que ia te contar a verdade, você sabe o quanto eu odeio
mentiras e falsidades. Você me conhece muito bem. Eu não tinha idéia. Eu não tinha mesmo. Nunca parei para
pensar nisso... até que conheci Rodrigo. Ele me fez entender várias coisas que antes não faziam sentido para
mim... e agora fazem. Eu precisava disso. Eu estava precisando me encontrar.
- Eduardo, você está me dizendo então que você virou gay? Que você não era, mas virou?
- Entenda como quiser Camila, você é esperta o suficiente para saber que eu não estou brincando. Você tem o
poder de decidir agora, se quer ser minha amiga ou quer que eu suma da sua vida... pois tudo o que eu sei é
que não posso mais ser seu namorado. Não posso fingir agora ter um sentimento diferente do que realmente
tenho. Eu ia estar mentindo e te enganando, e o pior, me enganando. Diga-me, como poderíamos ser felizes
deste jeito?
Para Camila, a imagem do namorado, sentado aos seus pés, com a face perturbada pelo medo de simples
palavras, a fez o comparar com a imagem de algum mártir. E de tal forma isso a sensibilizou.
Passou um longo tempo pensando. Sua cabeça era como as águas de um rio, que iam rolando os seixos,
tirando-os do lugar, mas de certa forma os moldando de maneira natural. Por fim, sorriu:
- Meu Eduardo... você está certo.
O rapaz voltou sua cabeça em direção à garota. Ouviu as palavras saírem de seus lábios pintados com cor de
rosa pétala:
- Pensando bem, não poderíamos ser felizes tendo um namoro de mentira, não é verdade? Agora eu entendo.
Tudo faz sentido para mim.
- Faz mesmo?
- Faz sim. Mas não vou negar que estou magoada, que estou triste. Se você tivesse descoberto antes, mais
cedo, como outros rapazes que conheço, como o Fábio, por exemplo...
Eduardo se espantou:
- Fábio? Você sabia que ele era?
- Sabia sim.
- E porque não me contou?
- Bem, a Suzana o viu na boate, sabe como ela é, né? Vive atrás de novidades e essas coisas. Resolveu um dia
ir num lugar gay e lá estava o Fábio beijando um outro rapaz. Logicamente Suzana me contou, mas achei
melhor não tocar no assunto contigo, pois ele era seu melhor amigo e pensei que de repente, você fosse
rejeitá-lo por isso e estragar uma amizade de anos... e eu... bem, eu achei que não tinha esse direito.
- Entendo... – fez Ed reconhecendo o valor da garota. Mesmo Camila sabendo que Fábio não aprovava o
namoro entre os dois, ela permanecera calada e jamais pensara em abalar essa amizade.
- É verdade. Não tinha esse direito assim como não tenho direito de te rejeitar agora e estragar a possibilidade
de sermos amigos verdadeiros. Mas ainda lamento que você não tenha se definido antes de me conhecer, iria
me poupar de muita coisa...
- Puxa, desculpa...
- Mas nem dá nada! O que importa é que tivemos tempos muito bons juntos.
- É verdade! Isso eu não posso negar.
- Estou feliz que reconheça.
- E eu estou feliz que você me aceite e me entenda.
.....
- Eu acho que já me acostumei com isso! – exclamou Antônio, todo pensativo, bebendo o quinto copo de
conhaque.
- Você acha? – o pai de Rodrigo quis saber.
- Sim, claro! – olhou para o resto da bebida no copo, como se refletisse – Não é tão ruim assim...
- Sim, não há nada de ruim, o seu filho é um garoto normal e...
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- Filho? Quem tá falando de filho? Eu tô é falando do conhaque!
.....
Eduardo e Camila se abraçaram fortemente, selando um pacto de amizade. A garota beijou docemente a face
lívida de Edú e convidou:
- Vamos voltar para a festa?
- Vamos!
Ao entrarem em casa, de mãos dadas e tudo, Suzana veio logo perguntando:
- Ai... que bonitinhos!!! Quero saber, se acertaram?
- Sim – Camila respondeu prontamente – nós somos ótimos amigos.
- Como assim?
- Significa que somos apenas amigos... o namoro chegou ao fim.
Camila puxou o garoto pelo braço e ao passar perto de uma garota que dançava com um primo distante,
comentou:
- Olha só que vestido lindo!
Eduardo olhou para a ex-namorada com um ar de “tá me estranhando?”.
.....
Eduardo saiu da festa com alívio em sua alma. Parecia que agora sim, tinha passado a última pendência a
limpo. Estava livre de verdade.
Quando entrou no táxi, pediu para o motorista andar sem pressa. Queria admirar a paisagem urbana, reparar a
cena noturna que se desenrolava na madrugada curitibana. Estava tão perdido em pensamentos que nem
reparou quando o motorista parou na frente da rua onde morava.
- Pronto! Aqui estamos.
- Hein? – o rapaz despertou de seus devaneios.
- Jovem, você está bem? – perguntou o senhor de cabelos grisalhos, com uma mão no volante e outra no
estofado do banco do carona, demonstrando real interesse em saber o que se passava por debaixo das feições
do garoto.
- Estou bem sim, obrigado.
- Sabe, costumo ser um ótimo ouvinte, acho que eu devia montar o primeiro táxi com consultório psicológico,
pois sempre levei jeito para a coisa...
Eduardo riu e agradeceu:
- Muito obrigado, mas eu não tenho nada não, é só um pouco de cansaço com excitação.
- Hum – ponderou o motorista – que estranha combinação!
- É né? – concordou o rapaz que pagou o taxista e desceu do veículo. Enquanto seguia o rumo de casa, olhou
para a janela da família Toledo, as luzes estavam acesas – puxa... já passa das duas da manhã... o que será
que... ah! Deixa para lá!
Ao passar pelo portão da sua casa, Eduardo parou e contemplou o céu.
Estava nublado.
Mas ele sabia que acima das nuvens as estrelas brilhavam belas como nunca.
Ao entrar em casa, pé por pé para não fazer barulho e acordar os pais, o rapaz subiu as escadas como um gato
que se esgueira elegante porém silenciosamente pela noite. Assim que acendeu a luz do banheiro, reparou pelo
espelho que a porta do quarto dos pais estava entreaberta, coisa totalmente fora do comum, uma vez que seus
pais dormiam com a porta fechada sempre.
Resolveu investigar.
Ao meter a cabeça pela fresta da porta, apurou o ouvido para detectar a respiração dos pais que supostamente
deveriam estar dormindo.
Nada. Silêncio absoluto.
Acendeu a luz do quarto e constatou que ali não havia ninguém.
- Ué... onde será que eles estão? – indagou sussurrante e coçando a cabeça.
Apagou a luz do quarto e desceu as escadas. Procurou no andar de baixo em vão. Saiu para a rua para verificar
se o carro estava na garagem. Estava. Aquilo era estranho... o rapaz já ia voltando para dentro de casa quando
lembrou-se das luzes na casa de Rodrigo. Será que os pais estavam lá?
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Delicadamente foi se curvando e beijou os lábios do garoto adormecido. O toque daquela boca quente contra a
dele era tudo o que havia de revitalizante na face da Terra.
- Hein? – fez Rodrigo, despertando confuso.
- Sou eu – disse o garoto, passando a mão pelos cabelos macios do namorado e acariciando a sua testa com os
lábios.
- Edu? – indagou Digo, que instantaneamente sorriu, iluminando ainda mais a escuridão do recinto. Com voz
doce e calma perguntou enquanto pegava na mão de Eddie – O que você faz aqui seu louco?
- Meus pais estão aqui com os seus.
- Ainda? – o rapaz se espantou.
- É. De se estranhar, não é verdade?
- É mesmo.
- Seus pais não tinham que estar trabalhando a essa hora?
- Deviam sim, mas acho que se não foram antes, é porque vão pegar o turno das quatro da manhã.
- Ah... e eles podem fazer isso?
- Podem, mas eles têm que supervisionar estagiários caso ocorra alguma falha no boletim horário de outro
médico. Tipo um quebra galho amistoso que deixa todo mundo feliz.
- Ah... Entendi! E você? Porque não tá lá com eles?
- Eu estava, mas logo me descartaram da conversa. Seu pai ficou conversando com o meu e a mesma coisa
ocorreu com nossas mães. Daí eu até pensei em dar uma volta para esfriar a cabeça. Meu garoto, você não
sabe a pilha de nervos que eu tava, mas acabei resolvendo mesmo dormir. Demorei a pregar os olhos. Eu acho
que só consegui pegar no sono faz uma hora, por aí. Estava muito preocupado contigo.
- Comigo? – fez Eduardo estranhando – Porque?
- Porque você estava na casa da sua namorada! Achei que ia armar algum barraco. E não vem que não tem,
que do jeito que você é teimoso era bem capaz de fazer um sururu mesmo.
- Ah é?
- É! Tava com um baita medo que você aprontasse e algo ruim acontecesse com você.
- Pois fique tranqüilo que eu não aprontei nada.
- Sério?
- Verdade. Mas também eu não pude ficar quieto. Eu a levei para um lugar calmo, justamente para evitar
confusão e contei tudo pra ela. Não foi fácil. Disse a ela que eu não podia mais namorá-la porque havia
conhecido outra pessoa.
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- Sério? E ela?
- Ela achou ruim, lógico. Ainda mais quando soube que eu a estava deixando por um garoto. Qualquer um ia
pirar. Mas sabe o que é inacreditável? É que no final das contas ela aceitou. Acho que entendeu tudo. Voltamos
para a festa e ficamos como amigos. Todos souberam que a gente acabou, mas ninguém percebeu nada de
ruim no ar e nem desconfiaram o porquê.
- Uau... isso é incrível, você é demais!
Rodrigo foi de encontro ao pescoço de Eduardo e beijou suavemente. Depois beijou a face e arrastou os lábios
para o ouvido do garoto e sussurrou:
- Quer ver uma coisa?...
Capítulo final -
O sinal para o intervalo acabara de tocar e toda a turma do cursinho levantou-se afoita, acotovelando-se rumo
às escadarias que levavam ao pátio. Fábio esperou Eduardo sair:
- Me conta o que aconteceu! Aquele dia no telefone fiquei super curioso. Queria saber mais, mas achei melhor
esperar um telefonema seu, já que você tava acompanhado e eu não queria atrapalhar...
- Ah, deixe de besteira. Ele foi embora logo depois. Mas o que aconteceu foi que eu chutei o balde em casa.
- Oras, mas disso eu já sabia. Muito me faria gosto se você contasse detalhes, seu mané! Como foi que
aconteceu?
- Pensei que Rodrigo já tinha te contado...
- Contou, mas foi só por cima...
- Certo... bem, primeiro a gente tava falando no telefone, eu e o Rodrigo. Eu tinha sentido uma atração por ele
desde o primeiro momento em que o tinha visto e gostava de conversar com ele, gostava da presença dele, por
mais perturbadora que fosse. E então, a cada visita ou telefonema, íamos ficando cada vez mais íntimos, e
nessa conversa surgiu um clima tão grande, que quando me dei conta a gente tava se beijando!
- Affe! Mas como?
- Sei lá! Ele desligou o telefone na minha cara e veio correndo rua abaixo. Alguma coisa me fez fazer o mesmo.
- Você fez o mesmo? Parece coisa de cinema! E o beijo?
- No meio da rua! Luz do sol e tudo mais!!!
- Jesus amado... sério?
- Sério, e minha mãe viu tudo!
Fábio estava pasmo:
- Imagino a cara dela!
- É, a coitada empacotou. Sei que depois, lá estava eu, Rodrigo e a mãe dele ajudando a acordar minha mãe no
chão. Jogamos água nela, e a levamos para a cozinha. Ela tremia tanto que parecia ser feita de Maria Mole.
Tive que dar água com açúcar... e ela só conseguia falar: ai de você quando seu pai souber disso! Ai de você,
coitado do seu couro!
- Que engraçado!
- É né? Agora é engraçado, mas na hora eu senti um peso na consciência... tava com a maior pena dela. Mas
também eu não estava arrependido. Se pensar bem, foi até legal!
- Sim, sair do armário pode ser legal...
- Eu sei. Um alívio!
- É, mas pode ser traumático também. Cara, você teve muita sorte que seus pais não tenham te rejeitado.
Acontece bastante e você ia passar a maior barra.
- Você acha mesmo? Acha que meus pais iam me jogar na rua?
- Bem... acontece, né?
- Puxa! Ainda bem que não foi o meu caso, cheguei até a agradecer aos céus por isso... mas, e você?
- Que tem eu?
- Seu pai... ele sabe de você?
- Sabe, mas finge que não sabe. Eu não contei, mas também não escondo. Eu deixo revistas espalhadas,
cartas, bilhetes que ganho de paqueras... e quando o telefone toca para mim, só tem macho do outro lado da
linha. Bobo meu pai não é, mas acho que prefere não ter certeza absoluta... mas se um dia ele perguntar, eu
falo mesmo.
- Eu acho que ele ia levar numa boa.
- Eu também. Se duvidar ele é do babado também.
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- Sério? Você acha?
- Bem, eu não boto minha mão no fogo por ninguém. Até você, que era meu amigo mais hetero, é da
irmandade...
Os dois riram. Eduardo sentiu novamente como era boa a sua amizade com Fábio. Fazia tempo que queria isso
de volta.
- Eu falei para a Camila. Abri mesmo o jogo e acabamos o namoro.
- Bem, no mínimo...
- Mas foi tudo tão legal. No princípio ela estava arredia e eu entendo isso, mas depois se mostrou tão boa.
Nunca pensei que receberia tamanha receptividade da parte dela. Achei que ela ia me tratar feito lixo, mas era
uma coisa que eu precisava fazer. De qualquer modo, deu certo.
- Deu mesmo. Tô te falando que parece até coisa de filme, que tudo dá certo para o mocinho da história...
- É, só que no final do meu filme, não tem casamento com a mocinha...
Fábio fez careta e botou a língua para fora:
- Ui! Fora racha!!!
.....
O som da boate fazia os corpos saltitarem felizes. Tudo era mágica no ambiente da GrooveLandS. Fábio
esperava por Rodrigo e Eduardo numa mesa. Olhava para o relógio com certa impaciência. Onde será que
aqueles dois tinham se metido?
Finalmente, depois de quarenta minutos, o casal apareceu:
- Oi, tá faz tempo aí?
- Pior! Tomei um chá de cadeira que não tem tamanho!
- Puxa, desculpa, é que a gente tava na fila da chapelaria.
- Porque não guardaram as coisas no carro?
- É que a gente veio de táxi hoje.
- Ah, ok. Agora já foi mesmo, né?
- Puxa, desculpa – Ed tentou acalmar o amigo.
- Nem dá nada! Vamos curtir!
.....
Sentado no meio fio, bem em frente ao portão de casa, Eduardo esperava Rodrigo sair da casa do começo da
rua. Assim que avistou o namorado vindo em sua direção, começou a cantarolar:
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Rodrigo vinha caminhando com seu sorriso perfeito estampado no rosto. A canção que Ed entoava chegava-lhe
muito gostosa ao ouvido, trazida pela delicada brisa.
Eduardo observava Rodrigo, que já estava sentando ao seu lado. Foi a vez de Rodrigo cantar:
Assim que terminou de cantar, deu um beijo tão forte em Ed que esse chegou a se inclinar para o lado.
Sorriram.
.....
Assim que a aula começou e todos estavam em seus devidos lugares, Carlos cutucou o colega do lado e disse:
- Olhe bem estas fotos e passe para o lado.
Rumores se faziam ouvir enquanto as fotos iam passando de mão em mão.
Dentro de pouco tempo, já havia uma multidão que olhava para Eduardo. Alguns balançavam a cabeça
reprovando, outros davam um risinho cínico. Poucos olhavam apenas, sem reação alguma.
Ed não estava entendendo nada e ainda indagou para si mesmo em sussurro:
- O que está acontecendo? Será que eu tô cagado?
Não demorou muito tempo, uma foto veio parae em suas mãos.
E lá estavam ele e Rodrigo, abraçados, um de face para o outro, quase se beijando na pista de dança da
Groovelands.
Eddie ficou branco feito fantasma.
Ouviu o bombar de seu coração tão alto que podia até ficar surdo.
Enquanto todos ao redor começavam a falar cada vez mais alto e comentar, uma das fotografias veio para
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Fábio. Ao constatar que a coisa podia ficar feia para Eduardo, lançou mão do celular e ligou para Rodrigo:
- Cara, vem para cá pro cursinho agora!
- Fábio? Mas o que aconteceu? Eu não posso ir agora, eu estou...
- Meu, não me interessa o que você tá fazendo! O Eduardo vai precisar de você aqui. Já tá todo mundo
sabendo. Alguém tirou fotos de vocês e espalhou pela turma.
- E cadê o meu Eddie?
Fábio olhou para o amigo, que estava muito branco e com a respiração acelerada.
- Rodrigo, vem para cá AGORA!
Desligou o celular e levantou da carteira:
- De quem são essas fotos?
- Do Eduardo, oras! – respondeu Carlos, três fileiras adiante.
- Seu merda! Quem tirou essas fotos?
Nesse instante o professor interveio:
- O que está acontecendo? Que fotos são essas?
A sala inteira ficou em silêncio.
O professor pediu:
- Passem essas fotos para cá. Todas.
Os alunos obedeceram.
Assim que conferiu de que se tratava, olhou para Eduardo e comentou:
- Filho, acho que você não devia ter trazido fotos suas e do seu namorado para a sala de aula. O amor de vocês
pode ser lindo, mas guarde isso para você ou pelo menos espere a hora do intervalo para compartilhar sua
felicidade com os colegas. Após o sinal, venha pegar essas fotos comigo. Antes disso, concentre-se nos seus
estudos.
E a aula teve curso “normal”. Pelo menos aparentemente, porque a mais intrincada trama de bilhetes fluiu
pelas carteiras. Todo mundo comentava, todo mundo opinava.
Eduardo não parava de receber bilhetes contendo “veado” “bicha louca” “boiola” e até um “você é um gatinho”,
provavelmente de um gay enrustido. Ficou totalmente aturdido e já não atinava com nada.
Não ouvia o que o professor falava, não distinguia o que via, não reconhecia faces, não respirava mais.
Os colegas que o cercavam perceberam que ele não estava nada bem e resolveram ajudar. Quando os bilhetes
chegavam neles, simplesmente não os passavam para Edú. Rasgavam, amassavam e guardavam em suas
malas.
De algum modo, essa atitude deu um pouco de ânimo à Eduardo, que se sentiu protegido pela barreira
humana, e mais que isso, pela demonstração de humanidade.
- Ninguém tem nada com isso – lhe disse a colega do lado direito.
- É, ninguém tem nada a ver com isso – disse o garoto da carteira esquerda, dando um tapinha amistoso no
ombro de Edú, que não pode deixar de notar a nódoa de suor debaixo do braço do rapaz. Ele estava tão
nervoso quanto Eddie. Talvez tomar parte dessa luta não fosse fácil para ninguém. Ao parar de passar bilhetes,
o garoto tinha tomado seu partido e perante o resto da classe era “pró-boiolas”.
.....
Rodrigo dirigia a toda velocidade, passando velozmente por radares e o escambau. A única coisa que lhe
importava no momento era ter Eduardo a salvo em seus braços.
Cruzava o coração com o indicador e beijava a ponta do dedo cada vez que fazia isso, desejando que nada de
ruim acontecesse.
Chegou feito louco na portaria do cursinho e pediu para entrar:
- Você é aluno?
- Não.
- É parente de aluno?
Digo parou para pensar. Não ganharia nada dizendo a verdade.
- Sou irmão de Eduardo Braschi.
- Mostre sua identidade.
- Ok – meteu a mão no bolso, tirou a carteira e já ia abrindo quando o cara falou que não precisava mostrar
nada.
- Ok.
- Entre e vá para a diretoria, diga à secretária mandar alguém buscar seu irmão.
- Muito obrigado.
E Rodrigo seguiu para a diretoria. Pediu por Eduardo.
- Faltam apenas quinze minutos para acabar a aula – disse a loirinha simpática – Eu posso mandar alguém
avisá-lo que você está aqui, mas ele só vai poder sair depois que der o sinal.
- Não tem mesmo como falar com ele antes? É muito urgente.
- Eu gostaria muito de ajudá-lo, mas tenho que seguir essas normas.
- Eu entendo.
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Rodrigo só disse que entendia porque faltavam apenas quinze minutos. Se tivesse que esperar mais do que isso
já teria derrubado a porta da sala de aula e arrancado o namorado de lá em seus braços.
.....
Quando o sinal tocou, o professor disse:
- Você rapaz, venha pegar suas fotos e vá para fora. O resto da turma, aguarde um pouquinho mais.
Eduardo levantou e caminhou para o enorme tablado. Sentia o olhar de todos como dedos de ferro em brasa
sobre sua pele. Mas foi com a cabeça erguida. Preferiu fazer isso do que se deixar montar por todo aquele
sentimento besta de superioridade que lhe dirigiam. A vida de Henrique era triste. Não queria a mesma coisa
para ele.
Subiu no tablado e o professor lhe entregou as fotos, e até o envelope com os negativos, que alguém havia
passado também, o que deixou Clara e Carlos totalmente furiosos.
- Pronto, agora, pode ir para seu intervalo.
Eduardo cruzou a enorme sala de aula, ainda sob os olhares da galera. Ele ainda pôde ouvir uma voz chorosa
reclamar:
- Droga! Ele é tão gato...
Tão logo Dú saiu da sala, o professor começou:
- O que vocês acham que estavam fazendo?
Silêncio.
- Eu sei muito bem que ele não trouxe aquelas fotos. E também sei que ele não gostou nada do que aconteceu
aqui. Vocês deviam ter muita vergonha do que fizeram, seja lá quem foi que fez essa maldade. Só quero dizer
que orientação sexual é algo particular. O que cada um faz ou deixa de fazer é problema pessoal. Aquele
garoto, mesmo sendo “doente”, como todos vocês acham que é, jamais faria isso com nenhum de vocês,
sabem porque? Porque ele é gente! Ele é humano. Não é igual ao monstro que tirou essas fotos.
Silêncio total.
- Só um monstro faria isso. Uma pessoa sem valor. E com muita, muita inveja daquele garoto. Porque quem
está contente e seguro, não vai se incomodar com a vida dos outros, a não ser que esse outro esteja ocupando
um lugar que de repente... a gente queria estar. Então, para quem armou isso, tente se resolver antes de
machucar um rapaz que não tem nada a ver com sua mente pequena e com sua vidinha medíocre.
Algumas pessoas concordaram.
Henrique sorria.
Fábio levantou e aplaudiu.
- Obrigado – disse o professor – Agora, vão para o intervalo, e ai de quem eu souber que andou fazendo
qualquer coisa com aquele garoto! Mas ai!
.....
Eduardo saiu da sala e rumou para o banheiro. Sua pele que já era branca por natureza, ainda estava mais
pálida do que de costume. Lavou o rosto, enxugou lentamente. O pátio já estava cheio de gente e só agora o
povo da sala dele começava a sair da sala de aula. Não demoraria muito, estaria rodeado por sabe-se lá que
tipo de pessoa. Sentou-se debaixo do grande cedro na área da cantina. O vento fresco e a sombra estavam lhe
fazendo bem. Seu pulso já se normalizava.
- Eddie!
- Rodrigo?? Que faz aqui?
- Fábio me ligou, vocês estavam em plena aula.
- Mas...
- Ele me contou o que houve.
- Foi uma droga! Horrível. Todos aqueles olhares. Tanta coisa horrível.
- É normal. Eles não entendem. Eles não sabem que a felicidade vem em medidas e formas diferentes para
cada pessoa.
- Mas isso não é felicidade...
Rodrigo mudou a expressão do rosto:
- Nunca mais diga isso de novo. Eu te amo tanto que só pensar que você existe me deixa muito feliz. Muito!
Eduardo olhou para o namorado. Como era lindo. E sempre tão verdadeiro.
Pôde sentir o carinho que a respiração dele transmitia.
- Eu queria te abraçar – Eduardo disse finalmente.
- É, eu sei. Mas olha para toda essa gente...
Fábio, que estivera à procura de Eduardo, já chegou falando:
- Rodrigo! Que bom que você já tá aqui! – sorriu e fofocou – o professor soltou o verbo na galera. Mas pisou
mesmo! Como todo mundo sabia que o Carlos que passou as fotos, enquanto o professor repreendia, ele se
encolhia cada vez mais e ia ficando vermelho, roxo, preto de vergonha. Disse que no fundo quem tinha vontade
de agarrar um homem era bem quem fez essa maldade.
- Mas eu achei que ele pensasse que as fotos eram minhas.
- Claro que não né? Ele só fez isso para te ajudar.
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- Pô, esse cara é super gente boa hein?
- Verdade. Segurou a barra legal...
Fábio foi interrompido por uma voz furiosa:
- Mas aí está a bichinha! – era Carlos, de punhos cerrados.
- E aí está o otário – disse Fábio.
- Não se mete cara! Não se mete! – já disse empurrando.
- Quem é esse mané? – Rodrigo perguntou.
- O sujeito das fotos – Fábio informou.
- Ah é??? – disse Rodrigo sorrindo e estalando a junta dos dedos.
- E você? Quem... ah! – fez Carlos, reconhecendo-o pelas fotos – Você é o namoradinho né? Outra bichinha que
eu vou ter o prazer de...
- Vai ter o prazer de que? – indagou Eduardo, levantando-se furioso e peitando Carlos.
- É, ô mané, vai ter prazer de que? – disse Rodrigo, levantando-se também, ficando ao lado de Ed.
Como os dois eram bem maiores que Carlos, ele se esquivou:
- Olha, isso não vai ficar assim...
No mesmo instante, Jorge e Marcos, os amigos de Carlos, se aproximaram do local. Vendo que reforços
chegavam, o garoto já cantou de galo:
- Você tá muito ferrado na hora da saída!
Eddie olhou para os outros dois rapazes que adentraram a rodinha, ao que Marcos continuou:
- Agora são três, contra dois!
- Três contra três – disse Fábio.
- Não – corrigiu Marcos – são cinco contra um.
Eduardo olhou com espanto o skatista com cara de mongo, aquele mesmo, que vivia pedindo as resoluções dos
exercícios. Este tinha um sorriso franco e estendia a mão para Eduardo:
- Pôrra cara! Foi muita sacanagem isso!
Rodrigo sorriu.
- Você é super gente boa – completou o rapaz.
- É sim – fez Jorge – sempre ajudou a gente. Estávamos sentindo a falta da sua companhia na turma.
- Agora a gente sabe porque você se afastou. Tinha medo que a gente descobrisse né?
- Ainda mais com todas aquelas piadinha que a gente fazia sobre veado e essas coisas.
- Ué Jorge, pensei que gente assim fazia você querer vomitar – disse Fábio.
- Ah não! Era só para eu não perder a pose diante da turma. Coisa ridícula. Mas sabe qual é? A gente perdeu
um grande amigo por causa do preconceito.
- Eu não acredito no que estou ouvindo – bradou Carlos – será que todo mundo é viado?
- Não Carlos, nem todo mundo é veado, assim como nem todo mundo é otário que nem você! – disse Marcos –
E quer saber de mais uma coisa? Some daqui cara! Some! Você foi muito cuzão!
- É! Te manca cara! – disse Fábio, que já não ia com a cara de Carlos fazia muito tempo.
Henrique chegou na roda, ao que Carlos comentou:
- Pronto! Mais um! Agora são três frutinhas!
- Não são três, são quatro – Fábio consertou.
- Quatro? – Jorge indagou.
- Claro – disse Henrique – O Fábio também é gay.
- Mas era só o que me faltava – Carlos comentou com nojo.
- Não, só o que lhe faltava era um cérebro, sua múmia paralítica! – disse Rodrigo – E tem mais: a gente já não
mandou você cascar os “buios” daqui?
- Se não gosta de mim, nem do Fábio, nem do Henrique, e se a partir de agora não gostar mais do Jorge e nem
do Marcos... não precisa nem falar conosco – deu uma pausa e falou carregado de veneno – a gente não faz
questão!
Os olhos do rapaz furioso latejavam visivelmente. Ele estava sozinho naquela guerra. E era inútil tentar. Saiu
de lá pisando firme e resmungando coisas que ninguém entendeu.
.....
- O que você acha disso? – perguntou dona Sônia ao pai de Eduardo.
- Eduardo mereceu isso! – respondeu o homem.
- É verdade – a mulher anuiu.
- E eu digo que nosso filho é de ouro.
Os dois se abraçaram, contemplando um dos vários outdoors que estampavam Eddie como primeiro lugar geral
do vestibular.
.....
- Como grávida??? – Eduardo se espantou.
- Grávida! Oras!
- Camila! Isso é muito estranho!
92
- Eu sei, mas Eduardo... depois da seca que você me deu... quando eu arranjei um namorado, não quis nem
saber, eu mandei ver mesmo!
Eduardo riu, mas logo ficou sério:
- Você gosta dele?
- Claro que sim!
- Vão se casar?
- Não, eu sou muito nova. E ademais... casamento não é para mim. Não pelo menos a essa altura da minha
vida. Nem terminei o segundo grau!
- Pois é, e ainda mais com um filho Camila... as coisas não vão ser fáceis.
- Disso eu sei, mas eu tenho o apoio da minha família. Meus pais, que eu pensei que iam me matar, nem
fizeram tanta onda assim. Lógico que teve todo aquele aporrinhamento, mas normal! – e ela riu.
- Mas embora eu ache loucura, ainda estou fascinado com a idéia de ser titio.
- Não!
- Não?
- Quero que seja padrinho. Quando batizar a criança, quero você lá como padrinho dela.
- Ah Camila! Pode deixar! Eu topo mesmo! Um dia eu vou ter meus filhos!
- Como?
- Sei lá! Partenogênese!
- Partenoquê?
Ele riu largamente até que a garota comentou:
- Não é à toa que passou no vestibular!
.....
- Sabe, um dia eu vou querer ser que nem você – disse Eduardo com a cabeça no colo de Rodrigo, enquanto
esse acariciava seus cabelos.
- Sai fora! Dois de mim não!
- Seu bobo! Eu estou falando do seu jeito de ser. Você conquista todo mundo...
- Eduardo, não me interessa conquistar todo mundo. Eu já conquistei você.
- Puxa, como a gente tá ficando cafona!
- Posso ser cafona, mas se eu estiver contigo... sinto-me o cara mais feliz do planeta.
- Ah é? Então bota a mão na minha cueca que eu tenho uma coisinha para você...
Ao que Rodrigo respondeu:
- Coisinha? Isso é uma coisona!
E foi colocando a mão por dentro da calça de Eddie, até que tirou uma caixinha da cueca do outro. Abriu e viu a
aliança.
- Você quer ser meu noivo?
- Noivo? – os olhos de Rodrigo tinha lágrimas muito brilhantes.
- Eu quero me casar com você...
E o sorriso de Diguinho iluminou o universo.
.....
- Casar Eduardo?
- É mãe. Mas isso só daqui a algum tempo. E fala baixo, que o pai ta na sala do lado e pode escutar. Não quero
que ele pense nisso agora.
- Claro! Seu pai vai ficar desconcertado. Até agora ele aceitou bem, mas acho que se souber que o filho dele
quer casar com um outro homem...
- Eu sei mãe, é difícil para vocês aceitarem, mas tenho que seguir minha natureza. Tenho que seguir meu
coração.
- Mas... como é que dois homens se casam? Como fazer convites para a igreja?
- Ah não mãe! Não digo de casamento em igreja e essas coisas mãe. Só morar junto.
- Ah bom. Isso me alivia. Não consegui imaginar nenhum de vocês usando um vestido de noiva... aliás... meu
filho... uma coisa que me encuca muito... qual de vocês dois é a... – e a mulher parou por não saber como
indagar.
- O que?
- Você sabe, é a mulher...
- Ela quer saber quem come quem! – gritou Antônio, lá de dentro.
.....
Num quarto escuro e abafado de um motel de quinta categoria, uma drag queen de maquiagem borrada e
roupa barata estava de quatro levando ferro por trás. O “bofe” a penetrava com força e xingava com gosto,
puxando a peruca, que saiu da cabeça da drag.
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Era Carlos.
.....
- Digam “x”! – Fábio pediu, enquanto apertava o controle remoto da máquina digital – temos que sair bem na
foto. Afinal festa assim é ocasião especial!
- É! Essa vai ficar para a história! – Camila comentou.
Dizendo isso, todos se abraçaram fazendo pose e o flash disparou sobre Eduardo, Rodrigo, Fábio, Camila e o
bebê em seu colo.
A de Eduardo está no porta-retrato em que Rodrigo lhe dera o seu número de telefone escrito no vidro, quando
Eddie ainda estava naquele mundo incerto.
Seriam momentos como esse, registrados belamente na memória assim como na foto, que dariam a força de
continuar a acreditar que tudo o que se precisa para ser feliz é aceitar que se pode ser feliz.
A fotografia tirada no dia do casamento dos rapazes, com os amigos reunidos, decorava a estante da sala do
apartamento em que moravam Eduardo e Rodrigo.
Fim...