Anda di halaman 1dari 93

1

Capítulo I

A Casa do Começo da Rua.

Lá estava Eduardo, sentado na mesa da copa, tremendo e babando de tão fulo que se
sentia. Raiva pura. Sabe quando bate o mau humor destampado e não tem jeito de
desamarrar a cara? Pois é, igualzinho ao que Eduardo experimentava, imprecando
sentado. E as palavras iam de “bastardo” até “diabo”.
A mãe do rapaz também estava na mesa.
Ela num canto e ele no outro.
A mulher, que beirava os cinqüenta anos, conservara muito de sua beleza juvenil e
aprendera a ser paciente também. Pelo menos disso ela poderia tirar vantagem agora,
Eduardo parecia estar impossível e ela sabia que se seu filho chegasse em casa desse
jeitinho e fosse direto sentar-se na mesa da copa como havia feito, voando feito um
furacão, passando, destruindo, arrasando e ignorando tudo pelo caminho, era sinal
evidente de que algo não estava bem. Desde pequenino ele tinha esse gênio forte.
E ela, a mãe, teria que escutar horas e horas de lamentação.
Tempestade na certa.
E o garoto bufava agora:
- Foi ele mãe!!! Foi ele!!! Foi aquele cachorro! Maldito! Ai que ódio! Juro que um dia eu ainda me vingo daquele
desgraçado! Se eu o pego de jeito... ah! Ele vai ver só! Torço o pescoço do infeliz e quero ver! – Eduardo
tremia de raiva. Tinha o rosto tão vermelho que poderia ser confundido com um veranista descuidado. Seus
braços estavam cruzados, como uma criança que faz birras, carantonhas e depois emburra – Ele implica
comigo! Arranja sempre um jeito de me arruinar o dia!
- Quem? – Perguntou Sônia, a mãe de Eduardo, lixando as unhas da mão, com a pose muito ereta, sentada do
outro lado da mesa, tentando aparentar altivez e um pouco de descaso para amenizar a situação e quem sabe
tentar deixar o problema do filho não parecer grande coisa. Armada com um estoque de paciência foi logo
indagando – O que aconteceu?
O garoto estava descontrolado, sua cólera era tamanha que não podia nem raciocinar direito. Dona Sônia
estava acostumada com as explosões de seu filho e antigamente nem dava tanta importância para os
“barracos”. Mas Eduardo andava muito estressado por causa do vestibular, então por mais fútil que fosse o
motivo da irritação, ela procurava ajudar da melhor maneira possível.
Mas sabia que não havia de ser nada de importante.
Provavelmente bobagem e pura ladainha.
Na maioria das vezes era.
Eduardo era um belo rapaz. Tinha a pele lisa e bem branca, pura culpa da falta de sol e excesso de chuva que
Curitiba costuma ter. Possuía olhos negros ladeados por pestanas longas e sobrancelhas oblíquas. Seu nariz era
do tipo normal, mas seus lábios... eram coisas de outro mundo. Naturalmente rubros e úmidos. Sem contar
seus dentes que eram perfeitos e muito brancos.
Seus cabelos contrastavam com o branco da cara, pois eram de uma coloração negra reluzente como piche e
escorriam pela testa de tão lisos que eram.
Não havia melhor moldura para uma face tão bela.
Seus traços eram delicados, porém marcantes. A barba ainda não começara a crescer e ajudara para manter
seu aspecto de menino, apesar de ter dezenove anos.
Eduardo também possuía o porte atlético. Não chegava a ser musculoso, mas era bem forte, tendo as coxas
grossas, tórax delgado com os músculos do peito desenvolvidos.
Era orgulho do papai e da mamãe e dos quatro avós.
Garoto prodígio, filho único, tocava violão, se destacava nos esportes, colecionava medalhas e troféus de
campeonatos que participara na época de colégio, sem contar que sempre fora um dos melhores alunos da
instituição tendo sempre as notas impecáveis. Tirar algo abaixo de noventa era um absurdo e motivo para
desconfiar que Eduardo estava doente.
Mas doente ele nunca ficava.
Tinha a saúde de ferro instalada em um corpo de aço.
Seu sorriso perfeito derretia corações à distância. Causava sérias emoções quando passava perto das garotas
do cursinho, lugar onde ninguém conhece ninguém e todos especulam da vida de todo mundo.
“...ouvi dizer que ele tem namorada...”, uma cochichava, “...a Fernanda já conversou com ele e contou que ele
é vesgo, mas só dá para perceber se você olhar bem de perto...”, outra dizia, “...o nome dele é Edmundo, ou
Eduardo... sei lá, algo parecido e que comece com Ed...”, ao passo que outra garota confidenciava
misteriosamente, “...eu já ouvi falarem que ele é casado, pois a minha amiga conhece um primo do amigo dele,
aquele que foi na festa da Silvana...”.
2
Comentários à parte, Eduardo era reparado, tanto pela sua beleza, quanto pela sua estatura, uma vez que
tinha um metro e oitenta e nove.
E não era vesgo.
Sabia-se notado, e por isso gostava de andar sempre arrumado. Trazia seus cabelos negros alinhados e suas
roupas impecáveis.
Não que fosse meticuloso e todo certinho como um compulsivo paranóico, isso não era, mas andar feito um
favelado estava fora de cogitação! Certa vez tentara aderir à moda grunge, meio skatista, mas não deu certo,
pois tinha que andar todo largadão e isso acabou lhe dando nos nervos.
Era bonito, era, sem dúvida alguma, mas tinha esse gênio ruim que azedava até Madre Tereza de Calcutá!
Não havia quem dobrasse esse gênio ruim de cabeça dura. Tão teimoso que era, tão peste que não adiantava
rezar nem fazer novena para o mais poderoso de todos os santos do céu que Eduardo não cedia nunca e nem
dava o braço a torcer. Ou era ficar do lado dele, ou ficar quieto. Ai de quem ousasse ir contra, arrumava dor de
cabeça na certa. Os pais sempre pegavam leve quando iam dizer alguma coisa que poderia, talvez, resultar em
chateação. Mas felizmente, o garoto respeitava muito os pais e jamais iria contra qualquer uma de suas
vontades.
Mas fora isso, quem não o conhecesse de longa data iria querer esganá-lo quando o encontrasse nesta fase
horrorosa de gênio destampado em ebulição máxima.
Mas mesmo que sua índole fosse belicosa, ele não era um rapaz ruim.
Era só o seu jeito.
No mais estava sempre de bom humor, sempre sorrindo.
Adorava o barulho da chuva caindo. Podia ficar horas na janela vendo toda a poesia que um temporal traz
consigo. Todos aqueles pingos, todos os movimentos e as gotículas achando rumo no vitral. Às vezes apenas
encostava a cabeça no parapeito e fingia que a chuva caía dentro de seu corpo e em questão de instantes em
seu interior tudo se punha a dançar.
Ficava sempre emocionado ao final dos filmes, até dos de gosto e produção duvidosos.
Era um rapaz prestativo e sem medo de trabalho. Irresponsabilidade passava a quilômetros de distância. Certa
vez até trabalhara como voluntário em pleno inverno distribuindo agasalho e comida para desabrigados.
Mas no momento... o inferno era formiga perto da revolta elefanta que o rapaz sentia.
E Eduardo seguia resmungando sentado em sua cadeira, com o sangue fervendo:
- É sempre assim... Sempre! Basta eu passar perto que isto acontece! Parece que eu fui o escolhido daquele
imbecil. Parece que eu sou a única diversão que aquele sádico tem!
Descruzou os braços e bateu com os dedos na mesa, enquanto balançava a cabeça em indignação. Xingava
com a boca cheia:
- Idiota infeliz! Que ódio! – e jogava a cabeça para trás loucamente feito um Judas sendo malhado, fazendo-se
de vítima maior do sofrimento existente na face da terra – mas ele vai ver! Um dia aquele cachorro me paga!
Ele há de ter o que merece!
- Ele quem meu filho? – a mãe insistia – É alguém do cursinho? Um garoto da sua aula de redação? É o
garoto...
Eduardo interrompeu a mãe com violência:
- Garoto? Mãe, quem falou em garoto aqui? Que garoto que nada! Eu já tô dizendo faz meia hora que foi aquele
cachorro maldito!
- Ca-ca-cachorro? – indagou a mulher, que agora estava confusa. Dona Sônia já sentia uma dorzinha de cabeça
surgindo do além. Arrumou sua postura e continuou – Que cachorro meu filho?
- Oras! – fez Eduardo, como se fosse a coisa mais óbvia do mundo – Como assim que cachorro??? – indignou-
se mais ainda o rapaz, que a esta altura já estava batendo as mãos em suas coxas de tão nervoso. Completou
– Aquele cachorro daquela casa...
Sônia interrompeu:
- Casa? Cachorro?
- Ih... embestou é? O cachorro mãe! – Eduardo admirou-se da súbita lerdeza que a mãe apresentava e foi
explicando como alguém que explica algo a uma criancinha de dois anos – Cachorro! Sabe? – e completou com
a alma carregada de ironia – também conhecido como “o melhor amigo do homem”, aquele bichinho babão que
anda com quatro patinhas, abana o rabinho e é besta pra dedéu... caninos...
Sônia ficou no ar.
Não sabia o que falar.
Pensara, na certa, que era um probleminha banal... mas não tão banal quanto um cachorro! Aliás...
– Que cachorro? – quis saber a mulher, que a esta hora já havia se esquecido totalmente de lixar as unhas e
encarava o filho com ar de intriga.
- Aquele do começo da rua – explicou Eduardo, apontando com o indicador a direção – aquele daquela casa
misteriosa – disse ele abaixando o tom de voz.
Referiu-se à casa “misteriosa” como alguém que confia segredos cabeludos. Havia um grande enigma
envolvendo a casa do começo da rua e era sempre assim que as conversas ficavam cada vez que o local se
3
tornava parte delas.
Era o seguinte: fazia tempo já, quase dez anos, que uma família mudara-se para lá, mas depois disso, ninguém
jamais viu um morador de perto. Nas raras vezes que alguém os via, faltava coragem ou assunto para
aproximações. Logo, não havia quem soubesse como eram estas pessoas, o que faziam, aonde iam e porque
sumiam.
Era verdade que eles não davam sinal de vida.
Poderia até se afirmar que o local estava vazio, se a casa não estivesse sempre bem conservada, se não
fossem as luzes acesas de noite, ocasionais aparições nas janelas e raríssimas, mas raríssimas vezes em que
alguém saía para o jardim da frente durante o dia.
Tamanha falta de sociabilidade gerava uma curiosidade geral naquela rua.
Quem seriam os moradores da casa do começo da rua?
- O cachorro daquela casa? – indagou Sônia muito pasma. Agora sua curiosidade fora aguçada... o interesse
era muito quando se tratava da casa do começo da rua.
- É! – respondeu Eduardo curto e grosso.
- Ah bom! – disse a mulher, que depois parou refletindo, franziu o cenho e comentou decepcionada – Mas...
meu filho... aquele cachorro é um pequinês!!! Um pequinês!!!
O rapaz ficou ainda mais vermelho:
- Um pequinês... um pequinês!!! – arremedou o garoto imitando a voz da mãe em tom de mofa. Depois
completou sério – É! Um pequinês que quase me atorou a perna fora! Se não fosse a minha esperteza eu tinha
morrido ali no meio da rua!!!
Dona Sônia nem respirava mais de tão impressionada que estava com o dramalhão que o filho estava
aprontando. Olhava para o rapaz – que não olhava de volta para ela.
A mulher parou com tudo e tentou imaginar a cena.
Tentava imaginar o pequinês correndo atrás do filho como um animal feroz.
Não conseguia formar essa imagem de jeito nenhum.
Achou graça até.
Finalmente sorriu e discordou do filho:
- Oras... É um cachorrinho tão bonitinho, tão pequenino que duvido que faça mal a uma mosca! – voltou a lixar
as unhas e continuou a falar incrédula – onde já se viu um pequinês causar risco de vida? Um bichinho tão
fofinho... com um focinho tão delicado, aposto que ele é tão frágil quanto um cristalzinho!
Eduardo se contorceu inteiro. Segurou-se ao máximo para não xingar a mãe, tremia tanto que fazia os bibelôs
da mesa trepidarem, quase trazendo abaixo o arranjo de flores:
- Isso é o que você pensa! – retrucava indignado – Aliás, isso é o que ele quer que vocês todos pensem! –
completava parecendo um louco – Mas a mim ele não engana! Ele já mostrou quem ele é! – e o rapaz seguia
fazendo gestos – Aquela bocarra enorme cheia de dentes! É um bicho do mal! É uma besta satânica!!!
- Nossa! – exclamou a mãe do garoto, que a esta hora já estava ficando farta de ouvir tamanhas besteiras –
Que exagero Eduardo! Que drama! Onde já se viu eu já perguntei!? Coitado do cachorrinho! – e gralhava com o
filho, até que perguntou, só para desencargo de consciência – Que mal ele te fez? Ele te mordeu?
O garoto que já ia reclamar parou com a boca aberta e dedo a caminho de ficar em riste...

Putz!

...Agora estava desarmado...


- Não... – respondeu Eduardo sem graça – mordeu não... – Passados alguns segundos acrescentou cerrando os
olhos e espremendo os lábios como se fosse um herói de guerra relatando como escapou da morte – Mas desta
vez ele passou bem perto! Faltou isso aqui só! – e aproximou o indicador do polegar deixando apenas um
vãozinho de nada, representado a distância que separou sua perna da boca trituradora do cão.
- Filho... – suspirou a mulher voltando a lidar com as unhas – só prá saber... o que você pretende fazer?
- Eu? – o rapaz indagou, pego de surpresa – Bem... eu não sei! Talvez dê veneno para ele, não sei!
O olhar fulminante da mãe sobre si fez com que Eduardo percebesse que ela não havia gostado nadinha do
comentário, o que o levou a remendar imediatamente:
- Ou... ou... talvez eu vá pedir para alguém daquela casa, bem, tem que ter alguém lá, né? Pois é, eu vou
pedir... eu vou pedir... para alguém prender o cachorro no quintal! É! Bem isso o que vou fazer!
Sorrindo, Sônia exclamou orgulhosa:
- Agora sim, esta é uma solução mais adulta!
- Pois é! – concordou Eduardo – Onde já se viu deixar uma peste como aquela solta pela rua? É um perigo!
Uma ameaça para as crianças!
- Chega Eduardo! – a paciência da mulher era muita, mas tinha limite – Chega! Se fosse um Pitbull vá lá! Mas
estamos falando de um pequinês!!! Não dá nem para pensar que um cão tão pequeno possa amedrontar um
garoto do seu porte!
O rapaz ainda tentou:
4
- Mas mãe...
- Chega eu já disse! – sem pestanejar Sônia fez o filho se calar. Aquela ladainha já extrapolara todos os limites
– Amanhã vá falar com os vizinhos e por hora não solte mais nem um piu! Suba pro seu quarto e quando o
almoço ficar pronto eu te chamo!
Eduardo, que estava pronto para dizer mais coisas em sua defesa, diante das palavras autoritárias da mãe teve
que reprimir os sutis vocábulos na boca, mastigando-os bem, misturando com a saliva e engoli-los de volta,
muito amargos e cortantes. A testa do menino franziu-se de tal modo que qualquer pessoa notaria de longe
que o rapaz lutava para não cortar os pulsos fora.
Mas por fim, calou-se a contragosto.
Como a mãe podia encarar aquele problema tão pacificamente? Que espécie de mãe seria aquela que não se
preocupava sequer se o filho fosse devorado na rua por um cão selvagem?
Levantou-se e foi para o quarto muito indignado.
Assim que entrou no quarto Eduardo atirou suas coisas em cima da cama como alguém que procura transferir a
raiva para um ponto só. Ai, se ao menos tivesse um João Bobo, poderia socá-lo até descontar tudo! Mas não
tinha e o jeito era mesmo tentar relaxar naturalmente...
Mudou de roupa.
Colocou uma calça de moletom azul e uma camiseta da mesma cor.
Gostava de se vestir à vontade para estudar. Ficava tranqüilo, em paz e mergulhava então no mundo dos livros
e apostilas.
Tirou o material da sua pasta vermelha. Tinha acabado de voltar do cursinho, e faria as tarefas do dia.
Disso pelo menos ele gostava e serviria para desviar sua cabeça da situação pela qual passava.
Eduardo queria ser médico e para tal a concorrência era muito forte.
Era obrigado a viver estudando e fazendo todas as lições da apostila, mas essa obrigação não o incomodava,
pois desde muito cedo era acostumado com estudos. Não que os pais exigissem notas impecáveis, mas ele sim
as exigia, era uma espécie de autocobrança.
Muitas vezes ele deixara de comer, dormir e até de sair para festa de amigos, só para ficar estudando.
Um pouco de neura, ele admitia, mas nada que o prejudicasse, pois sabia que no fim das contas ia valer a
pena. Estudaria com muito afinco e que os prazeres ficassem para depois! Fazia tempo que não encostava no
violão para tirar uma notinha musical sequer e sempre que se conectava à internet, gastava horas e horas
pesquisando sites de medicina, faculdades, fóruns sobre a vida acadêmica e etc... Passava longe das salas de
bate-papo que antes muito lhe faziam gosto.
.....

Eduardo crescera feliz naquela rua. Tivera muitos amigos de infância, mas todos agora já eram crescidos e não
brincavam mais. Logicamente Eduardo não queria brincar de queimada nem esconde-esconde, mas sentia que
era uma pena a turminha da rua ter se dissolvido assim que a puberdade veio alcançando todos.
Puderam perceber que estavam mudando quando as brincadeiras de “casamento atrás da porta” já não eram
tão inocentes quanto eram em tempos idos. E pouco a pouco, as meninas, que sempre amadurecem antes dos
garotos, não se permitiam mais participarem de todas as ações conjuntas da galerinha da rua.
Poderiam ainda estar amigos hoje e formar uma trupe legal, armando churrascos de fim de semana, fazendo
festas e agitando por aí.
Mas... cada um se arranjou como pôde e já não batiam um à porta do outro como antigamente para fazer
qualquer coisa, nem para conversas.
Realmente era mais uma dessas boas fases da vida que tinham se acabado.
Eduardo arrumou sua turma no colégio e no time de futebol da escola.
Desta época, sobraram apenas alguns poucos amigos e muitos apelidos em seus ombros, como Duda, Dudú,
Ed, Eddie, Dú, Edú ou o que ele mais odiava: Dado.
Essa sua turma o tinha acompanhado pelo segundo grau, até que ao término deste, todos tentaram vestibular,
inclusive Eduardo.
A maioria não obtendo êxito, entrou no cursinho.
Combinaram todos de entrar na mesma sede, para não se separarem e para poderem formar grupos de
estudos (que, diga-se de passagem, nunca chegaram a ser formados devido à falta de interesse dos colegas de
Ed).
Alguns de seus amigos do colégio antigo caíram na mesma sala que ele, e ali compartilhariam juntos mais um
ano de estudo e sofrimento. Encarar todas aquelas matérias em ritmo de cursinho e suportar toda a pressão
externa e interna não seria nada fácil!
O seu melhor amigo, Fábio, também ficara na mesma sala e com isso Eddie se alegrava, pois sabia que se
alguma vez chegasse a se abater, Fábio logo viria lhe dar uma boa injeção de ânimo. Verdade era que Fábio
andava um pouco distante, mas ainda sim Ed via no garoto um grande amigo.
Mas Eduardo até que estava indo bem.
Ficava sempre entre os cinco primeiros colocados nos provões e simulados que seu cursinho promovia. Achava
5
isso bom, mas não excelente. Sabia que se estudasse mais e mais poderia galgar os degraus dourados que
levavam ao primeiro lugar do podium.
Tinha certeza que todo sacrifício teria sua recompensa e era isso o que ele esperava por tanto empenho: passar
na UFPR, que apesar de andar capengando, ainda tinha prestígio e fazia parte do sonho de cada vestibulando
de todas as sedes de Curitiba.
Ficou revisando as matérias do dia e conferindo as da véspera enquanto o cheiro do almoço quase pronto vinha
invadindo o quarto.
Sabia que não demoraria muito e a mãe iria vir chamá-lo para almoçar, estava com uma bruta fome, mas
pensara em não descer, só para provar como era fodão, birra pura, mas já que a mãe não havia dado
importância ao fato do cachorro lhe avançar, poderia muito bem não dar importância para o almoço também!
O estômago roncou alto. Decidiu que era melhor não fazer isso.
Fechou as apostilas e ficou só aguardando.
Seus pensamentos começaram a fluir, sua imaginação era poderosa e ganhava asas até mesmo quando
Eduardo não queria.
Mas desta vez ele queria.
Estava lembrando de algo que ocorrera havia uma hora apenas e fora muito curioso.
Depois da saída do cursinho Eduardo pegou o ônibus para voltar para casa como costumava fazer todos os
dias, e estava muito tranqüilo imerso em pensamentos, quando, subitamente, percebeu um garoto o
encarando.
Encarando mesmo, na cara dura.
Olhou em volta para ver se não estava enganado, mas não estava, eram dirigidos a ele os olhares do garoto.
Que será que o rapaz queria?
Eduardo pôs-se a pensar e chegou à conclusão de que o garoto só podia mesmo era estar o confundindo com
alguém. Uma força nova vinda de não se sabe onde fez Eduardo levantar bem a cabeça e retrucar o olhar.
Talvez estivesse por demais intrigado pelo olhar perfurante e convicto do outro rapaz que quisesse descobrir
quais seriam as verdadeiras intenções por detrás dele. Estaria o garoto com vontade de lhe falar alguma coisa?
E Eduardo não desviou os olhos.
Resolveu continuar encarar o rapaz, que a esta hora, já estava sorrindo.
Sorria com certo nervosismo, mas sorria.
Eduardo achou o rapaz muito simpático, sorrindo daquele jeito, mas não sorriu de volta.

TRRRRIIIIIMMM!!!! TRRRRIIIIIMMM!!!!

Arrancado subitamente de sua lembrança, Eduardo atendeu ao telefone bem depressa:


-Alô?
-Amoooooor!!! – bradou uma voz feminina e irritantemente melada do outro lado da linha.
Era Camila, a namorada de Eduardo.
Uma garota linda. Tinha dezessete anos, cabelos loiros longos e perfumados. Sua pele era pintada por sardas
que a deixava com um ar sapeca, e seus olhos, enormes e muito azuis, contribuíam ainda mais para este
aspecto se firmar.
Seu corpo era delgado, delicado, parecendo que o mínimo toque o faria se quebrar. Era rata de academia, fazia
ginástica aeróbica e adorava todas as novidades do mundo fitness.
Não era muito alta, mas se destacava no meio das outras garotas.
Eduardo a conhecera no baile do colégio onde estudava.
Ele, já estava no segundo ano do segundo grau e tinha dezessete anos, ela ainda estava na oitava série, com
quinze anos na época.
Era um baile à fantasia.
Todo ano os formandos do terceirão promoviam um, como uma forma de despedida, e este baile, era aberto a
todas as séries a partir da sétima.
Ela estava vestida de Fada Azul, meiga, com purpurina jogada sobre os ombros e cabelos, e ele estava
fantasiado de Zumbi do Mato, com as roupas todas rasgadas, cara pálida cheia de pó, olheiras pintadas e folhas
secas grudadas nos braços e pescoço. Estava mesmo era parecendo um jagunço com anemia.
-Não acredito que você veio assim! – exclamou Fábio sorrindo – logo você, que vive todo certinho e arrumado.
Pensei que você vinha fantasiado de príncipe ou qualquer coisa do gênero, mas meu! Tua fantasia tá muito
engraçada!
-Ah... nem fala nada! – disse o rapaz que já estava se arrependendo por ter se vestido daquele jeito. Pegou na
aba da camisa de Fábio e indagou – E a sua fantasia? O que é? Me conta, porque eu não estou conseguindo
reconhecer!
-Como não??? – indignou-se Fábio.
-Bem... é um sapo?
-Que sapo o quê, Eduardo! Eu sou o Peter Pan!
6
-Ãhn... – fez Eduardo, erguendo a sombrancelha direita e meneando a cabeça como quem diz ironicamente
“Claro! É lógico que é Peter Pan, como não reconheci antes?”.
-Ah, tá! Deixa de onda! O que acontece é que nós dois estamos ridículos! Tanto você, que tá vestido de
“homem folha”, quanto eu, que estou de Peter Pan...
Eduardo bronqueou:
-Eu não sou um “homem folha”! Eu sou um zumbi do mato! E se você sabia que ia ficar ridículo com sua
fantasia porque a vestiu então?
-Simples caro amigo! – Fábio disse como se fosse algo muito evidente e ainda concluiu – É que as garotas
acham isso o máximo!
-É? – o outro rapaz indagou, adorava escutar as pirações do amigo. Cada vez que Fábio vinha com uma idéia,
Eduardo se deliciava prestando atenção.
-Claro! É lógico que elas gostam! Elas acham isso muito “fofo” – e desenhou as aspas no ar – Você vai ver só,
metade das garotas da festa vão estar caindo aos meus pés antes das nove e meia.
Ed respondeu em tom de mofa:
-Para cair aos seus pés, só dando altas doses de ponche para elas. Mas... se você diz... então tá né? Fazer o
que?
-Vai ter que se contentar com as sobras meu caro amigo – e riu de Eduardo.
-Ah tá garanhão!
Fábio parou de rir gradualmente, tocou a mão de Eduardo e disse:
-Não sei nem porque a gente tá falando disso... você sabe que sempre consegue ficar com quem você quer.
Você sabe que a gente sempre se arranja nestas festas.
-Eu sei, e eu não estou preocupado.
-Ainda bem que temos gostos bem diferentes! Assim nunca vamos brigar por conta de namorada.
-É verdade! Pelo menos isso! Tem para você, e tem para mim!
-É assim que se fala!
Eduardo fez uma cara murcha:
-É, né? Mas Fábio, acredite se quiser, eu queria estar em casa dormindo. Eu não vim aqui pra ficar agarrando
ninguém.
-Não? – o outro arregalou os olhos.
-Não!
-E porque veio então?
-Porque eu ouvi o Carlos falar que ia colocar uma parada estranha no ponche da festa. Mais um dos planos
daquele cabeça-de-vento!
-Seu podre! – Fábio disse cobrindo a boca – E você veio só para ver o povo se estrepar?
-Claro que não! Eu vim para impedir que isso aconteça – Eduardo respondeu indignado.
-E o que você vai fazer? Vai arranjar briga com ele?
-Não. Você sabe que não adianta pedir para ele não fazer porque é aí que ele faz mesmo... mas eu vou fazer o
seguinte: quando ele colocar a paradinha na bebida, eu vou lá e “sem querer” derrubo tudo no chão.
-Sério? Você vai fazer isso? – quis saber o amigo, que admirou a coragem de Eduardo – você está mesmo
disposto a pagar esse mico?
-Sim, claro, foi para isso que eu vim!
-Ai, Eduardo! Você vai ficar mais popular ainda, mas desta vez vai estar conhecido como “o rapaz que derrubou
a única bebida alcoólica da festa”!
-Nem fale!
-Não é melhor nós dois deixarmos de beber o ponche e pronto? Para que criar alarde? Os outros que bebam...
nem dá nada!
-Não, a gente não pode fazer isso! Sabe-se lá o que o Carlos vai colocar lá dentro! Imagina se alguma pessoa
tem um pirepaque? Vai que tem gente alérgica a essas coisas? Alguém pode morrer, sabia?
-Credo Eduardo! Você também hein? É o mestre da piração! Como pode ir tão longe sua cabeça? Você acha que
o Carlos ia colocar algo perigoso na bebida da festa? Ta achando que ele quer matar o colégio inteiro é?
-Não, eu espero que não! Mas seja o que for que o Carlos queira colocar lá, eu vou derrubar o ponche!
A festa continuou normal, todos dançando, até que pelo alto falante anunciaram a hora das canções lentas.
Assim que as luzes do salão se abrandaram e as músicas ficaram brandas e românticas, Ed reparou que Carlos
estava indo em direção ao grande recipiente de ponche.
Era essa a hora.
Ficou de matuto por perto. Carlos despejou o pó dentro da bebida e se retirou bem ligeiro dali. Neste mesmo
instante Eduardo rumou para a mesa feito um pé-de-vento e quando estava chegando perto do tacho, um
braço branquelo e magrinho pegou a concha de vidro e já ia mergulhando na bebida.
-Não! – gritou Eduardo.
-O que??? – a garota se assustou.
-Vo-você não pode beber isso!
7
-Não posso?
-Não.
-E porque? – indagou a garota, sem nada entender, com uma mão na concha e na outra um copinho plástico
bem fajuto.
-Oras! Porque serei eu quem vai beber! – disse o rapaz – Dá licença... – e ao terminar de dizer isso ele tomou a
concha da garota e arrancou o copo da mão dela também.
-Aaaai! – fez a garota, surpresa com o gesto de Eduardo.
-Doeu? – indagou o rapaz fazendo cara feia.
A menina armou uma cara de indignada que não tinha tamanho.
Eduardo fez que ia se servir e aproveitou para esbarrar fortemente contra o tacho, entornando todo o ponche –
na garota.
-Aaaah!!! Seu grosso!!!
-Desculpa, foi sem querer!
-Foi nada! Você derrubou o ponche de propósito!
-E-eeuuu? – Eduardo apontou para o próprio peito, com a maior cara de pau – Claro que não! Mas isso é um
abuso!
-No mínimo é! Você é um abusado! Olha só! Arruinou o meu sapato!!! Você me lavou com esse ponche!
-Desculpa... eu sou mesmo um desastrado...
-Argh! Agora já foi, seu mongo!
-Ok, tchau então!
Eduardo virou de costas e retirou-se dali.
Uma hora mais tarde as músicas lentas ainda estavam tocando, pois parecia que todos estavam curtindo –
exceto alguns poucos, que ficavam encostados pelos cantos, sentados em suas mesinhas, fazendo caras e
bocas, na esperança de que alguém viesse lhes pedir uma dança.
Eduardo andava pelo salão tentando achar o amigo Fábio. Localizou-o abraçado com uma linda garota de
cabelos negros. Dançavam ao som do suave piano.
-E não é que ele se arranjou mesmo? – Eduardo comentou para si mesmo, sorrindo e cruzando os braços – que
danado esse rapaz!
Continuou vagando por entre as pessoas até que avistou a garota do ponche largada numa mesa, apoiando a
cabeça numa das mãos e com a nítida expressão do tédio em sua face.
-Posso sentar? – ele perguntou.
A garota olhou para cima e reconheceu Eduardo:
-Você tá é louco? Se você sentar é bem capaz de virar a mesa em cima de mim.
-Eu prometo que não – e dizendo isto, ele sentou-se à mesa – eu estraguei sua noite, não estraguei?
-É... foi mesmo – disse a garota sorrindo apoiada em seus cotovelos.
-Meu nome é Eduardo. Qual é o seu?
-Camila.
-Desculpa pelo que aconteceu, tá?
-Esquece...
-Eu sou tão desastrado...
-Você é mal educado, isso sim! Se queria tomar o ponche devia ter esperado! Afinal eu havia chegado primeiro,
e mesmo que não fosse esse o caso... eu sou uma dama! Tinha preferência na fila!
Eduardo achou graça e sorriu.
Mal ela sabia que ele a salvara de algo que ninguém, a não ser Carlos podia prever.
-É! Eu sou mesmo um mal educado.
Camila sorriu de volta.
Acabaram se beijando e arrancando comentários por todas as partes, pois sem querer, Eduardo era o garoto
mais cobiçado do colégio, e ela, era a menina mais desejada de seu pavilhão.
Desde aquele dia ficaram juntos.
Já se iam bem uns dois anos de namoro. E tudo parecia estar bem...
-Camila? – indagou Eduardo, ainda meio confuso, segurando o telefone bem próximo ao ouvido.
-Lógico que sou eu né Eduardo! Quem mais poderia ser? Se eu disse “oi amor” só posso ser eu né? – exclamou
a namorada irritada, do outro lado da linha, como se fosse a coisa mais óbvia do mundo – Eduardo... –
continuou ela desconfiada – ...tem mais alguém te chamando de amor???
-Não, é claro que não! – respondeu Eduardo mais que depressa, pois qualquer que fosse a técnica usada para
evitar ladainhas, essa era logo aplicada com muita felicidade pelo rapaz que detestava as crises e churumelas
da namorada – Tem ninguém me chamando de amor não.
A voz da garota se animou:
-Então tá bom!
Ele ficou mudo esperando a namorada continuar tagarelando. Não precisou ficar parado muito tempo.
-Me conta, como foi no cursinho hoje?
8
-Foi normal, o mesmo de sempre... – disse Eduardo com desinteresse.
-Ah... nada de novo? Nenhuma novidade?
-Não... nada.
-Nada mesmo? – a garota insistiu.
A namorada ligava todos os dias.
Detalhe: várias vezes.
E queria novidades sempre!
Aquilo já estava enchendo o saco de Eduardo de tal modo que não sabia mais como iria agüentar. Se havia
uma coisa que ele não gostava era de chicletes grudados nos seus pés, atrapalhando os movimentos.
-Não... não tenho novidade nenhu... – ele interrompeu a frase e voltou a falar, desta vez em tom de fofoca –
Ah! Tenho! Tenho sim! Aconteceu uma coisa estranha hoje no ônibus.
-Então conta! – suplicou a namorada já super curiosa.
-Pois é! Eu tava voltando prá casa, e no ônibus tinha um cara me encarando...
-Te encarando? – indagou Camila interrompendo a narração – Como assim? Ele queria brigar?
-Não Camila, acho que brigar era o que ele menos queria fazer... – respondeu Eduardo, ficando vermelho e
meio sem jeito (ainda bem que a namorada não o podia ver agora) – ...ele estava me encarando... de outro
modo!
-Que outro modo? – quis saber a namorada.
-Sabe... ele me olhava... do jeito que um garoto olha prá uma garota... do jeito que uma garota encara um
garoto... sabe?
-E... – fez Camila que precisava de mais informações pois aquelas ainda não bastavam para tirar nenhuma
conclusão.
-E... ele tava me paquerando! – finalizou Eduardo, agora, totalmente sem graça por ter que verbalizar o que
antes dizia sutilmente.
Agora a menina estava passada!
-Te paquerando??? Tem certeza??? – queria saber, muito pasma.
-Tenho!
-Não! Vai ver que era engano. Vai ver que ele tava olhando para outra pessoa, ou te confundiu com alguém
que ele conhec...
Eduardo interrompeu calmamente:
-Não, não foi engano nenhum. Deixa eu contar o resto.
-Vai logo! – Camila pediu impacientemente.
-Pois é, ele estava me encarando muito, ali, com o ônibus cheio de gente...
-E você? – Camila interrompeu novamente.
-Eu o quê? – quis saber Eduardo.
-O que você fez?
-Eu?
-É! – exclamou – Você!
-Nada! – concluiu naturalmente.
-Nada? – decepcionou-se a namorada – Porque simplesmente não catou ele na porrada?
-Camila – irritou-se o rapaz – você vai deixar eu terminar de contar a história ou não?
-Desculpa... – amuou-se a garota.
-Pois bem, o ônibus já estava entrando no bairro, quando eu vi que ele tirou um papel do bolso e escreveu
alguma coisa nele. Até aí tudo bem, só que antes de descer, ele veio e entregou o papel para mim, sorrindo!
-Sorrindo?
-É! Ele tava sorrindo de canto de boca! Você não acha sorriso de canto de boca algo estranho? Eu posso
garantir que aquele rapaz sabia muito bem o que tava fazendo. Me entregou o papel com a maior cara de pau!
-E você?
-Eu? – perguntou Eduardo e depois concluiu logicamente – Eu peguei o papel!
-E ele?
-Desceu do ônibus, ué! Não disse que ele tinha apertado o botão de parada?
-Não.
-Puxa... tá, mas o caso é que ele desceu do ônibus. Virou-se para trás para ver minha cara e tudo mais!
-E o que estava escrito no papel? – perguntou Camila roendo-se de curiosidade.
-O nome e o telefone dele.
-Mas que sem vergonha!!! Que bicha descarada!!! Dando em cima do meu namorado, assim! Em plena luz do
dia!!! Isso é revoltan... – a garota parou de gralhar de repente e indagou – e você por acaso guardou o papel?
Eduardo, tentando fazer a voz natural, como se o fato não significasse nada para ele, respondeu:
-Guardei.
-Cadê? Pega lá e me dá o número que eu vou ligar e descer a boca nele, onde é que já se viu? Vou dizer que
você já tem dona! E que é muito do meu!
9
-Ok, ta no bolso da minha calça jeans... peraí que eu vou pegar... – levantou-se da cama e foi em direção à
calça que estava jogada a um canto do chão, vasculhou os bolsos até que encontrou o bilhete. Voltou para o
telefone:
-Tá aqui! – e leu o que estava escrito, mundando apenas o final do telefone, para a garota não conseguir ligar –
“Ligue para mim, 793- 5436, Tiago”.
Terminando de ler, dobrou o papel e guardou no meio da apostila.
-Logicamente você não vai ligar, né? – Camila quis saber.
-É claro que não! Até parece!!! – irritou-se o namorado.
-Como é que ele era?
-Como assim?
-Ele era bonito? – quis saber Camila.
-E eu vou lá achar homem bonito? – indignou-se Duda.
Ao mesmo tempo lembrou-se da cara de Tiago. O modo alinhado de se vestir e o seu porte. Era bonito sim,
mas nunca ele, Eduardo, iria admitir isso a ninguém.
-Que mal tem nisso? Um homem pode achar outro bonito sim! – exclamou a garota.
-É Camila!!! Isso eu já percebi! Tanto pode achar, como achou e veio me cantando!
-Pois é! Um descaramento... mas espera aí que eu vou ligar lá!
-Ok – concordou o rapaz, sabendo que ela não conseguiria.
Eduardo colocou o fone no gancho, nem bem passado um minuto, a namorada liga de volta:
-Não tem ninguém lá com nome de Tiago.
-Bom, vai ver que ele deu um nome falso – o rapaz comentou para dar mais veracidade à omissão de
informações.
-Não, porque disseram que nem morava garoto nenhum lá. O casal só teve filhas mulheres.
-Puxa, então ele só tava afim de tirar com a minha cara!
-Viu só Eduardo? Eu bem sabia que não devia de ser um gay te cantando, você é macho e eles sabem quando
podem ou não avançar o sinal. Realmente, ele só devia estar mesmo zoando!
-Verdade.
-Bem, mas então deixa eu contar...
A garota ainda falava quando a mãe de Eduardo o chamou para almoçar.
-Amor, tenho que desligar, tá? Minha mãe tá me chamando, o almoço já tá pronto. Depois eu te ligo, ok?
-Ok!
-Um beijo!
-Outro.
.....

Na mesa da cozinha, lugar onde geralmente a família Braschi almoçava, a conversa girava em torno de
Eduardo.
Como sempre.
Talvez para fazer graça, a mãe de Eduardo mudou o rumo da conversa que levavam, comentando em tom de
troça:
-Pois é... seu filho agora deu para ter medo de cachorrinhos... – comentou dona Sônia para o pai de Eduardo,
seu Antônio – diz ele, que o cachorro da vizinha quase arrancou a perna dele fora...
Eduardo olhou para a mulher com uma cara de “pára mãe!”, ao que o pai do rapaz comentou:
-Bem, confesso que até eu ficaria com medo se aquele monstro viesse para cima de mim – disse o pai
defendendo o rapaz – me passe o arroz, sim? – pediu o simpático homem à mulher, que alcançou a travessa
com arroz para o marido que acrescentou – mas eu pensei que os Souza mantivessem aquela fera presa no
canil...
-Ah não! Não! – exclamou a mãe de Eduardo – Não é o cachorro dos Souza! É o cachorro da casa do começo da
rua – corrigiu e depois acrescentou no mesmo tom de voz que Eduardo usou para referir-se ao local – aquela
casa, onde parece que não mora ninguém...
O marido entendeu:
-Aaahhhh... o cachorro daquela casa! – e voltou a comer. Depois de certo tempo, parou com os talheres no
prato, num momento de reflexão e exclamou – Mas aquele é um pequinês!!!
-É disso que estou falando! – continuou a mulher – Nosso filho tem medo daquele cachorrinho.
Seu Antônio olhou para o filho. Indagou:
-Isso é verdade?
-Não... – esquivou-se Eduardo – não é bem assim... é só que... que... aquele cachorro me avança sempre.
Cada vez que eu passo na frente do portão, ele vem e me avança. Não tem uma única que vez isso não
aconteça. É perigoso, não acha? Ele pode ter raiva, me morder...
-Aquele cachorrinho?
-É... – confirmou Eduardo totalmente sem jeito.
10
-Impossível! – exclamou o pai totalmente incrédulo – Ele é bem cuidado. Não se parece em nada com um cão
de rua, que pode ter doenças e tudo mais. Aposto que tem todas as vacinas em dia! E não é nada feroz.
Sempre que vou e volto das minhas caminhadas diárias pelo bairro eu passo ali e o bichinho até me abana o
rabo, tão belo cãozinho! Ele vem todo contente pedir agrados...
-Mas pai... é verdade o que lhe conto! – defendeu-se o garoto – Ele gosta de todo mundo, menos de mim!
-Filho... – disse o pai sério – ...você anda tomando drogas?
O pai de Eduardo era um senhor de cinqüenta e quatro anos, mas ainda com a aparência muito jovem.
Costumava caminhar todos os dias depois que voltava do trabalho.
Ele era sócio-presidente de uma empresa de arquitetura que não ficava muito longe do bairro onde moravam.
Por isso sempre vinha almoçar em casa e depois voltava para o serviço.
Não era liberal de todo, mas também não era muito severo, cobrava apenas os bons valores morais que todos
os pais cobram dos filhos.
Era simpático, sim, mas somente porque sua feição italiana lhe dava a simpatia plástica. Em seu interior a coisa
devia ser lapidada e seu coração conquistado para poder se mostrar dócil.
Costumava dar liberdade para Eduardo e Sônia agirem do jeito que bem entendessem, mas se fizessem alguma
coisa errada... se andassem fora da linha... bem... eles que arcassem com as conseqüências depois.
Mas era um homem com o coração imenso e bondoso.
Detestava injustiça e se orgulhava de ter passado muitas das suas características “marcantes” para o filho. Se
Eddie cortava o joelho, era ele que sentia a dor e o garoto tinha que confortá-lo dizendo: não foi nada pai! É só
um arranhãozinho à toa! Já passa, ta vendo?
Antônio conhecia bem as pessoas a sua volta.
Bastava olhar para elas para saber se algo ia bem ou não. Muitas vezes seu sentido materno era mais aguçado
que o paterno. E cada vez que o filho aparecia com uma atitude diferente, uma faceta meio desconhecida, ou
apresentava uma idéia diferente do comum, seu Antônio logo lhe perguntava se ele estava tomando drogas.
Eduardo já estava habituado a toda esta cena:
-Não pai... eu não estou tomando drogas... – respondeu o garoto, revirando os olhos, respirando fundo e
rodando a comida com o garfo de um lado para o outro no prato.
-Então – disse o homem, que cortava um bife, deixando grãos de arroz besuntados com molho caírem na
toalha sob os olhares da mulher que teve ímpetos de gritar “minha toalha que acabei de lavar!” – meu filho, de
onde você tirou a idéia de que aquele cachorro poderia te atacar?
-Olha pai, eu não tirei a idéia de lugar nenhum. Aquele cachorro avança em mim e pronto! Se não querem
acreditar, não acreditem!
-Ah... tá! – concordou a mãe, que juntou os grãos de arroz da toalha e recolocou no prato do marido.
Para mudar de assunto, ela indagou:
-Quem era no telefone?
-Quem poderia ser? – retrucou Eduardo tendo certeza de que a mãe sabia e muito bem quem era.
-Camila, né?
-É!
-E o que ela queria?
-Nada. Só queria saber das novidades.
-E de onde ela quer que você as tire? – indagou a mãe, que apesar de gostar muito da namorada do filho e
achá-la um doce de pessoa, não sabia porque a garota ligava tantas vezes todos os dias.
-Boa pergunta mãe.
-De onde vocês tanto tiram assunto? – quis saber o pai.
-E quem disse que eu tiro assunto de algum lugar? Eu quase nem falo. Acho que ela confunde telefone com
microfone, porque cata o aparelho e fala, fala, fala. Aquela menina parece que engoliu um rádio, sei lá... –
respondeu o filho.
-Não fale assim de sua namorada – o pai advertiu.
-Não é por mal pai...
-Você bem sabe o gênio “bom” que ele tem, né? – Sônia tentou ajudar o filho e ainda acrescentou, apontando
para o prato do garoto – Eduardo Braschi, pare de brincar com a comida!
O rapaz revirou os olhos novamente:
-De qualquer modo, eu disse que ligava para ela depois...
-Sei... – concluiu o homem, que já terminava de comer.
Assim que todos almoçaram, Antônio foi para a sala e Sônia ficou arrumando a cozinha. Eduardo subiu as
escadarias e se jogou na cama.
Ficou olhando para o teto durante um bom tempo.
Se concentrou tanto no nada que chegou a sentir-se capaz de levitar.
Se pudesse, o faria. Iria voando para longe, esfriar a cabeça.
Não estava afim de ver nem falar com ninguém.
Não era de descumprir palavras, mas não queria telefonar para Camila.
11
E não o fez.
Não ligou.
Nem para Camila, nem para Tiago.
Eram seis e meia da manhã e Eduardo já estava de pé e pronto para ir pro cursinho. Tinha que levantar cedo e
pegar o ônibus, pois o pai não o levava, uma vez que a empresa onde trabalhava ficava no bairro vizinho e em
direção oposta.
Mas Eduardo nem ligava, já estava acostumado com esta rotina.
Desde que fizera treze anos andava de ônibus para cima e para baixo. Melhor assim, aprendera a se virar e
saber ser menos dependente dos pais no quesito “deslocamento”. Sabia o nome das ruas da cidade de cor e
salteado e jamais se perdia. Quando a mãe ou o pai precisava achar alguma localidade, pediam à Eduardo se
ele não podia ir junto.
Logicamente Eduardo queria ter o seu próprio carro.
O pai já havia prometido um para quando ele completasse dezoito anos, mas o garoto recusou. Disse que
queria que fosse um presente por algo bom que ele fizesse, e não apenas por uma data. O pai achou estranho,
mas concordou.
Ficou combinado que o garoto ganharia o carro se passasse no vestibular da Federal, e desde então o garoto
tinha um motivo a mais para continuar estudando com tanto afinco. Cumpria seus deveres com severidade.
E lá estava Eduardo, em frente ao espelho do seu quarto, mirando-se para ver se a roupa estava legal. Usava
uma calça jeans que valorizava as formas das pernas e deixava a bunda marcada, uma camiseta preta justa e
tênis preto.
Bem normal, porém, insinuante.
Rumou para o banheiro, iria escovar os dentes e arrumar o cabelo. Olhou para o espelho e fez uma careta.
Enquanto escovava os dentes, organizava seus horários do dia como se fossem tópicos em uma mesa de
reunião.
Iria para o cursinho... ia ficar pelo centro durante à tarde e à noite estudaria as matérias. Tirou vantagem por
ser sexta-feira e as matérias serem fáceis. Além do mais, se não terminasse de estudá-las, poderia continuar
no dia seguinte pela manhã.
Ajeitou o cabelo e saiu pro corredor.
Deu de cara com um vulto vindo em sua direção, todo de branco, com cara de buldogue, cabelos desgrenhados
e andar de morto-vivo.
-Bom dia mãe! – cumprimentou o rapaz.
-Hum... – balbuciou a mulher, que estava com muito sono para responder qualquer coisa que fosse.
-Nossa! Parece que tá de ressaca!
-Hum... – fez ela novamente meia zumbi.
-Bem... hoje vou ficar de tarde no cursinho. Se você for para o centro, eu vou almoçar no mesmo local de
sempre. Se quiser passa lá. Mas deixa eu ir, senão chego atrasado! Vem cá me dá um beijo!
Avançou para a mãe e a beijou na face com tanta rapidez, que a mulher quase tombou para trás. Eduardo
correu para o quarto, pegou a mala do cursinho e voou escadaria abaixo. Não quis nem tomar café da manhã.
Comeria algo na hora do intervalo maior.
Ao sair para a rua, constatou que caía uma garoa finíssima, mas não quis voltar para se agasalhar nem pegar
guarda-chuva. A garoa era comum nesta época do ano em Curitiba e logo iria passar.
Para chegar no ponto de ônibus Eddie subia a rua e depois virava à esquerda.
Pelo menos esta vantagem ele tinha. Não precisava correr feito louco para alcançar o veículo, pois a parada
ficava quase em frente da sua rua. Mas se perdesse esse ônibus não precisava nem entrar em pânico, pois
naquele horário passava um atrás do outro de maneira que ficava difícil chegar atrasado.
.....

Dentro do ônibus, que ia lotado de trabalhadores já a esta hora, Eduardo mergulhava em pensamentos
novamente. Devaneava com facilidade incrível e estava a pensar se o garoto do bilhete, o Tiago, estaria no
ônibus de novo, ao voltar para casa.
Se estivesse, o que faria Eduardo?
Qual seria a reação dele ao vê-lo?
Ah não, não iria vê-lo hoje, pois ia ficar pelo centro mesmo... mas... e nos resto dos dias? Com certeza iria vê-
lo algum outro dia por aí... e o que faria?
Não conseguia formular plano algum.
Não saberia se seria capaz de reação qualquer.
O que diria à Camila? Ela iria perguntar na certa se Tiago voltou no mesmo ônibus que o namorado. Sim, tinha
este detalhe.
A namorada.
Eduardo não sabia explicar ao certo o que estava acontecendo, mas começara a sentir repulsa pela namorada
havia já uns três meses. Não se conformava de sentir isso, pois gostava muito dela, mas o caso é que ele não
12
suportava mais ouvir a sua voz, sentir o cheiro do perfume que ela usava e ter que agüentar a sua presença,
grudada o tempo inteiro cada vez que se encontravam.
Sem contar nos inúmeros telefonemas, que obviamente irritavam-no de tal modo que só faltava explodir!

Estava deixando de amá-la.

Sentia-se culpado por isso, pois não havia nada que a garota tivesse feito de errado para ele ter o sentimento
diminuído. Ela não tinha nenhum defeito grave para ele por a culpa em cima. Ficaria tudo tão mais simples se
ela tivesse cometido algum deslize.
E nada tirava de seus ombros a sensação de que ele estava errado, de que ele era ruim e que estava sendo
egoísta.
Acabar o namoro?
É lógico que ele já pensara nisso milhares de vezes nestes últimos meses, mas... apenas pensara. Não sabia
nem como expôr esta idéia para Camila, pois tinha certeza, que a menor sombra do que ele planejava para a
relação, a garota sucumbiria. Sabia que a namorada gostava muito dele e que crime maior não poderia ser feito
contra uma pessoa tão boa, só por causa de um sentimento que ele nem sabia de onde estava vindo.
Um sentimento que ele devia tentar ignorar...
...mas não conseguia.
Era bem mais forte.
Por mais que Eduardo gostasse de Camila, ele jamais conseguiria retribuir tanto afeto do modo que ela queria.
Não poderia oferecer mais que afeto fraterno. E fora assim desde o princípio do namoro. Considerava-a sua
melhor amiga, uma pessoa formidável a quem ele sempre poderia recorrer.
Nunca se excitara ao beijá-la.
Beijava-a apenas por imitação, como uma criança se habitua a brincar de casinha por considerar que é esse o
exemplo certo a seguir.
Nunca tivera vontade de transar com ela, o que era estranho demais para um garoto da sua idade.
Camila já havia tentado de todos os jeitos chegar nos “finalmentes” com o namorado, mas ele sempre a
impedia e dizia que tinha que ir embora, tinha que ir ao banheiro, desconversava... e essas atitudes
preocupavam demais a garota. Agora ele estava usando o vestibular como desculpa.
-Não posso te ver, tenho que estudar...
Ou:
-Não posso ficar mais Camila, ainda tenho os exercícios da apostila para completar...
E assim ia. Mas e depois?
E depois do vestibular?
Que desculpa viria? Que artifício usaria para evitá-la como vinha fazendo durante todo esse tempo?

Um dia, bem um mês antes de fazerem um ano de namoro, Camila encheu-se e cobrou:
-Por que isso Eduardo?
-Por que isso o quê? – perguntou ele de volta com cara de santo, fingindo-se de besta surda, muda e cega.
-Você sabe muito bem! – disse a namorada, muito séria. Camila olhava para o garoto como um delegado de
polícia olha um marginal – Não é de agora que eu percebo que você evita!
-E-evito? – gaguejou nervoso.
-É! – desembestou Camila – Você evita me tocar, evita continuar carícias... quando tudo está no bem bom...
quando tá esquentando... você me afasta ou se afasta, sei lá!!! Porra Edú! – a garota explodiu – quero saber
porque você evita transar comigo!
-E-eu? – e apontou para si mesmo.
-Bem o senhor! – dizia ela dando de dedo no focinho do rapaz – Eduardo, nós já temos quase um ano de
namoro... e você até agora... nada! – e bateu uma mão na outra para concluir – Puxa! Eu tenho necessidades
também!!!
O garoto ficou mudo.
-O que é? – indagou a namorada – Qual é o problema?
-Não... não tem problema... – esquivou-se.
-Então porque até agora nada?
-Camila, você é muito nova! É uma criança ainda!
-Eu não sou mais criança! Mas mesmo assim, e daí? Eu me sinto pronta e segura. É uma coisa que eu sei que
quero fazer! – e ela passou a mão no rosto do namorado, com os olhos carregados de ternura – ainda mais
com você, que é quem eu mais amo nessa vida.
-É que... é que... – ele estava tentando achar uma desculpa convincente – ...é que eu pensei que você não
queria!!!
A garota torceu a cara, duvidando:
-Pensou que eu não queria? – deu um pausa e continuou – Impossível Eduardo, eu dava todos os sinais, só um
13
burro não ia perceber...
-É! Talvez eu seja um burro mesmo. Mas é que mulher é um bicho complicado, sabia? Nunca a gente sabe o
que vocês querem! Vocês podem dar um mísero sinal, mas que pode significar milhares de coisas... eu, por
exemplo pensei... – e desculpou-se – ...puxa, eu queria te respeitar... sabe? Perder a virgindade... é
complicado...
-Mas eu sei que eu quero! – disse a garota em verdadeira convicção – Eu quero fazer isso com você!
-Melhor esperar... pensar bem...
-Mas... eu tenho certeza!
A verdade era que o “negócio” não funcionava com a namorada.
Cada vez que a tocava, intrigava-se com o fato de sentir-se pecando, como se tocasse na mãe, ou em uma
irmã, pois era o que ele considerava que Camila fosse: uma irmã para ele.
E com irmã não se transa.
Sentia-se profundamente estranho com isso.
Sua cabeça fervilhava de grilos por conta deste problema.
-Veja bem: eu te amo – explicou Edú – e quero que o momento seja muito especial para nós dois. Eu também
tenho que estar preparado sabia?
-Você? – estranhou a garota – ...preparado? Prá quê?
-Prá... prá... – o rapaz gaguejou sem graça – ...ah! você sabe... – e ficou vermelho. Não gostava desse tipo de
conversa e ficava embaraçado com facilidade.
Neste ponto, a namorada, que olhava para ele, sorriu:
-Ohhh... que bonitinho! Você está planejando um momento especial para nossa primeira vez, não é? – e beijou
o namorado – Que tola eu fui apressando as coisas!
O rapaz sorriu e a namorada ainda suspirou:
-Você é perfeito meu amor! É tão romântico.
E a conversa ficou por isso mesmo.
Mas passado uns três meses Camila viu que tudo continuava do jeito que estava e Eduardo não apresentava
planos de mudanças, então a cobrança reapareceu.
A garota ficou insinuando... bem sutil, como quem não quer nada... e Eduardo seguia fingindo que não via
nenhum dos sinais e não entendia as indiretas.
Toda vida Camila o convidava para ir dormir na casa dela.
Ela tinha uma avó muito doente que morava em Campo Largo e seus pais iam para lá quase todos os finais de
semana, para fazer uma dessas visitas de rotina.
Camila tinha uma irmã de vinte e um anos chamada Franciele e nenhuma das duas costumavam ir junto com
os pais para Campo Largo. Iam muito de vez em quando. Logo, Camila sabia que iria ficar sozinha durante os
finais de semana, ao menos enquanto a avó se mantivesse viva e por isso sempre rezava para a velhota resistir
firme e forte.
Mas Eduardo sempre recusava os convites da namorada para ir “dormir” em sua casa.
Para isso Edu tinha um esquema: ficava sábado o dia inteiro com a namorada, mas quando ia caindo à noite,
ele picava as mulas. Dizia que tinha que estudar, que tinha provas e etc., e saia de fininho.
A namorada ficava revoltada com tudo isso, mas engolia e levava em frente, pois gostava de Eduardo de tal
modo que sexo não era tão importante assim...

Edu desceu do ônibus e pisou em uma poça d’água, formada pela fina, mas constante garoa:
-Merda! – o rapaz praguejou – Era tudo o que eu precisava! – e se pôs a balançar a barra da calça.
-Olha a boca mocinho! – uma beata que ia passando advertiu e comentou com a amiga mais carola ainda –
Essa juventude de hoje não tem mais respeito mesmo! Tá tudo mudado!
-É – a outra concordou gesticulando – viu só o palavreado desse menino?... uma pena, tão bonito e falando
essas coisas...
Ao que a outra beata exclamou:
-Aposto que anda tomando drogas!
Eduardo parou de balançar a calça imediatamente.
.....

Ao chegar na sede do cursinho, passou a carteirinha na catraca.


Nada.
-Mas que droga!
Nova tentativa.
Nada.
Ficou tentando, até que o porteiro veio ajudar:
-Essa catraca não está funcionando.
Eduardo só faltou pular no pescoço do homem:
14
-Mas porque não me avisou antes??? Porque não colocam uma droga de aviso nessa porra de catraca dizendo
que essa merda tá estragada?
O porteiro olhou espantado para o garoto, que já se dirigia para a catraca ao lado. Passou a carteirinha,
esperou o lead ficar verde e entrou.
Ia abrindo passagem no meio dos outros estudantes que tagarelavam alegremente por ser sexta-feira e ter
chance de descansar um pouco.
Ouviu alguém lhe chamar.
Era Marcos, um colega de classe:
-E aí cara? Tudo beleza?
-Meus pés estão encharcados! – disse o garoto, muito azedo.
-Massa! – disse o amigo que tinha o estilo bem skatista, de roupas largas e cabelo comprido – você conseguiu
fazer todos aqueles exercícios de física de ontem?
-Consegui – respondeu curto e grosso, acrescentando – e não tem nada de “massa” ficar com os pés molhados.
-Só! – o amigo exclamou feliz – Como é que faz o número vinte e dois? O resto eu tirei de letra, mas esse... eu
não consegui resolver de jeito nenhum!
-Peraí – disse Eduardo, que abriu a mala e procurou a apostila com as matérias de exatas. Assim que a
encontrou, abriu na página dos exercícios do dia anterior e foi explicando como se resolvia o problema.
Mais alguns colegas de Eduardo vieram se chegando. Logo uma rodinha estava formada, Eduardo sempre
ajudava os colegas.
Ao findar a explicação, Marcos, que tinha a maior cara de mongo, sorriu e exclamou:
-Só!
“Que estúpido” pensou Eduardo, mas não disse nada.
Aliás Eduardo pensava muitas coisas de seus amigos ultimamente mas não as dizia. Quase todos os seus
colegas e amigos eram skatistas, ou surfistas, ou roqueiros... não tinha ninguém “normal”. Pois ser normal para
ele, era ser como ele era.
É assim com todo mundo.
E na turma que andava não achava ninguém que gostasse das mesmas coisas que ele gostava. Não entendia
porque um adolescente tinha que assumir um visual de uma tribo como se fosse um uniforme de time de
futebol, sem o qual não se pode jogar.
Talvez fosse desse modo porque simplesmente tinha que ser, e se ele não entendia o motivo, ao menos ficava
feliz que a moda não mandasse todos pularem na frente de um caminhão.
Claro que os amigos nem de longe desconfiavam do que se passava com Eduardo. Julgavam-no contente e
realizado, mas a verdade era que Eduardo já não achava mais graça na companhia dos amigos e já não ia a
todos churrascos que eles faziam.
Pouco a pouco se distanciava.
Só não fazia tal coisa de uma hora para outra porque não tinha turma melhor para engajar-se.
E também por medo de ser rotulado como antipático.
O único amigo de verdade que ele tinha e de cuja companhia gostava era o Fábio, mas este andava muito
estranho ultimamente. Falava pouco com os outros, vivia cheio de mistérios e ia a lugares que todos
ignoravam.
-Ele tá metido com tráfico – palpitou Carlos (aquele do ponche...) – o Marcos que me contou que contaram
para ele que ele estava envolvido com a máfia...
-Máfia? – Eduardo indagou espantado com o absurdo da idéia. Certa vez Fábio experimentara drogas, mas
Eduardo tinha certeza que traficante o amigo jamais viraria.
-É, diz que ele se meteu à besta com um cara que dominava um ponto de venda ali na Marechal...
-Deixa de besteira! – interrompeu Eduardo. Irritava-se sempre que alguém falava de Fábio. Sabia que se algo
de errado estivesse acontecendo com o amigo, este certamente viria lhe contar.
Era o que fizeram a vida inteira.
Um confiando no outro.
-Então porque todo este mistério? – Carlos quis saber – Aonde ele tanto vai que não leva a gente junto?
-Seja qual for o motivo – dizia Eduardo – deve ser forte e bom o suficiente para ele não nos revelar nada.
-Motivo?
-É claro! – Eduardo conclui – Ele deve ter um motivo para agir deste modo, vocês não concordam?
-Por mim – intrometeu-se Lucas, um surfistinha – bem, por mim ele tá é de rolo com uma mina e não quer
liberar informação!
-No mínimo deve ser isso – concordou Carlos – mas também deve ter droga aí no meio da jogada...
-Será?
-Acho que ele engravidou essa mina e ainda tá se picando.
-Pois é! – Lucas disse enquanto enfiava o dedo no ouvido – Lembram da última mina que ele ficou né? Era a
mó maconheira!
15
Eduardo conhecia Fábio desde os treze anos. Eram colegas de classe e cresceram juntos feito irmãos. Não
sabiam ao certo como ficaram tão amigos assim, mas souberam desde o início que o “clique” necessário para
isso ocorrera.
Cansaram de aprontar peraltices juvenis e de mirabolar planos e mais planos para o futuro.
Planejaram montar uma fábrica de automóveis voadores, serem donos de empresas de andróides e estas
baboseiras futurísticas.
Agora, nada disso era visto com seriedade, ficara para trás junto com as brincadeiras do passado.

Eduardo seria médico e Fábio pretendia ser diplomata.


Um plantado e outro sem raízes.

Eduardo sentia falta do tempo em que podia ficar horas na casa do amigo, só jogando papo fora sem
preocupar-se com estudo, garotas, dinheiro, futuro ou qualquer outra coisa.
Sentia falta do tempo em que o amigo ia dormir em sua casa e ficavam vendo filmes até de madrugada. Certa
vez Fábio apareceu com uma fita pornográfica, mas Eduardo, com muito medo de aparecer alguém e pegá-los
vendo uma coisa tão feia, não quis ver.
Era uma amizade boa.
Volta e meia dona Sônia estranhava a ausência do rapaz e perguntava de Fábio, ao que Dudú apenas respondia
– vai bem...
Será que ia?
Eduardo desejava que sim.

Já era sexta-feira e Fábio não tinha nem pisado no cursinho a semana inteira. O que fazia tanto Fábio que não
podia contar nada para ninguém, nem para Eduardo, o seu melhor amigo? Isso estava extrapolando e Eduardo
estava decidido a ligar para Fábio e pedir explicações. É!
-É o que eu vou fazer! – o rapaz exclamou extasiado.
-O quê??? – perguntou Marcos intrigado.
-Ãh?! – acordou Eduardo de seu devaneio – Nada! Nada não!
Os colegas ainda o olhavam em silêncio.
-Vamos subir para a sala? – propôs Eduardo.
E foram-se todos escadaria acima, para terem as aulas de sexta.
.....

Na hora do intervalo, Eduardo, que geralmente ficava na sala de aula, resolvendo os exercícios com um grupo
de estudo, decidira descer para comprar lanche, pois saíra de casa sem tomar o café da manhã.
Assim que pisou no pátio, seus colegas o chamaram:
-Eduardoooooooo!!! – fez o coro de vozes masculinas.
Eduardo apenas olhou e fez um gesto como quem diz, "já vou".
Rumou para a cantina e pediu um misto quente com guaraná.
Tratou de comer tudo antes de voltar para o grupinho de amigos, pois não estava nada a fim de dividir seu
desjejum com um bando de marmanjos que com certeza devorariam o seu café da manhã em um segundo.
Enquanto mordia o pão, uma garota se aproximou dele e perguntou:
-Você é o Eduardo, não?
Ele concordou balançando a cabeça.
-Eu sou Rose.
Novamente balançou a cabeça para dizer “muito prazer”.
A garota prosseguiu:
-Eu sei que você é amigo do Marcos. Eu queria saber... ele tem namorada?
Eduardo fez que não com a cabeça e a garota virou puro sorriso e saiu de perto sem ao menos agradecer a
informação.
“Garota estranha...” Eduardo pensou com seus botões enquanto engolia o lanche.
-Pois é Eduardo... o meio do ano já está quase chegando... – disse Marcos, com sua cara irremediavelmente
estúpida, assim que Eduardo entrou na roda – ...e a galera tá afim de ir viajar nas férias.
-Viajar? Prá onde? – quis saber Eduardo.
-Para Quatro Barras – informou Carlos.
-Como? – Eduardo riu com desdém – Quatro Barras??? No inverno??? – e conclui como se os demais fossem
loucos – Não, eu não vou! – disse bem com tom de reprovação afim de deixar bem clara a sua vontade de ficar
em casa e quente durante Julho.
-Ah! Cara, deixa de ser embação! – protestou Marcos – A gente vai fazer camping durante quase um mês
inteiro. Vai ser demais!
-Nem vou...
16
-Putz cara! Já não basta o Fábio não dar mais nem sinal de vida, você também vai abandonar a gente? Como
vai ficar nossa gangue? – reclamou Marcos, que queria porque queria que Eduardo fosse acampar com o povo –
vai ser que nem nos velhos tempos de colegial. Lembra?

E como poderia esquecer?


Eduardo tinha cada lembrança cravada em sua mente e não sentia saudade alguma. Sempre detestara
acampar, isto lhe era sinônimo de dor nas costas por causa do colchonete fino e duro, sem contar a falta de
roupa limpa, falta de cama macia, ausência total de privacidade, chances zero de um banho quente e digno de
um ser humano e principalmente uma enorme carência de comida que prestasse.
Comer miojo empapado durante um mês inteiro era pedir para morrer!
Isso para não mencionar que Eduardo não curtia os papos que rolavam ao redor da fogueira.
Era sempre a mesma coisa: garotas.
Sempre!
Eduardo não gostava de falar disso, pois sentia-se envergonhado de não ter uma história legal para contar aos
amigos, uma vez que todos ali já haviam transado com garotas, ao passo que ele não.
Era virgem.
Só o pensamento que algum de seus amigos tivesse a mais leve desconfiança deste fato já causava arrepios no
garoto.
Conseguia ficar com a gata mais tesuda e cobiçada que aparecesse, mas transar que era bom mesmo, isso ele
não fazia. Não tinha como. Não que não quisesse ou que as garotas não deixassem, mas sim porque
simplesmente não se excitava.

Acontecera sempre e acontecia agora com Camila.


Logicamente seus amigos pensavam que ele era o bam-bam-bam do pedaço, que traçava todas e que Camila
não escapava ilesa de um encontro sequer entre os dois. Mas isso estava longe de ser verdade.
O que acontecia é que Eduardo achava as garotas muito bonitas e atraentes, chegava a sentir vontade de
transar, de saber como era o que todo mundo falava e aplaudia sobre, afinal toda essa apologia ao sexo não
devia ser à toa.
Mas não tinha garota por mais erótica que fosse que fizesse o apito assobiar.
Simplesmente nada acontecia.
Era como se a atração fosse idólatra e não sexual se é que é possível dissociar uma coisa da outra... pois
Eduardo achava linda a plástica feminina, mas não deseja comer a fruta.
Tudo isto deixava Eduardo muito confuso.
E para não dar na telha, acabava inventando histórias para não decepcionar os amigos. Algumas delas até
eram convincentes, mas outras... ficavam difíceis de engolir, pois nem Dom Juan seria capaz de realizar
tamanhas peripécias.

-Lembro – concluiu Eduardo sem sorrir, sem nada.


-Não era legal? – indagou Marcos, cujos olhos brilhavam.
-Ô... se era... acampamentos ótimos! – ironizou Eduardo. E todos perceberam.
-Porra Eduardo! Deixa de ser mané, vai! Vamos acampar com a turma! – reclamou Jorge, outro rapaz de Q.I.
duvidoso, que até agora estava quieto.
-Não, eu já disse que não vou. Não neste ano.
-Porque? – quis saber Jorge.
-Porque é ano de vestibular – explicou Carlos e completou zoando – e a dondoca quer ficar em casa
estudando...
-É! É isso mesmo! – Eduardo falou sem vergonha nenhuma – Neste ano a prioridade é o estudo e não a
diversão. Sair um final de semana ou outro vá lá, mas perder um mês inteiro? É muita inconseqüência!
-Porra Eduardo, desestressa! – desembestou Marcos – Que é toda essa neura? Vestibular prá cá, vestibular prá
lá! A vida não é só isso...
E o rapaz ia gralhando, quando todos os garotos da roda, com exceção de Eduardo, começaram a afinar a voz e
gritar:
-Bicha!
-Mulherzinha!
-Veado sem vergonha!
Faziam isso porque Henrique passava entre a multidão.
Ele estudava na sala de Eduardo, mas este não o conhecia.
Aliás, nunca ninguém conversara com Henrique.
Todos o recriminavam e xingavam.
Era “a bicha do cursinho”.
Certeza mesmo ninguém tinha, mas disposição para humilhá-lo sobrava.
17
E cada vez que ele saia pro pátio, ou para ir pro banheiro, ou para comprar lanche, era sempre a mesma coisa.
Todo mundo tirava da cara dele. Uns gritavam histéricos, outros assobiavam.
Mas a situação era pior quando alguns machões atiravam coisas ou diziam nomes horrendos.
E tudo o que Henrique fazia era andar rápido, de cabeça baixa, driblando as pessoas e sumindo o mais ligeiro
que pudesse no meio da multidão.
Fingia que não ouvia nada e ia-se embora.
Fazia de conta que as ofensas e palavras amargas não eram para ele.
O que mais poderia ele fazer? Como enfrentar uma sede de cursinho inteira?
-Ai! Ai... – gemeu Jorge, fazendo voz afeminada – Este ano eu vou fazer vestibular para ser decoradoraaaaa!!!
-Ai! Eu não! – gritou Carlos todo histérico – Eu vou ser estilista!!! Você não acha que meus modelitos vão
arrasar nas passarelas???
-Eu vou ser cabeleireira! – comentou Marcos, com a voz terrivelmente afetada – E você Duduzinha? Vai ser o
que, querida?
Eduardo apenas lançou um olhar para os colegas como quem diz “isto não tem a menor graça” e depois olhou
para Marcos e respondeu:
-Eu? Com certeza eu vou ser veterinário! – e acrescentou venenoso – e tem mais, vou ser veterinário com
especialidade em neurologia suína, assim talvez eu possa estudar o caso raro de vocês!
Jorge estranhou:
-Ih! Qual é? Vai defender aquela bichinha?
-Como você sabe que ele é bicha? – perguntou Eduardo.
-Por causa do jeitinho...
-E se for só o jeito dele? – Eduardo defendia. Já se encontrava diluído em confusões e sentindo-se tão contrário
aos garotos da turma que talvez fosse só para criar confusão e provar que pensava diferente que Eduardo
resolveu entrar em conflito – pode ser que ele não seja nada disso que vocês estão falando...
-Não pira moleque! – interferiu Carlos – É só olhar para ele prá saber que é uma florzinha louca! Todo
delicadinho... – e fez gestos com a mão requebrando-a toda de um lado para o outro enquanto sua voz
demonstrava asco - ...gente como ele devia sumir da face da terra! Ou melhor, devia era estar debaixo da
terra! Todos mortos!
-É! – ajudou Marcos – É que nem não sei quem falou por aí: homossexualismo é doença e AIDS é a cura.
-Eu não acredito! – Eduardo estava boquiaberto diante dos colegas.
Realmente não acreditava no que ouvia.
-Pois é isso aí! Se uma bicha louca dessas vem se engraçar para o meu lado eu acho que mato ela de tanto
coió! – disse Lucas, demonstrando seu ódio concentrado, e falava com tanta raiva que chegava a respingar
gotas de saliva ao redor – dou porrada mesmo!
-Credo! Vocês têm noção do que estão falando? – indignou-se Eduardo que postou-se em feroz defesa de
Henrique – E daí se ele for veado? E daí? O que vocês têm a ver com isso? Desde quando isso os interessa
tanto? – e seguiu gralhando – O que foi que ele fez prá vocês? Por acaso ele já falou com algum de vocês? Já
deu motivo para vocês xingá-lo deste modo? – fez uma pausa e continuou o sermão – Não! Ele não fez nada!
Vocês nem o conhecem para falar a verdade! Tudo o que sabem são boatos que ninguém a não ser o próprio
Henrique pode dizer se são verdade ou não...
-Mas... a Clara, da outra sala viu ele em uma boate... – defendeu-se Marcos que não teve nem chance de
prosseguir.
-A Clara viu, mas não pode provar! Pode? – perguntou Eduardo, interrompendo o colega bruscamente.
-Acho que não.
-Então é exatamente como eu disse: são boatos que ninguém sabem se são verdade ou não. E isso não me
interessa. Por isso eu não xingo. E mesmo se Henrique for bicha, o que eu tenho a ver com isso?
-Nada... – disseram Carlos e Jorge ao mesmo tempo.
-E então, por que vocês têm? – Eduardo perguntou.
Carlos ficou levemente enrubescido.
Todos ficaram em silêncio e como ninguém se manifestara de volta, Eduardo deu de costas ao grupo e subiu
para a sala de aula.
.....

Mal soou o sinal de saída, a maior parte dos alunos se levantou. Todos pareciam desesperados para ir embora e
curtir o final de semana de uma vez. Parecia fim de catequese, com as crianças loucas e impacientes que ficam
olhando o sol brilhando pela janela mas nada podem fazer a não ser esperar para estarem livres.
Eduardo ainda guardava seu material.
Não estava com muita pressa, pois como havia feito o roteiro do seu dia logo pela manhã, tinha tudo
programado na cabeça e sabia que tinha tempo de sobra para guardar o material, desguardar e guardar de
novo.
Ia almoçar pelo centro e pegar as aulas de revisão durante a tarde.
18
Sempre que podia fazia isso, pois revisava os tópicos de maior importância que foram expostos no decorrer da
semana. Tinha a vantagem de fazer isso porque os alunos que iam a essas aulas estavam interessados em
aprender de verdade, então a sala não ficava tumultuada.
Assim que acabou de guardar tudo, ficou observando as pessoas saírem e a sala ir se esvaziando. Observou
que poucos permaneciam sentados como ele, aguardando a multidão desaparecer. Dentre os que ainda se
encontravam em seus lugares, estava Henrique.
Provavelmente esperaria até a última pessoa sair e tudo ficar parecendo-se com um deserto, a fim de evitar
qualquer tipo de comentário.
Eduardo ficou o observando.
Sim, Henrique tinha trejeitos efeminados, mas nada que o garoto fizesse tornava evidente a sua opção sexual.
Achava babaquice o que faziam com ele e não via motivo para tratá-lo com tanto preconceito.
Era um garoto magro, feio, de cabelos escuros bem curtos e olhões pretos brilhantes. Talvez fosse por conta de
sua aparência frágil que todos se aproveitassem para humilhá-lo. Se fosse alto e forte, a história poderia ser
diferente...
-Bando de covardes... – sussurrou Eduardo mordendo os lábios.
A sala já estava quase vazia.
Sobrara apenas Eduardo e Henrique, que continuava sentado.
Eduardo foi caminhando para a porta, até que parou e perguntou:
-Você não vai embora?
Os assustados olhos negros fitaram Eduardo.
-Daqui a pouco – disse Henrique timidamente, que de pronto desviou o olhar para as mãos – eu sempre espero
todo mundo ir embora.
-Pois é. De vez em quando eu também faço isso. Quando fico pelo centro não tenho pressa. Meus amigos,
alguns deles, ficam comigo também de vez em quando, mas muito de vez em quando, só quando eu aviso que
tal matéria é importante e vai cair com certeza na prova do fim do ano.
Henrique estava mudo.
-Eles não ligam para os estudos – foi dizendo Eduardo – e acho que tampouco se preocupam por ser ano de
vestibular. Tudo o que querem é fazer festa. Talvez por isso esse comportamento.
Silêncio.
-Imagine você que eles querem acampar em Quatro Barras em Julho!!! – Eduardo confidenciou.
-Quatro Barras no inverno? – admirou-se Henrique – Por acaso seus amigos são loucos?
-São – o rapaz concordou – E querem que eu vá junto.
-E porque não? Se são seus amigos, vai ser divertido...
-Acontece – explicou Eduardo – que eu não gosto dos meus amigos realmente. É um bando de imbecis. Parece
que ainda têm quatorze anos. Não amadureceram e nem querem amadurecer. Isso me deixa muito revoltado.
-Eu tô vendo! – exclamou o rapaz.
Eduardo olhou ao redor. Apurou os ouvidos:
-Bem, acho que o colégio inteiro já saiu – disse Eduardo, que depois olhou para o garoto sentado e convidou –
Vamos?
Henrique olhou para Eduardo, que estava perto da porta de saída da sala e tinha uma expressão curiosa na
cara. Não acreditava que um hetero estaria sendo legal com ele, pois todos os garotos que lhe dirigiam a
palavra o faziam com o intuito de lhe ferir.
Mas Eduardo tinha a face tranqüila, expressão pura e natural de quem simplesmente está esperando pelo
amigo.
Henrique sorriu internamente, pegou a sua mala de cima da carteira e dirigiu-se para a porta.
-Eu sou Eduardo – apresentou-se.
-E eu sou Henrique.
-É, eu sei – Eduardo comentou sorrindo – você é bem famoso aqui no cursinho.
Eduardo referia-se ao fato de todos pegarem no pé do pobre garoto. Fizera o comentário sem nenhum veneno
na voz. Disse como quem está ciente da situação, como quem sabe que existem inimigos, mas é do partido
aliado.
-Cambada de idiotas. Mas eu não ligo.
-Claro! Quem não deve não teme!
-Não é esse o caso. Eu apenas não ligo. Finjo que não é comigo, pois se desse trela só iria me estressar a cada
provocação que recebo.
-Faz bem – ponderou Eduardo.
Henrique soltou uma risada de escárnio:
-Faço? – indagou em tom irônico – De vez em quando eu não acho que a coisa certa a se fazer é ficar calado.
Tem vez que eu quero é meter um soco na cara dos filhos da mãe!
-E porque não faz então?
Henrique olhou para Eduardo e indagou:
19
-Por acaso tá escrito super-homem na minha testa?
.....
Eduardo ia descendo a rua de casa, em passos lentos.
Acabara de assistir as aulas vespertinas e agora o grande sol vermelho já estava se pondo, deixando o céu
nublado com um tom púrpuro, como se um grande manto de veludo alaranjado manchado com vinho tivesse
sido jogado em cima da cidade.
O garoto andava e lamentava que as réstias de sol do outono não estivessem ali para iluminar a rua com
poesia. Era tão belo quando a vida parecia uma pintura renascentista. E do modo que Eduardo estava se
sentindo, meio melancólico, talvez o verde das folhas com gotas de sol pudessem se refletir em seu interior
acalentando-o.
Não conseguira prestar muita atenção no conteúdo das aulas, pois ficara pensando em Henrique.
Sentia pena por ele – e não dele.
Era um sentimento estranho, que começava pontiagudo e terminava arredondado, talvez fosse a conformidade,
tão temível por Eduardo mas latente na situação, pois o que poderia ele fazer?
Que tinha ele a ver com a vida de Henrique?
Mas de qualquer modo, aquilo incomodava.
Não conversara muito com o garoto, que foi logo embora para casa, mas constatara que ele era gente boa prá
caramba.
Não merecia estar passando o sofrimento à que o estavam submetendo.
Eduardo pôs-se no lugar do pobre rapaz e chegou à conclusão de que se fosse com ele, já teria explodido há
séculos. Não sabia como Henrique suportava aquela situação.

Eduardo sabia que não teria esta força.


E o garoto seguia andando.
De repente, surgindo das trevas...
-AU! AU!
O cachorro da casa do começo da rua avançou em Eduardo, que por estar imerso em seu mundo de
pensamentos, levara o maior susto. Com o coração disparado e as pernas bambas Eduardo olhou para o
cachorro vindo em sua direção, com a bocarra aberta, pronta para mordê-lo. Pôs-se em desabalada carreira rua
abaixo.
O cão o perseguira durante um bom pedaço do percurso, mas desistira.
Só o susto valera a pena.
em desculpas... A descoberta da atração pelo corpo masculino
07.04.2004
Eduardo descobriu-se atraído por homens na casa da namorada e não consegue aceitar...

diminuir texto | aumentar texto

Capítulo IV

por Maven - mavenmusic@hotmail.com

Eduardo chegou em casa ofegante e bateu a porta detrás de si.


Estava puto da cara. Aquele cachorro era o fim da picada.
- O que foi? – perguntou o pai que passava em direção à sala de estar, de
chinelinhos de pano no pé, com o jornal dobrado em baixo do braço e nas mãos
uma vasilha com sopa bem quente.
- O que foi o quê? – respondeu Edu muito grosso e mal-humorado.
- Nada... – desculpou-se o pai sumindo amuado para a sala. “Melhor nem mexer”
pensou.
O garoto foi sentar-se no lugar da mesa onde sempre se sentava quando chegava
naquele estado. A mãe, que já conhecia o barulho da cadeira, foi logo gritando de
dentro da cozinha:
- Hoje não Eduardo! Você tem visita!
O rapaz murmurou pesarosamente:
- Era tudo o que eu precisava!
Levantou-se com a alegria de um condenado andando para a cadeira elétrica e rumou pisando forte para a
cozinha, onde encontrou a mãe conversando com Camila.
- Oi filho! – sorriu a mãe.
- Amor! – derreteu-se a garota, ao ver o namorado entrar pela porta – Tudo bem meu docinho?
O garoto deu um sorriso de canto de boca pra lá de amarelo.
20
- Você deve estar morrendo de fome, não está? – perguntou a mãe, indo de encontro ao forno do fogão onde
guardara a carne assada do almoço – Tem mais comida na geladeira, eu esquento prá você no microondas.
- Não precisa, não tenho fome – recusou Eduardo.
- Mas filho, você passou o dia inteiro fora de casa. Deve estar faminto e...
- Não quero comer nada – afirmou.
- Tem certeza? – a mulher insistiu. Oras, nada mais que obrigação de mãe encher o saco dos filhos por conta
de comida, agasalho e conselhos desgastantes...
- Certeza absoluta – reafirmou o rapaz.
- Tá bem querido, mas se daqui a meia hora você vier aprontar na cozinha, eu te espanco! – gralhou a mãe,
brincando.
Nessa hora Camila virou-se, toda melosa:
- Adivinhe só amor... – disse a garota tentando surpresa, toda sorridente, parecendo um cachorrinho querendo
agradar o dono.
- O quê? – perguntou Eduardo, com o mesmo sorriso amarelo apresentando elevado índice de sarcasmo.
Seu humor caíra de vez no chão.
- Adivinha! – insistiu a namorada.
- Desembucha logo! – irritou-se o rapaz.
Não estava com ânimo para frescuras.
Estava cansado, tivera aula o dia inteiro e ainda há minutos quase fora morto por um cão selvagem.
- Olha como fala com a sua namorada! – gralhou a mãe – Que falta de educação Eduardo!!! Não foi assim que
eu te ensinei! – a mulher conhecia o filho que tinha. Sabia o gênio ruim dele e quando o sentia nessas
condições especiais, tomava cuidado para não causar ataques no garoto. Por isso explicou docemente – A
Camila veio aqui para te buscar prá ir dormir na casa dela.
- Não posso! – respondeu Eduardo curto e grosso.
- Pode sim! – disse a mãe – Eu já deixei!
- Não é questão de você deixar ou não, mãe. O caso é que eu tenho oito matérias para estudar! – tentou
esquivar-se Eduardo, que não estava com a mínima vontade de ver a namorada, muito menos de ir dormir na
casa dela.
- Não meu filho, acho que você não tem que estudar! – Sônia foi falando, muito calmamente – Você já passou
o dia todo no cursinho hoje. Tem que desviar sua mente dos estudos, senão vai acabar ficando louco! – e
depois comentou, como fazem as mães quando querem passar a noção de que são sábias, vividas, que seus
conselhos são preciosos e nunca devem ser desobedecidos – Ninguém agüenta este pique rapaizinho! Você
precisa fazer algo mais relaxante do que estudar...
- Mas mãe...
- Não tem nem mais nem menos! Você vai dormir na casa da sua namorada e fim de papo! O seu pai vai levar
vocês.
Muda, Camila fitava o namorado.
Eduardo ia protestar, mas a mãe o cortou:
- Sem um pio! – e dobrou o filho.
O garoto calou-se.
Olhou para Camila, que agora estava radiante com um olhar de triunfo na cara, provavelmente pensando “é
hoje!”. O rapaz teve ímpetos de esbofetear a face da namorada. Estava com raiva. Não queria ir dormir na casa
dela, sabia muito bem em que tipo de situação iria acabar.
- Vou tomar banho – anunciou finalmente e saiu da cozinha do mesmo mode que entrara, emburrado e pisando
forte no chão.
- Viu só Camila? – falou a mulher – Eu não disse que ultimamente ele anda estressado? Só pensa em estudar e
estudar!
.....

Em seu quarto, de banho tomado e já vestido, Eduardo arrumava uma mochila com itens de sobrevivência para
levar para casa de Camila. Levava pijama, escova de dente, pente, e o principal: suas apostilas do cursinho.
Iria ignorar a namorada estudando, ou pelo menos fingindo que estava fazendo isso.
Deitou-se na cama e pegou o telefone. Discou rapidamente os números.
- Alô? O Fábio está? – Eduardo foi perguntando assim que atenderam.
- Eduardo? – perguntou a voz do outro lado.
- Oi Fábio! Puxa, tudo beleza? – indagou Eduardo super animado ao reconhecer a voz do amigo.
- Diga aí seu Eduardo! – festejou Fábio, igualmente feliz.
- O que aconteceu com você? Andou sumido a semana inteira!
- Pois é... andei ocupado... – o tom da voz do amigo era do tipo “sim, andei fazendo mil e uma coisas, mas, por
favor, não me faça falar delas...”.
Eduardo resolveu passar por cima disso:
21
- Ocupado com o quê?
- Com uns negócios aí... – esquivou-se o rapaz. Obviamente não queria comentar nada, e isso, de certo modo
incomodava Eduardo, que estava com a pulga atrás da orelha. Porque o amigo agia deste jeito?
- Porque isso Fábio? – perguntou Eduardo.
- Porque isso o quê? – Fábio deslavadamente rebateu a pergunta com outra. Coisa típica dele quando queria
fazer-se de inocente. Mas Eduardo não caía nessa, pois lançava mão deste mesmo artifício quando as coisas
iam apertando ao seu redor. Talvez tivessem desenvolvido a técnica juntos.
Perguntou:
- Porque você anda misterioso? – em sua voz, fazia-se nítida a exigência de uma resposta plausível. Mais nítida
ainda era a impossibilidade de uma desculpa esfarrapada ser engolida facilmente. Fábio teria que se explicar –
e muito bem! Afinal Eduardo era o seu melhor amigo e sentia-se no direito de saber de seus passos – Faz
tempo que a gente não têm uma conversa decente. Faz tempo que você deixou de me contar as coisas. O que
foi? – indagou como uma mulher rejeitada que pergunta “o que aconteceu? Eu não te atraio mais? Estou caída?
Você tem outra?”.
- Foi nada não – respondeu Fábio, cruzando a linha vermelha – É só que não tenho novidades.
- Não Fábio – indignou-se Eduardo – Você sabe que não é isso. Não se faça de palhaço e não me venha com
desculpas.
Fábio estava mudo. Eduardo continuou:
- Você tá sabendo que a turma quer ir acampar no meio do ano?
- Não – o amigo respondera sinceramente. Realmente ignorava o fato. Agora, mesmo sabendo do plano dos
amigos, tampouco se animara com a idéia – Quem vai? – o desinteresse era claro em sua voz.
Eduardo, sem graça, respondeu:
- A galera... – e foi citando os nomes – O Marcos, o Lucas, o Jorge, o Carlos, o Rodrigo e mais uns outros. Eles
pretendem se divertir prá caramba!
- Ah... – fez Fábio, como se raciocinasse algo a respeito do que se falava – o povinho de sempre!
- E aí? – perguntou Eduardo, com entusiasmo teatral. Sabia que Fábio já não demonstrava o mínimo interesse
pelo que se passava com a “turma” fazia bom tempo.
Talvez como Eduardo, Fábio já devia ter percebido o quão enfadonho era o grupo de “amigos” com que
andavam. A única diferença, porém é que Fábio já havia começado a fazer o que Eduardo queria ter feito faz
tempo: o afastamento do grupo.
- Nem estou afim... – respondeu o amigo, cuja resposta não surpreendera em nada Eduardo. Já esperava por
algo assim. Foi o que ele fez ao recusar diretamente ao grupo.
- Não quer nem saber onde vai ser? – tentou novamente, revestindo o remédio intragável com uma camada de
mel.
- Diga.
- Em Quatro Barras.
Fábio se espantou:
- E você vai???
- Eu não! – exclamou prontamente Eduardo, como se só a idéia de ele ir fosse absurda.
- Então porque me chamou? – quis saber o amigo, encurralando o outro contra a parede.
“Não está sendo algo muito agradável falar com Fábio” pensou Eduardo, mas este apenas se defendeu:
- Eu não chamei, só perguntei se você sabia do acampamento.
- Ah...
A conversa não estava levando ninguém à lugar algum.
Depois de um momento de um silêncio – de péssima qualidade – Eduardo mudou o tom de voz e dessa vez
perguntou super animado e carregado de interesse:
- Mas e aí Fábio? O que você tem feito de bom e proveitoso que possa ser comentado?
- Nada demais... – disse Fábio com naturalidade – saio de vez em quando, vejo um pessoal por aí e pronto!
- A turma tá dizendo que você tá envolvido com drogas – desabafou Eduardo, que já não agüentava mais de
tanta preocupação com o amigo.
- Há, há, há, há! – riu gostosamente – Disseram mesmo?
- É! – afirmou Eduardo.
- Não, eu não estou envolvido com drogas – explicou o amigo, ainda rindo e depois esclareceu – Mas confesso
que já experimentei.
- Eu sei, seu mané! – comentou Eduardo – Eu lembro! Você me contou!
- Pois é! – e curioso indagou ainda – E o que mais o povo disse?
Eduardo sem rodeios:
- Que talvez suas saídas misteriosas escondam um belo par de pernas...
- Saídas misteriosas? Belo par de pernas???
- É isso aí! – afirmou Eduardo – Dizem que você tem namorada ou é amante de alguma coroa! Pior, já até rolou
comentário que você engravidou uma mina por aí... Fábio, todo mundo morre de curiosidade para saber aonde
22
você vai nos finais de semana, que não conta para ninguém!
- Ah, é? Ôrra, eu não sabia que era um mistério. Mas não sabem porque não querem. Ninguém pergunta
diretamente... – Fábio comentou com descaso.
- Ah é? Então não seja por isso. – Eduardo iria aproveitar a brecha que o amigo lhe abria – Aonde você vai
tanto?
Com naturalidade, o amigo lhe contou:
- Em boates gays!!!
Eduardo ficou paralisado.
Silêncio.
Não podia acreditar no que ouvira. Aquela notícia tinha caído feito bomba em seus ouvidos, que agora zumbiam
e incomodavam. Começara a sentir certa vertigem, quando, do outro lado da linha Fábio explodira em
gargalhadas:
- Há! Há! Há! Há! – e chorava de tanto rir – Eu tô brincando seu mané!!! Há! Há! Há!
Sem ao certo saber porque, uma sensação estranha percorreu a espinha de Eduardo. Era forte e carregada com
um misto de alívio e decepção.
Alívio porque seu melhor amigo não era gay.
De certo modo Eduardo já sabia que Fábio não era, pois inúmeras vezes dormiram na casa um do outro.
Nadavam juntos e trocavam de roupa um na frente do outro. Tomavam até banho juntos e Fábio jamais viera
de papo-aranha para cima de Eduardo. Sem contar que em cada festa que iam, Fábio agarrava praticamente
todas as minas do pedaço.
Mas ainda não sabia porque se sentiu estranho ao ouvir tamanha brincadeira de mau gosto.
O que o incomodara? Aliás, porquê o incomodara?

Essa nuvem que se formava começava a tampar o sol.


Nunca nada perturbara Eduardo.
Não sabia porque agora perturbava. Só um pouco, é verdade, mas era como uma pedrinha no sapato que por
menor que seja, atrapalha para caminhar e fica incomodando...
Mas sentiu-se decepcionado também por outro lado, pois se o amigo fosse gay mesmo, Eduardo poderia se
abrir e revelar tudo o que estava sentindo e talvez Fábio pudesse até ajudá-lo, quem sabe?
Tentou desbaratinar:
- Ufa! Que susto você me deu!
.....
Franciele, irmã de Camila olhava para Eduardo e sorria.
O rapaz estava sentado na sala de estar junto com a garota de vinte e um anos, esperando o jantar ficar
pronto.
Era Camila quem estava cozinhando.
Queria fazer um prato sedutor para o namorado. Sabia que o ponto fraco do garoto era comida e iria pegá-lo de
jeito com uma receita afrodisíaca. Queria tirar a fome e o cansaço do namorado, para conseqüentemente
aproveitar a ausência dos pais e tirar outra coisa dele...
- Que lindos vocês dois juntos! – exclamava Franciele, parecendo uma gansa albina, de tão branca que era,
com seus cabelos cor de fogo e sorriso largamente exagerado – São tão bonitinhos!!!
Eduardo não via nada de bonitinho.
Ficava quieto e apenas olhava de soslaio e sorria de vez em quando, como quem agradece o elogio. Na verdade
queria mesmo era chorar, de tão horrível que a situação se mostrava para ele.
- Minha irmã gosta muito de você! – dizia a garota – Acho que se acontecesse alguma coisa ruim contigo ela
iria morrer!!!
O garoto tinha ganas de mandar Franciele calar-se.
- Nada de ruim vai acontecer comigo – sorriu cordialmente o rapaz. Tentava tranqüilizar a irmã da namorada.
Só que paz não era o que ele conseguia nem para ele mesmo, como então podia esbanjar para os outros?
- É lógico que não vai acontecer nada com você, e nem com ela, seu Eduardo bobinho! – exclamava a gansa,
que ao falar fazia dançar em sua cara todas as sardas cor de ferrugem – O amor de vocês é abençoado. Seria
uma violação da evolução natural interromper o que acontece entre vocês dois!
“Eu não ouvi isso!!!” pensou Eduardo “Violação da evolução? Ai... Como ela é brega!!!”
- Que janta demorada, não é? – comentou Eduardo para desconversar.
Batia a mão de tempos em tempos nas coxas, deixando visível que não estava confortável.
- Pois é! – concordou a garota, que sorriu – E se bem conheço minha irmã deve demorar uma hora ainda! Ela
sempre capricha!!!
Olhando no relógio, Eduardo exclama teatralizando extrema preocupação:
- Mas então a gente só vai jantar lá pela meia-noite!!!
- E o que é que tem demais nisso? – quis saber Franciele, que resolveu tirar da cara do namorado da irmã,
apenas pelo tom de preocupação na voz – Não me diga que você vai virar abóbora quando der meia-noite!!! –
23
brincou.
“Que monga!” pensava o rapaz apenas olhando para a cara branquela e inexpressiva de Franciele “Conseguiu
ser pior que a irmã!”.
- Não Fran! – explicou Eduardo, tentando não azedar, tirando força do além para não escorregar para o lado do
seu gênio ruim – Não é isso! É que eu tinha que estudar! Acredita que ainda não revisei as matérias de hoje?
- Ai! Que neura! Deixa disso! – protestou Franciele.
- Não posso! Neste exato momento tem milhares de outros concorrentes estudando e sabendo detalhes a mais
do que eu. Você sabe que são os detalhes que fazem a diferença!
- Exatamente! São pequenas coisas como, por exemplo, jantar na casa da namorada e dormir com ela é que
vão fazer a diferença! Pois quando o vestibular chegar, enquanto você saboreou da sua responsabilidade com
os estudos e da sua liberdade de detalhes, os outros vão é estar estressados! Daí você passa esses milhares de
pessoas que estão estudando hoje para trás!
Eduardo quis rir do sermão “deixa-de-ser-Nerds-e-vá-trepar-um-pouco!” que Franciele lhe passara. Frases
assim não o assustavam e sabia contornar a situação, ainda mais agora, que via o perigo iminente, dando bote
feito jaguatirica e precisava mesmo se safar:
- Fran, não se preocupe comigo! Eu vou jantar e vou dormir com a minha namorada. Só que eu vou estudar
também, ok? Depois do jantar eu vou dar uma pegada rápida nas apostilas, só para lembrar as matérias e
pronto!!! – e Eduardo sorriu. Pretendia dar uma pegada nas apostilas e não soltá-las até o sol raiar.
- Ok... se é isso o que você quer mesmo... cada um aproveita a noite como pode! Eu, por exemplo, vou sair
com minhas amigas para uma boate! A gente vai dançar a noite inteira e quem sabe até descolar uns gatos!
- É isso aí! – disse o rapaz.
E Franciele, que sabia da falta de dar no couro que Eduardo estava proporcionando à irmã, soltou uma direta:
- Se eu fosse você... preocupava-me em estudar anatomia humana esta madrugada!

Eduardo sorriu amarelo.


E BEEEEEM amarelo.

Será que elas só pensavam nisso?


SEXO! SEXO! SEXO!

Era uma conspiração!


A mãe de Camila devia estar mancomunada com a avó para que ela simulasse uma crise pior na doença e
precisasse da presença da filha e do genro que deixariam as filhas sozinhas em casa. Isto é, fase um do
esquema OK, casa território liberado.
Nesta hora então a namorada ligava para a mãe de Eduardo para avisar que a barra já estava limpa e que o
resto do plano poderia se desenrolar sem problemas. Passando para a fase três do esquema, Sônia exigiria que
o filho fosse dormir na casa da namorada sob base de seu poder infinito de mãe. Chegando no território
inimigo, fase quatro entraria em cena e a irmã de Camila faria a guerra psicológica, dizendo coisas como
“nossa! vocês são tão lindinhos juntos...” e preparando o terreno, fazendo insinuações, e depois iria sair para a
night, deixando a vítima sozinha nas garras do assassino.
Aquele plano era maligno!
O desespero já estava tomando conta da imaginação de Eduardo!
- Puxa! É novo este bibelô? – o rapaz indagou, somente para a conversa tomar um outro rumo.
- Hein? – fez a garota.
- Esse aqui, ó! – e o garoto apontou para uma foca de cristal na mesinha de centro.
- Não, claro que não. Está aí desde sempre Eduardo.
- Ah é?
- É!
- Puxa, sabe que eu nunca tinha reparado?...
- Como não? Lembra quando colocou o pé na mesinha de centro e tudo veio abaixo?
- Não...
- Mas eu lembro sim, minha mãe teve que tomar dois copos de água com açúcar para não ter um pirepaque!
- Pois é né?
Franciele apenas enrugou a testa, ao que Eduardo comentou:
- Mas é um belo enfeite! – por quanto tempo mais iria agüentar ficar falando qualquer coisa que distraísse a
mente ignóbil de Fran ele não sabia, mas que estava disposto a tentar, isso ele estava.
- A JANTA TÁ MESA!!! – berrou Camila da cozinha.
.....
Quase do outro lado da cidade, já na cama, os pais de Eduardo estavam prontos para dormir. O marido ainda
terminava de ler o jornal.
- Benhê, o que será que nosso amado filhinho está fazendo agora na casa da namorada? – perguntou Sônia,
24
tirando alguns anéis de seus dedos. Veio se chegando para Antônio, encostando carinhosamente a cabeça no
ombro do marido.
- Não sei – respondeu o homem, sem desviar a atenção da leitura – mas seja lá o que for, espero que não
esteja fazendo sozinho!!!
.....
Eduardo olhava toda aquela comida na mesa.
Camila fizera moqueca de peixe com ervas finas, arroz branco com nozes, uma salada de folhas “energéticas”,
e para beber, comprara uma bela garrafa de vinho branco.
- Mas eu detesto vinho branco! – reclamou Eduardo fazendo pouco caso do esforço da namorada. Ele sabia que
devia haver algum motivo sórdido para ter uma bebida alcoólica em cima da mesa!
Ele sabia!
Sabia sim!
A namorada certamente o queria bêbado para depois abusar sexualmente dele!
- Você detesta tudo, eu sei bem disso e também sei muito bem que você não bebe e não gosta de beber
Eduardo – Camila foi discursando com certo medo em sua voz – mas esse vinho é para combinar com o peixe...

- E quem disse que combina? – rebateu Eduardo, implacável.


- É... que... que... – gaguejava a namorada, sem graça - ...eu li numa...
- Viu? – atacou Eduardo bem ligeiro – Eu sabia! Leu em algum lugar! Deve ter sido numa dessas revistinhas
tolas que as mulheres vivem comprando! Deve ter sido naquela Nova, ou Cláudia, ou Capricho... “nesta edição:
mil e uma maneiras de lamber um umbigo” – disse com voz afetada e depois acrescentou mordaz – que coisa
sem originalidade!
Camila, sem graça, argumentou:
- Não... não foi! – e completou – Foi numa edição de boas maneiras e etiqueta, um livro que ganhei da vovó! –
a garota apontou para a moqueca fumegante – Lá explica tudo, diz que peixe combina com vinho branco e...
- Ah! Lá explica tudo? – o garoto interrompeu novamente (evidente que estava na defensiva) – Ganhou da
avó?
- É...
- Isso já esclarece! – exclamou Eduardo, que começou a falar em um tom de quem está enrolando uma criança
com uma história fantástica – Deixa eu explicar... Camila, naqueles tempos tudo era diferente! – fez uma pausa
e olhou com piedade para a garota – O que nossos avós passaram quando tinham nossa idade já saiu de moda.
Acredite então que era moda usar aquelas roupas ridículas... pois é... ninguém mais as usa. Já se foi este
tempo, e com a comida é a mesma coisa! Naquele tempo comia-se coisas estranhas com bebidas estranhas só
para parecer chique e poder-se dizer que era uma moça refinada e desse modo, fazer os homens quererem
casar com você! – e Eduardo completou super podre – Hoje em dia não precisamos fazer isso! Ninguém mais
liga para como nós adolescentes nos comportamos, nem pro modo como comemos ou falamos ou nos
vestimos. Essas barreiras já caíram! Já conquistamos nossa liberdade! Não precisamos mais beber vinho!

A irmã de Camila estava de boca aberta.


Camila estava sem reação.
Que coisa...
- Eduardo... mas... é só vinho... – balbuciou Camila.
- Só vinho? – indignou-se o rapaz, como se a pior das heresias lhe tivesse sido dita – Você imagina o que um
simples vinho como este aqui pode fazer com você??? – e foi enumerando as tragédias – Você pode ficar tonta
e desmaiar! Você pode bater com a cabeça no chão! Você pode perder a razão e tocar fogo na casa! Você pode
ficar bêbada e vomitar todo o jantar que preparou! E imagina se eu beber e acontecer isso tudo comigo? Você
quer que isso aconteça comigo? Quer que eu beba e vomite?
A imaginação de Eduardo era poderosa e suas pirações acabavam sempre deixando todos em volta tontinhos.
Como podia viajar daquele modo?
- Camilinha... amorzinho meu... – continuou Eduardo – ...não seria melhor se nós bebêssemos um suco?
Após alguns segundos de silêncio, Fran concordou influenciada pelo discurso do rapaz:
- É... um suco ia muito bem!
Assim que Camila colocou a jarra de suco de caju na mesa, Eduardo exclamou aprovando, como se elogiasse
um cachorrinho que consegue realizar uma tarefa como dar a patinha ou fingir-se de morto:
- Isso garota!
Ela sorriu amarelo.
- Não é melhor assim?
- É! É sim Eduardo, concordo! Não quero que nada estrague nossa noite – e disse com sarcasmo – Aquele
vinho é muito perigoso! Acho que vou chamar a polícia aqui e mandar prendê-lo!
A irmã de Camila comia e bebia feliz e contente.
- Ai maninha! Que delícia!!! Acho que você que devia cozinhar nesta casa!
25
- Verdade! – concordou Eduardo, todo sorridente, com a bocarra cheia já aprontando outra garfada. Realmente
achara a comida muito saborosa.
- Você gostou amor? – animou-se Camila.
- É! Eu gostei!
- Que bom! – disse a garota, que não desistia – Então trate de comer tudinho, que depois tem sobremesa...
- Oba! – exclamou Fran, arregalando os olhos, com água na boca – O que é?
- Pra você nada! – respondeu logo. Olhando maliciosamente para o namorado a menina atacou – Só Eduardo
vai comer o meu quitute...

O garoto parou com a comida no meio da garganta.


Só de pensar... ui!

Perdera a fome instantaneamente! Embora até um cachorro com síndrome de down pudesse entender a
indireta, Eduardo resolvera fingir que não havia entendido.
- Mas o que é isso Camila?? Eu não sou egoísta! – o rapaz fez a comida entalada descer pela garganta – Deixa
de ser boba! – e olhou solícito para a irmã da namorada – Fran, se você quiser eu divido a sobremesa com
você!
.....
Terminada a janta, todos conversaram um pouquinho ainda à mesa, até que Camila se levantou e chamou o
namorado, ela tinha que arrumar um local para Eduardo dormir. Fran ficou lavando a louça, enquanto Camila e
Eduardo foram providenciar isso.
- Me ajuda aqui Dudú! – pediu Camila, puxando o colchão de dentro do armário da irmã.
O garoto foi para o lado da namorada e puxou o colchão de uma vez só. Com a força que tinha, acabou
puxando junto quase todo o conteúdo do armário. Algumas revistas caíram de dentro e foram se espatifar no
chão.
- Ahá! – fez a garota, como se desvendasse um mistério – Então é aí onde minha irmã as esconde!!! –
exclamou Camila olhando para as revistas espalhadas pelo chão – Venha amor, vamos olhar algumas!
- Nem tô afim... – respondeu Eduardo, olhando sem interesse algum para os exemplares – São só revistinhas
de moda!
- Ah é? – fez Camila – Olha só! – e puxou do meio das revistas uma com a capa bem diferente das capas das
demais. Era uma revista de homens pelados – Veja só que pervertida minha irmã é!!!
Eduardo arregalou os olhos. Fran não parecia ser do tipo...
Camila sentou-se na beira da cama da irmã e convidou Eduardo a fazer o mesmo. Assim que o garoto sentou, a
namorada abriu a revista e exclamou:
- Isso deve ser muito engraçado! – e riu – Veja! – e apontou para o primeiro modelo – Olha só esse cara! Que
gostoso!
Era um homem, expondo tudo de fora, com o pintão duro em uma pose sensual debaixo de um chuveiro ligado.
Parecia um operário de mão-de-obra pesada tirando o cansaço e o suor depois de um árduo dia de trabalho.
- Não vejo nada de mais! – disse Eduardo, chacoalhando os ombros em fingido desdém – Que que esse cara
tem de gostoso? Ele é feito de morango por acaso??? – e continuava tentando colocar apatia em sua voz e
demonstrar desinteresse.
A realidade era a seguinte: achara a foto um tanto quanto atraente.
Nunca havia visto nenhuma revista de mulher pelada, muito menos de homem. Parecia que estava fazendo
algo feio, algo estranho... ilícito! E aquela sensação, embora fosse muito estranha, era de certo modo excitante.
- E olha esses dois! – ria-se Camila, virando a página – Que horrorosos!!! Se bem que a bundinha desse...
Eduardo viu a foto.
Tratava-se de dois caras, conversando por cima de um muro. Um estava de costas e outro de frente.
Realmente os caras eram horríveis, mas os corpos deles... eram maravilhosos.
Eduardo não queria admitir, mas reconhecia a beleza deles.
À medida que as páginas iam revelando novas fotos, novos lugares e mais situações insinuantes, Eduardo ia
fixando o olhar nas faces perfeitas dos modelos, com seus corpos esculturais e semblantes de deuses gregos.
Toda aquela beleza, aquela situação da nudez encarada na boa pelos modelos, como se fosse algo natural e
agradável, fizera com que uma fagulha se acendesse no interior de Ed.
Não sabia bem ao certo porque, mas estava se sentindo atraído pelos corpos definidos, bronzeados e
totalmente másculos.
Algo mexia com ele.

Algo estava se mexendo nele.

Algo dentro da cueca.


26
O garoto estava ficando excitado!
Como podia ser? O que aquilo significava? Porque achava aquelas imagens bonitas? Não... isso não parecia
certo!
Uma ciranda tomou parte da cabeça do menino. Ele era homem e tinha uma namorada. Ele tinha que se sentir
atraído por ela. Ele tinha que se sentir atraído pelas mulheres. No entanto, giravam em sua memória as faces
das garotas com que ficara e nada sentira. Lembrava-se de situações que normalmente seriam pra lá de
excitantes, ele sabia que eram, mas que não surtiam efeito algum nele.

E agora... isso!
Ele estava sentindo tesão em ver homens pelados na revista quando na verdade devia era estar sentindo nojo
ou qualquer outra aversão pelo mesmo sexo.
...mas não estava.
Muito confuso, Eduardo tirou a revista das mãos da namorada e indagou:
- Puxa... amorzinho, vamos parar logo de ver isso e voltar a arrumar minha cama, ok?
- Não Eduardo! – protestou a namorada tentando pegar a revista de volta – Eu quero ver! Me devolve isso aqui!
- Não! Não devolvo não! Tá pensando o que da vida? Acho que não é legal você ficar vendo esta baixaria! – o
garoto coçou o olho direito, pigarreou e completou sem muita firmeza – Esta pouca vergonha!
A garota revoltou-se:
- O quê??? Você não acha legal? Escuta aqui Eduardo, senhor bam-bam-bam, nós mulheres também temos o
direito de ver homem pelado, tá? Se a mulher pode mostrar tudo pro homem ver, porque o mesmo não poder
acontecer ao contrário? Me diga!!!
- É que... – Eduardo tentava argumentar sob o olhar inquisidor da namorada – veja bem, sob o ângulo da
moral... bem... é que...
- É que o quê???
- Não... não é nada... é só que não concordo com isso e pronto! – o rapaz desembuchou tais palavras com as
bochechas tão vermelhas quanto um tomate bem maduro.
- Ah é? Então só a mulher que tem que posar nua, aparecer pelada na televisão nestes programinhas de
auditório e só as mul...
- Não – Eduardo interrompeu – eu estou falando que eu não concordo tanto com o homem quanto com a
mulher. Nenhum dos dois precisa ficar se mostrando, ficar se vendendo vulgarmente. É disso que eu não gosto!
De vulgaridade!!!
Camila ficou olhando para o namorado sem dizer palavra.
Eduardo tornou a indagar:
- Agora, por favor, podemos arrumar a minha cama?
.....
Deitado em seu colchão, à meia luz, enquanto esperava Camila terminar de se trocar, Eduardo pensava nas
fotos que acabara de ver e na sensação que elas tinham despertado nele.
A cabeça estava que era um nó que ia se apertando cada vez mais.
- Eu achei homem bonito... eu achei homem bonito... – o garoto balbuciava como se estivesse delirante e com
febre.
- O quê? – perguntou Camila indo se deitar.
- Nada não...
- Ãhn... – fez Camila que agora se encontrava deitada também, mas sem cobertas e com uma mini camisola.
Passado um momento de silêncio, a garota perguntou toda doce:
- Eduardo... posso apagar a luz do abajur?
Eduardo arregalou os olhos, levou a mão na testa e pensou “pronto, começou!”. Tentou se safar:
- Não sei... eu estou querendo dar uma estudada...
- Ah... estudar? Essa hora da madrugada?
- É.
Novo silêncio.
- Oras... pensando melhor... pode apagar a luz sim Camila, que eu não vou estudar! – resolveu enfim o garoto.

- Ok.
Quando o quarto ficou escuro, a namorada tentou jogar mel, justamente como Eduardo havia previsto:
- Puxa amor... tá tão friozinho aqui né?
Ele, com a delicadeza de um Jeca respondeu:
- Se cobre, ué!
- Mas... eu tava pensando... bem... – ela estava totalmente sem graça – ...eu tava pensando Duduzinho... que
talvez você pudesse... você sabe... vir deitar aqui comigo...
Eduardo já ia respondendo “Deus me livre”, quando uma idéia se passou em sua cabeça.
Agora era a hora.
27
Com certeza!
Ela já estava tentando seduzi-lo e ele... bem, ele poderia deixar se seduzir.
Afinal, era homem, era macho e seu tesão tinha que ser por fêmea!
Nada dessa história de ficar excitado vendo revistinhas de homem pelado... não, não! Se era mesmo homem, a
hora de provar isso tinha chegado e era AGORA!!!
E não tinha desculpas!
Sem nada dizer, passou para a cama da garota num pulo.
- Amor!!! – ela exclamou praticamente incrédula e com um baita sorriso esculpido em seus lábios.
Eduardo começou a beijá-la, a abraçá-la, a se esfregar contra o corpo da namorada, tentando por em prática o
que seus instintos naturais lhe pudessem oferecer para a realização da “missão”.
Tirou a camisola de Camila, tirou seu pijama, ficaram os dois apenas com suas roupas íntimas e Eduardo
continuou acariciando a namorada. Continuou tentando... tentando... mas...
...nada acontecia.
O “negócio” simplesmente não funcionava.
Prosseguiu durante mais algum tempo, mas acabou desistindo.
- O que foi? – quis saber Camila que estava adorando, pra lá de excitada e pensando “oba! É hoje!!!” – Que há
de errado?
- Não... não é nada... – desculpou-se Eduardo.
Agora sim sua cabeça estava latejando tamanha era sua preocupação.
Como aquilo podia estar acontecendo? Como ele podia não funcionar com uma garota tão bonita quanto a que
ele tinha? Uma garota que se encontrava quase nua, disposta a ir até o fim, em uma cama, no escurinho? Uma
garota que era dele, só dele?
- Se não é nada... então porque parou? – indagou a garota, ofegando.
- Porque... isso não parece certo!
- Amor, o que não parece certo?
- Eu não sei... – e ele realmente não sabia – só não parece ser.
- Mas porque?
- Ah Camila... – e o rapaz foi tratando de arranjar uma desculpa – você é ainda tão jovem...
- E que tem isso demais? Você também é!
- Puxa! Eu sei! E é justamente isso! Vai que acontece alguma besteira? Vai que sai algo errado? Eu não quero
que você tenha traumas...
- Dú... – Camila passava as mãos pelos cabelos do namorado com muito carinho e sussurrava – ...a gente já
conversou sobre isso antes... você sabe muito bem o que eu penso! Amor, eu estou pronta, eu quero!
A confusão era tamanha, que o garoto se sentia encurralado.
Não sabia o que fazer. Aquilo era por demais horrível para ser encarado na boa de uma hora para a outra. O
turbilhão em sua cabeça fazia uma pressão tremenda.
Não demorou, o garoto explodiu em lágrimas.
Apenas respondeu:
- Mas eu não estou pronto, eu não quero!
E escorreu para a sua cama no chão.
fim do mistério - Os anjos também se enamoram
13.04.2004
Eduardo conhece o garoto do início da rua e acaba em seu quarto...

diminuir texto | aumentar texto

por Maven - mavenmusic@hotmail.com

Capítulo V

Mal o dia amanhecera, Eduardo já estava de pé e arrumando as


suas coisas para ir embora. Quase não entrava luz no quarto, e as poucas
réstias que existiam refletiam um tom sépia que pintava o quarto
como cena de filme antigo.

Quase se escutava a pianola ao fundo.

O rapaz tomava muito cuidado para não acordar Camila, que ainda estava
deitada, toda encolhida, virada para a parede.

Eduardo primeiramente trocou de roupa, dobrou o pijama e colocou na mochila,


28
depois,
quando ia calçar a meia, ouviu a voz de Camila:

- Porque está arrumando suas coisas?

Eduardo voltou-se e olhou para a cama.

A garota continuava na mesma posição.

Encolhidinha, toda miúda como se tivesse cólicas.

- Já está acordada? – Eduardo indagou sem jeito. Sua voz voou


macia, embrulhada em cuidado.

É lógico que estava acordada.

- Eu não consegui dormir a noite inteira – Camila respondeu. Articulava


as palavras como se as mastigasse, muito duras eram e podiam lhe machucar.

- É... – disse Eduardo – ...eu também não


preguei os olhos.

- Já vai embora? – ela quis saber, e para Eduardo nunca a voz da


namorada lhe parecera tão magoada.

- Daqui a pouco... – respondeu o garoto, muito sem graça, já


terminando de arrumar seus pertences.

Era meio como se tivesse sido pego com a boca na botija, um ladrão na
iminência de deixar a cena do crime de modo desonrado, covardemente após
o delito.

- E ia embora sem me avisar?

- Não! É claro que não – disse Eduardo, desculpando-se,


fechando a mochila e colocando-a nas costas – Ia te beijar em despedida
e avisar que estava indo para casa.

- Ah... – fez Camila. Virou-se para ver o namorado.

- Mas eu não ia agora... agora...

A garota observando o rapaz já vestido e de mochila nas costas disse


amarga:

- Não... claro que não – e virou-se novamente para a parede.

- Pois é! – fez Eduardo, esfregando uma mão na outra, tentando


não sumir de vergonha.

- Creio que não vai cumprir sua promessa, não é? Você


tinha me prometido que ia almoçar aqui.

- É... eu sei.

Um silêncio monstruoso invadiu o quarto.

Fazia parte da trama também.

O garoto.
29
A garota.

O silêncio.

Lá de fora, bem ao longe, ouviam-se apenas os pássaros cantando


vindo saudar a manhã.

- Pan tocou a flauta...

- Hein? – fez Eduardo, sem entender nada.

- Você sabe quem é Pan, não sabe?

Camila era apaixonada por mitologia e vivia contando lendas para Eduardo, mas
ele não estava muito certo se sabia com exatidão quem Pan era,
tinha apenas uma vaga e incerta lembrança.

Mas o pouco que se lembrava era suficiente.

Pan era uma entidade mitológica, um jovem com chifrinhos e pernas de


cabrito que tocava flautas pelos campos, dançando e procurando atrair
as musas dos bosques.

- Sei... – Eduardo respondeu – mais ou menos... é o carinha


de chifres, não? O que é que tem ele?

- Pois Pan era muito feio. Nenhuma das musas o desejava. Um dia, Afrodite, a
deusa do amor, deu-lhe uma flauta encantada. Disse lhe que cada vez que tocasse
o instrumento, as musas o desejariam. E Pan tocava a flauta – Camila foi
dizendo – para as suas musas... e elas se encantavam... se enamoravam
dele, mas ele a nenhuma queria...

- Como poderia...

Camila aumentou a voz e interrompeu a fala do namorado bruscamente:

- Afrodite não havia explicado... quando um ganha, outro perde. Ele perdia
interesse quando as musas os procuravam. Então, um dia as belas entidades
se revoltaram e roubaram a flauta de Pan enquanto ele dormia. Em vingança,
retiraram uma nota musical do instrumento. Quando Pan despertou, foi tentar
tocar sua flauta para encantar as musas e descobriu que ao invés delas
se apaixonarem por ele, eram os anjos que acabavam sob o seu encanto.

- Anjos? Mas Camila, o que isso tem...

Ela continuava a falar:

- Os deuses não podiam admitir tal coisa. Não... os anjos não


podiam se enamorar de ninguém... anjos não podem se apaixonar.
Então, como solução, os deuses decidiram que Pan, ao tocar
a flauta faria todos os anjos apaixonados caírem mortos no chão...

- Mas...

- E foi assim. Cada vez que Pan tocava sua flauta, fazia os anjos caírem...

Camila narrava a história de tal modo que parecia que ela mesma tinha
participação neste mundo mitológico. Parecia querer passar
um recado como quem diz “eu tenho medo de cair morta também”.

Agora Eduardo entendia.


30

Ele tinha tocado a flauta.

Cedo ou tarde alguém ia sofrer por conta disso. Ele demorou ainda um
pouco para quebrar o silêncio, mas finalmente indagou:

- Eu sou mesmo ruim, não? – o garoto indagou, e as palavras da namorada


ecoaram em sua cabeça “quando um ganha, outro perde”.

- Não Eduardo. Eu creio que não. Acho até que é excesso


de bondade – Camila disse enquanto afagava uma mecha de seus cabelos dourados.

- Camila... eu me sinto enfiando um espinho no peito de um passarinho ferido


e indefeso. Não entendo como isso pode ser bondade.

- E isso não é bondade? Dar golpe final a quem sofre? De qualquer


modo não é disso que estou falando, eu vejo bondade ingênua
em seu ato. Você tenta me proteger... você tenta não me deixar
impura... – fez pausa – ...mas não é assim que eu
vejo. Não é o modo como eu encaro isso... pois para mim não
há nada mais puro do que o amor entre duas pessoas.

- Ah Camila... eu também acho, inclusive...

- A não ser, é claro – a garota interrompeu –, que


não me tenha mais amor...

- Deixa de bestei...

A garota interrompia sempre, precisava se firmar em sua linha de raciocínio:

- Então eu compreenderia. Tudo estaria explicado.

- Não Camila, é que... – ele ia se explicar sem justificativas.

- O quê?

O garoto nada pode dizer. Não podia procurar dentro de si palavras seguras
e honestas para falar, pois se o fizesse, magoaria mais ainda a namorada, preferiu
ficar calado, forçando sua natureza madura se calar, e isso lhe consumia
tanta energia que tremia inteiro.

Figura de refugiado de guerra, mudo e insone junto da porta.

Seus olhos marejaram e então, com a voz trêmula falou:

- Nada... tchau.

Abaixou a cabeça e saiu do quarto.

...não houve beijo de despedida nem nada.

.....

No caminho de volta para casa, Eduardo desejava não ter sentimento algum.
Nem bondade, nem ruindade, nem alegria nem tristeza, nem sensação
de fome nem de saciedade, nem plenitude, nem solidão. Seria mais tão
mais fácil ficar neutro. Iria parar de machucar os outros com sua cabeça
dura e também iria parar de se machucar.

A solução não era essa, mas ninguém provaria o contrário


31
ao garoto transtornado, que desviaria de seu rumo e seguiria selva adentro e
se perderia por não querer enxergar o seu caminho natural.

Quando desceu do ônibus, Eduardo estava pensativo.

Caminhava rua abaixo, tomando o rumo de casa, arrancando folhinhas dos álamos
de copas gordas e verdejantes. Além de ter aquele maldito nó em
sua cabeça, ainda se preocupava em bolar uma desculpa convincente para
apresentar aos pais, que certamente iriam estranhar a sua presença de
volta em casa tão cedo.

E ia passando mergulhado em pensamentos quando...

GRRRR... AU! AU!

O cachorro da casa do começo da rua avançou com tudo na direção


de Eduardo.

O susto fora tão grande que sentiu um formigamento no corpo inteiro.

Ficou tão branco quanto uma pessoa pode ficar.

Passado o primeiro instante de susto, outro sentimento se apoderou do rapaz.


A injeção de adrenalina em suas veias fez o sangue ferver. Sem
pensar no que fazia, apenas fazendo mecanicamente, como um instinto, Edu retesou
a perna direita para trás, armando um chute contra o cão que avançava
em sua direção com os dentes à mostra e...

PIMBA!

O chute que deu fora com mais gosto do que se fosse uma bola na mira exata
do gol. Deu um bicudão bem na ponta do focinho do animal que voou para
longe com o impacto. A trajetória que o cachorro descreveu no ar fora
a mais desajeitada o possível, o bicho mais parecia um saco de batatas
todo desconjuntado do que um ser vivo.

O animal caiu na grama da entrada da casa.

Eduardo, ainda cego de ódio, resmungou:

- Besta demoníaca...

Ficou parado, esperando o bicho se levantar novamente, com a bocarra aberta


e garras sinistras, como Freddie Krueger, que leva porrada, é detonado,
é esquartejado e não morre nunca.

Mas o cão não se levantou.

Eddie apurou os ouvidos para captar qualquer gemido.

Mas nada escutara.

Resolveu investigar...

Agachou-se em frente do animal e tocou seu pelo. Pressionou a mão contra


as costelas do pequinês na esperança de obter alguma reação,
mas embora o animal estivesse quente, já não se mexia e nem respirava.

- Eu matei o desgraçado! – exclamava Eduardo num misto de arrependimento


e satisfação – Eu matei o desgraçado! – repetia
32
incessantemente.

Verificou a pelagem do animal.

Estava intacta.

Como podia ter matado o cachorro com apenas um pontapé? Será que
o bicho tava se fingindo de morto. Era bem capaz do jeito que o cão era
ruim feito a peste... Eduardo estava perplexo.

Ao tocar o focinho do bicho, reparou que ele estava úmido de sangue.

- Eca! Tá cheio de sangue! – fez o rapaz – Que nojo! –


e limpou a ponta dos dedos na grama.

E agora?

O que faria?

Ele podia muito bem ir para casa e deixar o incidente morrer por ali mesmo,
uma vez que não existiam testemunhas. Podia ainda dar sumiço do
cachorro, assim seria apenas mais um bichinho que saiu de casa e não
voltou mais.

Os donos podiam até pensar que ele fora simplesmente roubado.

Eduardo podia falar com os donos do bicho e inventar uma desculpa qualquer e
pelo menos... tentar se safar dessa...

Putz! O que faria? O que seria correto?

Bem, o correto Eduardo sabia muito bem o que era, mas simplesmente não
o podia por em prática. Nunca teria coragem de tocar a campainha e dizer:

- Oi! Sabe o que é? Eu estava descendo a rua para ir para casa, pois eu
moro logo ali no retorno – e teria que dizer com a maior cara de pau –
quando dei um chute no seu cachorro e o matei!

.....

Ao tocar a campainha, Eduardo suava frio nas mãos. Esfregou uma na outra
e estufou o peito.

Estava ali parado diante da porta sem ao menos ter bolado uma desculpa decente.
Ia apenas inventar na hora, pois sempre que bolava algo para ser dito, acabava
dizendo tudo ao contrário.

O dlim-dlom da campainha fez ecoar um abafado “já vai” numa


voz masculina vinda do interior da casa.

Passado bem uns trinta segundos, a porta se abriu.

Quem a abria era um rapaz de aproximadamente vinte anos, com uma toalha enrolada
na cintura. Tinha os cabelos encharcados e o corpo molhado ainda.

Estava pingando e formando uma poça debaixo dos pés.

Eduardo arregalou os olhos.

O garoto daquela casa se parecia muito com um dos modelos da revista que vira
na casa de Camila.
33

Claro que não era – pensou logo Eduardo, piscando e chacoalhando


a cabeça – mas o jeito do garoto lembrava e muito. Talvez fosse
por causa da sensualidade da situação, da exposição
sem a vulgaridade, mas ainda sim, com o toque erótico da toalha na cintura.

Ele tinha os cabelos castanhos, com um comprimento médio, pele firme


e com um tom rosado. O corpo era bem definido e os músculos do peito
quase saltavam para fora do tórax. O abdômen era bem trabalhado
e apresentava aqueles quadradinhos sensuais.

Ed tinha certeza que aquela toalha branca e felpuda escondia um par de pernas
fantásticas, com coxas poderosas...

...por instantes Eduardo chegou a desejar que aquela toalha caísse...

...a estranha sensação estava voltando para Eduardo. Aquela inquietação


do dia anterior se alojava novamente em sua alma... ele estava novamente tendo
uma ereção!

Era algo muito belo aquele corpo ali, mas...

...o garoto não queria nem pensar nisso! Era como se algo de maléfico
voltasse para sua cabeça, algo que simplesmente não podia ser,
como um anjo vingador trazendo sofrimento aos pecadores.

Tratou de desviar o olhar, virar a cara para outro canto qualquer e falar:

- O-oi! Sabe o que é? É... e-eu estava descendo a rua para ir para
casa, pois eu moro logo ali no retorno – disse Ed, totalmente sem jeito
– quando de repente passou um cara em uma bicicleta que passou por cima
do pescoço do seu cachorro!

- Como??? – perguntou o rapaz à porta, confuso.

- É isso mesmo... o cachorro atropelou a bicicleta, digo, ai! Foi a bicicleta


que atropelou o cachorro! – era muito evidente o nervosismo de Eduardo.
Já não bastava ter que inventar uma história fantástica
para explicar a morte do cão, tinha ainda que tentar não se perturbar
pela nudez do outro rapaz.

O jovem de toalhas percebeu o desconforto de Eduardo e escondeu-se detrás


da porta, deixando apenas a cabeça para fora.

Isso só contribuiu para deixar Eduardo mais tenso e perguntando para


si mesmo se o outro rapaz teria percebido seus olhares. Ai, que situação!

- Mas você viu quem era o cara? – indagou o rapaz sem mostrar muita
preocupação na voz.

Parecia até que o cachorro era detalhe secundário.

Eduardo fez que não com a cabeça.

- Não viu, né? – decepcionou-se o garoto de toalhas –


Viu ao menos a roupa que ele tava usando?

- Ro-roupa?

- Sim, claro! Tá cheio de gente andando de bicicleta para cima e para


34
baixo, mas eu pego o carro e procuro o homem da bicicleta de acordo com a roupa.
Você lembra se viu?

Então Eduardo foi logo tratando de mentir:

- Vi sim! Ele tava usando uma calça jeans bem velha, uma camiseta preta
e chinelos tipo havaianas...

O rapaz sorriu segurando a porta, enquanto seu cabelo pingava pelo rosto de
pele clara:

- Você reparou tudo isso... – fez uma pausa ainda sorrindo e foi
logo jogando verde – ...e não viu como era o homem?

- É que... – desculpou-se Eduardo – ...é que o cara


passou muito rápido e estava de costas pra mim...

- Ah! Sei... – fez o outro rapaz decifrando Eduardo por completo.

- Pois é... – complementou Ed como quem quer dizer “sei que


parece absurdo, mas é a pura verdade”.

- Mas... Fred morreu? – quis saber o rapaz de toalhas, que começava


a tremer de frio com a pele e mamilos arrepiados.

- F-Fred? – indagou Eduardo um tanto quanto confuso.

- Fred! – repetiu o rapaz e esclareceu – O cachorro!

- Ah! – fez Eduardo como se finalmente entendesse uma conta muito difícil
– Sei... sim, Fred... – fitou o vazio lembrando em flashback a cena
do chute e afirmou sem o mínimo tato – É... seu cachorro
morreu sim... tá ali na grama...

- Hum... – ponderou o garoto, tremendo muito e pingando ainda – Tudo


bem! Ele não era o meu cachorro mesmo! E para falar a verdade, eu nem
gostava dele!

- Ah... é? – fez Eduardo, surpreso ao ouvir tamanha confissão.

- É! – reafirmou o garoto – Ele sempre me atacava e avançava


em mim – e acrescentou com um tom de voz teatral – Como eu detestava
aquele cão!!!

- Sé-sério??? – indagou Eduardo, que mal podia acreditar que alguém


passava pelo mesmo sofrimento que ele passava – Puxa... se este é
o caso... bem... eu também não gostava daquela peste!

- Ahá!!! Te peguei!!! – gritou o garoto na porta como quem grita


EUREKA – Eu sabia! Você matou o cachorro! – e apontou o dedo
para Eduardo.

Duda não sabia o que fazer nem o que pensar.

Ao passo que o outro garoto continuava falando:

- Você não gostava dele também! Você não gostava!!!


Agora confessou o seu crime!!! – o rapaz de toalha continuava apontando
para Eduardo.

- O quê? – perguntou Eduardo, perdido – Crime? Que crime! Eu só


35
falei que eu não gostava daquele cachorro!

Então o garoto na porta abaixou o dedo e abriu um sorriso.

- Mas não esquenta! – e acrescentou, agora começando a rir


– A verdade é que eu não gostava dele mesmo!!!

- É?

- É! Sério! – e a cabeça que aparecia detrás


da porta gargalhava.

- Ah... – Eduardo pensou “puxa... o coitado é doido...”.

E então, o garoto da toalha parou de rir por completo:

- Mas minha mãe... coitadinha... vai ficar arrasada! – balançou


a cabeça de um lado para outro em pesar – Ela gostava muito do
Fred... aquele cachorro idiota e pentelho! – o garoto ficou com o olhar
parado, fixo em algum ponto perdido do universo até que de repente, despertou
do transe e exclamou sorridente – Mas entra aí!

- Como? – fez Eduardo com cara de “como?”.

- Entra aí que eu estou morrendo de frio! – ordenou o rapaz.

Eduardo olhou para a cara do garoto sem nada entender.

Mas acabou entrando.

.....

O rapaz de toalhas ia andando corredor adentro, enquanto Eduardo o seguia. Tinha


o olhar fixo na parte traseira do rapaz. Não criatura inocente, não
era nas costas, era na bunda do outro mesmo.

Edú não tinha como não olhar.

Não que fosse tarado, mas uma força de natureza misteriosa obrigava
os olhos do rapaz a ficarem grudados na traseira do outro. Alguém de
fora precisaria deixar a vulgaridade indiferente e reparar na beleza escondida
por detrás daquela cena. Apreciação total que Eduardo tinha.

- Então – disse o garoto de toalhas que andava em passos lentos,


ainda de costas e conduzindo Eduardo pela casa – você me disse
que mora logo ali no fim da rua. Isso significa que somos vizinhos! Formidável
esse fato. Espero que possamos jogar bola de vez em quando – o rapaz continuava
a andar e tagarelar até que de supetão exclamou – Mas veja
só! Eu falei um monte até agora e ainda não me ocorreu
de nos apresentarmos...

- Ah! É verdade! – exclamou Eduardo, saindo do transe, desviando


o olhar da bunda e fixando-o na nuca do rapaz – Eu sou o Eduardo!

O outro rapaz virou-se de subitamente e exclamou:

- E eu o Rodrigo!!!

Eduardo não contava com a guinada brusca do rapaz e não conseguiu


“frear” em tempo.
36
Ocorreu um leve encontrão com Rodrigo.

Ficaram face à face.

Eduardo podia até sentir o hálito doce e ofegante do rapaz de


toalhas.

Diante do incidente, Rodrigo abriu um sorriso, que Eduardo não pôde


deixar de achar lindo. Era um sorriso perfeito, de dentes alinhados e muito
brancos.

- Muito prazer... – disse Rodrigo quase encostando os lábios nos


lábios de Edú.

Atordoado, Duda não conseguiu fazer nada além de sorrir de volta,


como quem diz “tá! tá legal, o prazer é todo meu...”.

Esquivou-se dando um leve passo para trás.

- Pode me chamar de Go ou Digo, é como me chamam... alguns chamam de Diguinho,


mas só os mais íntimos.

Não havia dúvida que o clima ali estava muito sinistro...

Chegando no quarto de Rodrigo, este exclamou:

- Senta aí – e apontou para a cama – que logo eu volto. Você


não se importa de esperar eu terminar meu banho, não é
mesmo?

Sentando-se na cama, Eduardo fez que não com a cabeça.

- Ótimo! Daqui a pouco eu volto e a gente vê o que faz com o Fred.

- Fred? – indagou Eduardo confuso.

- É! – exclamou Rodrigo, como se fosse a coisa mais elementar do


mundo – A gente vai ter que fazer alguma coisa... tipo, tirar o cachorro
da grama, enterrar... sei lá! – e terminando de dizer isso, fixou
Duda bem nos olhos para talvez tentar descobrir em que camada da atmosfera ele
se encontrava.

Demorou certo tempo até Eduardo sair do transe.

- Ah! Tá... – fez Eduardo, entendendo – ok! A gente pode colocar


num saco de lixo e jogar fora...

O garoto de toalhas sorriu e saiu do quarto, deixando Eduardo com seus pensamentos.

Estava se indagando porque entrara naquela casa.

Nem conhecia o outro rapaz e já estava no quarto dele!!!

De algum modo aquilo parecia errado, embora não existisse ali nada que
dissesse que aquilo era errado. Não havia nada de anormal, afinal, já
estava bem acostumado a esperar amigos saírem do banho. Era normal após
o esporte, era normal quando iam a festas. Esta mesma situação
já tinha se repetido umas mil vezes com Fábio e nunca tivera a
conotação que agora tinha...
37
...o que seria isso que tornava a estada ali naquele recinto tão inquietantemente
errada? Aliás, tão deliciosamente errada?...

Não podia negar que achara Rodrigo sensual.

O quarto estava meio bagunçado. A cama era de casal, e estava desfeita,


o que levou Duda a concluir que Rodrigo acabara de se levantar e agora fazia
sua toalete. O pijama de algodão estava jogado ao chão, com descaso.

Um belo tapete de renda nordestina estendia-se pelo quarto.

Era uma peça, que embora meio desordenada, acalentava muito aconchego
e dava um toque displicente ao recinto.

Uma foto de Rodrigo na sua tenra infância estava emoldurada na cabeceira


da cama. Fora sem dúvida uma criança adorável. As bochechas
eram vermelhas e gordas. Eduardo achou muita graça na foto. Outro retrato,
ao lado, já era mais recente, devia ter no máximo um ano e era
de Rodrigo abraçado com um bando de amigos em um local estranho, que
Eduardo não conseguira identificar.

O quarto tinha um cheiro que muito agradou Eduardo. Não sabia distinguir
aquele cheiro, não sabia que estranho odor era, mas acalentou-se e sentiu-se
bem por estar naquele ambiente.

Havia uma estante onde diversos troféus estavam expostos. Eram de muitos
tamanhos, com inúmeras medalhas ao redor do pescoço de estatuetas
ora prateadas, ora douradas.

Por curiosidade, Eduardo levantou-se e foi examiná-los. Todos haviam


sido ganhos em jogos de vôlei, basquete, futebol e tênis. Rodrigo
participara de diversos torneios e saíra vitorioso da maioria. Dos que
não saíra com vitória suprema, ganhava sempre troféu
ou medalha por honra ao mérito, afinal, o que importa é participar...

- Demorei? – perguntou Rodrigo, entrando subitamente no quarto, surpreendendo


Eduardo.

- Hã? – assustou-se Eduardo – Ah! Não...

- Que tal? – indagou Rodrigo, sorridente.

O rapaz ainda estava com uma toalha enrolada na cintura, mas já era outra
e desta vez, não pingava. Acabara o banho e se secara, penteara os cabelos
e cheirava muito bem.

Como Eduardo ficou de olhos arregalados e não respondeu nada, o garoto


resolveu perguntar novamente:

- E então? Que tal? – e apontou para os troféus.

- Ah! Pois é! Eu só tava olhando... – desculpou-se Eduardo,


e depois elogiou – São muito legais! Você que os ganhou todos?

- É! – concordou Rodrigo – Eu sou “atréta”!


Ganhei a maioria desses troféus de uns anos para cá!

- Mesmo? – interessou-se Eduardo. Esporte era algo de que sempre gostara.

- É verdade! – disse Rodrigo com o seu sorriso perfeito na cara


38
– Depois que entrei na faculdade principalmente... faço Educação
Física e vivo viajando para campeonatos e coisas do gênero.

- Que legal... – disse Eduardo, com muita sinceridade – eu também


tenho os meus troféus, mas são bem mais modestos que os seus...
costumava ser um cara bem esportivo, mas confesso que hoje em dia não
me sobra muito tempo...

- Porque? – quis saber o garoto de toalha – Você trabalha?

- Não, não! É que ainda não estou na faculdade...


– esclareceu Eduardo – faço cursinho e isso me toma muito
o tempo – e calou-se. Rodrigo olhava intensamente para Eduardo. Sem saber o
que fazer, o garoto complementou inutilmente – Fora que ainda tem aula
de língua estrangeira, redação... coisas assim... mas nem
dá nada, porque eu não era atleta como você. Era como um
hobbie. Por isso não ligo muito e dou mais importância aos estudos.
Claro que de vez em quando faz um pouco de falta jogar, mas quem se importa?

- É... – fez Rodrigo, dono da situação – É


foda! Ainda bem que não passei por isso! Estudei pouco para o vestibular,
não abri mão dos meus jogos, mas passei de primeira...

- Você teve sorte! – invejou Eduardo.

- Não... não foi sorte não... é que meu curso não


era tão concorrido assim naquele período... – Rodrigo explicou
– ainda mais que a minha faculdade é paga... então... já
viu, né?

- Ok... – fez Eduardo não para apoiar a frase de Rodrigo, mas sim
para não se parecer como uma múmia que não interage na
conversa.

Ainda assim, Rodrigo sorria.

O garoto de toalhas encaminhou-se para o guarda roupa, abriu a portinhola, retirou


uma camiseta, uma bermuda e uma cueca. Jogou a roupa em cima da cama e tirou
a toalha.

Ficou nu em pêlo.

Bem ali, na frente de Eduardo!

Rodrigo fez isso com estudada naturalidade, pois percebera o quanto Eduardo
tinha se incomodado com o modo com que ele havia atendido a porta e queria levar
aquilo um pouco mais longe.

Sabia que Eduardo sentia-se desconfortável, mas queria estudar a sua reação.
Travou conversa antes de se vestir:
- Que curso você pretende fazer?
- E-eu? – gaguejou Eduardo com muita vergonha, sem olhar para o corpo do
rapaz.
Que situação chata.
Eduardo já tinha passado por isso nos vestiários de clube,
colégio, na casa dos amigos, mas era tão diferente naquela época,
e agora... argh! Algo acontecia ali!
Aquela nudez incomodava.
Incomodava porque Eduardo queria olhar, mas não podia, se pudesse teria
que ser natural, mas se olhasse jamais seria natural. Algo muito confuso, mesmo
assim, Eduardo lutava para se expressar de maneira adequada e não transparecer
39
em sua voz esse fascínio às avessas:
- E-eu quero fazer medicina...
- Na Federal?
- É...
- Puxa! – admirou-se Rodrigo, que se aproximou de Eduardo, com aquele “negócio”
solto, balangando no meio das pernas – Tem certeza que você quer
medicina na Federal?
- Te-tenho! – acanhou-se Eduardo, que a esta hora, olhava para qualquer canto
do quarto em que Rodrigo não estivesse.
- Ah! – exclamou o garoto nu, e como se fosse um velho amigo, aconselhou
– Se é isso o que quer de verdade... então vá em
frente! Estude mesmo!
- É! – fez Eduardo, diante do incentivo.
- Meus pais são médicos, sabe? – falou Rodrigo como se falasse
ao acaso.
- Mesmo? – interessou-se Eduardo.
- É! – respondeu Rodrigo, agora pegando a camiseta de cima da cama
– Meu pai é especialista em fraturas e minha mãe é
clínica geral – vestiu a peça.
- Nossa! – maravilhou-se Eduardo – deve ser formidável
ter dois médicos em casa!
- É... – Rodrigo concordou descordando – você não
imagina o quanto!
- Porque o desânimo? – quis saber Eduardo que não pôde
deixar de notar a ironia na voz do garoto, que agora já vestia a cueca.
- Porque nunca tive a presença dos meus pais. Tive apenas vultos deles.
- Você cresceu separado de seus pais? – indagou Eduardo, penalizado.
- Não! – disse o garoto imediatamente – Não cresci,
mas desde pequeno, eles trabalham à noite. E eu estudo de dia. Então,
quando estou em casa durante a noite, estou dormindo e eles estão fora.
Quando chegam, eu é que saio. Quando chego à tarde, eles estão
dormindo para irem trabalhar à noite.
- Puxa... – fez Eduardo, com dó do novo amigo – ...eu entendo...
que saco! Deve ter sentindo muito a falta deles.
- É! – fez Rodrigo como quem não se importa e sorriu novamente
– Imagina como não eram minhas festinhas de aniversário!
Mas eu me acostumei! Lá por volta dos treze anos eu já achava
isso normal!
- Certo... – aliviou-se Eduardo – mas eu acho que não ia me
acostumar não. Principalmente pela minha mãe, sou muito apegado
a ela. Não ia achar normal isso não.
- Ah é? – indagou o garoto, que colocava a bermuda. Resolveu instigar
o vizinho novamente – E o que mais não acha normal?
- Eu? – perguntou Eduardo, apontando o indicador para o próprio
peito, esperando uma confirmação.
- É! – confirmou Digo.
- Não entendo o que você quer dizer com isso... – resmungou
Eduardo, meio perdido, meio sabendo.
- Sabe sim... – afirmou Rodrigo – o que esta foto lhe diz? –
pegou o porta-retrato de cima da cabeceira da cama e o mostrou para Eduardo.
Era a foto em que o bando de amigos se abraçava, tendo muita diversão.
- Nada! – disse Eduardo observando a foto – É normal tirar
foto! Completamente normal ter amigos!
- Sim! Claro... – concordou o rapaz – natural lá isso é!
Mas este local... você sabe onde é? Ou melhor, você sabe
o “quiéquié”?
- Não... – disse Eduardo.
- É uma boate!
- Boate?
- É!
- E o que isso tem de anormal? – quis saber Eduardo – eu mesmo já
40
fui em boates, dancei a noite toda com a galera, isso é completamente
comum para quem curte balada.
- Ahhh... Mas essa não é uma boate comum... é a GrooveLandS.
Eduardo arregalou os olhos.
A GrooveLands!!!
Já tinha ouvido falar naquele lugar diversas vezes.
Todo mundo já tinha. Não ter escutado histórias sobre esse
local era a mesma coisa que achar perna em peixe – impossível!
- Aquela boate gay???
- Isso! – confirmou Rodrigo confirmando com sorriso de canto de boca –
Todos nessa foto são gays! – e inclinou-se para Eduardo –
Você acha isso normal?
O garoto tomou o retrato em mãos. Parecia embasbacado.
- Você tem amigos gays? – quis saber Eduardo, num misto de nervosismo
e curiosidade.
- Claro! – afirmou o rapaz e acrescentou com muita naturalidade –
Eu sou um deles!
- Você é gay??? – espantou-se Eduardo.
Rodrigo riu gostosamente.
- Como se você não soubesse!
- Eu? – admirou-se Eduardo – E porque haveria de saber???
- É claro que você sabia. Desde o momento em que atendi a porta.
Ah! – fez Rodrigo – Você sabe, né? – e explicou
– É aquele lance de... digamos... indivíduos de mesma espécie
se reconhecerem mutuamente...
- Indivíduos de mesma espécie? – perguntou Eduardo confuso.
- É! – confirmou o rapaz, que concluiu faceiro – Se reconhecem
de longe!!!
Neste ponto Eduardo ficou vermelho e indignou-se:
- O quê??? – e atropelava as palavras por dizê-las muito rápido
– Você acha que eu... Você quer dizer então que, você
acha que eu sou, como pode dizer, digo, como ousa...?
- Calma! – interrompeu Rodrigo – Calma! Você não precisa
ficar nervoso que eu não...
- Mas isso é um absurdo! – Exclamou Eduardo, como se explodisse,
interrompendo o outro garoto por sua vez – Não tem lógica
mesmo!
- Não Eduardo, é que... – o outro ia dizendo calmamente.
Mas Eduardo não ouvia:
- Oras! E veja se tem cabimento! – o garoto chacoalhava a cabeça
do jeito que fazia quando algo o deixava fulo. Queria atacar o outro –
Desde lá de fora eu já tinha percebido que você não
batia bem das bolas!!! Imagina, rir daquele jeito com o cachorro morto! E agora
mais essa! Bem se vê que você não regula das idéias!
Achou que eu fosse boiola? Achou que eu fosse o que? Nem me conhecia e disse
para eu entrar...
- No entanto... – disse Rodrigo, calmamente, rebatendo a tentativa de ofensa
que Eduardo lhe fazia – ...você entrou!
- Mas é que... – Eduardo deteve-se. Não tinha o que responder.
Não tinha desculpas. Entrou porque quis mesmo – é que...
Rodrigo olhava com ar de troça para Eduardo.
Esperava ansioso por uma desculpa qualquer para poder se rir do moleque, que
estava totalmente sem defesas. Eduardo tremia o queixo tamanha a raiva que sentia.
- Oras! Oras! – explodiu novamente enfiando o dedo no meio da cara do outro
garoto – Eu não devo satisfação nenhuma para você!
Rodrigo riu alto e gostoso.
Eduardo revoltou-se ainda mais.
- Passar bem!
E saiu bufando pelo mesmo caminho que fez para chegar no quarto do rapaz.
Rodrigo ainda gritou lá de dentro:
41
- Ei! Devolve a minha foto!!!
.....

Eduardo entrou feito um tufão em casa e foi direto sentar-se na mesa


da copa. Batera a porta da entrada atrás de si com toda força
que conseguira reunir. A casa inteira tremeu. Os pais de Eduardo que estavam
na saleta ao lado do hall de entrada escutando rádio e namorando um pouquinho
ao ouvirem o estrondo da porta reviraram os olhos.

- Nosso filho está em casa – constatou Antônio para Sônia


– e parece que ele está sentando-se à mesa da copa...

- Huum... – fez a mãe sem paciência – eu sei... eu sei..


deixa comigo! – tirou os braços do pescoço do marido e levantou-se.
Foi dar de cara com o filho resmungando baixinho e vermelho de cólera,
sentado no seu lugar de “injustiças”, inevitavelmente, na
mesa da copa.
- O que faz em casa tão cedo meu filho? – quis saber Sônia,
que se sentava do outro lado da mesa, como de costume.
Eduardo soltou alguns ruídos ininteligíveis e balançava-se
para frente e para trás como um altista.
- Meu filho, o que quer dizer grunhindo desse jeito?
O garoto continuava.
- O que aconteceu? Foi o cachorro da casa do começo da rua?
Olhando para a mãe, Eduardo vociferou:
- Não! Aquela peste não me incomoda mais! Eu matei aquele desgraçado!
Sônia só pode rir.
- Mas que idéia, meu filho! Até parece!
Como o garoto não desfez a afirmação nem com gestos, nem
com palavras, a mãe percebeu que o filho dissera a verdade.
- Eu não posso acreditar Eduardo! Você matou o cachorrinho mesmo???
- Matei mãe!
- OH! – e levou a mão à boca, cobrindo-a – que horror!
Eu criei um marginal! Um assassino!!!
- Para de drama mãe!
- O que é isso em suas mãos? – indagou a mulher, referindo-se
ao porta-retrato de Rodrigo. Como Eduardo não lhe desse atenção,
a mulher exclamou:
- Aí está!!! Mal educado! É assim que retribui nossos esforços
e carinho? É assim? Você agora se tornou um criminoso!!!
- Não mãe! Foi sem querer – explicou Eduardo.
- Se-sem querer? – a pobre mulher indagou confusa – Co-como se mata
alguém sem querer???
- Ah mãe! Ele avançou em mim e eu dei um chute nele...
- Que horror! – Exclamou a mulher, que só exclamou por exclamar,
sem o intuito de interromper o filho, que continuou:
- E ele morreu! Eu não pensei que o bicho ia morrer... aliás, eu
não pensei nada! Só chutei!
- O que é isso em suas mãos? – a mulher tornou a perguntar
– E porque voltou todo revoltado para casa? – quis saber, muito
desconfiada.
- Eu não estou revoltado!
- Oras! Isso na sua cara não me parece cara de alegria! Anda! Desembucha
logo menino! Conta o porque está assim! Eu e seu pai estávamos
namorando numa boa e você interrompeu! Não estou com tanta paciência
assim! Porque tá revoltado?
- Porque... porque... – disse Eduardo fazendo pausa para inventar uma desculpa
qualquer – ...porque eu fui avisar que o cachorro tinha morrido e o dono
do cachorro não gostou e brigou comigo!
- Como?
42
- É isso aí! – confirmou Eduardo.
Logicamente não estava sentindo a morte do cachorro em nada, e sim sentia
a revolta de ter sido acusado de gay por Rodrigo.
- Filho! É natural que as pessoas não gostem de receber estas notícias!
– a mãe informou, e sem nunca esquecer o gênio ruim do filho
acrescentou – e você ainda tem uma delicadeza tão grande
para essas coisas... que não quero nem saber o que você falou para
o vizinho! Com certeza ele deve ter tido a razão em ter brigado com você!
Fico surpresa até que não tenha recebido uns safanões!
- Ah mãe! Até parece! Aquele cachorro não era nada...
- Ah! – fez Sônia como se despertasse de um estado de frenesi –
Quer dizer então que você falou com alguém daquela casa???
– indagou totalmente interessada.
- Falei, né? – concluiu Eduardo, meio que falando um dããr...
- Com quem? – quis saber a mãe.
- Que te interessa isso? – rebateu Eduardo, ainda nervoso.
- Olha os modos moleque! – observou a senhora – Você já
aprontou a sua hoje!
- AAAAHHHHH! – fez Eduardo, como se sentisse muita agonia – Eu sou
inocente! Eu só chutei o cachorro!!! Ele morreu porque quis!!! Puxa!
Foi só um chute!
- Só um chute Eduardo? Só um chute? – indignou-se a mulher
– Olha só para a grossura das suas pernas! Você acha que
um chute seu é uma coisinha à toa?
- Não... mas...
- Não tem mais nem menos Eduardo! Eu vou chamar o seu pai aqui!
Ao ouvir aquilo, o coração do garoto parou de bombear o sangue
por instantes e Eduardo sentiu-se gelar por inteiro.
- Não mãe! Não me faça isso!!!
- Antônioooo!!! – gritou a mulher com voz de carcereiro chamando
o carrasco.
Dentro de instantes o pai surgiu na copa e perguntou:
- O que está acontecendo aqui?
Antes que Eduardo pudesse se defender ou pronunciar qualquer coisa em sua defesa,
dona Sônia falou:
- Ele matou o cachorrinho!
- Ele o quê? – perguntou o homem, não acreditando no que ouvia.
- É isso aí papai! Nosso filho matou o cachorrinho da casa do começo
da rua!
Olhando para o filho, branco como cera, o homem indagou:
- Isso é verdade? – o tom severo da voz do pai, fez com que Eduardo
sentisse vontade de chorar.
- Pai... é que...
- Isso é verdade? – tornou a perguntar, interrompendo a tentativa
de defesa.
Eduardo, sem escolha, viu-se obrigado a confessar:
- Matei! Dei um chute no cachorro e matei! – o garoto tremia feito vara
verde. Sabia que o pai não iria lhe dar uma surra, mas podia sentir um
castigo impiedoso vindo em sua direção.
O pai arregalou os olhos para cima do filho. Eduardo mais que depressa acrescentou:
- Mas foi sem querer! Eu não quis matar o desgraça... digo, o cachorrinho!
Pobrezinho! É que ele me assustou e eu nem pensei. Só chutei.
Foi sem querer! Foi sem querer! Foi sem quereeeeeeeeeerrrrrrrrrrrrr...
E o moleque abriu a boca.
- Filho... – disse o pai sério - ...você anda tomando drogas?

.....

De castigo, enclausurado em seu quarto, Eduardo andava de um lado para o outro


e não tinha sossego. Não sabia se sentia raiva ou não.
Não sabia se tinha o direito de sentir-se assim.
43
Matara o cachorro. Mas isso não lhe parecia importante. Estava de castigo
por algo que os pais nem podiam imaginar o que era. Ia muito além de
um chute no focinho de um cão.
Era frustrante.
Já era quase onze horas da manhã e tinha o dia inteiro pela frente
ainda. Sentia que estudar, no momento, não daria certo.
Olhou ao redor. Avistou o computador.
Puxa... até que ele podia entrar na internet... mas deveria esperar até
as duas horas da tarde, para ficar mais barato. O que faria neste período
de tempo?
Estava com a cabeça inundada por resquícios da conversa que tivera
com Camila, logo no começo da manhã... algo dentro dele insistia
em romper com tudo, mas também havia este outro lado, que gostava muito
da garota e não queria vê-la infeliz.
- Alô? – atendeu Camila. A voz da garota soara muito triste do outro
lado da linha.
- Oi, tô ligando para dizer que já cheguei em casa... – o
rapaz disse para a namorada. Parecia até que o garoto a via, e que o
clima entre os dois estava exatamente da mesma maneira que estava quando Edú
deixou o quarto da garota.
- Tá certo... – fez a garota tentando fingir-se fria como alguém
que diz “e o que é que eu tenho a ver com isso? Chegou em casa,
chegou e fim de papo”.
Eduardo pegou de longe a animosidade que pairava no ambiente e defendeu-se brandamente.
Não queria discutir. Não tinha vontade nem forças para
isso.
- Não me trate assim. Eu não mereço... não tenho
culpa do que aconteceu embora reconheça que tenha acontecido por minha
causa...
Eduardo murmurava, sentindo um aperto no coração que lhe esmigalhava
o ânimo.
- Egoísmo Eduardo! – Camila disse e ainda repetiu para reforçar
seu discurso perfeito sobre a natureza humana – Egoísmo! –
e ainda perguntou – Porque o relacionamento tem que girar apenas em torno
de você? – em tom cético parecia que Camila era uma pessoa
que carrega a verdade única nas mãos e faz dela poderosa arma.
- Puxa! – era mania do garoto falar puxa para tudo – Você não
faz idéia do que eu estou passando!
- É claro que eu não faço!!! – Camila rebateu impiedosa
– Você não conta!!! Você é um mistério!
Você se fecha nessa sua concha, se isola no seu mundinho e quer que eu
compreenda!!! Isso me causa revolta de vez em quando, mas eu engulo! Agora chega!
– o tom exasperado da voz da namorada fez com que Eduardo sacasse que
ele estava na corda bamba, em plena ventania. Não podia se mexer muito.
Ou ia para trás, pra frente.
Ou pra baixo.
Não tinha outra saída.
Como cair estava fora dos seus planos... resolveu andar para trás, já
que não conhecia o caminho adiante.
- É tão difícil! – desabafou o rapaz – Faz parte
de mim, sabe? Não sou de ficar falando as coisas... Eu sou desse jeito...
- Eu sei... – concordou a namorada. Após um terrível silêncio,
a garota respirou fundo e indagou – ...e é assim que a gente fica?
- Como assim? – quis saber Eduardo, que estava meio mongo por tudo aquilo
estar acontecendo.
Primeiro de tudo naquela lista bizarra era o estranho sentimento que se apoderara
dele no dia anterior ao ver as revistas. A segunda coisa: já de manhã,
magoara a namorada e se magoara.
Depois teve o lance de matar o cachorro, e após isso, ainda passara a
humilhação de ser acusado de gay pelo vizinho.
Já em casa, os pais gralharam um monte com ele.
44
Tivera muito conflito sentimental para um curto período de horas e não
era nem hora do almoço ainda!!! E se o resto do dia enveredasse para
o mesmo caminho?
- Quer dar um tempo? – explodiu Camila, num ímpeto de coragem tirada
nem ela sabia de onde.
Tais palavras causaram espanto tanto nela quanto no namorado.
- Dar um tempo??? – averiguou o rapaz, só para ver se escutara direito.
- É Eduardo! Dar um tempo... – a garota repetiu, confirmando, demonstrando
firmeza na voz, porém sem um pingo de convicção.
- Não! – revoltou-se Eduardo – Não! Quem dá
tempo é relógio! – e as batidas do coração
lhe ensurdeciam. Disse bem alto – Prefiro acabar de vez se for assim que
você me apresenta as soluções!
Houve um silêncio magnífico.
Não o silêncio de paz, e sim o silêncio de guerra.
Aquele momento após o lançamento da bomba, onde tudo se congela
à espera da explosão. O momento em que não se articula
palavra e nem se ousa fazer gesto. O milésimo derradeiro entre a vida
e a morte.
- E vai ser tão fácil para você acabar assim? – a bomba
explodira – Porque pra mim não é nada fácil ter que
jogar o que sinto no lixo! – a garota mostrava indícios de que
iria chorar. O quanto aquilo comovia Eduardo, ele não poderia medir.
- Camila... – ele ainda tentou argumentar, mas ela era mais rápida
e tinha toda a situação em seu favor. Era bem mais fácil
para ela ser a vítima, afinal ela era mulher, menor, mais nova e acima
de tudo “inocente”.
Ah! E como é fácil acusar a outra parte de culpada, ou mesmo inventar
um culpado, principalmente quando estes não existem.
- Se bem que eu nem sei mais o que sentir... – a garota foi dizendo, incorporando
seu papel de anjo caído.
Pan tocava a flauta ao longe.
- E eu não sei bem o que pensar... – Eduardo abriu o coração.
Não sabia o que fazer daquilo tudo.
Era como uma batata quente que lhe tivesse caído em mãos. Como era injusto!
- Então é isso o que você quer? – a garota tornou a falar – Acabar?
- Não! Não... – adiantou-se Eduardo, que neste momento de confusão, não queria perder uma provável fonte
de força
– ...é melhor esse lance de dar um tempo mesmo...
- Ótimo... – concluiu Camila tão quente quanto a calota polar
– então pense bem enquanto isso.
- Vou pensar.
- Não vou te ligar durante uma semana e nem quero que você me ligue.
- Uma semana? – quis saber Eduardo, que não tinha entendido as
“instruções” e pensava “e agora essa?”.
- E não é só! – disse Camila, para desespero do namorado.
Eduardo sabia que quando ouvia este “e não é só”
ele significava que uma ou mais regras seriam impostas... e ai dele se as quebrasse.
Ofenderia a garota muito mais do que acabar no mesmo instante. Camila continuou
– Depois desta semana, vamos passar outra sem nos ver, apenas vamos nos
ligar de vez um quando.
- De quanto em quanto tempo nesta outra semana? – Eduardo tomou precaução
de se informar para não pisar na bola.
Era meio que uma cartilha que ele tinha na mente para tentar decifrar a namorada.
- Não sei... mas eu sei que quando terminar a segunda semana, a gente
vai se encontrar e vai ter que jogar limpo. Dizer cada palavra do que se sente,
cada palavra do que se passou neste período... tudo! Vamos ter que redefinir
este relacionamento ou acabá-lo!
- Tá! – concordou Eduardo, pensando “ai... um ultimato!”.
- Promete? – quis saber a garota do outro lado da linha.
- Prometo! – e o pacto verbal estava feito!
45
- Então está combinado Eduardo!
- Um beijo – o garoto queria ainda demonstrar certo carinho, mas antes
mesmo de terminar, Camila desligou.
Eduardo jogou-se na cama e ficou respirando contra o travesseiro.
Sentiu algo lhe incomodar o cotovelo...
Ao conferir que tinha um objeto debaixo do braço, Eduardo se posicionou
melhor na cama para ver o que era o tal elemento. Era o porta-retrato de Rodrigo,
que Eduardo irracionalmente jogara sobre a cama quando entrou no quarto.
Tomou o artefato em mãos e pôs-se a observar a foto que ele continha.
Agora tornara-se claro o tal ambiente misterioso.
Era uma boate!
E não era uma boate comum!
Era a GrooveLandS!
Com muita curiosidade, Eduardo aproximava a foto e ficava tentando reparar nos
detalhes do local, mas embora enxergasse muito bem, a foto estava com o fundo
demasiado escuro e as pessoas em primeiro plano estavam muito brancas por causa
do flash, de maneira que acabavam chamando mais atenção do que
qualquer outro elemento da cena.
Rodrigo estava lindo na foto.
O cabelo estava mais curto do que atualmente, sinal que a foto era de meses
atrás, mas ainda sim, recente. Tinha aquele sorriso franco e perfeito
estampado no rosto.
Como Eduardo gostara daquele sorriso!
Era um mistério para ele como aquilo podia ser, mas já que era...
o que poderia ele fazer senão colher mais uma nebulosa?
Pensava agora no que tinha ocorrido.
Lembrara-se do modo como Rodrigo tinha atendido a porta. Lembrara-se de como
o achara “louco”, porém divertido logo de cara e isso lhe
atraíra tanto. Não sabia de onde surgira aquela sensualidade tatuada
na pele de Rodrigo, mas não conseguia negar que o rapaz era belo e que
o achara irresistivelmente bonito enrolado em toalhas.
Lembrou-se da conversa no quarto.
Lembrou-se do lance de “indivíduos de mesma espécie se reconhecerem”
e riu baixinho. Riu, logicamente do absurdo de tal afirmação...
imagina! Ele, Eduardo, gay!
...mesmo assim, ficou com a pulga atrás da orelha.
O telefone tocou.
- Alô?
- Oi Eduardo! – fez a voz do outro lado, com muita empolgação.
- Oi Fábio! – Eduardo exclamou surpreso. As ligações do
melhor amigo andavam rareando. Já estava sentindo falta dele.
- E aí? O que você tava fazendo? – “curiosou” Fábio.
Eduardo olhou para o porta-retrato e respondeu:
- Nada!!!
- Ok! – fez o garoto do outro lado e exclamou – Nossa! Eu nem pensei
que ia conseguir falar contigo. Achei que você ia estar na Camila, mas
alguma coisa me disse que você estava em casa e que eu podia ligar!!!
O amigo parecia tão animado.
- Ah é? – fez Eduardo.
- É! – afirmou Fábio – Foi meio que um sexto sentido...
- Ih... isso é coisa de boiola! – Eduardo criticou. Mas disse tal
frase com tamanho esforço para engrossar a voz e parecer mais “macho”,
que acabou soando ridículo.
- Deixa de ser otário Eduardo! – o amigo rebateu – Coisa
de boiola é ficar achando tudo coisa de boiola!
- Tá certo... – concordou logo para o assunto acabar ali mesmo.
Não estava afim de discutir boiolice com Fábio. Queria até
parar de pensar nisso.
- Pois então! – Fábio atalhou – Liguei para saber o
que você vai fazer amanhã pela tarde. A “velha guarda”
fez contato e quer se reunir aqui em casa para jogar futebol...
46
- Não sei. Acho que vou ficar de castigo... – disse Eduardo, em
tom de desânimo. Na verdade, afim de ir na casa de Fábio ele era,
mas não com a “velha guarda”, pois já não era
a mesma coisa que era antigamente – Puxa... um futebazinho até
que caia muito bem, mas... a velha guarda, é? Na sua casa? Logo você,
que se afastou?
- Dú... não vamos tocar neste assunto de rupturas com o passado,
blá, blá, blá e coisa e tal, ok? – o amigo pediu
em tom de cautela – de qualquer modo, a idéia não foi minha.
- Mas isso você não precisava nem me dizer. Acho um pouco óbvio
que essa idéia não tenha partido de ti.
- Você me conhece mesmo né Eduardo?
- Sou seu melhor amigo. Essa é minha função.
- Ótimo, então, como melhor amigo, desempenhe sua bela função
de me salvar dessa gangue e esteja amanhã aqui para me dar amparo.
- Vou tentar! – concordou – Mas eu já disse que não
sei. Tenho que pedir pro meu pai. Foi ele que me deixou de castigo e creio que
ele não irá me liberar tão cedo assim...
- Foi o seu pai que te pôs de castigo? – o amigo quis saber.
Eduardo se explicou:
- Na verdade foram os dois, meu pai e minha mãe, mas a palavra do Seu
Antônio é o que conta... fazer o quê?
- Nossa! Isso ainda existe? – Fábio admirou-se, referindo-se à
atitude dos pais em colocar o filho de dezenove anos de castigo.
- Pior... – disse Eduardo, reconhecendo que estava numa furada –
você sabe como é aqui em casa, né? Mas deixa quieto!
- Deixa quieto o futambó!!! – o garoto vociferou – Vai me
contando o que você aprontou, e já!!! – o amigo era doido
por novidades.
- Ah! Não foi nada demais! – disse Eduardo, calmamente –
Eu matei o cachorro do vizinho.
- Você o quê??? – fez Fábio para Eduardo, no mesmo tom
de espanto que a mãe lhe fizera uma hora atrás.
- Ah! Aquele cachorro pentelho que eu te contei. – defendeu-se o rapaz.
- Você parece um psicopata sem sentimentos falando desse modo! –
concluiu o amigo – E o que você fez? Deu veneno para ele?
- Não!
E antes que Eduardo contasse o que fez, o amigo o interrompeu:
- Atirou com estilingue?
- Dããããr... – fez Eduardo diante do absurdo
– Por acaso eu tenho estilingue?
Fábio novamente tentou:
- Atropelou o animal?
- Não!
- Então o que foi??? – o rapaz irritou-se finalmente.
- Eu dei um chute! – Eduardo relatou.
- Um chute??? – Fábio perguntou, totalmente incrédulo.
- É dei um chute e ele morreu!
- Mas como pode? Você ficou chutando o cachorro até ele morrer?
- Não, foi UM chute – disse Eduardo, frisando bem o um – E
só! – neste instante, a campainha da porta tocou. Eduardo gritou:
- MÃÃÃEEE!!! ATENDE A PORTA!!!
Fábio, sem se incomodar com o grito, concordou:
- É... de fato é estranho... se bem que um chutezinho seu de leve
já deve fazer estrago, né?
- Lá isso é! Mas na hora eu nem pensei, eu estava tão atordoado
com o que tinha acontecido com a Camila, que eu nem me dei conta... o cachorro
surgiu do além, me assustou e a raiva subiu na minha cabeça de
tal modo que tudo aconteceu por reflexo!
- Mas... o que aconteceu com a Camila? – Fábio indagou, deixando
de lado a história do cachorro.
47
- É que eu fui dormir na casa dela e a gente acabou discutindo –
disse Eduardo em tom de “não me toque... mas se tocar, não
mexa muito nas feridas”.
- Normal isso – concluiu o amigo, só para dar ânimo ao outro.
- Não... – fez Eduardo, sem dar ouvidos à Fábio –
Desta vez foi sério! Acabei de falar com ela no telefone e ela me perguntou
se eu queria dar um tempo.
- Vixe!... – Fábio exclamou, percebendo a gravidade da situação.
Indagou, num misto de curiosidade e satisfação (pois ele nunca
aprovara muito o namoro entre Camila e Eduardo por achar que Camila era demasiadamente
sonsa e apagada e ter certeza que o amigo merecia coisa melhor) – E você,
o que fez?
- Sinto decepcioná-lo – informou Eduardo (que sabia o que o amigo
pensava sobre o namoro) – Não acabamos! Eu dei o tempo que ela
pediu!
- Ah! Ok! – fez Fábio, sem demonstrar desapontamento na voz, pois
embora tivesse a opinião dele formada, muito mais valia o que o amigo
sentia e qualquer que fosse a decisão de Eduardo, o seu papel, como amigo,
era de apoiar a felicidade dele.
- Pois é... acho que assim pelo menos vai ser melhor, cada um vai poder
pensar direito o que sente de verda... – ia dizendo Eduardo quando ouviu
a mãe lhe chamar pela porta. Falou para o amigo – Olha Fábio,
vou ter que desligar. Minha mãe tá me chamando. Mais tarde eu
te ligo para confirmar se vou amanhã ou não, falou?
- Falou, assassino de cachorros!!!
E Eduardo foi abrir a porta do quarto.

.....

- Mas não foi por querer benhê! Você viu o estado que o menino
ficou!
- É! Eu vi, mas não posso admitir isso. Imagina, matar um cachorro!
- Mas foi sem querer!
- Quer parar de repetir isso?
- Desculpa, foi sem querer.
- Já disse prá parar! No meu tempo de moleque, quando eu era escoteiro,
tinha que fazer boas ações e tudo mais. Eu tinha é que
ser muito do bom para com os animais... eu disse que era para nosso filho ter
sido escoteiro. Eu bem disse! Daí ele não ia fazer essas barbaridades!
- Ai... esquece isso Antônio... e vem cá...
Sônia passou os braços ao redor do pescoço do marido, tentando
refazer o clima romântico que pairava no ar antes do filho chegar em casa
feito um jegue. Ia beijar o marido quando a campainha tocou.
- Será que eu devo ver quem é? – a mulher indagou em tom
manhoso para o marido, que ainda soltava fagulhas pelas ventas.
O homem, sem paciência, respondeu curto e grosso:
- Você é quem sabe!
- Então eu não vou... – e deu um beijinho na bochecha do
marido.
De repente, tanto o homem quanto a mulher escutam Eduardo berrando lá
de cima:
- MÃÃÃEEE!!! ATENDE A PORTA!!!
A mulher revirou os olhos e depois de um pesado suspirar, levantou-se, arrumando
a roupa:
- Já volto! – disse ela, jogando charme para Antônio –
Não me saia daí!
E sumiu para o hall da entrada. Ao espiar pelo olho mágico, não
reconheceu o rapaz que ali estava e perguntou, desconfiada, por trás
da porta:
- Quem é?
- Sou o vizinho... Rodrigo! – disse o rapaz, sorrindo e falando com o furinho
48
de vidro na porta...
- Ah! Sim! – fez Sônia, que abriu a porta segundos depois –
O que quer?
- É que seu filho foi lá em casa agora há pouco e...
Antes que o rapaz tivesse a oportunidade de continuar a frase, a mulher já
foi se desculpando:
- Ah... aquele moleque!!! Não liga não, que ele sempre foi assim
desde pequeno, sabe? Tem um gênio muito ruim o meu filho, às vezes
nem eu agüento... e olha que paciência de mãe é coisa
que...
Rodrigo interrompeu a mulher que falava em espetacular afobação:
- Não minha senhora! Seu filho não fez nada demais! Fez até
uma gentileza em avisar que o Fred, nosso cachorrinho, morreu. Imagine... o
que é que ele tinha a ver com isso?
“Tudo...” pensou a mãe de Edu sorrindo amarelo.
Rodrigo continuou:
- E então eu fiquei nervoso, pois gostava muito daquele bichinho –
mentia deslavadamente, é claro – e acabei descontando em seu filho.
- Entendo...
- E fui injusto. Gostaria de falar com ele para me desculpar.
- Mas é claro! – sorriu dona Sônia, que achara o rapaz muito
simpático e educado logo de cara – Queira fazer o favor de entrar,
sim? Eu sou a Sônia, mãe de Eduardo.
- É! – riu-se o rapaz – Eu já percebi. Com sua licença
– e Rodrigo entrou.
- Por aqui – e a mulher o conduziu escadas acima.
Ao chegar na porta do quarto do filho, bateu de leve e o chamou.
Olhou para Rodrigo e sorriu:
- Agora vou descer – desmanchava-se em mel e recomendou – Vocês
dois se entendam, ok? Boa sorte com o cabeça dura do meu filho!
- Tá legal! – disse Rodrigo, sorrindo de volta para a mulher.
Sônia desapareceu escadaria abaixo e instantes depois a porta do quarto
se abriu.
.....

Eduardo desligara o telefone e rumara para a porta a fim de destrancá-la.


Girou a chave e fez girar a maçaneta também. Assim que a porta
do quarto se abriu, Eduardo deu de cara com Rodrigo – o garoto estava
em tal estado que não sabia se sorria ou não.
- Oi!!! – finalmente disse o rapaz, com cara de pau.
- Você???!!! – surpreendeu-se Eduardo, que logo se indignou e perguntou
branco feito papel – O que tá fazendo aqui???
Rodrigo ainda estava de bermuda e camiseta.
Usava um chinelo de dedos feito de borracha preta.
Seu perfume já invadia o quarto de Eduardo.
Era aquele cheiro!
Aquele cheiro maravilhoso, que tanto deixava Eduardo desnorteado... aquele odor
realmente surtia um estranho efeito em Edú... sentia todos os poros do
corpo abertos, prontos para algo selvagem.
- Vim fazer as pazes! – disse o outro, com calma.
- Mas... você ainda me tem a audácia de vir aqui??? – Eduardo
fingia mais indignação do que realmente sentia. Até que
gostara de ver Rodrigo novamente, pois ele, Eduardo não poderia jamais
voltar na casa do outro, não havia desculpas para tal coisa, e então,
ficou muito feliz que o garoto tivesse ido atrás dele.
- Vai me deixar entrar ou não? – quis saber o rapaz, que a esta
hora já não sorria mais. Olhava sério para Eduardo, como
quem vasculha a alma alheia em busca de informações preciosas.
Depois de um pequeno silencio, Eduardo finalmente liberou a passagem:
- Entra aí, vai!
E Rodrigo entrou.
49
- E então? – o dono do quarto disse.
- Então o que??? – Digo perguntou, fazendo-se de desentendido e
sentando-se na cama, sem ao menos ter sido convidado a sentar.
Esta era a natureza de Rodrigo.
Dispensava convites. Entrava de cabeça erguida. Fazia o que dava na veneta,
falava o que bem entendia e não estava nem aí para as conseqüências,
pois sempre dava um jeitinho de arrumar a situação de um modo
favorável para o seu lado.
Se agia na base pulsante de seus ímpetos, desfrutava depois a calmaria
por ter ser arriscado tanto. Era assim que via a vida.
E era assim que funcionava.
Não havia quem não se apaixonasse por seu jeito. O índice
de massa corporal era medido em puro carisma. Líder natural, tinha um
“quê” do Fábio nele, e isso deixava Eduardo mais fascinado
ainda. Tivera a chance de conhecer uma pessoa tão irresistível
e tão peculiar.
- Não acha então você que me deve desculpas por me acusar
de algo que eu não sou? – Eduardo perguntou com as mãos
na cintura, de pé feito um super-herói olhando para um ser inferior.
- Não... – dissimulou Rodrigo.
Isso desbancara a pose de Eduardo:
- Pensei que tinha vindo para fazer as pazes!!!
- E vim! – o rapaz afirmou com energia.
- Mas agindo assim não me parece que esteja disposto a isso! – Eduardo
observou e sentou-se na cama também.
- Eu sei... mas vim fazer as pazes de outro modo... – explicou-se Rodrigo
– ...eu não vou te pedir perdão por ter te acusado de gay... pois é meu direito pensar isso de você...
- Mas eu não sou!!! – Duda exclamou, batendo as mãos contra a cabeça, como alguém muito indignado faz.
- Isso é o que você tem o direito de pensar!!! – Digo tirou o corpo fora – Você tem o direito de se defender!
- É lógico! – Eduardo aprovou – Eu não gosto
disso... – e parou nas reticências por não saber como continuar.
O embaraço era nítido em sua fisionomia.
- Disso o que? – quis saber o outro, que agora olhava com a curiosidade
estampada na cara.
Parecia estar prevendo que iria se divertir.
- Dessas coisas... de... de... – e Eduardo, sem jeito, não continuou.
Ao passo que Rodrigo não se fez de rogado e foi colocando as palavras
na boca do outro:
- Não gosta dessas coisas de frutinha? Coisas de mariquinhas?
- É! – Eduardo concordou totalmente desnorteado.
- E por acaso eu pareço uma bicha louca? – Rodrigo perguntou com
um ar demasiadamente grave. Olhava para Eduardo de tal modo que nada que não
fosse franco sairia da boca com o tom vermelho das palavras erradas, manchadas
de mentira.
- Não... – Eduardo finalmente respondeu. E sua palavra saíra
limpinha, imaculada de qualquer tom de mentira... o menor que fosse.
- Viu! – protestou o rapaz – Este é o ponto! – e batia
amiudadas vezes na cama para fazer-se entender melhor – Fora umas flowers
que têm por aí...
- Flowers??? – Eduardo interrompeu estranhando a definição.
- É! – fez Rodrigo e explicou – Uma bichinha desmunhecada.
Uma flower é uma bicha que dá pinta...
- Dá pinta? – Eduardo interrompeu novamente.
Neste momento Digo percebeu que Eduardo não entendia nada da linguagem
do “babado” e teria que explicar tintin por tintin as palavras que
pronunciava. E então recomeçou:
- É... quando um cara dá pinta, significa que ele é um cara
que tem trejeitos femininos! Sabe? Um gay flower... uma flor!
- Ah! – fez Eduardo, para demonstrar que tinha entendido a explicação.
Cada expressão mais diferente da outra.
- Pois bem, fora estes indivíduos, que eu não tenho nada contra,
50
pois são muito queridos... a maioria é discreta. Não dá
nem para perceber que são homossexuais, nem pelo jeito de se vestir,
nem pelo modo de falar... você ficaria surpreso ao saber da quantidade
de gays que existe por aí... só em aqui em Curitiba... nossa!
Você não ia acreditar!!! – e terminou a frase balançando
a cabeça para cima e para baixo, como uma lavadeira de rio fofocando
com as outras enquanto bate a roupa nas pedras.
Eduardo seguiu o exemplo sem ao menos se dar conta disso:
- Verdade?
- É! – Digo tornou a afirmar.
- O mundo está perdido... – murmurou Eduardo, fazendo um pesaroso
sinal negativo com a cabeça – isso é preocupante...
E o outro rapaz refletiu:
- Não... no seu caso não...
- No meu caso? – Eduardo confundiu-se – Como assim no meu caso???
- Eu quero dizer que para você... – fez uma pausa, olhou pra Eduardo
e continuou o pensamento fazendo ar de troça – ...você que
é hetero... – nova pausa – isso se for mesmo... bem, neste
caso então, sobra mais mulher para você!!! E já bem dizem
que aqui pro sul tá sobrando mulher... só não arranja uma
quem não quer... ou quem é gay!
E o rosto de Eduardo se iluminou ao acompanhar o raciocínio do outro:
- Huummm... é verdade! Sobram bem mais “minas”. Não
tinha pensado por esse ângulo...
- É claro que não tinha pensado! – Digo atalhou – Mas
eu não vim aqui para ficar falando disso – e mirou bem nos olhos
de Edu – Vim aqui para saber o que você vai fazer amanhã
pela tarde.
Eduardo pensou em Fábio e respondeu:
- Não sei! Estou de castigo!
- Porque??? – Digo quis saber. Parecia absurda a idéia de castigo
para um rapaz do tamanho de Eduardo.
- Por uma coisa que eu andei aprontando semana passada... – Eduardo desculpou-se,
pois imagine como ficaria a cara do outro se soubesse que ficara de castigo
por ter matado Fred... – mas acho que se me deixarem sair, vou na casa
do meu amigo Fábio.
- Ah! Ok! – Digo desapontou-se.
- Porque? – indagou Eduardo com grande interesse na voz.
- Nada não... só para saber... e sair hoje à noite você
também não pode?
- De jeito nenhum!
- Porra... castigo é uó! – Digo lamentou-se.
- Uó? – Eduardo estranhou a nova palavra.
- É... uma gíria do “babado”... e tem conotação
negativa. Tipo, se o seu carro é uó, significa que seu carro não
é muito legal...
- Sei... – fez Eduardo.
Neste instante, parecia que a conversa ia morrer e aquele silêncio pesado
e mortal que destrói ambientes ia cair por ali, quando Rodrigo olhou
para um canto do quarto e exclamou sorrindo:
- Ei! Que legal! Você tem computador!
- É! Tenho!
- Tem internet? – Digo quis saber. E por instantes, Eduardo pôde
jurar que viu lampejos nos olhos do rapaz que novamente sorria. Tinha qualquer
coisa de cativante naquele garoto.
Eduardo, que já estava se perdendo para o largo sorriso de Rodrigo, respondeu:
- Tenho internet sim!
- Você tem icq? – o outro indagou.
- Sim...
- Então eu vou te passar meu número, o meu nick é Whirled!!!
Assim, quando você estiver online, podemos conversar também.
51
- Essa é a função, né? – riu-se Eduardo.
- Deixa eu anotar para você... – e Rodrigo vasculhou o quarto com
os olhos à procura de uma caneta e um papel. Eduardo ao perceber o que
o rapaz queria, buscou um caderno e ofereceu uma lapiseira. Rodrigo anotou e
explicou – Daí você me procura e pede autorização.
- Ok!
- Legal! – e Rodrigo sorriu com tanta franqueza, que Eduardo não
sabia se desviava o olhar, retribuía o sorriso ou ficava só admirando
a beleza do outro rapaz.
Finalmente Rodrigo explodiu:
- Eu falo demais, não falo?
- Mais ou menos... – Eduardo brincou.
- Você vai se acostumar – disse o rapaz, que ficou imóvel
por instantes, como se ponderasse algo e finalmente tornou a falar – quero
dizer... você pode ser acostumar, mas isso, é claro, se você
quiser ser meu amigo, né?...
E então olhou para o outro de um modo tão pidão, que Eduardo
não teve coragem sequer de pensar em negar a amizade ao rapaz. Seria
egoísmo demais não se deixar cativar.
- É claro que quero! – Eduardo sorriu.
- Então toca aqui! – e Rodrigo estendeu a mão para o outro.
Era o primeiro contato físico entre os dois.
E foi um demorado aperto de mãos. Um demorado jogo de olhares e troca
de sorrisos. Sem se dar conta, Eduardo entregara os pontos para Rodrigo, que
só podia firmar a idéia de que o novo amigo era, de fato, do “babado”.
Se pelo menos não fosse gay, bissexual ele era!!!
- Me diga uma coisa, já que agora é oficial nossa amizade... –
Diguinho disse de mansinho, como quem não quer nada.
- Sim? – Eduardo prontificou-se a responder.
E o outro estalou a pergunta:
- Você tem mesmo um pezinho no babado, não tem?
O olhar de Eduardo sobre o novo amigo fora tão severo, que Rodrigo não
teve outra escolha a não ser redimir-se:
- Tá! Foi mal, desculpa... desculpa...
- Ok! – fez Eduardo, disposto a deixar de lado o assunto – Mas...
agora me diga uma coisa você... como é que eu nunca te vi aqui
na rua? Como é que eu nunca vi os seus pais? Sabia que vocês são
um mistério por aqui?
- Sério? – Rodrigo achou graça e riu gostosamente.
- É verdade! – Eduardo continuou com enorme embaraço –
Nunca vemos ninguém entrando ou saindo... e raras vezes aparece alguém
para fora...
- Lá isso é! – Digo concordou – É porque minha
casa tem um quintal muito grande, que faz ligação com o quintal
da casa da minha avó. Ela morreu e a casa dela está vazia agora,
de modo que usamos a garagem da casa dela para guardar os carros, assim como
usamos o acesso da rua de trás para entrar e sair em casa, já
que é uma rua que chega na via rápida mais facilmente –
e explicou ainda para sanar de vez o “mistério” – Logo,
nunca usamos a “frente” da nossa casa, pois ela, na verdade, é
o fundo! Sacou?
- Ah... entendi! Então você me atendeu no “quintal”?
– perguntou Eduardo, seguindo o raciocínio do amigo.
- Isso! Se for pensar bem, moramos na outra rua, não nessa. E por causa
da diferença de horário, nunca parece ter ninguém na casa.
Meus pais estão construindo uma clínica médica, e isso
também ocupa o tempo deles, que vistoriam as obras para ver como está
ficando. Durante o dia, meus pais dormem e eu, que estou acordado, estou fora.
De noite, eles estão fora e eu durmo ou fico lá pra dentro fazendo
qualquer outra coisa.
- E você fica sozinho numa casa daquele tamanho?
52
- Fico... não tem nada demais, a casa tem alarme e essas coisas.
- Ah! Mas você não se sente sozinho?
- Mais ou menos... tem dias que a empregada dorme por lá. Mas não
sou muito amigo dela não. Da última vez que apareci com um namorado
lá em casa e ela nos pegou dando um “malho”, ela quase arrancou
meu braço tentando me puxar para a igreja. Armou o maior barraco com
meus pais e tudo mais.
- Puxa!
- Mas não, eu não me sinto só. Já disse que me acostumei.
E de vez em quando chamo os meus amigos lá! O legal é que dá
para festar a noite inteira, pois meus pais só chegam depois das oito
horas da manhã...
- Puxa... quem me dera ter uma oportunidade de festejar todas as noites... pelo
menos uma vez por mês eu ia chamar a galera para curtir.
- Pois é! É exatamente o que eu faço! E agora você
também pode! Minha casa, é sua casa!
Eddie pensou por momentos o que aquela frase representava. Apesar de alegre
e inocente, aquela era uma frase de peso e que mascarava uma grande mudança.
- Ok! – Eduardo concordou.
E a partir deste momento, mudara-se para dentro da vida de Rodrigo.
E parecia que era somente isso o que o rapaz ali queria, pois mal Eduardo pronunciara
essas palavras, foi logo dizendo:
- Mas deixa eu ir embora! – e levantou-se. Olhou para Eduardo bem dentro
dos olhos e perguntou sem nenhum constrangimento – Se importa em devolver
meu porta-retrato ou prefere guardá-lo?
- Ah! Er... – Eduardo balbuciava e gagueja nervoso, tomando o artefato
em mãos e entregando ao amigo – Não! Leva! E quando seus
pais acabarem de construir a clínica, quando eu me formar, peça
um emprego para mim, ok? – Eduardo brincou com o novo amigo, para desfazer
a sua falta de jeito, enquanto devolvia o porta-retrato.
E Rodrigo pegando o objeto de Eduardo, fez um gesto de despedida e disse sorrindo:
- Até mais, hein?
- Falou!
Rodrigo saiu do quarto e deixou Eduardo em estado de transe.
Só depois de certo tempo o rapaz foi se tocar de que deveria ter acompanhado
o amigo até a porta...
Pelo resto do dia, embora Eduardo se esforçasse bastante, não conseguira
estudar direito e nem prestar atenção em nada. E quando o relógio
marcou quatro horas da tarde, o garoto sentiu uma vontade louca de ver se
Whirled
estava online no icq, mas se conteve...
O que seria todo aquele despertar em forma de selvagem curiosidade???

Capítulo VI

O domingo amanhecera com cara de sábado.


Eduardo não sabia se achava isso bom ou ruim. Adorava o dia de sábado tanto
quanto detestava o dia de domingo e se levasse em conta que este domingo com
cara de sábado de fato fosse sábado, amanheceria em plena segunda-feira tendo uma perspectiva distorcida e
enganosa de um final de semana. Ainda mais este final de semana pelo qual estava passando, que sem dúvida
estava saindo muito estranho por si só!
Nunca tantas coisas tão marcantes aconteceram para a mesma pessoa em tão pouco tempo e Eddie se
revoltava por ter sido ele o escolhido da má sorte do destino.
Por volta da hora do almoço, Eduardo saiu do quarto e foi encontrar os pais no quintal de casa, vestidos em
roupas leves de verão, embora esta estação distasse bastante da época do ano em que estavam.
Sônia lia a gazeta de domingo com o mesmo interesse que um legista tem em examinar um cadáver. Seu
Antônio estava fazendo uma carne grelhada na churrasqueira. O garoto adorava as carnes que o pai fazia, pois
eram sempre muito bem temperadas com bastante limão, gengibre e pimenta. Cada vez que iam para a grelha,
começavam a fumegar e imediatamente levantavam um cheiro gostoso que podia ser apreciado a metros de
distância.
53
Fábio provavelmente estaria temperando a carne na casa dele no mesmo instante em que seu Antônio cuidava
do seu grelhado com tanto carinho.

Putz! Queria ir no Fábio, mas... como pedir para o pai?


...e se o velho inventasse de castigá-lo pelo domingo também?
...e se o castigo se estendesse pela semana inteira???
Oh! Era horrível demais para se pensar nisso! Eduardo respirou fundo, chegou-se para perto dos pais e
cumprimentou:
- Bom dia!
- Boa tarde Eduardo! – a mulher replicou, sem desviar os olhos do jornal.
Seu Antônio, por sua vez, olhou para o filho e resmungou qualquer coisa ininteligível que Eduardo tomou como
um bom dia também.
- Filho – a mulher gralhou – vá tirar este pijama agora!!!
- Já vou mãe!
- Agora! Eu não vou lavar seu pijama hoje, e se ele ficar cheirando fumaça da churrasqueira o problema vai ser
seu!!! Ainda mais porque as roupas de cama estão todas limpas!
- Tá ok mãe...
- Eduardo Braschi!!! – Antônio vociferou, apontando para o garoto o garfo que usava para espetar o grelhado –
Obedeça sua mãe!!!

Nem o Diabo em pessoa, queimando no fogo do inferno com o seu tridente mirado para Ed poderia ter parecido
tão demoníaco quanto o pai parecera com o seu garfinho de churrasco ao lado do fogo da churrasqueira...
É... o clima ainda pesava por ali...
.....
- Alô? – fez Eduardo assim que atenderam o telefone – Fábio?
- Oi Edú! – alegrou-se o amigo – E aí? Você vem?
- Nem vou... que saco! A coisa ainda está preta por aqui!
- Hum... a história do cachorro, né? – Fábio concluiu.
- É! – Eddie confirmou – Um porre!
- Ah! Nem tem problema! – o amigo disse em tom animador – Pelo menos você vai se livrar daquela chatice
toda!
- Nem fale... – Edú concordou. Realmente, vendo por este lado o castigo era coisa boa, pois pelo menos esta
desculpa ele tinha, por outro lado... – Mas, puxa cara, eu queria te ver, né? Faz tempo que nós não fazemos
nada juntos!
- É verdade... – Fábio ponderou – Quisera eu ter um cachorro para matar... – e pôs-se rir com a brincadeira.
Eduardo também achou graça.
- É... assim você também se livrava, não é mesmo? – e indagou ainda, sem interesse, mas com educação – Já
chegou alguém aí?
- Ainda não, mas devem estar chegando em bloco lá pelas duas... – Fábio informou, sem interesse também e
quase sem paciência – Eu não sei o que eu vou fazer!
- Puxa... ataque em bloco da velha guarda... – e indagou, sem pistas – mas ainda não entendo o que te fez
liberar a casa para este churrasco. É como um padre liberando a igreja para uma festa satânica.
- Credo Eduardo!!! Não fala desse jeito. Mas... devo admitir uma coisa para você, é mais ou menos por aí... –
lamentou-se em tom de profundo desânimo – sabe Dú... eu me sinto um peixe fora d’água no meio desse
povo... é um sem graça sem fim.
- Meus pêsames! – o rapaz recomendou honestamente. Sabia bem do que o outro falava, pois começara a se
sentir assim fazia um bom tempo já.
- Nem diga! Estou morrendo de vontade de ligar pro povo e desmarcar – o amigo reclamou sem alterar a voz,
mantendo a calma daqueles que não se abalam por nada – Isso é um porre! A idéia nem foi minha! – e Fábio
em sua calma deixava Eduardo reconhecer o que se passava por dentro, pois esse pegava de longe e
perfeitamente o tom de revolta na voz inalterada do amigo.
- E de quem foi a idéia? – Duda quis saber.
Como se fosse óbvio, Fábio respondeu:
- Do Carlos, de quem mais?
- Ah, é! – Ed deduziu, realmente percebendo a trivialidade da situação. E completou ainda em tom de mofa –
Novidade...
- Será que eu faço isso? – Fábio indagou.
- O quê? Desmarcar? Ih... acho que não, hein? – Eduardo aconselhou – Eles iriam ficar putos e como já falam
que você sumiu, que não é mais o mesmo... aí sim, te excluiriam do grupo de uma vez por todas.
- É... você tem razão... – disse Fábio concordando com a observação do amigo.
.....
54
Por volta de três horas da tarde, Fábio apareceu na casa de Eduardo.
- Então você cancelou mesmo o churrasco? – disse Eduardo, admirando a coragem do amigo. Estavam ambos
deitados na cama, de papo pro ar, olhando um ponto vago no teto, como costumavam ficar quando filosofavam
ou quando ficavam à toa mesmo.
- É! – Fábio confirmou – Tô fudido agora!
- Tá mesmo! – Eduardo riu da cara do outro.
Nem sabia porque ria, pois analisando mais a fundo a situação, era bem mais complicada e séria do que
parecia. Dar essa falta para com a turma era como se fosse finalmente oficializada a ruptura do passado.
Como desejava ele, Eduardo, que aquilo se desse também em sua vida
- O que é que o povo falou?
- Nossa! – e Fábio levou as mãos à cabeça – Me xingaram um monte! O Carlos foi o que mais gralhou comigo.
Eles ficaram muito indignados!
- É, eu imagino. – Ed riu-se novamente. E observou inutilmente – Considere-se fora do grupo daqui em diante.
- Eu sei... – o amigo murmurou, para depois explodir em felicidade – Viva!!!
Quem os ouvisse falar, pensaria que a velha guarda era constituída por alguns monstros, senão por um bando
de mortos-vivos tarados sexistas trogloditas de caverna. E na verdade pura, ia levar bem mais do que se falava
para tornar um pingo sequer de todo aquele oceano em verdade.
Mas na cabeça dos garotos deitados na cama era essa a tempestade que se passava. A convivência com aquela
turma era bem pior do que viver entre traficantes barra pesada de boca de morro.
Tal exagero levou Ed a desabafar:
- É! Que sorte você tem meu caro amigo! Eu já não agüento mais ficar com eles na hora do intervalo e ter que
falar sobre todas aquelas besteiras e futilidades que eles falam – e como se confidenciasse algo indizível,
abaixou o tom da voz o mais que pôde e disse – Eu devia ter feito como você e ir caindo fora aos poucos...
creio que agora seja tarde demais...
- Nem é! – disse Fábio para encorajar o amigo – E para falar a verdade, você nem deve satisfação nenhuma
para qualquer um daqueles caras lá! Se afaste e pronto! Afinal você é homem ou não?
Eduardo nem sabia ao certo... titubeando respondeu:
- Sou... – e preparou uma avalanche de desculpas – ...mas você tem que considerar o fato de que eles são os
meus amigos.
- E daí?
- E daí que com eles não tem esse negócio de “caiu fora, tudo bem”. Se eu pisar na bola, como devem estar
pensando que você pisou, eles já me passam do roll dos amigos para o dos inimigos.
- Que exagero! – Fábio observou.
- Não é exagero e você sabe muito bem disso! Com eles não tem meio termo! Ou é oito ou oitenta. Ou você
está com eles ou está contra eles!
Ponderando, o amigo respondeu:
- É verdade... e quer saber? Eu estou contra!!!
- Que inveja! – fez Eduardo, forçando a voz, como uma Maria fofoqueira.

Os dois amigos caíram na risada.


Quando se acalmaram, Fábio virou-se para Eduardo, apoiando-se sobre o cotovelo. Indagou:
- Mas e aí? O que a gente vai fazer?
Todo perdido, Ed respondeu:
- Não sei. De castigo é foda! – e ficou com vergonha por ter um pai que era liberal, mas em questões de passar
uma lição, sabia ser mais rígido que patota de ditadura militar – Mal posso sair do quarto, quem dirá de
casa???
- Ah... dá para sair de casa sim... – e Fábio sorriu ao olhar para o computador.
Pularam os dois da cama e foram direto para frente do aparelho.
Fizeram a conexão na internet e puseram-se a navegar.
Eduardo abriu o icq e viu quem estava online. Somente alguns amigos da Inglaterra.
Sentiu uma vontade incrível de adicionar Rodrigo na lista de contatos, mas resistiu ao máximo a tentação, pois
Fábio iria achar estranho. Melhor deixar quieto.
- Vamos entrar numa sala de bate-papo e caçar umas minas? – Fábio propôs.
- Pode ser... – respondeu Ed, tentando fingir que achara a idéia o máximo, mas antes deixa eu verificar minha
caixa de entrada.
Eduardo checou os e-mails e respondeu alguns. A maioria era de amigos que fizera nas salas de bate-papo.
Gente boa e legal, mas sem maiores pretensões que um coleguismo aguado.
Viu que tinha um e-mail de Camila, que datava de quinta-feira. Como ele não tinha acessado a rede até então,
não tinha lido esta mensagem.
Vendo a expressão de dúvida que Eduardo tinha estampada na cara, Fábio indagou, como quem acorda uma
pessoa de um transe:
55
- Você vai ler o e-mail dela? – e tocou no ombro do amigo.
- Não... – Eddie respondeu vagamente – Ficamos combinados de não ter nenhum contato antes de uma
semana...
- Mas o e-mail é de antes da combinação – Fábio observou – provavelmente nem seja nada, só aquelas
mensagens melosas... um cartão virtual.
- Isso é verdade... – Ed ponderou, dando razão ao amigo, mas sem deixar-se dobrar – ...mas eu não vou ler.
Nem vou escrever para ela. É o que foi combinado! E para falar a verdade, não tenho vontade e nem tenho o
que falar...
- E não vai querer nem ler o que ela escreveu? – Fábio quis saber. Não que estivesse do lado de Camila, mas
sim, queria ter certeza dos sentimentos de seu amigo.
- Não – Edú resolveu-se – Eu não vou ler não. Você deve estar certo. Deve ser mais um daqueles cartões
virtuais idiotas e mal feitos que ela me manda!
E Duda botou a mensagem na lixeira.
.....
“Querido diário,

Ontem não pude escrever em ti... estava muito puta para fazer isso!
O Eduardo me deixou sem paciência.
E hoje... fiz tanta coisa que não poderia nem listar aqui tudo o que fiz. Acho que é mais fácil anotar o que eu
não fiz, que foi falar com o meu Eddie.
Tão estranho sofrer por uma coisa que nem se sabe o que é! Injusto esse lance todo! Que saco! Se ele tem um
problema, porque não se abre comigo que sou a pessoa em que ele mais deveria ter confiança???
Sabe o que é mais foda?
É que tenho que ficar uma semana inteira sem falar com ele! Burrice minha que inventei isso!
...mas eu vou agüentar!!! Vou sim!
Agora vou dormir. Tenho aula amanhã cedo!

Boa noite!”
.....
Segunda-feira, no cursinho, Eduardo passava por entre as pessoas como se não as enxergasse. Chegara a
esbarrar em uma ou duas. E nem pediu desculpas, apenas continuou andando. Será que um dia voltaria a ser
como era antes de toda essa confusão aparecer?
O rapaz acordara com um sentimento estranho.
Pensava em tanta coisa ao mesmo tempo que no fim das contas já não raciocinava direito. Todas as idéias
colidiam e repartiam-se em milhares de pedaços que não se juntavam e nem tinham lógica nesse enorme
quebra-cabeça mental.
Estava fora de órbita e via-se isso em sua fisionomia.
Tanto foi que nem o grupinho da velha guarda, reunida na entrada da sala de aula esperando o sinal tocar,
conseguiu tirar Ed de seu estado.
- Deixa quieto! – disse Jorge para Carlos, que ainda estava revoltado com Fábio e por troco de nada começaria
uma confusão.
- Vai ver que o cérebro dele já está começando a derreter de tanto que ele estuda e sobrecarrega o coitado –
Marcos brincou, olhando em volta esperando aprovação geral do grupo.
E Carlos disse:
- É cara... sinto em informar que quem estuda demais acaba virando um Nerds com impotência sexual...
E Eduardo, sem um pingo de paciência exclamou em tom de ameaça:
- Não enche o saco, falou? – e retirou-se dali.
Ao entrar na sala, foi direto para o seu lugar.
Tirou a apostila de dentro da mala e pôs-se a revisar a lição trinta e quatro de física. Fora a que mais lhe dera
trabalho e queria ficar craque na resolução daquele tipo de problemas.
Estava desligado do mundo exterior, tamanha sua concentração, que levou o maior susto quando lhe tocaram
no ombro. Era Fábio, que finalmente aparecera na aula.
- E aí cara? Beleza? – Fábio perguntou – desculpa te assustar, não foi a minha intenção!
- Não foi nada! – disse o garoto que ainda se recuperava do sobressalto – tá tudo beleza sim! E você?
- Eu estou morrendo de sono, mas fora isso tudo legal.
- Ótimo.
De pé, ao lado da carteira de Eduardo, Fábio fez um ar de machão e indagou:
- Viu os guarda costas na entrada da sala?
- É, vi! Inclusive já disse para o Carlos não me encher o saco.
- Já para mim não disseram nada. Apenas me olharam passar. Aos outros acredito que me tenham indiferente
em seus conceitos, afinal eu só não pude liberar a casa pro churrasco... mas o Carlos me deu um olhar
56
cancerígeno! Acho que me enchi de tumores por dentro!
E riram.
- É sério! Me olhou como quem diz “te pego lá fora, babaca!” – e rindo, depois de imitar a voz de Carlos,
completou encenando histerismo debochado – Ai!!! Que medaaa!!! Ele deve realmente achar que bota medo
em alguém. Se ele não fosse tão baixinho eu até topava brigar, mas isso é covardia!
- Com certeza!
- É, mas do jeito que ele é esquentado, é bem capaz de querer arranjar confusão. E se ele vier cantando de
galo eu não vou agüentar não. Vou para cima dele.
- Não! Eu creio que ele não vá querer chegar a esse ponto...
- Ele que tente!
- Mas que vai tentar arranjar arruaça de outro modo, isso ele vai!
- Pode tentar fazer o que quiser, que ele vai ver o bom dele!!!
E o sinal tocou.
Inquietação geral enquanto os alunos iam subindo as escadas e entrando na sala de aula como uma horda de
jovens com cara de sono. Segunda-feira era o dia mais foda de adaptar a vida desregrada de um final de
semana ao cotidiano do vestibulando.
Eduardo prestava atenção à massa que adentrava o recinto.
Viu Henrique entrar, como sempre, muito hábil em passar no meio das pessoas com a sua cabeça baixa em
constante sinal de covardia. Era a admissão de que era vulnerável e que facilmente seria esmagado por todos
em sua volta se assim o desejassem.
Para tamanho horror não ocorrer, Henrique se fazia invisível.
Henrique se anulava debaixo do seu lençol de medo.
E Eduardo, novamente, sentiu pena por ele.
Capítulo VII
O Capítulo Entrecortado, como a Alma de Eduardo.

Assim que o sinal do intervalo tocou, o professor mal se despedira da turma e


esta já rompia para fora da sala, como um estouro de boiada. Todos muito aflitos
querendo pegar um lugar bom na fila da cantina ou querendo fumar o seu
cigarrinho na boa e botar as fofocas em dia.
Para Edú seria um momento decisivo.

Teria que definir de que lado estava.

Isto é, teria que decidir com quem ficar.


Embora fosse invisível, um muro havia se erguido, e em cima deste muro ele jamais poderia ficar. Tinha medo
de cair. Porém, tinha medo de descer dele e de se arrepender descobrindo que descera do lado errado. E era
essa a escolha agora.
Mas como poderia ele saber de que lado ficar?
Como poderia ele decidir qual lado do muro apresentava melhor caminho para seguir?
Deveria caminhar com a velha guarda – o que seria desmerecer a coragem do melhor amigo – ou deveria
prosseguir com Fábio – o que seria visível afronta ao grupinho de garotos hormonalmente carregados. Se por
um lado andar com os garotos lhe daria a segurança necessária para a casa não cair, Eduardo tinha a certeza
de que se ela caísse, seria Fábio quem estaria ao seu lado em meio às ruínas.
Sim, porque o telhado da mente de Eduardo se encontrava balançando com o vento da dúvida. Temia ter
goteiras terrivelmente geladas em sua alma quando a tempestade chegasse...
Eduardo olhava seus colegas de sala saindo apressados, deixando apenas as cadeiras vazias para trás.
Olhou Carlos e o grupinho de amigos rindo zombeteiros para uma garota da sala. Uma garota gorda e feia – era
do que a chamavam.
Olhou para Henrique, que parecia resoluto a não descer para o pátio. Se possível colar-se-ia a sua cadeira e
assim ficaria até o término da aula.
Ed procurou Fábio no local onde ele costumava sentar para assistir as aulas. Não o encontrando lá, vasculhou
toda a proximidade do local com os olhos bem abertos e encontrou o amigo conversando com um bando de
garotas.
Riam e gesticulavam animadamente.
Fábio, sempre bem humorado, parecia estar liderando o bate-papo no grupinho.
Eduardo admirava o amigo. Como ele lhe parecia feliz e de vida definida.
Não chegava a invejá-lo, mas desejava para si o mesmo tipo de relações que Fábio tinha. Eduardo desejava
não ter um gênio ruim. Tudo ia ser mais simples, porém, o que poderia ele fazer se nascera assim?
E que culpa tinha Fábio em ser tão carismático?
57
Ele era tão belo exercendo fascínio sobre as garotas. Tinha charme e sabia como usá-lo com quem quisesse.
Eduardo se espantava, pois até com os rapazes Fábio conseguia exercer certa influência e sempre era bem
quisto em qualquer rodinha de pessoas.

Sem contar que Fábio sempre ficava com as mais poderosas beldades.
Sempre se saía bem em tudo.
Ele, Eduardo, também tinha este poder... se dava bem e tinha o mesmo sucesso... mas... e daí? De que lhe
adiantava tudo aquilo se agora estavam danificados os alicerces nos quais ele construíra toda uma vida? Que
tipo de segurança teria em viver dentro dessa casinha frágil?
Ele que sempre fora tão forte, chegara em um momento em que duvidava da própria força.
E agora? Que caminho seguir?

Acabou descendo as escadarias na companhia de Fábio.


Decidiu que ganhava mais com isso. Era mais divertido conversar com ele. Era sentir-se bem com o amigo. E
justamente por sentir-se assim, Eduardo estava tentando juntar coragem para se abrir com Fábio.
Iria contar o que se passava.
Desde o que sentira ao ver as revistas, quanto o que sentia ao pensar em Rodrigo.
Mas não iria ser tão fácil. Teria que ter uma oportunidade especial. Uma brecha para entrar no assunto. Não
queria começar do além. Tinha um medo terrível de espantar o amigo para longe. Fábio era um dos únicos
portos seguros que ele tinha e não queria perder isso.
Outro ponto de apoio era Camila, mas já se via na iminência de desgarrar-se dele por incompatibilidade mental.
Ela nunca entenderia...
...mas será que Fábio iria entender?
- Fábio... – Ed principiou, mas calou-se por instantes antes de prosseguir – ...você é feliz sempre?
- Hum... – e o garoto levou a mão ao queixo, como um sábio faz quando reflete para responder – acho que
sou. Não sempre, claro, mas na maior parte do tempo...
- Ok... – Edú anuiu num sussurro e olhou para o chão.
- Porque? – o amigo indagou, estranhado a questão e sabendo-a fora de hora. Não era do feitio de Eduardo
fazer este tipo de pergunta.
- Nada não! – Ed simplesmente se esquivou e tentou colar uma desculpa qualquer, quem sabe daria certo? – É
que você vive rindo e brincando. Você passa a idéia de ser sempre alguém forte, com quem se pode contar...
- Oras! – o outro interrompeu como se Eduardo tivesse dito alguma heresia – Que idéia é essa? É claro que
você pode contar comigo!
- Eu sei... eu sei disso... – afirmou Ed – ...não estou pondo isso em questão. Mas é que eu não me sinto mais
como me sentia...
Fábio tinha um ponto de interrogação estampado no rosto.
- É que... sei que você é meu amigo... – Dú explicava – mas... ultimamente você anda meio distante – dizia
com certa cautela, pois tinha muito medo de tocar neste assunto com o amigo, que já não suportava ouvir isso.
- Não Eduardo. De você eu não estava distante. Eu estava era distante do grupo com que a gente andava...
como você ainda fazia parte dele... que solução tinha eu a não ser deixar todos de lado?
- É... eu sei... mas agora, eu meio que quebrei minhas relações com o grupo também. E tenho medo, que se de
repente você continue “sumindo”, eu vá acabando por ficar sozinho.

O vento soprou nas copas das árvores e algumas folhas caíram.


Fábio não disse palavra.
.....
“Querido diário,

Hoje estou me sentindo estranha.


É aquele acordo que fiz com o Eddie. Já fazia tempo que eu levava a situação na boa. Você sabe do que estou
falando, não é? Já escrevi sobre isso antes... mas como eu ia falando, eu levava na boa, sabe? Mas foi a gota
d’água quando o cretino veio aqui para dormir comigo e... nada!!! É... isso eu ainda não tinha te contado!
Agora você entende a minha revolta, não é mesmo?
Me sinto a última das últimas!
O pior é que eu amo aquele desgraçado! Às vezes eu entendo o lado dele... afinal ele está em pleno ano de
vestibular e quer medicina... isso exige esforço pra caramba! Mas... céus! A carne existe, não é mesmo? Eu já
me joguei para cima dele de diversas maneiras e nunca pareceu surtir qualquer efeito!!!

Será que ele não me ama mais?”

Do outro lado da cidade Camila fechou o grosso diário e ficou deitada na cama, apoiada sobre os cotovelos. Não
58
tivera vontade de ir para a escola.
Simplesmente não tinha ânimo.
Estava morrendo de saudades do namorado. Queria ligar para ele e falar qualquer coisa... mas acabaria soando
patética. Não queria dar o braço a torcer nem se parecer como um cachorrinho abandonado...
...mas era mais ou menos assim como se sentia agora.
.....

Os garotos da velha guarda estavam reunidos num canto do pátio do cursinho. Faziam piadinhas e falavam
bobagens.
Carlos ficara num lugar estratégico, de onde podia observar Fábio e Eduardo nos mínimos detalhes. Já fazia um
bom tempo que estava disperso nessa atividade que nem prestava atenção ao que os seus colegas diziam.
- O que foi? – indagou Jorge observando a abstração do colega.
- Não sei... – disse Carlos, deixando os olhos semicerrados – ...mas que tem coelho nesse mato... isso tem... –
e apontou com o queixo, numa esticada de pescoço sutil o local onde Ed e Fábio estavam.
.....
Fábio ainda estava quieto.
Eduardo ainda olhava para o chão.
- Ei... Eduardo, eu sou seu amigo, não sou? – disse Fábio finalmente rompendo o silêncio – Pode ficar calmo.
Você não vai acabar ficando sozinho. Eu não vou sumir da sua vida porque você é meu melhor amigo.
- Eu sei, mas é que... – Edú parou de falar.
.....
Na sala de aula Henrique escrevia em seu fichário algumas frases desconexas. A maior parte delas era trechos
de música. Gostava de ficar sozinho na sala durante o intervalo. Gostava de ver todas aquelas carteiras vazias.
E quando nenhum grupo de estudo ficava lá dentro para resolver alguns exercícios, era melhor ainda. Era como
se todo o mundo tivesse morrido e ele se visse livre de pessoas mesquinhas e que lhe queriam fazer mal. Tinha
vez que ia até o grande quadro negro e apagava o que estava escrito nele, assim gostava de fingir que ele
eliminara todos os vestígios da humanidade.

Desde a segunda aula estava com vontade de ir ao banheiro.


Mas estava se segurando.
Na hora do intervalo, a vontade era quase incontrolável, mas ele tentava segurar a onda. Ia escrevendo e
tentando não pensar nisso.
Não queria descer pro pátio para ser motivo de escárnio diante de um covil de carrascos. Mas a vontade crescia
e a bexiga ia ficando cada vez mais dolorida...
Cantarolou um pedacinho de uma canção. A primeira que lhe veio à mente. Talvez se regulasse a sua
concentração ao máximo, a vontade diminuísse... ficou cantando, cantando...
...até que não agüentou e levantou-se.
Desceu as escadas tão agilmente que parecia até ser feito de uma corrente de ar. Assim que chegou no
patamar do pátio, dobrou a velocidade das pernas e zuniu para o banheiro ziguezagueando por entre as
pessoas com a habilidade de quem está acostumado a mudar de rota para o seu próprio bem.
.....
- Eu sei, mas é que... – Edú parou de falar assim que viu Henrique se esgueirar por entre a multidão. Os
gritinhos e brincadeiras já começavam a se fazer ouvir.
Eduardo sentiu um aperto no coração.
Raspou o solado do tênis no chão, arrastando algumas pedrinhas dos vãos do calçamento. Juntou um pouco de
coragem em suas veias.
Olhou para o amigo e indagou.
- O que você acha disso? – e apontou para Henrique.
Dependendo da resposta do amigo, Eduardo saberia se poderia ou não contar o que se passava em sua alma.
Rezou para não escutar algo do tipo “tenho nojo de gente assim”.
Ao invés disso, ouviu:
- Eu sinto pena... – disse Fábio, com os olhos fixos em Henrique, acompanhando a trajetória do pobre garoto.
- É... eu também... – Ed deixou transparecer um pesar exagerado em suas palavras. E fitando o nada, reforçou
murmurando desconsolado, chutando uma pedrinha para longe – ...eu também...
Estava certo então... não tinha conseguido o gancho que queria para conversar com Fábio, pois o amigo nada
mais manifestara sobre o assunto.

Decidira guardar para si tudo o que sentia.


Talvez fosse melhor assim.
Talvez.
Ah se ao menos ele tivesse clareza nos pensamentos.
59
Mas nada nunca é simples.

.....

- Ih, olha o Henrique ali – disse Marcos cutucando Carlos.


- Veado de merda – o rapaz gritou.
Era um prazer bizarro.
- Vai lá Jorge e faz alguma coisa!
- Eu não! Vai você Lucas!
- Quero é distância dessa raça!
Carlos fez um único gesto e como se comandasse uma orquestra, todos se calaram para ouvir o que ele tinha a
dizer:
- Pois Eduardo está nos ignorando e ainda passou um sermão por conta dessa bichinha. Eu sei bem o que
fazer!
- O que? – Lucas indagou.
A face do rapaz estampou-se com um sorriso maligno:
- Vou pedir para a Clara tirar fotos da próxima vez que ver Henrique na boate. Aí eu esfrego essas fotos no
focinho do Eduardo e vamos ver quem tem razão. Ele vai se sentir tão bobo que vai implorar nosso perdão.
or Maven - mavenmusic@hotmail.com

Capítulo VIII

Eduardo saiu do cursinho feito barata tonta.


Por sorte seu ônibus passou bem na hora em que chegou ao ponto, pois senão
tomaria o primeiro que aparecesse por ali, sem ao menos se dar conta do que
fazia. Estava por demais atarantado para raciocinar as coisas triviais e básicas
que todos racionalizam em circunstâncias parecidas. Acontece que a cabeça do
garoto estava em Vênus.
Não... não... para falar a verdade, não estava em Vênus, estava de maneira
inegável em Rodrigo...

Rodrigo de pele macia.


Rodrigo de hálito doce.
Rodrigo de vida alegre.
Rodrigo de lábios rubis.
Rodrigo...
Rodrigo...

Sentia que algo passava feito um ciclone dentro de si. Mas nem a mais tênue brisa lhe pareceria calma neste
instante. Queria conversar com alguém sobre isso. Queria poder contar para Fábio...
Oras! Que idéia é essa? É claro que você pode contar comigo!
E Eddie desejou que fosse tão fácil quanto parecia ser.
Assim que desceu do ônibus pisou num chão incerto, um chão que quase lhe faltou. Estaria ele vivendo em um
mundo paralelo? Levava um fora das circunstâncias cada vez que elas se apresentavam. Essa busca incessante
de uma certeza abria e fechava tantas portas. Abria e fechava.
“Quando um ganha, outro perde” a voz da namorada ecoava em sua cabeça e ele peneirava o que podia. As
coisas iam fazendo sentido pouco a pouco, bem de leve, como uma pintura ia ganhando vida a cada pincelada.
Tantas matizes para formar um quadro.
Tantas percepções para formar um caráter.

Ficou parado no ponto enquanto o ônibus se afastava.


Hesitou sobre que direção tomar. Poderia ir para casa ou poderia ir se esconder no Farol do Saber que tinha ali
por perto. Adquirira este hábito desde que colocaram o Farol no bairro. Sempre que se sentia meio “estranho”,
era lá que ia se refugiar durante algum tempo. Voltava para casa com um livro e esta era sua terapia.
Decidiu ir para casa.
Ao descer a rua e passar na frente da casa de Rodrigo, estranhou a paz.
Fred já não existia e não mais o perturbaria. Era como se um pesadelo tivesse terminado. O foda era que
Eduardo não sabia ao certo se um outro pesadelo pior ainda estivesse começando...
Sônia preparava a mesa para servir o almoço quando Eduardo chegou em casa.
- Oi mãe! – disse o menino chegando-se perto da pia e encostando-se na geladeira. Fazia isso como se
estivesse muito cansado e precisando de um pouco de alento. Toda a confusão que sentia tinha que ser muito
60
bem escondida, feito poeira varrida para debaixo do tapete.
- Oi Dú! – respondeu a mulher, que amassava batatas para fazer purê – O que vai fazer hoje de tarde?
Sem pestanejar o garoto respondeu:
- Vou estudar, ué! – era tão óbvio... – Que mais posso fazer?
- Iiiiih... perguntar não ofende! – defendeu-se Sônia – Queria saber se você poderia ir no centro para mim.
- Que horas? – Ed indagou só por curiosidade.
Não iria mais sair de casa nem a pau. Estava era querendo sumir do mapa, nem sabia ao certo porque, mas era
assim que se sentia. Inventaria uma desculpa qualquer para se livrar do pepino.
- Tem que ser antes das três. – Sônia informou.
- Nem dá mãe... – o rapaz foi logo se desculpando – tem muita matéria para hoje. Pode ser amanhã?
A mulher fez um muxoxo:
- Melhor se fosse hoje... mas tudo bem! Pode ser amanhã! Quero que você vá no banco.
- Ok. – Eddie concordou tranqüilamente.
Já ia se retirando quando a mulher lhe chamou a atenção:
- Ah! O vizinho deixou um negócio para você, não faz nem quinze minutos – e dizendo isso, a mulher agachou
para pegar a lata de óleo de olivas que ficava embaixo da grande pia de mármore.
- O vizinho? – Eduardo estranhou.
- É! – a mãe do rapaz confirmou – O Rodrigo!
- O que ele deixou? – Duda quis saber. Que coisa estranha isso...
- Não sei... – Sônia temperava o purê com um fiozinho do óleo, enquanto falava com descaso – é um
embrulho. Claro que eu não abri para ver o que é, por isso eu te disse que é um embrulho... – e já começou a
fazer drama – ou você acha que eu vou abrir as suas coisas? Você tá achando que eu sou mexeriqueira? Por
acaso alguma vez eu já...
- Chega! – Eduardo interrompeu a ladainha.
A mulher sorriu e informou docemente:
- Tá lá no seu quarto.
Edú revirou os olhos demonstrando alívio por sair logo da cozinha e escapar das churumelas da mãe. Mais que
depressa subiu as escadas e rumou para o quarto.
Viu o embrulho em cima da cama. Eduardo pegou o pacote nas mãos.
Ouvia os deuses do Olimpo cantando ao longe.
Um papel pardo cobria algo com o formato retangular e plano. Descobriu o que era antes mesmo de abrir o
embrulho: era o porta-retrato de Rodrigo. Ao rasgar o papel constatou que não estava equivocado. Era
justamente o que ele achara que era, só que não continha fotografia nenhuma, e sim apenas um número
escrito por cima do vidro com canetinha de retro-projetor.
Eduardo sorriu.
Deduzira de cara que aquele era o telefone de Rodrigo.
.....
Já era noite feita, Ed já tinha estudado, tomado banho, jantado e conversado com o pai. Não estava mais de
castigo, mas deveria ser muito obediente e se saísse da linha iria voltar de vez pra “correção”.
- Rodrigo? – Ed indagou assim que atenderam do outro lado.
- Quem? – o rapaz perguntou.
- É o Eduardo...
- Oi!!! – Digo exclamou todo feliz quando o Edú se identificou – Cara! Eu pensei que você não fosse me ligar!
- Ah é? Porque?
- Não sei. Já tava até triste. É que eu deixei o telefone ainda cedo na sua casa e a tarde se passou sem você
me ligar, então ao anoitecer eu pensei que não tinha mais jeito!
- Não tinha mais jeito?...
- É! Mas deixa pra lá! Ei, eu queria falar uma coisa...
- Diga...
- Como Fred morreu?
- Oras... Eu já disse, passaram com a bicicleta por cima dele.
- Onde?
- Por cima do pescoço.
- Não foi assim não. – Rodrigo afirmou sem titubear.
- Como???
- Meu pai me ajudou a enterrar o Fred no mesmo dia, logo depois que fui na sua casa.
- E daí...?
- Pois é, meu pai estava examinando o Fred e disse que não foi atropelamento não...
- E como é que ele sabe disso? Por acaso é adivinha?
- Não, mas é médico legista e especializado em fraturas, esqueceu? Ele não viu nenhum indício de tecido
possivelmente danificado pela pressão das rodas. Considerando o tamanho do animal e comparando com o
61
peso de uma bicicleta em velocidade média com um homem adulto montado em cima dela... ao menos a
pelagem do Fred deveria estar avariada em alguma área... mas nada. Meu pai disse que o focinho estava
cortado em diversos pontos, como se alguém o tivesse amassado, ou mesmo dado um chute. Isso ele logo
concluiu pela mobilidade do pescoço. O impacto foi dado de frente, pois segundo ele, o choque ocasionou o
desligamento de aproximadamente duas ou três vértebras, disso ele não tem certeza, pois não tirou radiografia
e nem teria lógica fazer isso, mas considerando que essas vértebras são logo as que se ligam ao crânio... meu
pai afirmou que não foi atropelamento... isso não foi não!
Eduardo estava embasbacado.
Depois de um longo tempo, exclamou irritadamente:
- Seu pai é legista de gente e não de bicho! Eu contei o que eu vi! Você acha que eu ia estar protegendo um
assassino de cachorrinhos?
- Não... – Rodrigo fazia um tom de escárnio – ...em absoluto...
- Mas então porque esse papo? – Ed quis saber.
- Boa pergunta... – o outro rapaz meio que suspirou.
- Olha se eu soubesse que você ia me encher o saco e ficar com esse lero-lero eu nem tinha ligado!!! – e
Eduardo fazia o baita drama. Incrível a cretinice do rapaz, pois além de matar Fred, queria se safar da situação,
mesmo tendo o pai de Rodrigo descoberto que a história que Ed tinha passado não possuía nem um fundo de
verdade.
- Calma! Eu só disse o que o meu pai me disse... – falou o outro rapaz como um adulto que se apazigua diante
das birras de uma criança por não ter outro jeito senão concordar somente para não irritar mais ainda o ser
pueril – e acho que ele está enganado também...
- Claro que está! – vangloriou-se Eduardo.
- Mas e aí? – Rodrigo estourou – Você vem aqui ou não?
- Hein??? – Duda se surpreendeu.
.....
Já no quarto do vizinho, sentado na cama e para criar um hábito, de cara a cara com o outro garoto, Eduardo
começava a se indagar porque cargas d’água ele tinha ido ali. Sim, pois receber um convite, ponderar e aceitar
é uma coisa... já outra bem diferente é receber o mesmo convite e ir logo correndo abanando o rabinho sem ao
menos pestanejar.
E fora assim que Ed reagira.
Tão logo Rodrigo repetiu o convite ao telefone, ele não se conteve e disse – estou indo aí – desligou o telefone
e saiu correndo.
Um cachorrinho babão...
Parecia até que sua vontade pessoal não tivesse conexão nenhuma com a vontade moral. Mas a essa altura do
campeonato, ele estava mesmo querendo que um ponto de mudança definitivo se fizesse plausível. Estava
ficando farto de tanta guerra psicológica e nenhuma batalha física.
Ele tinha que sentir o toque.
Tinha que averiguar.
- E então? – fez Dú para Rodrigo, como quem tem pressa de começar a conversar.
Era sensação esquisita que se apoderava de Ed cada vez que ele estava em companhia de Rodrigo que tornava
tudo mais sensual e tão mais natural. Quase não se sentia em algo que “não podia ser” porque Rodrigo era tão
belo que provavelmente a única saída existente para um confronto com uma criatura desse naipe era se
render.
E agora a sensação voltava e seu coração palpitava acelerado. Tão contraditório. Tão idealizado.
Era bom sentir-se assim.
Era bom demais.
Mas puxa, Rodrigo era um homem.
E Eduardo jamais poderia deixar de pensar em uma punição por ir contra alguma convenção pré-existente.
Tudo tinha um molde. Tudo tinha um porque. O homem foi feito para a mulher.
Porque?
Oras!
Porque eram um molde pré-existente.
Um se encaixava no outro.
Mas mesmo assim...
...mesmo assim era ótimo ficar cara a cara com Rodrigo.
Mas mesmo assim...
...mesmo assim tinha algo de ilícito em ficar tão perigosamente perto de uma pessoa fascinante.
Eduardo só não sabia ao certo o que estava errado, afinal nada se passava ali. Rodrigo nunca dissera nada que
se parecesse com uma cantada explícita. E se dissesse, Ed provavelmente não saberia como lidar com isso... ou
talvez, no fundo, soubesse...
E aquele cheiro, o perfume de Rodrigo... causava em Eduardo a vontade de agarrar o outro moleque e arrancar
62
a camiseta dele, só para afundar a cara no peito de Rodrigo e ficar sentindo o cheiro.
- Que bom que você veio! – disse Rodrigo botando os dentes à mostra. Era o sorriso que Eduardo achava belo.
Era o deleite dos encontros entre os dois. Sabia que existia uma pureza naquele sorriso – Queria lhe perguntar
algumas coisas...
O modo ambíguo com que Rodrigo usava as palavras sempre deixava Eduardo meio que com um pé atrás. Lá
podia vir uma bombinha, uma bomba ou um mega torpedo.
- Se for sobre o cachorro eu vou embora!
- Não! Não é sobre o Fred! – Rodrigo esclareceu.
E embora o rapaz sorrisse com muita franqueza e seus olhos brilhassem de puro contentamento, o seu corpo
que estava aparentemente leve, denotava um fio de tensão constante.
- Ah! Então o que é? – Ed indagou, tocando o joelho do outro rapaz.
Uma corrente elétrica lancinou a lucidez de Rodrigo, que só pôde morder o lábio inferior, como fosse um fio
terra dissipando o torpor cálido do toque de Eduardo.
- Eu queria saber... – Digo estava sem graça. Desconfortável. Via-se isso nitidamente pelo modo com que
escondia as mãos.
- Diga... – Duda incentivou.
- Pois é! – exclamou Rodrigo num ímpeto de coragem e desembestou – Eu queria saber como é ser hetero!
Na realidade Rodrigo queria era perguntar aos berros ou sussurros ao pé do ouvido, se Eduardo cogitaria a
idéia de beijá-lo, mas acabou não tendo coragem e soltou essa pergunta sem pé nem cabeça.
- O que???
- É isso mesmo! – e Rodrigo balançava a cabeça para chamar atenção ao assunto e tentar dar menos bandeira
de que tinha “remendado” a pergunta – Tenho a maior curiosidade em saber como é ser hetero... sabe? Eu
queria saber como é transar com uma garota... será que você poderia descrever para mim como é? Eu queria
tanto saber...
E Eduardo revoltou-se com isso:
- Como assim quer saber? – e levantava as mãos gesticulando loucamente, não acreditava que o momento pelo
que esperava tivesse sido desarmado pela falta de coragem de Rodrigo – Oras!!! Ser hetero é... – e estancava
sem jeito por não ter uma resposta na ponta da língua, vasculhava a mente toda em busca de um golpe contra
que fosse certeiro – é... bem... é... – ainda sim não conseguia formular uma resposta – ...bem, é ser como
EU!!! É ser normal!
Já que Rodrigo dera para trás, porque não avacalhar de uma vez?
Não precisa nem dizer que era o gênio terrível trabalhando.
Sorrindo o outro rapaz se defendeu:
- Mas eu sou normal, veja, sou igual a você! Tenho tudo o que você hetero normal tem! Tenho até o que muito
hetero não tem! Tenho minhas prateleiras com troféus, tenho minha vida saudável de faculdade com todo o
povo, tenho...
- Ok! Ok! – Eduardo concordou logo de cara a fim de evitar toda uma lista de pontos comuns – Eu entendi! Que
você é normal eu sei que é! Mas eu só falei por conta dos gostos, afinal... não é nada normal um homem sair
por aí agarrando outro homem...
- Porque não? – Rodrigo indagou. Tinha os olhos brilhantes fitando a expressão facial de Edu.
Havia um sistema solar rodando pelo quarto.
Tanta energia acumulada.
Tanta beleza construtiva e desgastante. Um paradoxo vertiginoso. Um paraíso possível de se alcançar com uma
trilha dolorosa de se trilhar.
Rodrigo tinha as meninas dos olhos fixas no outro rapaz, como se fossem duas africanas fujonas amarradas
num tronco, cuidavam do patrão para que ele não se voltasse com chibatadas cruéis sobre elas. Logicamente
havia sacado que Eduardo estava afim de beijá-lo.

Ed percebeu que Rodrigo o decifrava em seu silêncio e se inquietou. Por falta de costume da situação,
esquivou-se:
- Porque não... oras!
- Mas é tão bom... – e as mulatinhas sorriram por saberem-se donas da circunstância.
- Isso é você quem diz! – ponderou Eduardo – Assim como alguns gostam de jiló, outros não. Entenda isso!
Não estou te criticando, mas é que para mim, na minha cabeça isso é errado.
- Como se fosse algo proibido? – Rodrigo quis saber, com um ar de malícia rodeando os lábios perfeitos.
- Lógico!
- Mas se é proibido é mais gostoso.
- Se é proibido é porque não é correto! – Ed bateu na cama ensandecido – pois isso vai contra tudo o que é
moral! A sociedade condena! A igreja condena!

Porque lutava?
63

Sentia-se um imbecil por tentar levar adiante um papel que não lhe fora dado para interpretar.

- Oras, caros Eduardo, a sociedade e igreja são mais fortes do que a vontade pessoal, não é mesmo? – Rodrigo
subia o tom da voz sem perceber – E o que acontece com o livre arbítrio? O que acontece comigo quando eu
quero ser feliz e não posso por causa dos outros que acham que isso não está correto? O que acontece com
minha vida, minha liberdade de escolha, quando quero ser quem eu sou e gostar de todas as coisas que gosto,
mas não sou permitido fazer isso sem me achar um monstro, só porque os outros acham que isso não pode
ser?
- Puxa... olha Rodrigo, eu não quis colocar as coisas desse jeito... – Dudú desculpou-se – mas veja... tá escrito
na Bíblia! – e acrescentou sem pensar – É pecado!

Uma onda de calor varreu o corpo de Rodrigo, que avermelhou de tal modo que parecia que ia derreter. Saltou
da cama e começou a andar de um lado para outro.
Ouvir aquilo lhe fizera mal.
Algo como palavras em chamas entrando na cabeça e fazendo um incêndio de puro ódio.
- Pecado??? Pecado??? – Rodrigo gritava muito vermelho e soltando gotículas de saliva para todos os lados – E
quanto ao crime que a sociedade e a igreja cometem? Sim, pois eu considero um crime uma pessoa ter que se
anular para poder viver... aliás... a pessoa que se anula nem tem vida pois está sempre infeliz e desgostosa
com tudo! E sabe o que essa pessoa faz então? Começa a criticar os outros só porque eles não têm medo de
tentar buscar a felicidade! Eu acho que quem tanto critica e desdenha é porque bem na verdade queria era
estar fazendo a mesma coisa!!! – ele respirava rápido – Pecado??!! Eu já te digo o que é pecado!!!

E Rodrigo parou.
Bufava em contorção extrema de seus músculos da face e pescoço. Fitava Ed com os olhos injetados de
indignação. De dedo em riste, começou a fazer o discurso novamente.
- É isso o que sua queridinha sociedade faz! É isso o que sua adorada igreja faz! Mas EU é que não vou me
anular nunca! – e batia com força no peito tentando matar o dragão que cuspia ódio – Podem fazer o que
quiserem de mim! Podem me excluir da sociedade, podem me alienar, podem me excomungar de todas as
igrejas e templos do mundo, que mesmo assim minha cabeça vai estar erguida, pois eu sou o que sou e não há
crime nisso!
Olhou bem para Eduardo, cuja pele alva refletia o evidente espanto pelo rompante ensandecido de Rodrigo:
- Deus é maior que as intrigas dos homens. Se Deus perdoa branco e preto, se perdoa gordo e magro, se
perdoa hetero porque não iria perdoar homo??? Deus é pai! Ele tem perdão até de quem é ruim!!! Por dentro
somos todos iguais, mas só poucos assumem tudo o que sentem. Todos nós somos iguais! Você é normal, eu
sou normal! Você tem defeitos e eu também! O que muda é a capacidade de amar!
- Rodrigo, eu acho... – Eduardo tentava se desculpar. Mas não tinha jeito.
- Tá!!! – gritou o rapaz enlouquecido – Acontece que eu consigo amar outro homem, e daí? Cadê o erro nisso?
- Rodrigo eu... – Ed se viu chocado com a reação do amigo. Tentava acalmá-lo.
- Não Eduardo – e o rapaz lhe dava de dedo – Eu não escutei isso nem dos meus pais, porque vou ter que
escutar de você? Se é para eles que devo prestar contas, porque devo me importar com o resto do mundo e...
- Porque se importa então? – Eduardo interrompeu.

Rodrigo ficou imóvel.

- É que... é que... – de repente toda eloqüência se foi. As palavras haviam se trancado em seu recanto mágico
e tudo o que os rapazes escutavam era o vento lá fora.

Edú, em silêncio, esperava a eternidade passar...


Finalmente Rodrigo falou:
- Quer saber a minha teoria sobre isso tudo? Quer saber o que eu acho? – não obtendo resposta por parte de
Eduardo, o rapaz senta-se na cama, só que desta vez chegara bem perto de Eduardo. Tão perto que a
respiração dos garotos se fazia sentir em ambas as faces.

Eduardo estava quase entrando em transe.


- Pois bem, querendo saber ou não eu vou falar! Eduardo – e o garoto olhou para Ed bem dentro dos olhos –
você acredita que temos uma alma, não?
- Claro! – ele respondeu com seriedade na voz e meio sorriso nos lábios.
- Você sabia que a alma não tem sexo definido? – indagou Rodrigo em tom de informação.
- Não??? – Eduardo surpreendeu-se.
- Não! Alma não tem sexo. É como são os anjos. A alma não é homem e nem mulher, mas é a junção dos dois
64
ao mesmo tempo.
- Puxa! Onde você ouviu isso?
Rodrigo riu. Continuou falando:
- Você acredita que você tenha uma alma, não?
- Espero eu! – riu-se Eduardo.
- Pois se você tem alma, aliás, se todos nós temos alma, carregamos os dois sexos conosco. Somos bissexuais
em potencialidade! O que vai determinar se a pessoa é homem ou mulher é apenas o sexo biológico, ou seja,
apenas o corpo. E isso até é meio dúbio porque o homem tem hormônio feminino no corpo e vice-versa. O que
todos nós procuramos nesta vida é ter outra pessoa, é ter alguém para nos completar... isso é porque a alma
não é completa, não é definida. Mas acontece que de vez em quando, a alma da pessoa é mais forte que o sexo
biológico, a alma está além disso e você de repente se vê capaz de se completar com outra pessoa que tenha o
mesmo sexo biológico que você...
- E...? – fez Eduardo, querendo saber o “x” da questão.
- E daí que isso é formidável! No fundo eu tenho uma alma que tenta buscar um equilíbrio com outra. E isso
não tem nada de errado, pois eu me sinto bem, isso me faz bem.
- Puxa... pensando assim parece bonito até!
- Acredite Eduardo, não há nada pior no mundo do que não achar equilíbrio. Toda pessoa precisa de uma outra.

- Com isso eu concordo plenamente.


- Que bom! Eu fico feliz! Agora você entende que sua missão aqui seja qual for ela só termina depois de
completada? É a mesma coisa com a sua alma, ela só vai se equilibrar depois de estar completa.
- Mas isso é óbvio!
- Ok, você sabe, é óbvio e tudo mais, mas vai que a outra parte da sua alma está no meu corpo?
- O quê??? – Indagou Eduardo pasmo.
Rodrigo tratou logo de consertar a situação.
- Isto é, quero dizer, no corpo de um homem!
- Que tal mudar de assunto? – Ed incomodou-se.
- Eduardo, que tal que você não encontre o equilíbrio perfeito na alma de uma garota? Que tal que você se
adapte e consiga viver melhor com um rapaz?

O coração de Eduardo estava fraquejando.


Sentia-se extremamente atraído por Rodrigo.
E do jeito que estavam perto... Ed teria que lutar contra essa atração, pois já achava-se envolvido pelas
justificativas, que recobriam com tinta nova e cintilante as arranhaduras do seu lado psicológico que já andava
fragilizado ultimamente.
- Rodrigo, por favor, vamos parar de falar nisso?
O rapaz sorriu:
- Por mim... tudo bem!

Rodrigo passou a mão pelas costas de Edú. Deslizou-a tão suavemente e com tanta ternura que ondas de calor
penetraram pelos poros de Eduardo, que recebeu o gesto de carinho sem achar aquilo uma “viadagem”.
- Você curte música eletrônica? – indagou Rodrigo.
- Claro! Na verdade eu gosto de todo tipo de música, contanto que não seja pagode ou sertaneja... o resto tá
valendo!
- Ok! O que acha desse CD? – Rodrigo levantou-se e ligou o rádio. Colocou um CD, apertou play e em instantes
o quarto estava inundado por um ritmo eletrônico alucinante.
- Uau! – Ed exclamou em êxtase – Que tesão de música!!!
Rodrigo sentou-se na cama e olhou para os lábios de Eduardo. Chegou um pouco mais pra perto do garoto e
indagou:
- Tá afim de ir num lugar onde só toca esse tipo de som?
Eduardo, começando a ofegar e sentir o seu sangue ferver de excitação quis saber:
- GrooveLandS?
.....
- Filho, como é lá dentro? – Sônia indagou assim que viu Ed entrar em casa. Estava pintando as unhas e deixou
tudo de lado para sondar informações sobre a grande casa onde Rodrigo morava.
- Normal mãe – o rapaz respondeu com descaso e já ia saindo de perto.
- Eduardo! – a mulher gralhou – Não faça isso com a sua mãe!!! – e levando a mão à testa, Sônia fez “a cena”
– Você sabe que eu morro de curiosidade para saber qualquer coisa que seja daquela casa, então não me seja
ingrato! Você viu os pais do Rodrigo?
- Não mãe, eu ainda não os vi!
- Que pena... – a mãe de Eduardo lamentou-se, inconsolável – ...mas perguntou alguma coisa para esclarecer o
65
mistério?
Eduardo então resolveu contar o que sabia.
- Perguntei sim mãe.
- E não me disse nada???
- É que esqueci e não tive tempo, mas deixa que eu conto...
E Eduardo contou desde como era o quarto de Rodrigo, com seus troféus e medalhas até sobre o que faziam os
pais dele.
- Mas nossa! – exclamou a mãe toda feliz, concluindo – Então esse Rodrigo é uma ótima companhia!

Eduardo sorriu e pensou “você não imagina o quanto...”


.....

No cursinho Eduardo rabiscava uma fórmula na carteira em plena aula de química, sabia a fórmula de cor, mas
tê-la fácil para visualização lhe causava maior segurança. Acabava de virar a página da apostila com os
exercícios da aula em questão, quando um bilhete miúdo chegou na sua carteira. Era um bilhete de Fábio:

Cara, você anda muito estranho ultimamente... caso você não tenha percebido, a sua blusa tá do avesso! Você
não é disso. O que tem acontecido? Tá precisando conversar? Algo aconteceu naquele rolo da Camila?
Seguinte: esse final de semana vai rolar uma festa tecno numa fazenda perto de São José dos Pinhais, tá afim
de ir? Vai estar cheio de gatinhas... de repente é bom para desvirtuar um pouco da Camila, já que vocês estão
nesse rolo... a gente se fala no intervalo!

Ed olhou para o amigo Fábio que ficara observando a leitura do bilhete o tempo inteiro. Sentiu-se reconfortado
de um mal que não existia e sorriu como quem diz “ok, a gente conversa depois!”.

Realmente Fábio era um dos únicos pontos que ele tinha para se firmar e não estava afim de perdê-lo de jeito
nenhum. Por essa razão Eduardo decidira que não iria contar nada para o amigo.

Abaixou a cabeça e tornou a rabiscar as fórmulas na carteira.


Não conseguia pensar direito e nem prestar atenção ao assunto da aula.
Parecia que a única coisa que se fazia possível no momento era pensar em Rodrigo.
Tudo estava tão nebuloso e ao mesmo tempo tão excitante que pensar no vizinho era a delícia proibida de
Eduardo. Mas se é proibido é mais gostoso. O garoto tentava imaginar como seria para Rodrigo ser
abertamente gay. Que vantagens e desvantagens isso lhe traria... o que afetaria em sua vida... ficava
imaginando como era beijar outro rapaz... como seria tocar um garoto com a mesma intenção que ele tinha
tocado as garotas com quem ficara até então... e subitamente... lá estava Eduardo com uma baita ereção.

Agora sim fazia sentido.


O que ele deveria ter sentido ao ficar com as garotas era o que ele estava sentindo agora somente por imaginar
ficar com um rapaz.
...claro, claro!
Agora sim!

A certeza veio rápida como um raio na mente de Edú e incendiou seu interior. Sentindo a chama se espalhar
por seu corpo, Eduardo não se conteve e exclamou:
- Meu Deus!!! Eu sou GAY!!!
.....
Assim que tocou o sinal Eduardo desceu com Fábio para o pátio.
- Puxa cara... o que está acontecendo?
- Não é nada... – Ed ainda tinha sua certeza de não revelar nada ao amigo. Ainda mais agora que sabia de que
lado do muro estava.
- Nunca é nada pra você! – Fábio reclamou pela falta de confiança do outro rapaz, colocou a mão no bolso,
pegou duas balas, uma para si e outra que ofereceu a Eddie – Eu estou sabendo que algo acontece, só não sei
o que é! Eduardo, eu te conheço! Não adianta esconder porque hora ou outra eu vou acabar sabendo! Anda,
desembucha logo o que acontece!
- A- acontece? Que acontece o quê! Você está é viajando!!! – Eduardo disfarçava (e muito mal).
- Nem adianta Duda! Eu sei que tem algo de errado contigo! Anda sempre pensativo e nem parece mais ser o
mesmo! Cadê toda sua concentração na aula? Você acha que eu não reparei que você está disperso?
- É??? ... puxa! – Eddie admirou-se da perspicácia do amigo – Mas o que poderia ser?
- Deixa de ser enrolão Eduardo!!! – bronqueou o outro – Isso sou eu que te pergunto!!! Mas pelo visto você vai
me enrolar até a morte e não vai me contar nada! – Fábio exclamou desistindo – Ah! E sobre a festa... tô
66
sabendo que vai rolar em alguma chácara. Talvez na Chácara Paraíso, não sei, mas vai estar o bicho! – e Fábio
olhava para o amigo como alguém que tem uma bóia e pode salvar um náufrago do afogamento.
- Pois é... não vai rolar... – Eddie desculpou-se, gentilmente recusando a bóia por saber nadar – ...é que eu
prometi que ia sair com os meus pais neste final de semana.
Fábio se espantou:
- Com os seus pais??? Você vai trocar uma festa rave que vai rolar numa chácara animal por um final de
semana com os seus pais??? Eu não acredito nisso!!!
- É... é que... – e a mentira veio vindo – ...bem... você sabe, né? Ano de vestibular... pais exigentes, filhinho
que estuda um monte e não tem tempo de visitar parentes... meus pais e eu vamos visitar a parentaiada!!! –
ao dizer isso Edú deu um sorriso tão amarelo que até um palmito teria mais charme e simpatia que ele (e
mentiria com mais eficiência).
- Eduardo esta é a desculpa mais esfarrapada que eu já ouvi! – Fábio exclamou indignado. Depois de um certo
tempo, resolveu deixar quieta a história que o amigo lhe contara e concluiu – Vou fingir que engoli essa
desculpa de visitar parente, ok? Só pra não criar caso!
E Eduardo ainda tentou se defender, jurando que estava ofendido:
- Mas não é desculpa...

.....
“Oi meu diário!

Hoje já é quinta-feira e resisti bravamente! Não liguei para aquele cachorro (e nem ele ligou pra mim... snif...
snif...).
Ocupei-me todo este tempo estudando e dançando. Já tenho calos em meus pés e a sensação de chifres na
cabeça!!! Ai, se o Eduardo aprontou ele vai ver só! Ai que eu saiba que ele andou olhando para outras garotas –
ou sequer ter pensado nelas!!!”
.....

Eduardo pensava em Rodrigo.


Sexta-feira não tardava chegar e iria sair para a boate... um frio na barriga o deixava deliciado. Acabara de
descer do ônibus e rumava para a casa do amigo. Nem pensou em largar os materiais do cursinho em casa.

Assim que tocou a campainha, Rodrigo atendeu.


- Entra aí!
Eduardo entrou. Antes que pudesse falar qualquer coisa, Rodrigo já abriu a boca:
- Duda, olha só que legal o que tenho para lhe contar: meu pai e minha mãe querem jantar com os seus pais!
- Como? – fez Eduardo com espanto.
- Contei para minha mãe sobre nossa amizade e ela ficou muito entusiasmada! Falou que finalmente eu
arranjei um amigo nas redondezas e disse ainda que seria uma ótima oportunidade para conhecer as pessoas
da vizinhança! – o rapaz era puro sorriso, aquele sorriso que tanto desnorteava Eddie – E minha mãe pediu
para convidar seus pais para jantar amanhã aqui!
- Amanhã??? – Eddie ainda estava espantado.
- É! Legal, né?
- Olha, eu não sei se meus pais vão poder... quero dizer... puxa! Como vou contar para eles? Nós nos
conhecemos faz tão pouco tempo, acho que meus pais vão estranhar o convite... puxa! Que coisa... será que...
- Corta essa Edu! Vai ser legal! Seus pais vão adorar os meus! E aposto que seus velhos não fazem nada na
sexta à noite. Nada! Já os meus não... vão faltar trabalho só para ter este jantarzinho socializador!!! A família
Toledo vai encontrar a família...
Rodrigo ficou reticente esperando Duda completar:
- Braschi. Família Braschi – disse com relativa calma.
- Braschi?! Hmmm que chique, hein?
.....
- Como? Jantar com eles? – dona Sônia sorria estupefata.
- É mãe! – dizia Eduardo. Sentia um frio tremendo na barriga só de pensar! E se Rodrigo desse mancada no
jantar, se desse a entender que era gay... ai! Os pais de Edu poderiam até proibí-lo de andar com vizinho.
- Que emocionante! Que roupa será que eu uso? – e a mulher se batia toda, feito uma perua velha e orgulhosa.
- Como assim mãe? Qualquer uma serve!
- Você acha Eduardo?
- Lógico! Não é jantar com o Presidente da República, é só um jantar na casa dos vizinhos!
- Ai filhinho, não é bem assim... não posso ir maltrapilha para um jantar!!!
- Mãe eu não estou falando para você ir maltrapilha, só estou avisando para não exagerar na produção!!!
- Ah...
67
- Então tá né mãe? Já está avisada! Amanhã jantar na casa da família Toledo às oito da noite.
- Ai que alegria!!!
- Ok, deixa eu ir descansar, pois tenho que estudar bastante ainda!

Eduardo rumou escadaria acima.


Assim que chegou no quarto despiu-se e foi pro banho. Demorou mais de meia hora no chuveiro, só relaxando
e pensando em como sua vida mudara tanto em tão pouco tempo.
E a água que escorria pelo ralo levava não só o cansaço embora... levava o antigo Eduardo também.
Aquilo era tão gostoso, fazia Ed se sentir tão bem que este começou a cantarolar.
Tudo era música, tudo era poesia. Os pingos de água eram verdadeira sinfonia celebrando a vida!
Saiu do banheiro ainda cantarolando, entrou no quarto e colocou uma bermuda bem larga. Ao se atirar na
cama, não mirou bem o alvo e acabou se machucando na quina de madeira do criado mudo. Mas nem isso
conseguiu estragar a alegria em sua alma.
Precisava estudar as matérias do dia.
E assim o fez.

E muito bem!
Capítulo IX

Assim que Eduardo apertou a campainha, Rodrigo abriu a porta. Parecia até que
estivera de vigília no patamar interno do hall de entrada, espiando pelo olho mágico.
Estava lindo.
Usava calça de risca de giz e blusa de lã gola alta, ambas pretas. Seu cabelo arrumado
de jeito casual, jogado para trás, lhe dava um ar de menininho. Sua pele firme e
corada contribuía para este aspecto se firmar.
O seu perfume invadiu Eduardo de tal modo que o rapaz mal podia pensar.
Eddie tentou evitar e disfarçar o máximo que pôde, mas não conseguiu, sorriu de
imediato e seus olhos brilharam.
- Oi Edú! – Rodrigo cumprimentou – Oi mãe e pai do Edú! Entrem por favor.
Eduardo também estava bem arrumado e sua beleza natural era reforçada pela
sobriedade da calça social e camisa pólo que usava.
Entraram todos e depois das apresentações serem feitas, reuniram-se na sala de
jantar da casa do começo da rua.
Os Braschi de um lado e os Toledo de outro.
A conversa estava animada.
As mães de Eduardo e Rodrigo se deram muito bem. Foram com a cara uma da outra logo do princípio. Mesma
coisa com seu Antônio e Dr. Luís, só que sem a empolgação feminina. Estavam engajados em conversa séria...
crise, tempos modernos... “no nosso tempo as coisas eram diferentes...”.
A mesa da sala de jantar estava muito bem servida e bonita. Os talheres de prata brilhavam com a luz
amarelada do imponente lustre de cristal que pendia do teto exatamente em cima da mesa. Havia dois tipos de
vinho no baldinho de com água gelada.
Rodrigo bebia largamente e soltava risadas enquanto se infiltrava na “conversa dos adultos”, dando palpite
aqui, palpite ali.

Eduardo permanecia mudo, mal tocara no prato de comida.


Ficava apenas olhando para Rodrigo, que estava sentado bem a sua frente. Reparava como o amigo era belo.
Reparava no sorriso perfeito. Reparava em cada gesto. No jeito com que o rapaz tocava os talheres, segurava o
copo de vinho tinto e o levava até a boca, sorvendo o belo líquido que deixava seus lábios mais rubros e
molhados. Prestava atenção no modo com que passava a mão pelo cabelo.
O jeito que sorria e eventualmente olhava para ele, com aqueles olhos matreiros e sedutores.
Rodrigo fazia toda aquela pose para Eduardo.
E Eduardo sabia disso.

Era um jogo de sedução e Rodrigo estava ganhando.


- Então crianças... para onde vão hoje? – Sílvia, a mãe Rodrigo perguntou.
- A gente nem sabe... vamos rodar um pouco, né Ed? – Digo olhou para o rapaz e deu uma piscada e um
sorriso de canto de boca.
- É! – tratou logo de concordar.
- E vão acabar parando em alguma danceteria eu aposto!!! – comentou Luís. O pai de Rodrigo já sabia muito
bem quais eram as intenções do filho para com Eduardo.
- É pai, acho que sim – disse o garoto levando a taça de vinho à boca e tomando um belo gole – vamos sair
68
para dançar um pouco.
- Imagina só! Esses dois rapazes tão bonitos soltos por aí! Vão é quebrar os corações das pobres garotas! –
dona Sônia falava admirando a beleza do par de amigos. Rodrigo e Eduardo formavam uma bela dupla.
- Vão agarrar todas as mocinhas! – disse seu Antônio entusiasmado – Ah! Esses garotos de hoje...
Sílvia olhou para o filho e depois para Eduardo:
- É... esses garotos de hoje... – soltou contendo o riso...
Luís gargalhou.
- Pai... pára com isso! – Digo pediu embaraçado.
- Ah... deixa disso Rodrigo! – dona Sônia interveio – Como se a gente não soubesse o que nossos queridos
filhinhos aprontam por aí...
- E por falar em aprontar – seu Antônio apontou a faca para Edu – veja se não esquece que você tem
namorada, ouviu bem mocinho? Não me vá “aprontar” muito, ok?
- E você seu Rodrigo – Sílvia disse sem olhar para o filho – chega de vinho porque você vai dirigir! Eu e seu pai
sabemos quantos jovens chegam arrebentados naquele hospital por conta de acidente de carro. E a maioria é
por causa de bebida!
- Certo mãe – disse Rodrigo, dando o último gole, esvaziando a taça e depositando-a na mesa – acabei de
jantar. Tava uma delícia! Eu e o Eduardo vamos lá para dentro e deixar vocês “adultos” conversarem em paz!

O rapaz levantou-se e Eduardo fez a mesma coisa.


Agradeceu o jantar e seguiu o amigo casa adentro.
Ao chegarem no quarto, Rodrigo fechou a porta.
- Você está lindo! – elogiou francamente.
Eduardo não estava preparado para ouvir tal coisa. Ficou vermelho feito um pimentão e não teve jeito de
disfarçar. Mas gostara do elogio e resolvera retribuir:
- Você também... está muito... – procurava uma palavra – muito elegante!
Digo sorriu:
- Você tem certeza que quer ir na Groovelands?
- Tenho – Ed respondeu com firmeza – que mal tem em ir numa danceteria?
- GLS – Digo acrescentou.
- Que seja!
- E sua namorada?
- O que é que tem ela?
- Nada... só queria saber se você a ama.
Uma pontada no coração.
Eduardo disse cristalino:
- A gente deu um tempo.
- O que aconteceu? – Rodrigo quis saber. Denotava interesse real, diferente do interesse de um urubu
sobrevoando a carniça.
- Não foi nada. Alguns problemas comuns... é coisa passageira... ou...
- Ou...
- Ou coisa sem volta!
- Cara... será que tem volta?
- Dá para mudar de assunto Rodrigo?
- Tá ok... mudamos então. E já falei quando a gente se conheceu, que não precisa me chamar de Rodrigo. Pode
ser Digo, ou simplesmente, para os mais íntimos, Go ou Diguinho.
- Diguinho?
- É... meio gay, mas... – Rodrigo riu – bem... você sabe!
Eduardo sorriu:
- É, eu sei! Você é gay mesmo, né?
- Isso aí!
- Então não tem problema!
E caíram na risada.
Ficaram no quarto só falando bobagem até que Rodrigo olhou o relógio e percebeu que já havia passado da
hora de partirem para a balada. Já passara da meia noite. Saíram do quarto e despediram-se dos pais que já
não mais estavam na sala de jantar e sim na sala de visitas, tendo uma agradável conversa visivelmente
aditivada pelo álcool:
- Pai, mãe, a gente já tá indo – Digo avisou.
- Sim meu filho. Vão com Deus e se divirtam!
- Eduardo, não tome drogas – seu Antônio advertiu.
- Ok pai! – Ed anuiu logo para não se demorarem mais – Tchau para todos!
69
Já no carro, os dois seguiam conversando alegremente.
- Eu vou te apresentar um monte de amigos meus! – Rodrigo ia berrando para se fazer ouvir, pois a música
estava alta dentro do veículo. Música eletrônica para “aquecer”, fora o que Digo dissera.
- Amigos, é? – Ed indagava – Puxa! Que bom! Eu estou precisando mesmo de novos amigos... – e pensou na
velha guarda, que agora, já fazia parte da sua velha vida. A vida que escorrera pelo ralo com o resto da sujeira.
- São todos muito gente boa!
- Devem ser! Você conhece muita gente?
- Bastante!
- Legal!
- É muito fácil fazer amigos nestes ambientes. Todo mundo vai lá para ferver.
- Ferver?
- É! Curtir... como eu ia dizendo, todo mundo vai lá para fazer festa... mas toma cuidado, viu? Tem gente legal
sim, mas também tem muita gente podre. Melhor ficar de olho com quem você vai conversar.
- Mas gente que não presta existe em tudo quanto é lugar!
- Isso é verdade e não vou falar que você não tem razão. Mas eu te digo uma coisa: bicha quando tira para ser
ruim... sai de perto! Vira um veneno só! Mas nem se preocupe! – Digo disse sorrindo – eu vou te proteger!
- Não precisa porque eu não sou criança e nem sou indefeso! – Edu retrucou com seu gênio escabroso.
- Só tava brincando, seu mané e além do mais, lindo deste jeito, você devia mesmo era querer minha proteção
lá dentro... vão cair todos em cima de você!
Eduardo sorriu diante do elogio:
- Você acha mesmo? Puxa... então tá! Sendo assim eu aceito sua proteção...
- Ótimo, porque a gente já chegou.
Rodrigo parou o automóvel na rua e pediu para o guardador de carros dar uma olhada. O cara disse que tudo
bem e então Digo falou:
- Acho que podemos entrar, né?
- Vamos!
Atravessaram a rua e rumaram para a entrada da boate. Apesar de ser uma hora da manhã, havia ainda uma
longa fila na porta. Havia gente de todo o jeito. Clubbers, trancers, drag’s, travestis, gente com chapéu de
cowboy, garotas com roupas de borracha, monas performáticas e muita gente colorida. Eram várias tribos se
encontrando com uma única finalidade: se divertir!

Ficaram na fila esperando.


Rodrigo se deliciava reparando no jeito que Eduardo esticava o olho para o povo que passava e para certos
grupos na fila. Tudo era novidade e seus olhos transpareciam a curiosidade. Estava impressionado pela
adversidade encontrada no local.
Conseguiram entrar somente meia hora depois.
Lá dentro a agitação corria solta. A pista do primeiro andar já estava praticamente lotada. Aquela era a boate
mais bonita de Curitiba.
Rodrigo indagou:
- E aí? Que tal?
- É muito massa! – disse Eduardo, alucinado.
- É! A Groove é matadora! Uma sorte que os “heteros” não descobriram isso aqui.
- Como?
- Era o que andava acontecendo ultimamente aqui em Curitiba. Vários lugares gays começaram a ser
freqüentados por heteros... era tipo modinha. Eles diziam que eram “fashion” só porque iam em lugares gls. E
foram entupindo, entupindo o local, que no fim dois caras não podiam nem se beijar se serem olhados como se
fossem doentes. Não demorou muito e esses lugares acabaram por perder a característica gls e todo o público
gay foi-se embora para outro lugar. Espero que isso não aconteça com a Groove.
- Isso é preconceito!
- Hein?
- É preconceito contra os heterossexuais. Porque eles não podem vir aqui?
- Não estou dizendo que eles não podem. Claro que podem! Só estou falando que seria uma pena que a Groove
deixasse de ser gay, porque é a melhor casa noturna da cidade em termos de estrutura!
- Ah... entendi!
- Vamos dar uma volta.
Enquanto andavam, Rodrigo parava diversas vezes para cumprimentar amigos. Em alguns dava beijos no rosto,
em outros dava selinhos e para poucos nada mais fazia do que menear a cabeça. Aproveitou e apresentou
Eduardo para uma porção de gente.
- Muito interessantes esses seus amigos.
- Você ainda não viu nada. O povo fervido mesmo só chega aqui depois das três da manhã.
- Sério?
70
- Verdade!
- Puxa, as três eu acho que estarei perdendo o pique e querendo voltar para casa.
Rodrigo riu:
- Não aqui... você só vai sair quando o sol raiar, acredite!
A boate tinha vários ambientes. Três pistas de dança, um grande chill out no quarto andar, dois grandes bares
com uma área de alimentação, um dark room, banheiros mistos em todos os andares. Contava ainda com um
túnel cheio de imagens malucas. Diziam que era o recinto da “piração” e que as pessoas iam ali para consumir
drogas.
- Eduardo, deixa eu te apresentar o Gustavo. Ele é tri gente boa!
- Ok.
Digo gritou no meio da multidão, logo, um rapaz baixo, todo colorido e de traços fortes, lembrando um árabe,
se aproximou.
- Gustavo, esse é o Eduardo.
- Prazer – o garoto ia dar um beijo no rosto de Ed, que recuou.
- Ele é hetero... – Rodrigo explicou.
- Ah... ele é hetero? – fez o rapaz, com incredulidade.
- Diz ele...
Eduardo olhou feio para o amigo.
- Quer parar com isso? Você é mesmo um idiota!
- Calma Duda! Eu tava brincando!
Gustavo se intrometeu:
- Que faz na Groovelands com o Rodrigo se é hetero?
Eduardo não sabia o que responder:
- Eu... eu... – e ficou vermelho, antes já havia admitido para si mesmo que era homossexual, só faltava mesmo
era chutar o balde – Oras! Que saco! Querem saber? Eu sou gay sim!!!
No mesmo instante, I Will Survive começou a tocar na pista...

.....

Lá pelas quatro horas da manhã, Eduardo estava apertado e precisava usar o banheiro. Saiu da pista de dança,
onde estava dançando com Rodrigo e seus amigos e passou por um bando de garotas. Todas olharam
espantadas para ele e cochicharam entre si:
- Gente, eu não acredito! É o menino do cursinho! – uma das meninas cutucou a outra, de cabelos cor de fogo.
- Jesus!!! Ele é gay!!! – esta comentou.
- Que desperdício... – disse a que havia cutucado a ruiva, levando a mão à boca.
- Nem me fale! – disse uma japonesa.
- Coitada da namorada dele... será que imagina por onde anda o amado dela?
- Ele tem namorada? – todas se espantaram.
- Tem! – disse a ruiva.
- Ave Maria! Que cretino!
- Pode ser que ele não seja gay... ele tem namorada, ué! – disse uma garota mais gordinha e de bochechas
vermelhas.
- Se ele não fosse gay, o que estaria fazendo aqui? – quis saber a japonesa.
- A mesma coisa que nós, e nem por isso somos lésbicas! – respondeu em tom de defesa uma clubber que
estava na rodinha.
- Talvez ele esteja aqui com a namorada.
- É verdade! Ou vai ver ele é fashion!!! – concluiu uma loira.
Ao chegar no banheiro, Duda constatou que ele estava lotado. Resolvera então usar os do terceiro andar. Ao
subir as escadas, uma mão o puxou pelo braço:
- Eduardo???

O garoto virou imediatamente.


O coração parou e Eddie ficou branco:
- Fábio???

Aquilo era inacreditável.


Eduardo via seu melhor amigo nas escadarias de uma boate gay!
Fábio o pegara com a boca na botija.
- O que você tá fazendo aqui? – os dois perguntaram ao mesmo tempo.
Fábio estava menos perplexo que Eduardo e por isso falou:
- Cara! Eu nunca imaginei que ia te ver aqui!!!
71
- Fábio, que história é essa? – o outro replicou, desembestando – Quer dizer que você freqüenta esse tipo de
lugar???
- Bem... eu estou aqui, não estou?
- Sim... mas... e a festa rave que ia acontecer? Você não tinha que... quero dizer... você não ia para aquela
festa naquela chácara???
- Eu ia, mas é que... eu ia só se você fosse... e além do mais...

E tudo ficou claro para Edú, que exclamou:


- Você é gay!!! – o rapaz apontou para o outro.
Fábio ficou parado, enquanto Eduardo prosseguia:
- Meu Deus! Você é gay!!! – e batia com a mão na cabeça, indignado – Agora tudo faz sentido! Suas saídas
misteriosas e tudo mais! – e começou a rir com cinismo – Imagina só! Disseram que você tava envolvido com
droga! Que você tava metido com mulher! – e riu mais ainda – Com mulher!!!
- Eddie... – o amigo tentou falar, mas Eduardo continuou:
- Oras! Me poupe! Todo esse tempo! Por que não me contou? Belo melhor amigo que eu fui arranjar! Porque
você não...
- Chega Edú! – o outro gritou, tentando parar o ataque de histeria do amigo – E você??? Porque não me contou
que era???
- Que era o quê?
- Que era gay também!!!
- E quem disse que eu sou? – Eduardo defendeu-se. Era estranho que ele houvesse admitido para Rodrigo
horas antes e agora diante de Fábio quisesse que não fosse verdade, que não fosse gay.
- O que faz aqui então? – o amigo quis saber. Tinha um sorriso na cara. Não de gozação, mas de simpatia. A
idéia de Eddie ser “do babado” era muito boa.
- Eu vim com um amigo... hetero!!! – defendeu-se o rapaz.
- Ah é? – Fábio olhou em volta e indagou – E cadê ele que eu não estou vendo? – depois afirmou sorrindo –
admita... veio caçar! Cansou da vida de hetero e da Camila! Foi por isso que vocês deram um tempo, né? Você
já não tinha mais certeza... você está sozinho aqui Eduardo!
- Não, eu não estou! – respondeu ao avistar Rodrigo subindo as escadas. Era uma sorte que Rodrigo não
tivesse trejeitos femininos, isso iria salvá-lo de Fábio.
- Dú, como você tava demorando... – Rodrigo ia falando – então eu resolvi vir atrás de voc... – e parou de falar
ao ver Fábio. Imediatamente abriu os braços e soltou um grito de felicidade – Fáááááááá!!!
- Goooooo!!! – o outro exclamou sorridente ao reconhecer Digo. Agarrou-o fortemente, deu um selinho e um
abraço – Você sumiu!!! O que aconteceu???
- Eu sumi, sua bicha? Imagina! Você é que andou desaparecida!!! De bofe novo, hein??? Me conta tudo!!! –
Rodrigo forçava os trejeitos para brincar com Fábio. Era assim que costumavam se tratar carinhosamente.

Eduardo estava boquiaberto:


- Vocês... vocês se conhecem???
- Claro! – disse Fábio.
- E você... conhece o Fá? – Rodrigo indagou.
- É claro que eu conheço! – berrou o moleque – Eu cresci com ele! É o meu melhor amigo! Ou melhor, era!
Onde já se viu uma coisa dessas, nem me cont...
Fábio interromopeu:
- Tá Eduardo! Você disse que veio com um amigo hetero, cadê ele?
Antes de Ed responder, Rodrigo comentou:
- Oras, ele veio comigo!!!
Edú ficou branco.
Fábio franziu a testa:
- Ah... com você... – e sorriu o mais marotos de todos os sorrisos, concluindo – tá Eduardo, você veio com o
Diguinho e vem dizer na minha cara que não é gay...
Rodrigo, o “Diguinho”, gargalhou.

Eduardo fechou a cara e deu de costas aos dois amigos.


Subiu as escadarias voando e seguiu para o chill out. Jogou-se num dos poucos puffes livres, ao canto mais
escuro do ambiente.
Estava com a cara enterrada no puff neon quando sentiu um toque no ombro.
- Eddie, porque ficar assim? – Rodrigo indagou.
- Vão embora daqui! – o garoto respondeu. Era o seu gênio ruim... coisa de espantar até o Papa.
- Puxa, o que há com você? – Fábio reclamou – o que há de errado nisso? O Rodrigo já havia me contado, ali
na escada mesmo, que você admitiu que era gay, e que você o fizera em tom tão resoluto que não parecia
72
estar encucado com isso... e porque? Porque negar o que você é?
- Porque o que eu sou é uma anta! – Ed explodiu – Como fui aceitar me meter num lugar desses? É claro que
algo tinha que dar errado! Claro! Nunca nada dá certo para mim! Eu sou uma anta!
- Não, anta você não é... você é um veadinho! – Rodrigo riu-se. Tentava com isso diminuir a tensão.
- Um Bambi... – resmungou Edú virando-se para os dois rapazes que estavam de pé – um Bambi! É isso o que
eu sou?
- Credo! Também não é o fim do mundo! O que tem demais? – Fábio se revoltou.
- É porque não parece certo, não parece nada certo!
- O que não está certo é esse seu jeito de se torturar. Pare com isso. Se já tinha se aceitado antes, porque
andar para trás agora?
- Você acha que é fácil?
- Não, não é fácil. Eu já passei por isso, o Rodrigo também. Nunca é fácil, é uma coisa para se pensar com
calma. Meu, não há coisa mais natural do que sentir desejo. Não há como segurá-lo. Não importa a natureza,
seja hetero, seja homo, seja o diabo à quinta! O que não se pode fazer é sufocar o que se sente! É impossível
abafar o seu interior e viver em paz consigo mesmo. É algo que, sinceramente, não dá.
Rodrigo ouvia calado o discurso de Fábio. Eduardo também. E as lágrimas corriam silenciosas, escondidas no
escuro.
- E o que eu posso fazer? – Ed indagou, meio amuado.
- Eu não posso lhe dizer nada. Não existe fórmula mágica. A única coisa que é certa é a sua decisão...
- E se eu decidir que não quero ser gay?
Os amigos se olharam e suspiraram fundo.
Rodrigo abaixou-se para perto de Edú, tocou-o no braço e disse em tom sério:
- Bem, você pode optar por esconder que é homossexual pelo resto da sua vida, mas, deixar de ser, isso é
impossível.
- Nada é impossível! – bradou o garoto – Não exista o que seja!
- Existe sim Eduardo, existe! – Fábio interpelou – É impossível ser feliz não seguindo o rumo que a sua
natureza lhe indicou. Você é o que você é!!!
As lágrimas desciam mais uma vez. Eduardo refletia aquelas palavras. Elas ecoavam dentro do corpo, como o
vento se quebrando dentro de um túnel cheio de musgo, de pedras escuras, lisas, úmidas e tristes.
O garoto penava. Pensava.
Até que viu a luz neste túnel.

Você é o que você é!!!

Ele era o que ele era e nem por isso era má pessoa. Continuava a ser o mesmo Eduardo, que gostava das
mesmas coisas, que fazia tudo o que sempre fizera, que sempre tirou as notas boas, que sempre fez por onde.
Era o Eduardo solícito e querido da mãe, era o homem do pai.

E era o que era.


E não era ruim.

Abriu a boca num sorriso singelo e murmurou, com os olhos brilhando:


- E eu sou o que sou...
Rodrigo sentou-se perto de Ed e o abraçou, dizendo com doçura:
- E voce é lindo deste jeito...
.....

Camila andava de um lado para o outro no quarto. Não estava conseguindo dormir. A luz da lua que entrava
em feixe pela janela, chegava entrecortada pelas folhas das árvores e se refletia pelo chão e no lençol,
repartida em milhares de gotas. Esta luz azulada emprestava um tom etéreo à pele de Camila, que parecia uma
estátua de mármore.
Já era tão tarde da noite e a garota era puro fantasma vagando.
Excomungava na penumbra:
- Diabos! Ai dele! Ai dele se ele estiver me aprontando alguma. Ele vai ver só!
E batia os pés no chão veementemente.
Seu sexto sentido lhe dava a certeza de que Eduardo não estava dormindo.
E nem estava em casa.
.....

- O jantar foi delicioso, não foi? – comentou dona Sônia, pendurando o casaco no cabide enquanto seu Antônio
se preparava para dormir.
73
- Sim, os Toledo são gente muito agradável! – o homem concordava, abotoando o pijama e rumando para o
banheiro.
- Ai, estou tão feliz que finalmente conseguimos conhecer nossos vizinhos. Eu e Sílvia parecemos amigas de
anos!
- Nosso filho também ficou bem amigo do filho deles – seu Antônio observou.
- Formidável né? – disse a mulher, desmanchando o penteado na frente do espelho.
O pai de Eduardo lavava o rosto e analisava a face diante da pia. Pegou a escova de dentes, passou o creme
dental e comentou:
- São rapazes saudáveis, espertos, bonitos e gaudérios. Ambos têm temperamento e caráter sólido, podem ser
amigos para o resto da vida.
- Que ótimo! – comentou Sônia, muito feliz, retirando a maquiagem com o removedor líquido embebido no
disco de algodão – Tomara que vá longe mesmo!
Seu Antônio anuiu com um gemido.
Não podia falar porque estava a escovar os dentes.
Apenas escutou a mulher comentar:
- Ah! Eu vou precisar do seu cartão de crédito amanhã querido... vou no shopping comprar um lindo brinco,
cheio de brilhantinhos. Quero que tenha suporte dourado. Uma jóia.
O marido revirou os olhos, cuspiu na pia e indagou:
- Para que outro brinco? Você tem milhares deles!
- Não é para mim, é para Camila! – a mulher se explicou.
- Camila?
- Sim, ela estará de aniversário semana que vem.
- Ah é? – fez o homem preparando o gargarejo.
- É!
- Âhn... então tá... – Antônio resmungou, entendendo. E botou o líquido de gargarejo de uma só vez na boca,
como alguém que toma uma dose de tequila.
Capítulo IX

Já era segunda feira e Eduardo prestava atenção à aula, que muito lhe
interessava.
Foi quando um bilhete chegou em sua carteira:

“Oi Edú,

Muito chato o lance que está te acontecendo.


Eu já passei por isso. É como se o mundo fosse cair.
Posso te ajudar. Confie em mim, por favor. Não me atire pedras só porque eu não
te contei antes. Eu já havia pensado em te contar dezenas de vezes, mas acabava dando para trás. Tinha medo
que se afastasse e eu te perdesse.
Acredite, eu sou seu amigo.
Pensei que ia me ligar no Domingo, mas pelo visto você devia estar chateado. Desculpa por não ter te contado.
Eu adoro você.

Se cuida, hein?

Ass: Fábio”

Eduardo sentiu um alívio na alma. Viu o quanto fora injusto com o amigo. Com o Fábio, que era o seu único e
verdadeiro companheiro, aquele que conquistara por ser especial.
Não poderia jogar fora uma amizade tão sincera como esta.
Suspirou e sorriu.
Devolveu o bilhete:

“Puxa cara, desculpa mesmo.


É até bom que eu tenha o mesmo “problema” que você, assim a gente não se afasta mais. E eu entendo você
não ter me contado. Eu também tentei, mas fiquei com medo, assim como você. Mas na hora do intervalo
conversaremos melhor.”
.....

Já no pátio, Edú e Fábio se encaravam e riam:


- Seu gay! – Eduardo comentou, apenas de brincadeira.
74
- Obrigado – revidou Fábio – a senhora também é uma bicha muito donzela!
- Ê... qualé? Tá me estranhando? – fez Eddie engrossando mais a voz.
- Nem... – disse Fábio, tornando a conversa mais séria – Que estranhando o que? Vai dizer então que você e o
Rodrigo não estão de casinho?
- Hein? – fez Duda aturdindo-se.
- Ah, qual é Eduardo? Para cima de mim? – e cotovelou o amigo, dando uma piscadinha.
- Não Fábio, a gente não tem nada... – o garoto respondeu sem jeito.
- Porque você não quer! – disse Fábio, liberando informação.
- Como assim? – indagou Eddie totalmente interessado. Afinal, falou de Rodrigo, falou do que queria ouvir.
- Vai dizer que não percebeu que o Rodrigo tá caidinho por você?
- Tá? – disse Ed, tentando fingir surpresa. Claro que sabia que Rodrigo estava de olho nele. E lógico que
Rodrigo sabia que Edú também lhe tinha atenção.
- Claro! – respondeu Fábio, caindo no teatrinho de Ed – Qualquer um pode ver! Ainda mais eu que o conheço
há séculos e posso lhe contar melhor que ninguém! Ele está parado totalmente na sua.
- Puxa... – Dudú perdeu-se diante de um pensamento: tá, ele gostava de Rodrigo, tá ele era gay, mas... ele
nunca... – Fábio, eu nunca... nunca...
O amigo entendera:
- Eu sei que você nunca ficou com um rapaz! Mas isso a gente resolve logo! Basta encontrar Rodrigo
novamente.
- E a Camila? Eu não posso ser...
Eddie ainda ia falando quando Fábio interrompeu:
- A Camila!!! – levou as mãos à cabeça – Meu bom Deus amado!!! Como ela vai ficar nesta história?
- Boa pergunta. Essa semana a gente volta a se falar por telefone. Aquele trato maluco dela. Ela tem cada
coisa... mas sabe o que é pior? É que ela tá de aniversário neste sábado. É lógico que terei que ir.
- Putz! E você vai contar para ela no dia da festa? – o rapaz indagou curioso – É muita ruindade!
- Quem disse que eu vou contar? – Dudú rebateu.
- Ah, vai conservar a namorada para fazer a linha hetero?
- Ai... você e Rodrigo... têm esses seus linguajares e termos do “babado”. Não, eu não vou fazer isso com a
Camila, você sabe que eu não sou de usar ninguém. Sabe que eu não sou de viver de mentiras e nem “fazer
linhas”. Mas por outro lado, eu não quero machucá-la, portanto...
- Portanto... – quis saber o rapaz, prestando atenção as feições do amigo.
- É melhor deixar quieto por enquanto.
- É, talvez seja essa a melhor saída.

Quando subiram de volta para a sala de aula, Eduardo pegou a apostila. Um papelzinho caiu de dentro.

Ligue para mim, 793-5436, Tiago.

Era o papel que o garoto do ônibus lhe dera.


Eddie sentiu que era hora de falar com alguém.
Guardou o bilhete no bolso e se ajeitou na carteira. Assim que chegasse em casa telefonaria para Tiago e teria
uma conversa “educativa”. Ia tentar matar metade dos grilinhos que estavam pulando de um lado para o outro
na sua cabeça.

- Alô? – fez a voz do outro lado.


- Oi, queria falar com Tiago.
- Ok, já vou chamar.
Passados alguns segundos, Tiago atendeu:
- Sim?
- Oi, aqui é Eduardo.
- Que Eduardo?
- O rapaz do ônibus.
- Nossa! Depois de milênios você resolve ligar! Pensei que jamais iria falar contigo.
- E não ia mesmo... se certas coisas não tivessem ocorrido.
- Que coisas?
- Bem, primeiro de tudo... queria saber porque você me entregou seu número de telefone no ônibus?
- Porque eu te achei um rapaz muito bonito. Não custava nada.
- Mas o que te fez fazer isso?
- Vontade de te beijar.
- E porque achou que eu ia te beijar?
- Não achei nada. Já disse que não custava tentar. Talvez tivesse sorte e você fosse solteiro, talvez seu
75
namorado não tivesse ciúmes...
- Namorado? Como você poderia saber se eu tinha namorado ou namorada? Por acaso tá escrito na minha
testa que eu sou gay?
- Não, mas meu gaydar não falha nunca.
- Seu gaydar?
- É! Reconheço um gay como se eu tivesse um radar em minha cabeça.
De novo aquela história de indivíduos de mesma espécie se reconhecerem mutuamente. Puxa, será que
durante todo esse tempo todo mundo já sabia que ele era gay, menos ele???
- Mas você disse que não ia ter me ligado, caso algumas coisas não tivessem ocorrido, o que foi que aconteceu?
- Bem, é o seguinte... quando você me entregou o papel no ônibus, eu não era exatamente gay...
- Como assim?
- Eu estava desligado de certas emoções e sensações. Coisas que ainda não entendi direito... por isso resolvi
ligar. Queria conversar. Queria saber coisas.
- Que tipo de coisas?
- Tudo. Desde como é sua vida em família, se eles sabem de ti até como é... beijar outro rapaz...
- Ah... sim! Eu posso te contar essas coisas, mas o beijo, se quiser, eu te mostro como é na prática.
- Não – fez Eduardo, sem graça por recusar – Mas é que tem um garoto que eu estou afim e agora que sei o
que quero, preciso dessas informações... tenho tanto medo de que algo saia errado. Tenho medo que alguma
decisão que eu tome vá me fazer infeliz, embora eu sinta que ao lado dele eu só possa sorrir. É por isso Tiago
que queria conversar com alguém que já tenha passado por isso!
- Ok, então, vamos lá! Tudo começou quando...

E aquela foi uma looooooonga conversa.


.....
Qualquer decisão que Eduardo tomasse em relação a sua vida, seria definitiva. Conversar com Tiago fora muito
bom.

Sabia-se gay. Não tinha mais volta.


Não queria voltar. Agora ele sabia.

Havia caminhado um bom bocado até então para simplesmente não se dar conta que seria um fracassado se
desistisse do que queria.

Sabia que queria Rodrigo.

Aquele sorriso perfeito deveria sorrir apenas para ele.


Como um farol iluminando apenas o caminho de um barco no oceano.
Egoísmo? Talvez, mas o amor é isso mesmo.
- Amor??? – Ed se espantou – amor? Será isso?
Levantou do sofá da sala, onde assistia com os pais os seriados da TV a cabo.
- O que foi meu filho? – Sônia estranhou.
- Nada mãe! – fez Eduardo, despistando. Ai dele se os pais desconfiassem – Vou para o meu quarto, só isso!
- Ué, mas hoje é quinta-feira, dia de seu seriado favorito! – a mãe olhava para o filho, apreensiva. Ele estava
diferente, fora do habitual.
- Eu sei, mas estou cansado e preciso dormir – e ainda pediu – grava para mim, ok?
Assim que chegou no quarto, ligou para Camila.
- Oi, a gente precisa conversar.
- Ok, diga... – disse a garota. Até então, sobre o trato, apenas Camila ligara para Edú nestes dias, de modo que
essa era a primeira ligação por parte dele.
- Não – e a voz dele mudou de um tom ameno para um tom mais grave – não por telefone.
- Mas Dú... o nosso trato... – a garota parecia querer se proteger de algo monstruoso – não podemos nos ver
antes de domingo.
- Mas sábado é seu aniversário, como posso ir na sua festa se só posso te ver no domingo?
- Tem esse detalhe, mas é só um detalhe, porque daí tudo bem, a gente abre uma exceção especial...
- Ah, ok... – Ed concordou. Mesmo assim achava estranho.
- Ok! – disse Camila, como quem diz “ok, então estamos conversados!!!”.
Dudú ainda tentou:
- Não tem jeito mesmo da gente se ver antes?
- Não. É melhor assim. Deste modo a gente pode avaliar o que sente um pelo outro.
- Mas eu já sei! Eu já sei o que sinto! – Eduardo pensou em Rodrigo, o seu Gozinho... o Gô. Sorriu sem
perceber.
76
- Que bom que você sabe! Domingo então você me conta!
- Camila, é que eu descobri...
- Boa noite Edú.
Não restando alternativas, ele teve que ceder:
- Boa noite.
Desligou o telefone e discou para Rodrigo.
- Alou? – o rapaz logo atendeu.
- Oi Gô! – Eduardo cumprimentou derretendo-se num sorriso bobo.
- Oi Eddie! – o outro respondeu nitidamente feliz com a ligação do vizinho. Era sempre assim. Rodrigo ficava
sempre agitado e um calor percorria seu corpo ao ouvir a voz de Eduardo. Tinha tanta vontade de beijar, de
abraçar, de não deixar mais Eddie sozinho que essa vontade fazia seus ouvidos zumbirem. Queria fazer o bem
para ele. Queria fazê-lo feliz.
- Tudo bem? – Dudú perguntou.
- Bem melhor agora! – Digo respondeu, aproveitando a deixa. Fora uma resposta brega, mas serviu...
- Que bom. – o garoto respondeu sentindo carícias na alma – Só liguei para dar boa noite.
- Hein??? – fez Rodrigo. Será que tinha ouvido direito?
- É, boa noite!
Um silêncio se fez enquanto algumas lágrimas marejaram os olhos de Rodrigo, que sussurrou docemente:
- Boa noite Edú.

Rodrigo colocou o telefone no gancho. Mal podia acreditar. Eduardo correspondia o sentimento sem sombra de
dúvidas, acabara de comprovar!
Levantou-se da cama e rumou para a cozinha. Pegou uma garrafa de champanhe que estava na geladeira e
abriu. Comemorava a vitória. Conquistara um rapaz maravilhoso em todos os sentidos. Eduardo era prêmio de
ouro.
Rodrigo também era.
Antes de tomar um gole da borbulhante champanhe, brindou:
- À você, meu amor.
.....

No outro dia, quando voltava do cursinho, Eduardo perdia-se em pensamentos dentro do ônibus. Tinha certeza
que Rodrigo o amava. Então porque diabos o rapaz não se aproximava dele? Afinal, era mais experiente nessas
coisas, seria muito mais descomplicado se Rodrigo tomasse a iniciativa...
Ou será que Ed estava só pirando? Será que Rodrigo queria só amizade?
Na cabeça de Eduardo, essas questões causavam grande dúvida que acabava virando angústia. Como queria
Rodrigo... o modo com que sentia o frio na barriga ao pensar no outro rapaz era estranho. Mas era bom.

Será que conseguiria Rodrigo para si?


Estava disposto a lutar.
Tinha tanta gente que lutava pelo que queria. Imaginou como seria se sentisse que seu corpo não lhe
suportasse. Tantos casos. Imaginou que se já era difícil se aceitar gay, imagina não aceitar o sexo biológico.
Imaginou como seria a vida de um rapaz que tem que usar roupas femininas para poder se olhar no espelho.
Qualquer pessoa tinha o direito de ser feliz, mas somente os corajosos lutavam por isso. Pensou então como
eram admiráveis os travestis, transexuais, por serem o que são e lutarem para ser o que são. Deviam ter força
superior a de muita gente que julga que pode suportar muitos golpes.
Talvez, no fundo, Eddie sentisse que era um covarde.
O caso dele não era complicado. Ele não precisava desafiar um universo inteiro. Talvez fosse mais fácil do que
pensava. Talvez, talvez, talvez...
Era uma incerteza que tinha que acabar. Tudo tinha que ter um fim.
Quando desceu do ônibus e rumou para casa, encontrou a mãe e Sílvia no portão da frente. A mãe de Rodrigo
estava no seu dia de folga. As duas senhoras conversavam alegremente. Haviam ficado amigas mesmo. Dona
Sônia cuidava das plantas da frente de casa enquanto a outra tagarelava.
- Na minha próxima folga, podemos ir ao centro para comprar as coisas para o nosso próximo jantar, temos
que planejar tudo direitinho, não é verdade? Ouvi dizer que tem uma galeria lá no centro que vende artigos
variados e que saem em conta... – a mulher ia falando quando Eduardo interrompeu.
- Oi senhora Toledo – o garoto cumprimentou sorridentemente – oi mãe.
- Olá Eduardo! – as duas responderam. Sônia ainda disse apontando um saquinho de semente de flores em
direção do moleque – A comida tá no fogão, é só esquentar, ok, meu querido?
- Tá mãe! – disse o rapaz entrando na casa.
As duas amigas se olharam e sorriram. Sílvia disse:
- Esse seu filho é uma graça de pessoa. Ele é um rapaz muito bonito e simpático.
77
- É, eu sei. Ele é muito obediente. Está em ano de vestibular, coitado, tem vez que nem dorme direito. Só faz
estudar, estudar... nem dá bola para a namorada. Só quer saber dos livros e das apostilas dele...
- Ah, ele é tão esforçado assim???
- É sim. Ele quer entrar em medicina, assim como você e seu marido.
- Puxa, na nossa época as coisas eram mais simples, nem se ouvia falar em vestibular. Realmente, ele vai ter
que estudar bastante, mas ele vai conseguir, é um rapaz muito bom.
- Isso ele é! Mas seu filho também é ótimo. Espero que Eduardo e Rodrigo sejam muito amigos.
- É o que Rodrigo mais quer... – comentou Sílvia, bem baixinho.
.....
Depois de se alimentar, Eduardo subiu as escadas e tomou um longo e refrescante banho. Escovou os dentes,
passou perfume, caprichou mesmo na toalete. Olhou para o espelho: lá estava!!! Um rapaz, um belo rapaz!
Eddie sorriu e começou a recitar frases para sua auto convicção:
- Você é forte. Você não precisa temer nada! Você é forte. Você não precisa temer nada. A vida é assim, a vida
tem obstáculos. Você é forte, você vence as barreiras!!!
Foi para o quarto e ligou para Rodrigo.
- Oi Digo! – Eduardo cumprimentou. O coração batia forte.
- Oi Duda! – disse o outro rapaz, que estava sentado na frente do computador, digitando um texto para um
projeto da faculdade.
- Sua mãe está aqui em casa. – Duda falou em tom de festa – Tá lá na frente com a minha mãe.
- Eu sei. – Rodrigo respondeu sorrindo – Minha mãe foi com a cara da sua. Acho que vão ficar amigas.
- Isso é bom, não acha? – Ed indagou.
- Com certeza! Isso vai facilitar muito para a gente – Rodrigo foi dizendo – As sogras se gostam! Tudo se
descomplica!
Eduardo ficou mudo. O coração que já batia forte, agora estava tão acelerado que chegava a fazer pressão no
ouvido.
- So-sogras? – Ed indagou, com um sorriso nos lábios. A idéia lhe agradara muito e ouví-la da boca de Rodrigo
fora o maior presente que ele poderia receber.
- Eu estou brincando! – o outro rapaz declarou.
Breve silêncio.
E depois:
- Ah... – fez Eduardo, tentando disfarçar.
Foi quando após um silêncio aterrador, Rodrigo começou a falar:
- Não... eu não estou brincando.
- Hein?
- Eddie, você não é burro nem nada. – Rodrigo estava decidido a falar tudo mesmo – Você sabe muito bem o
que eu sinto por você...
- Se-sei? – indagou o garoto, previamente maravilhado com a expectativa das palavras vindouras. Seriam
como tilintar de cristal, melodia do vento. Seriam carícia para a alma.

Rodrigo continuou:
- Eu gosto muito de você! Tanto que às vezes eu até me sufoco só por estar em sua presença e não poder fazer
nada! Você não imagina a vontade que eu tenho de lhe tocar, de lhe fazer o bem. E acabo em desespero, pois
nada posso fazer, não posso forçar nada, não posso quebrar suas barreiras. Me faz bem estar com você, mas
me faz tanto mal não poder beijá-lo, nem tocá-lo e nem demonstrar todo o carinho que eu sinto por você.
- Rodrigo, eu... – Eduardo sentiu felicidade sem tamanho, queria falar, mas o outro rapaz impedia. Prosseguia
falando e dando a maior bandeira de seu desequilíbrio emocional, sua insegurança.
- Quando você fala Eduardo, sua voz me deixa hipnotizado! É seu cabelo, sua pele, seu caráter... é tudo isso
somado, isso me faz te querer tão bem, isso me faz te querer tanto! Isso me faz te amar desesperadamente.
- Go, eu...
- O que Eduardo? – o outro indagou, na defensiva.

Foi quando Eduardo declarou:


- Eu também te quero. Muito. Eu amo seu sorriso. Eu amo a sua alma. Eu... eu amo... – Duda estava com um
baita sem jeito, embaraçado, mas decidiu completar a sentença – ...eu amo você!!!

Rodrigo ficou mudo.


Uma onda de calor percorreu seu corpo. Desligou o telefone sem dizer nada e saiu do quarto. Ia correndo para
a casa de Eduardo. Precisava vê-lo imediatamente, precisava beijá-lo e tê-lo em seus braços.
- Alô? Alô? Rodrigo? Você tá aí? – Eduardo finalmente sacou que o outro havia desligado e agora já não
entendia mais nada, apenas exclamou – É louco mesmo!
78
Sorriu. Balançou a cabeça. Em seu interior, um mecanismo qualquer desencadeou uma reação instantânea e
uma força do além o fez se levantar de uma vez só.
Sentiu como se seus pés seguissem para a casa de Rodrigo. O coração palpitava incrivelmente. Desceu as
escadarias cegamente.

Parecia um robô com a mira apontada para o alvo: Rodrigo.


Ao sair pela porta da frente, passou feito ciclone pelas duas senhoras, que nada entenderam. A mãe de
Eduardo ainda comentou:
- Que milagre que ainda não esteja grudado em suas apostilas!
A outra anuiu.
Os passos largos de Eddie tornaram-se mais largos ainda assim que avistou Rodrigo vindo em sua direção.
Tudo escurecia em volta. Tudo.
Rodrigo não pôde conter o sorriso ao ver Eduardo.
Sorriu mesmo! Trazia estampado na cara o mais belo e franco dos sorrisos.
Eduardo entontecia e mal podia esperar para achar conforto nos braços do outro rapaz. Agora tudo já era
escuro e a única fonte de luz que Ed via era a luz de Rodrigo. Era o único ponto certo para onde rumar. Era
para ele que devia ir.
Sônia e Sílvia olhavam a cena sem nada entender.
Rodrigo chegou perto de Eduardo.
Eduardo estava ofegante. Ficaram os dois se encarando e sorrindo, frente a frente. Os olhos brilhantes e os
sorrisos diziam o quanto precisavam se completar. A respiração se confundia. Os lábios rubros clamavam um
toque, gritavam por um beijo.

A mãe de Eduardo estava com a testa franzida. O que seria aquilo?


Os tambores ficavam cada vez mais altos. Finalmente, Rodrigo tomou Eduardo nos braços e o beijou.

Eduardo sentiu a mais gostosa de todas as vertigens.


Pareceu entrar no outro rapaz. Era tão bom, nunca havia sentido nada igual, com nenhum beijo da sua vida,
com ninguém!
Beijar Rodrigo era bom!!!
Beijar Rodrigo era excitante! Sem demorar, retribuiu o beijo. Abraçou o garoto com paixão e deslizava as mãos
pelas costas, pelo cabelo, pelos ombros. Era uma outra sensação.
Era aquilo que deveria ter feito há séculos.
Sílvia deixou o queixo cair.
Sônia desmaiou.
.....
Famíla Toledo de um lado da mesa, família Braschi do outro. Todas as luzes da casa estavam acesas. Todas.
Era hábito antigo que o pai de Eduardo aprendera com o avô, que aprendera com o bisavô, que aprendera com
o bisavô... claro que na época do bisavô eram velas e não lâmpadas acesas, mas o intuito disso era para ajudar
a “esclarecer” um problema grave. Seu Antônio batia impacientemente os dedos na madeira da mesa enquanto
olhava para Rodrigo, na outra extremidade. Na cozinha da casa de Eduardo, o cheiro de tempestade estava no
ar.
- Foi só um beijo – Rodrigo disse finalmente.
- Só um beijo? Só um beijo? – indagou Sônia indignada.
- O que há de errado? – o rapaz quis saber. Rodrigo tinha personalidade forte, mas não era genioso feito
Eduardo. Estava tentando manter a conversa dentro de um limite. Queria mantê-la em um caminho fácil de ser
trilhado, onde pudesse manipular as palavras todas a seu favor.
- Eu já digo o que há de errado! Dois garotos!!! No meio da rua, em plena luz do sol! – Sônia descabelou-se,
podia-se ver a loucura rondando a janela da casa – Meio dia peloamordedeus! Eu pensei que vocês fossem
amigos!
- Sua mãe quase teve um treco Eduardo! – disse Antônio, apontando para Eduardo, que apenas olhava para as
próprias mãos, cruzadas em cima da mesa.
- Eu quase tive um treco! – disse a mulher para afirmar o drama – Sorte sua que seu pai não estava ali
senão...
- Senão EU ia ter um treco! – o homem complementou.

Os pais de Rodrigo ouviam a discussão. Imaginavam o que se passava com os Braschi. Claro que
compreendiam o desespero. Sempre havia um choque.

Mas não era o fim do mundo.


Sônia tremia inteira.
79
- Vocês sabiam que o seu filho era... era... – e parou de falar por não saber dizer outras coisas senão “bicha”,
“veado”, “maricas” e “boiola”.
- Que nosso filho é gay? – indagou Sílvia.
- É... isso!
- Claro que sabíamos – disseram os pais de Rodrigo com muita naturalidade.
- E porque o deixaram andar com o nosso Eduardo? – Antônio perguntou indignado.
- Oras! O que quer dizer com isso? – o pai de Rodrigo quis saber, ficando vermelho – Que ser gay passa? Que é
doença?
- Com certeza! – afirmou Antônio – Pois certamente meu filho não era boiola antes!
- Affe... – fez Rodrigo, mordendo os lábios de tão fulo que ficara com tais palavras.
Sílvia interveio:
- Pois saiba que nosso Rodrigo contou para Eduardo que era “boiola” logo no primeiro dia de amizade! Bem no
dia que Fred morreu.
- Fred? – indagou seu Antônio confuso – Quem é Fred?
- O cachorro! – informou a mulher.
- O cachorro... – fez Antônio, assimilando.
- E Eduardo continuou a falar com nosso filho! – Sílvia concluiu.
- Cachorro! – o senhor esbravejou contra Eduardo, que soltou um gemido de vira-lata com o rabo entre as
pernas.
Luís posicionou-se:
- Ninguém o obrigou – e olhou para Ed, sorrindo – ele estava com Rodrigo porque gostava, porque estava afim!
Antônio se espantou e indagou ao filho, de olhos arregalados:
- Você estava afim de Rodrigo???
- Não, afim de andar junto – explicou Sílvia.
- Não, eu acho que era afim de mim mesmo mãe... – Rodrigo meteu-se na conversa.
- E você? – seu Antônio dirigiu-se ao rapaz – Estava afim de Eduardo?
- Eu? É claro! Ele é ótimo! – e sorriu o mais puro dos sorrisos.
- Mas ele tem uma namorada, sabia? – Sônia ergueu o dedo, como quem faz discurso convincente – Ele a ama
muito!
- Ele tem namorada... – os pais de Rodrigo balançaram a cabeça.
- O que vai ser de Camila se ela chegar a saber disso? – Antônio quis saber.
- Não quero nem saber! – Sônia deu um pulo para trás – Eu não vou contar, melhor a gente ficar quieto – e
apontou para o filho – Você Eduardo também não precisa contar, assim você continua com ela e finge que nada
disso aconteceu e que você é normal. Amanhã mesmo vou procurar um psicólogo e logo logo você vai estar
curado!
O gênio do garoto cutucou.
- Não, eu não vou a psicólogo nenhum, eu não tenho doença para ser tratada, eu não vou fingir que sou
normal, porque eu SOU normal e não vou continuar com a Camila!
- Nã-não vai? – gaguejou a mãe, perdida, alisando a ponta da blusa.
- Não! Eu não gosto mais dela! – disse Eduardo, tão convicto em cima de seu saber que ninguém jamais
ousaria dizer o contrário – Eu descobri que nunca gostei!
- Mas vocês são tão bonitos juntos... – o pai tentou começar discurso novamente, mas Eddie interrompeu
bruscamente, levantando-se.
Era alto, era imponente e sua voz de trovão ecoou pela cozinha:
- Que pena, porque a gente não vai mais estar junto! Agora eu sei o que é melhor para mim! Eu sei o que vai
me deixar feliz! E se vocês se importam comigo de verdade e querem mesmo me ajudar, me ajudem a ser
feliz!
- Filho, você não sabe o que... – Sílvia ia dizendo, mas nova interrupção ocorreu. Estava bem claro que
Eduardo era forte e seu gênio ia imperar.
- Mãe, você quer me escutar? Eu amo o Rodrigo.
Silêncio geral.
Rodrigo e os pais sorriam de um lado da mesa, do outro a pasmice reinava.
- Agora vem cá – Ed esticou o braço para Rodrigo – me dá a mão e vamos para meu quarto.
Rodrigo obedeceu mais que prontamente. Levantou-se da mesa num pulo e acompanhou o rapaz pela casa
adentro, deixando o clã Braschi e Toledo sozinhos. Eduardo ainda pôde ouvir o pai resmungar baixinho:
- Agora só falta tomar droga!
.....
- Eu não acredito que você fez isso!!! – Rodrigo exclamou – O jeito que você falou, você foi tão... sei lá! Você
foi ótimo! Eu nem acredito!
Eduardo riu gostosamente:
- Nem eu!
80
Rodrigo pulou nos braços de Eduardo, derrubando-o na cama. Ficaram os dois, um em cima do outro, cara a
cara.
Agora podia, era liberado.
E o beijo rolou novamente, desta vez, mais gostoso.
.....
- Eu não acredito que ele fez isso!!! – Sônia exclamou – Você viu só o jeito que ele falou? Foi tão... sei lá! O
que a gente faz? O que a gente faz agora?
- Eu não sei querida, eu não sei. Vamos torcer para que seja só uma fase...
Os Toledo intervieram:
- Não, por favor, não pensem que isso é doença, não pensem que é mal de um todo. O que é verdade é que
nada nunca é do modo que a gente quer, mas concordem que sempre há um lado bom em tudo...
- Onde foi que eu errei?
- Ninguém errou em nenhum ponto. O que é de ser, será! Eduardo não é mais uma criança, ele é um homem.
Muito me admira que ele tenha feito essa descoberta tão tarde. Nosso filho definiu-se faz muito tempo.
- E como vocês reagiram?
- Do mesmo modo que vocês, mas querem um conselho? Não tentem mudar Eduardo, ele é um rapaz
formidável, é um rapaz excepcional... de repente o que vocês pensem que é correto para ele dentro de seus
“padrões” não será o que é melhor para ele. Quando tentamos isso com nosso filho, ele foi ficando cada vez
mais infeliz... e nós também. Foi quando percebemos que nosso filho não tinha problema algum, foi quando
percebemos que ele era uma pessoa única, com seus próprios pensamentos, com seus próprios gostos, e que
nós tínhamos que aceitar isso, tínhamos que respeitar.
- Mas... não parece certo...
- E o que parece certo então? Sofrer por causa do preconceito?
- Mas é disso mesmo que eu falo! Do preconceito! Você acha que eu quero que meu filho seja chamado de
marica na rua, que seja discriminado?
- Esse risco todos correm. Até quem não é homossexual. Preconceito existe contra preto, cearense, pobre, gay,
deficiente físico, mental, viciados... o preconceito existe em qualquer parte, para qualquer um. O mundo não é
um mar de rosas. E se Eduardo não puder contar com apoio em casa, onde vai poder contar? O amor é a
melhor coisa que vocês podem oferecer a ele. Nunca neguem que ele é necessário à vida de vocês, nunca
neguem que ele é um bom filho, pois vocês sabem que ele é.
- Mas... é tão difícil...
- É difícil, mas não é impossível.
.....
Deitados na cama, depois de se beijarem até a exaustão, Rodrigo e Eduardo conversavam:
- Como você acha que seus pais vão te tratar de agora em diante?
Eduardo lançava o olhar no infinito:
- Não sei Digo, sinceramente eu não sei...
- Você não se importa?
- Não...
- Não mesmo?
Os olhos de Eddie brilharam:
- Puxa, é claro que me importo. É lógico que sim... mas o que posso fazer? Você foi quem me disse que jamais
poderia abafar o que sinto. E aqui estou eu. Aqui está você e estamos felizes.
- E como!
Dizendo isso, pulou para cima de Eduardo e recomeçou a beijá-lo.
As carícias eram ótimas, o toque especial. O conforto que um encontrava no corpo do outro era algo além do
descritível.
- Vou ligar pro Fábio! – Duda exclamou entusiasmado, precisava contar para o amigo.
- Ah! Liga mesmo!
Discou o número do amigo. Ninguém em casa. Devia estar por aí na vida... ligou para o celular.
- Fábio?
- Oi Ed! E aí tudo beleza?
- Tudo... até agora pelo menos tá!
- Como assim?
Rodrigo pegou o telefone:
- Amigo... deu um basfond aqui... você nem bota fé no que aconteceu!
- Conta logo!
- Os pais de Eduardo descobriram tudo!!!
- Tudo?
- Tudo!
- Affe! E daí?
81
- Daí que Eduardo disse que era gay mesmo e que ia dar um pé na bunda da Camila para ficar comigo!
- Sério? Foi isso mesmo?
- Bem, não foi assim... mas foi mais ou menos desse jeito...
- Ah...
- E agora a gente tá aqui no quarto dele!
- Jura? No quarto dele??
- Na cama!
- Sua abusado!
- Que posso fazer?
- Você respeita meu amigo, hein? Se não te quebro de porrada!
- Tá bem!
- Tchau Bichaaaa!
- Tchau!
Desligou o telefone e virou para Eduardo:
- Ela tá super feliz que vocês quebraram o pau aqui!
- Ela? Puxa, não chama o Fábio de mulher que eu me sinto mal...
- É só de brincadeira...
- Ok... puxa, ele tá feliz com minha desgraça?
- Nem foi uma desgraça, veja...
- Não sabemos ainda se não é uma desgraça. Ainda não sei como o clima aqui em casa vai ficar...
- Bem, de qualquer modo, agora está feito. E Fábio ficou feliz. Pelo menos agora você não precisa se esconder.
.....

Ao abrir a porta do hall de entrada, Camila sentiu o coração palpitar mais forte de tanta alegria, mas conteve-
se, tinha sentido muita saudade neste período em que estiveram sem se encontrar, mas não queria dar o braço
à torcer. Engoliu toda a felicidade, ruminou-a e a devolveu para a boca apenas transformada em branda
simpatia:
- Oi Dú, que bom que você veio. Já não agüentava mais todo mundo perguntando por onde você andava.
- Oi Camila! Feliz aniversário! – entregou o presente da namorada, dando-lhe um leve beijo nos lábios.
- Entra logo, a festa tá ótima! Tá quase todo mundo aqui.
- Que bom! – o rapaz olhou em volta e constatou que a casa de Camila estava cheia de gente conhecida,
repleta de amigos do colegial, várias pessoas da família e também amigos de Suzana. Tinha até algumas
pessoas que Eduardo não fazia nem idéia de quem fossem.
Todos os cantos da casa estavam cheios e o ambiente festivo entontecia o garoto. Sabia que o que viera fazer
ali era meio sujo e sentiu-se como um lobo vestindo pele de ovelhas a passear pelo rebanho.
- Camila, eu preciso falar com você...
- Agora não Eduardo... – respondeu a garota, ajeitando a presilha de strass que estava meio frouxa no cabelo.
- Mas Camila, a gente precisa conversar...
- Agora não Eduardo!
O rapaz irritou-se:
- Lembra que você combinou comigo que não ia falar até nosso trato acabar, bem, está quase acabado. O
prazo vence daqui a pouco, quando der meia-noite já vai ser outro dia, faltam minutos! Que diferença faz?
- Faz toda a diferença! – disse Camila apertando o pacote de presente contra o colo – Eu sou uma mulher de
princípios!
O rapaz suspirou de tristeza e olhou bem fundo nos olhos da namorada.
- Se você fosse ia notar que estou me sentindo mal e que eu preciso conversar com você. Uma pessoa de
princípios não iria ignorar isso jamais.
Camila fez um muxoxo, e exclamou deixando-se vencer:
- Ok! Certo, você tem razão.Vamos lá! Me conta.
- A-aqui?
- Que há de errado?
- Mas aqui tá cheio de gente, estamos no meio de uma festa. Eu quero falar com você num local mais
reservado.
A garota suspirou pesarosa. Pegou o namorado pela mão e levou-o até o jardim do quintal. Sentou-se no
pesado balanço de ferro branco e os elos da corrente de aço se fizeram ranger brevemente. A noite estava fria,
porém o céu estava pipocado de estrelas cintilantes.
- Como o céu está lindo – o rapaz exclamou.
- É, está mesmo, mas parece que vai chover.
- Não creio que isso aconteça.
- Também acho que é pouco provável, mas quando consultamos a metereologia nos informaram que por volta
82
da uma da manhã o céu ia ficar nublado e podia chover. Por isso não fizemos a festa aqui fora.
- Ah, entendi.
- Todo cuidado é pouco.
Eduardo desviou os olhos do céu e mirou a garota. Abaixou-se nos seus joelhos e sentou-se no chão, perto
dela.
Não havia lua no céu.
- E então? – a garota indagou.
- Lembra que você me fez jurar que íamos contar um pro outro qualquer coisa que ocorresse durante o tempo
em que não nos estivéssemos falando?
- Lembro, claro.
- E você me fez prometer que ia ser sincero, que ia contar toda a verdade?
- Sim Eduardo, eu lembro. Fui eu quem propôs isso tudo.
- Pois então... – o rapaz ficou mudo. Ao fundo ouvia-se apenas as vozes abafadas e a música da festa,
chegando suavemente até o jardim.
- Então o que Dú? Você andou aprontando alguma coisa?
- Não... – ele ficou quieto. Depois olhou para um canto do jardim e falou – quero dizer, sim... mais ou menos!
- Mais ou menos? Como se apronta mais ou menos?
- Deixa-me explicar. Não foi nada planejado! Simplesmente aconteceu! Eu conheci uma pessoa...
Brusca e secamente Camila interrompeu:
- Você quer dizer que você ficou com outra garota?
- Não. Eu não fiquei com outra garota, mas eu estou te deixando...
- Você está me deixando? Você quer acabar comigo e tem a audácia de me dizer que não ficou com uma
sirigaita qualquer por aí?
- Já te falei Camila. Não conheci garota alguma.
- Ah é? E o que ocorreu? Quer fazer o favor de me explicar, porque eu sinceramente não sei como uma
pessoa...
Eduardo interrompeu o discurso:
- Eu fiquei com um garoto!

.....
Rodrigo andava de um lado para outro.
- Tomara que aquele moleque não apronte nada!
- Eduardo? – Sílvia perguntou, olhando para o filho enquanto derramava conhaque nos copos de uma bandeja.
- Claro! Eduardo, quem mais?
- Porque essa preocupação?
- Simplesmente porque ele é um cabeça dura, tem um gênio terrível! Ele tá na festa de Camila, e sendo do
jeito que ele é, é bem capaz que a esta hora já tenha contado tudo para ela! A esta hora a aniversariante tá
chorando de desgosto porque perdeu o namorado para um homem!
- Bobagem! – disse a mulher, que levava a bandeja com drinks aos amigos na sala de estar – O que há de ser,
será! Tente não parecer tão nervoso e venha para a sala comigo. Afinal, são os seus sogros que estão lá!
.....
- Garoto? – Camila perguntou, sussurrando, depois de uma eternidade de silêncio.
- Sim...
- Você ficou com um... um... – e uma expressão de nojo, misturada com indignação estampou-se na cara da
menina. Sua boca franzida cuspiu – como você pôde?
- Eu... eu não planejei nada disso, eu não entendia direito o que eu sentia. Não tive controle algum sobre a
situação...

Ele tentava se desculpar, mas Camila não deixava, ficava interrompendo:


- Porque você fez isso comigo? Você é um monstro!
- Não Camila! Não me trate assim! Entenda, eu sempre gostei de você, eu gosto ainda, mas não gosto como
namorado... eu te amo como um amigo ama outro.
- Não me venha falar de amor. Bastam duas semanas longe para que... ai! Para que... – a garota parou por
instantes. Raciocinava... de repente seu rosto se iluminou – é por isso então!
- Por isso o quê??? – Eduardo arregalou os olhos, perdido!

A garota bateu uma mão contra a outra, como quem diz “eureka”.
- Por isso que nunca quis transar comigo! Você era gay desde o princípio!
- Não Camila, eu não...
- Oras... não me venha com essa! Você estava me usando como fachada! Um namoro de conveniência para
você!
83
- Não Camila! Não pense isso! Jamais faria...
- Não te ocorreu durante nenhum momento que eu poderia me magoar? Eu também tenho sentimentos!
- Camila, eu já disse, eu não planejei nada disso. Mas, talvez você esteja com razão. Talvez tenha sido por isso
que nunca demonstrei vontade de transar com você...
- Ahá! Taí, eu sabia! Viu só?
- Mas para falar a verdade, eu também não tinha vontade de transar com ninguém mais! Nem com mulher,
nem com homem.
- Ah, tá! Como se eu fosse um cachorro com problema mental! Você acha que eu vou engolir essa história?
- Camila, por favor, é a verdade! Você me fez jurar que ia te contar a verdade, você sabe o quanto eu odeio
mentiras e falsidades. Você me conhece muito bem. Eu não tinha idéia. Eu não tinha mesmo. Nunca parei para
pensar nisso... até que conheci Rodrigo. Ele me fez entender várias coisas que antes não faziam sentido para
mim... e agora fazem. Eu precisava disso. Eu estava precisando me encontrar.
- Eduardo, você está me dizendo então que você virou gay? Que você não era, mas virou?
- Entenda como quiser Camila, você é esperta o suficiente para saber que eu não estou brincando. Você tem o
poder de decidir agora, se quer ser minha amiga ou quer que eu suma da sua vida... pois tudo o que eu sei é
que não posso mais ser seu namorado. Não posso fingir agora ter um sentimento diferente do que realmente
tenho. Eu ia estar mentindo e te enganando, e o pior, me enganando. Diga-me, como poderíamos ser felizes
deste jeito?

Para Camila, a imagem do namorado, sentado aos seus pés, com a face perturbada pelo medo de simples
palavras, a fez o comparar com a imagem de algum mártir. E de tal forma isso a sensibilizou.
Passou um longo tempo pensando. Sua cabeça era como as águas de um rio, que iam rolando os seixos,
tirando-os do lugar, mas de certa forma os moldando de maneira natural. Por fim, sorriu:
- Meu Eduardo... você está certo.
O rapaz voltou sua cabeça em direção à garota. Ouviu as palavras saírem de seus lábios pintados com cor de
rosa pétala:
- Pensando bem, não poderíamos ser felizes tendo um namoro de mentira, não é verdade? Agora eu entendo.
Tudo faz sentido para mim.
- Faz mesmo?
- Faz sim. Mas não vou negar que estou magoada, que estou triste. Se você tivesse descoberto antes, mais
cedo, como outros rapazes que conheço, como o Fábio, por exemplo...

Eduardo se espantou:
- Fábio? Você sabia que ele era?
- Sabia sim.
- E porque não me contou?
- Bem, a Suzana o viu na boate, sabe como ela é, né? Vive atrás de novidades e essas coisas. Resolveu um dia
ir num lugar gay e lá estava o Fábio beijando um outro rapaz. Logicamente Suzana me contou, mas achei
melhor não tocar no assunto contigo, pois ele era seu melhor amigo e pensei que de repente, você fosse
rejeitá-lo por isso e estragar uma amizade de anos... e eu... bem, eu achei que não tinha esse direito.
- Entendo... – fez Ed reconhecendo o valor da garota. Mesmo Camila sabendo que Fábio não aprovava o
namoro entre os dois, ela permanecera calada e jamais pensara em abalar essa amizade.
- É verdade. Não tinha esse direito assim como não tenho direito de te rejeitar agora e estragar a possibilidade
de sermos amigos verdadeiros. Mas ainda lamento que você não tenha se definido antes de me conhecer, iria
me poupar de muita coisa...
- Puxa, desculpa...
- Mas nem dá nada! O que importa é que tivemos tempos muito bons juntos.
- É verdade! Isso eu não posso negar.
- Estou feliz que reconheça.
- E eu estou feliz que você me aceite e me entenda.

A garota riu francamente:


- O que mais posso fazer?

.....
- Eu acho que já me acostumei com isso! – exclamou Antônio, todo pensativo, bebendo o quinto copo de
conhaque.
- Você acha? – o pai de Rodrigo quis saber.
- Sim, claro! – olhou para o resto da bebida no copo, como se refletisse – Não é tão ruim assim...
- Sim, não há nada de ruim, o seu filho é um garoto normal e...
84
- Filho? Quem tá falando de filho? Eu tô é falando do conhaque!
.....
Eduardo e Camila se abraçaram fortemente, selando um pacto de amizade. A garota beijou docemente a face
lívida de Edú e convidou:
- Vamos voltar para a festa?
- Vamos!
Ao entrarem em casa, de mãos dadas e tudo, Suzana veio logo perguntando:
- Ai... que bonitinhos!!! Quero saber, se acertaram?
- Sim – Camila respondeu prontamente – nós somos ótimos amigos.
- Como assim?
- Significa que somos apenas amigos... o namoro chegou ao fim.

Suzana estava confusa:


- E... vocês estão assim, tranqüilos?
- Claro! Melhor ser amigo do que inimigo, não é mesmo?
- Eu concordo! – respondeu Eduardo com um belo sorriso.
- Agora vamos pegar uma bebida – disse Camila, meneando a cabeça.
- Já está mais do que na hora! Minha garganta tá tão seca quanto o Saara.

Camila puxou o garoto pelo braço e ao passar perto de uma garota que dançava com um primo distante,
comentou:
- Olha só que vestido lindo!
Eduardo olhou para a ex-namorada com um ar de “tá me estranhando?”.

.....

Eduardo saiu da festa com alívio em sua alma. Parecia que agora sim, tinha passado a última pendência a
limpo. Estava livre de verdade.
Quando entrou no táxi, pediu para o motorista andar sem pressa. Queria admirar a paisagem urbana, reparar a
cena noturna que se desenrolava na madrugada curitibana. Estava tão perdido em pensamentos que nem
reparou quando o motorista parou na frente da rua onde morava.
- Pronto! Aqui estamos.
- Hein? – o rapaz despertou de seus devaneios.
- Jovem, você está bem? – perguntou o senhor de cabelos grisalhos, com uma mão no volante e outra no
estofado do banco do carona, demonstrando real interesse em saber o que se passava por debaixo das feições
do garoto.
- Estou bem sim, obrigado.
- Sabe, costumo ser um ótimo ouvinte, acho que eu devia montar o primeiro táxi com consultório psicológico,
pois sempre levei jeito para a coisa...
Eduardo riu e agradeceu:
- Muito obrigado, mas eu não tenho nada não, é só um pouco de cansaço com excitação.
- Hum – ponderou o motorista – que estranha combinação!
- É né? – concordou o rapaz que pagou o taxista e desceu do veículo. Enquanto seguia o rumo de casa, olhou
para a janela da família Toledo, as luzes estavam acesas – puxa... já passa das duas da manhã... o que será
que... ah! Deixa para lá!
Ao passar pelo portão da sua casa, Eduardo parou e contemplou o céu.
Estava nublado.
Mas ele sabia que acima das nuvens as estrelas brilhavam belas como nunca.
Ao entrar em casa, pé por pé para não fazer barulho e acordar os pais, o rapaz subiu as escadas como um gato
que se esgueira elegante porém silenciosamente pela noite. Assim que acendeu a luz do banheiro, reparou pelo
espelho que a porta do quarto dos pais estava entreaberta, coisa totalmente fora do comum, uma vez que seus
pais dormiam com a porta fechada sempre.
Resolveu investigar.
Ao meter a cabeça pela fresta da porta, apurou o ouvido para detectar a respiração dos pais que supostamente
deveriam estar dormindo.
Nada. Silêncio absoluto.
Acendeu a luz do quarto e constatou que ali não havia ninguém.
- Ué... onde será que eles estão? – indagou sussurrante e coçando a cabeça.
Apagou a luz do quarto e desceu as escadas. Procurou no andar de baixo em vão. Saiu para a rua para verificar
se o carro estava na garagem. Estava. Aquilo era estranho... o rapaz já ia voltando para dentro de casa quando
lembrou-se das luzes na casa de Rodrigo. Será que os pais estavam lá?
85

Tocou a campainha e logo Sílvia atendeu.


- Oi, desculpa eu tocar a campainha a essa hora, mas... meus pais estão aí?
- Estão sim Ed, entra aí. – disse a mulher, muito sorridente e levemente embriagada por whiskey.
- Com licença. – o garoto entrou na casa e seguiu a mãe de Rodrigo até a sala de estar. Antônio estava para lá
de Bagdá com os conhaques que havia tomado e sorriu quando o filho chegou:
- Ô Eduardo!!! Como tava na festa? Tudo bem?
- Tu-tudo...
- Liga não filho – Sônia interveio – seu pai está meio alto.
- Eu tô vendo...
- Rodrigo tá no quarto dele, não sei se está dormindo, quer ir lá ver? – Sílvia indagou.
- Vou lá sim.
Pediu licença e se retirou. Rumando para o quarto de Rodrigo o rapaz agradeceu pelos pais estarem encarando
tudo numa boa.
Entrou sem bater no quarto de Rodrigo.
O rapaz estava na cama e parecia estar dormindo. Eddie aproximou-se do garoto e sentiu sua delicada
respiração misturar-se com o cheiro da pele perfumada. O quarto estava embebido em sombras tão escuras
quanto azeviche, mas Ed parecia captar a luz interior de Rodrigo que emanava raios que clareavam o quarto, a
casa, a cidade, o mundo. Quem ama enxerga luz no meio das trevas. Se precisasse tatear como os cegos
fazem belamente, não seria por falta de visão, mas sim para sentir o divinal toque da pele de seu namorado.
Seu único amor.
Nem sabia quanto tempo passou sentado na beira da cama a nutrir-se do carinho que sentia. Meia hora ou uma
talvez. Quem saberia ao certo dizer? Ninguém provaria nada a Ed, que alegaria sem pestanejar que o tempo
não existia quando estava com Rodrigo – e se existisse de fato tal coisa como o tempo, clamaria não se
importar com ele, diria ainda que se os ponteiros se locomovessem lentos ou circulassem tão rápidos que se
desintegrassem nessa velocidade, ele ainda estaria no recanto de paz que escolhera: Rodrigo. E que o tempo
tomasse o rumo que bem entendesse – Eduardo estava feliz.

E ninguém tiraria isso dele.

Delicadamente foi se curvando e beijou os lábios do garoto adormecido. O toque daquela boca quente contra a
dele era tudo o que havia de revitalizante na face da Terra.
- Hein? – fez Rodrigo, despertando confuso.
- Sou eu – disse o garoto, passando a mão pelos cabelos macios do namorado e acariciando a sua testa com os
lábios.
- Edu? – indagou Digo, que instantaneamente sorriu, iluminando ainda mais a escuridão do recinto. Com voz
doce e calma perguntou enquanto pegava na mão de Eddie – O que você faz aqui seu louco?
- Meus pais estão aqui com os seus.
- Ainda? – o rapaz se espantou.
- É. De se estranhar, não é verdade?
- É mesmo.
- Seus pais não tinham que estar trabalhando a essa hora?
- Deviam sim, mas acho que se não foram antes, é porque vão pegar o turno das quatro da manhã.
- Ah... e eles podem fazer isso?
- Podem, mas eles têm que supervisionar estagiários caso ocorra alguma falha no boletim horário de outro
médico. Tipo um quebra galho amistoso que deixa todo mundo feliz.
- Ah... Entendi! E você? Porque não tá lá com eles?
- Eu estava, mas logo me descartaram da conversa. Seu pai ficou conversando com o meu e a mesma coisa
ocorreu com nossas mães. Daí eu até pensei em dar uma volta para esfriar a cabeça. Meu garoto, você não
sabe a pilha de nervos que eu tava, mas acabei resolvendo mesmo dormir. Demorei a pregar os olhos. Eu acho
que só consegui pegar no sono faz uma hora, por aí. Estava muito preocupado contigo.
- Comigo? – fez Eduardo estranhando – Porque?
- Porque você estava na casa da sua namorada! Achei que ia armar algum barraco. E não vem que não tem,
que do jeito que você é teimoso era bem capaz de fazer um sururu mesmo.
- Ah é?
- É! Tava com um baita medo que você aprontasse e algo ruim acontecesse com você.
- Pois fique tranqüilo que eu não aprontei nada.
- Sério?
- Verdade. Mas também eu não pude ficar quieto. Eu a levei para um lugar calmo, justamente para evitar
confusão e contei tudo pra ela. Não foi fácil. Disse a ela que eu não podia mais namorá-la porque havia
conhecido outra pessoa.
86
- Sério? E ela?
- Ela achou ruim, lógico. Ainda mais quando soube que eu a estava deixando por um garoto. Qualquer um ia
pirar. Mas sabe o que é inacreditável? É que no final das contas ela aceitou. Acho que entendeu tudo. Voltamos
para a festa e ficamos como amigos. Todos souberam que a gente acabou, mas ninguém percebeu nada de
ruim no ar e nem desconfiaram o porquê.
- Uau... isso é incrível, você é demais!

Rodrigo foi de encontro ao pescoço de Eduardo e beijou suavemente. Depois beijou a face e arrastou os lábios
para o ouvido do garoto e sussurrou:
- Quer ver uma coisa?...

Eduardo ingenuamente disse:


- Quero.
Então Rodrigo sorriu de canto de boca e foi se descobrindo do sono leve que o envolvia:
- Você sabia que eu durmo pelado?

Capítulo final -

O sinal para o intervalo acabara de tocar e toda a turma do cursinho levantou-se afoita, acotovelando-se rumo
às escadarias que levavam ao pátio. Fábio esperou Eduardo sair:
- Me conta o que aconteceu! Aquele dia no telefone fiquei super curioso. Queria saber mais, mas achei melhor
esperar um telefonema seu, já que você tava acompanhado e eu não queria atrapalhar...
- Ah, deixe de besteira. Ele foi embora logo depois. Mas o que aconteceu foi que eu chutei o balde em casa.
- Oras, mas disso eu já sabia. Muito me faria gosto se você contasse detalhes, seu mané! Como foi que
aconteceu?
- Pensei que Rodrigo já tinha te contado...
- Contou, mas foi só por cima...
- Certo... bem, primeiro a gente tava falando no telefone, eu e o Rodrigo. Eu tinha sentido uma atração por ele
desde o primeiro momento em que o tinha visto e gostava de conversar com ele, gostava da presença dele, por
mais perturbadora que fosse. E então, a cada visita ou telefonema, íamos ficando cada vez mais íntimos, e
nessa conversa surgiu um clima tão grande, que quando me dei conta a gente tava se beijando!
- Affe! Mas como?
- Sei lá! Ele desligou o telefone na minha cara e veio correndo rua abaixo. Alguma coisa me fez fazer o mesmo.
- Você fez o mesmo? Parece coisa de cinema! E o beijo?
- No meio da rua! Luz do sol e tudo mais!!!
- Jesus amado... sério?
- Sério, e minha mãe viu tudo!
Fábio estava pasmo:
- Imagino a cara dela!
- É, a coitada empacotou. Sei que depois, lá estava eu, Rodrigo e a mãe dele ajudando a acordar minha mãe no
chão. Jogamos água nela, e a levamos para a cozinha. Ela tremia tanto que parecia ser feita de Maria Mole.
Tive que dar água com açúcar... e ela só conseguia falar: ai de você quando seu pai souber disso! Ai de você,
coitado do seu couro!
- Que engraçado!
- É né? Agora é engraçado, mas na hora eu senti um peso na consciência... tava com a maior pena dela. Mas
também eu não estava arrependido. Se pensar bem, foi até legal!
- Sim, sair do armário pode ser legal...
- Eu sei. Um alívio!
- É, mas pode ser traumático também. Cara, você teve muita sorte que seus pais não tenham te rejeitado.
Acontece bastante e você ia passar a maior barra.
- Você acha mesmo? Acha que meus pais iam me jogar na rua?
- Bem... acontece, né?
- Puxa! Ainda bem que não foi o meu caso, cheguei até a agradecer aos céus por isso... mas, e você?
- Que tem eu?
- Seu pai... ele sabe de você?
- Sabe, mas finge que não sabe. Eu não contei, mas também não escondo. Eu deixo revistas espalhadas,
cartas, bilhetes que ganho de paqueras... e quando o telefone toca para mim, só tem macho do outro lado da
linha. Bobo meu pai não é, mas acho que prefere não ter certeza absoluta... mas se um dia ele perguntar, eu
falo mesmo.
- Eu acho que ele ia levar numa boa.
- Eu também. Se duvidar ele é do babado também.
87
- Sério? Você acha?
- Bem, eu não boto minha mão no fogo por ninguém. Até você, que era meu amigo mais hetero, é da
irmandade...
Os dois riram. Eduardo sentiu novamente como era boa a sua amizade com Fábio. Fazia tempo que queria isso
de volta.
- Eu falei para a Camila. Abri mesmo o jogo e acabamos o namoro.
- Bem, no mínimo...
- Mas foi tudo tão legal. No princípio ela estava arredia e eu entendo isso, mas depois se mostrou tão boa.
Nunca pensei que receberia tamanha receptividade da parte dela. Achei que ela ia me tratar feito lixo, mas era
uma coisa que eu precisava fazer. De qualquer modo, deu certo.
- Deu mesmo. Tô te falando que parece até coisa de filme, que tudo dá certo para o mocinho da história...
- É, só que no final do meu filme, não tem casamento com a mocinha...
Fábio fez careta e botou a língua para fora:
- Ui! Fora racha!!!
.....
O som da boate fazia os corpos saltitarem felizes. Tudo era mágica no ambiente da GrooveLandS. Fábio
esperava por Rodrigo e Eduardo numa mesa. Olhava para o relógio com certa impaciência. Onde será que
aqueles dois tinham se metido?
Finalmente, depois de quarenta minutos, o casal apareceu:
- Oi, tá faz tempo aí?
- Pior! Tomei um chá de cadeira que não tem tamanho!
- Puxa, desculpa, é que a gente tava na fila da chapelaria.
- Porque não guardaram as coisas no carro?
- É que a gente veio de táxi hoje.
- Ah, ok. Agora já foi mesmo, né?
- Puxa, desculpa – Ed tentou acalmar o amigo.
- Nem dá nada! Vamos curtir!

Os três rapazes rumaram para a pista de dança.


A música estava espetacular e todos dançavam alucinadamente, uns de cara limpa e outros com ajuda de
entorpecentes. Mas no final das contas, o objetivo era o mesmo em todos: curtir ao máximo a balada.
- Olha o Henrique ali! – Eduardo exclamou e apontou para o garoto.
- É, ele vive por aqui – comentou Fábio.
- E ele nunca veio falar nada contigo na sala de aula?
- Não. Fica cada um na sua.
- Puxa... deixa eu ir falar com ele.
Eddie rumou para o garoto e tocou-lhe as costas:
- Henrique?
O rapaz de grandes olhos pretos se virou e Eddie cumprimentou:
- Tudo beleza?
- Eduardo? – o rapaz estava surpreso, mas abriu um sorriso franco e indagou – Tudo bem?
- Tudo!
- Que você tá fazendo aqui?
- Eu vim com eles – e apontou para Fábio e Rodrigo.
Nisso o garoto arregalou os olhos:
- Você também é?...
- Sou sim!
- É por isso então que tava sendo legal comigo, né?
- Eu não sei. Aliás, não é que eu não soubesse, talvez seja por isso mesmo, no fundo... é que na época eu nem
sabia ao mesmo o que queria...
- Mas como assim na época? Nem faz tanto tempo assim! Semanas apenas.
- É, mas eu não tinha me definido ainda.
- Mas agora você se definiu?
- Sim.
- E tá tudo bem?
- Tá.
- Então isso é o que vale!

.....
Sentado no meio fio, bem em frente ao portão de casa, Eduardo esperava Rodrigo sair da casa do começo da
rua. Assim que avistou o namorado vindo em sua direção, começou a cantarolar:
88

Se essa rua, se essa rua fosse minha...


Eu mandava, eu mandava ladrilhar...
Com pedrinhas, com pedrinhas de brilhantes...
Só pro meu, só pro meu amor passar...

Rodrigo vinha caminhando com seu sorriso perfeito estampado no rosto. A canção que Ed entoava chegava-lhe
muito gostosa ao ouvido, trazida pela delicada brisa.

Nessa rua, nessa rua tem um bosque...


Que se chama, que se chama solidão...
Dentro dele, dentro dele mora um anjo...
Que roubou, que roubou meu coração...

Eduardo observava Rodrigo, que já estava sentando ao seu lado. Foi a vez de Rodrigo cantar:

Se eu roubei, se eu roubei seu coração...


Tu robastes, tu robastes o meu também...
Se eu roubei, se eu roubei seu coração...
É porque, é porque te quero bem...

Assim que terminou de cantar, deu um beijo tão forte em Ed que esse chegou a se inclinar para o lado.
Sorriram.

- Mas só ganho esse beijinho mixuruca?


Ao que Digo responde surpreso:
- Mas tá ficando é muito saidinho esse meu namorado, não acha?
- Com essa boca linda e esse sorriso perfeito, só posso ter essa vontade, não acha?
- Mas assim? No meio da rua?
- Eu não devo nada para ninguém! E por mim eu ficava te beijando para sempre.
- Ah é?
- É sim.
- Então vamos começar desde agora.

.....

Clara chegou ao lado de Carlos no cursinho e disse:


- Aí estão as “provas” que você pediu. As fotos do Henrique na boate.
- Isso é excelente!
- E acho que você vai achar mais excelentes ainda essas aqui... – disse a garota balançando um maço de
fotografias no ar.
- Que tem de especial nestas?
- Veja você mesmo!
De princípio o semblante de Carlos ficou sombrio, e aos poucos foi ganhando o tom vermelho do inferno.
- Oras, oras! Agora sei porque Eduardo defendia tanto aquela bichinha!
- Não é o máximo?
- É sim Clara! Muito obrigado. Agora sim eu vou acabar com a raça desse Eduardo!

Assim que a aula começou e todos estavam em seus devidos lugares, Carlos cutucou o colega do lado e disse:
- Olhe bem estas fotos e passe para o lado.
Rumores se faziam ouvir enquanto as fotos iam passando de mão em mão.
Dentro de pouco tempo, já havia uma multidão que olhava para Eduardo. Alguns balançavam a cabeça
reprovando, outros davam um risinho cínico. Poucos olhavam apenas, sem reação alguma.
Ed não estava entendendo nada e ainda indagou para si mesmo em sussurro:
- O que está acontecendo? Será que eu tô cagado?
Não demorou muito tempo, uma foto veio parae em suas mãos.
E lá estavam ele e Rodrigo, abraçados, um de face para o outro, quase se beijando na pista de dança da
Groovelands.
Eddie ficou branco feito fantasma.
Ouviu o bombar de seu coração tão alto que podia até ficar surdo.
Enquanto todos ao redor começavam a falar cada vez mais alto e comentar, uma das fotografias veio para
89
Fábio. Ao constatar que a coisa podia ficar feia para Eduardo, lançou mão do celular e ligou para Rodrigo:
- Cara, vem para cá pro cursinho agora!
- Fábio? Mas o que aconteceu? Eu não posso ir agora, eu estou...
- Meu, não me interessa o que você tá fazendo! O Eduardo vai precisar de você aqui. Já tá todo mundo
sabendo. Alguém tirou fotos de vocês e espalhou pela turma.
- E cadê o meu Eddie?
Fábio olhou para o amigo, que estava muito branco e com a respiração acelerada.
- Rodrigo, vem para cá AGORA!
Desligou o celular e levantou da carteira:
- De quem são essas fotos?
- Do Eduardo, oras! – respondeu Carlos, três fileiras adiante.
- Seu merda! Quem tirou essas fotos?
Nesse instante o professor interveio:
- O que está acontecendo? Que fotos são essas?
A sala inteira ficou em silêncio.
O professor pediu:
- Passem essas fotos para cá. Todas.
Os alunos obedeceram.
Assim que conferiu de que se tratava, olhou para Eduardo e comentou:
- Filho, acho que você não devia ter trazido fotos suas e do seu namorado para a sala de aula. O amor de vocês
pode ser lindo, mas guarde isso para você ou pelo menos espere a hora do intervalo para compartilhar sua
felicidade com os colegas. Após o sinal, venha pegar essas fotos comigo. Antes disso, concentre-se nos seus
estudos.
E a aula teve curso “normal”. Pelo menos aparentemente, porque a mais intrincada trama de bilhetes fluiu
pelas carteiras. Todo mundo comentava, todo mundo opinava.
Eduardo não parava de receber bilhetes contendo “veado” “bicha louca” “boiola” e até um “você é um gatinho”,
provavelmente de um gay enrustido. Ficou totalmente aturdido e já não atinava com nada.
Não ouvia o que o professor falava, não distinguia o que via, não reconhecia faces, não respirava mais.
Os colegas que o cercavam perceberam que ele não estava nada bem e resolveram ajudar. Quando os bilhetes
chegavam neles, simplesmente não os passavam para Edú. Rasgavam, amassavam e guardavam em suas
malas.
De algum modo, essa atitude deu um pouco de ânimo à Eduardo, que se sentiu protegido pela barreira
humana, e mais que isso, pela demonstração de humanidade.
- Ninguém tem nada com isso – lhe disse a colega do lado direito.
- É, ninguém tem nada a ver com isso – disse o garoto da carteira esquerda, dando um tapinha amistoso no
ombro de Edú, que não pode deixar de notar a nódoa de suor debaixo do braço do rapaz. Ele estava tão
nervoso quanto Eddie. Talvez tomar parte dessa luta não fosse fácil para ninguém. Ao parar de passar bilhetes,
o garoto tinha tomado seu partido e perante o resto da classe era “pró-boiolas”.
.....
Rodrigo dirigia a toda velocidade, passando velozmente por radares e o escambau. A única coisa que lhe
importava no momento era ter Eduardo a salvo em seus braços.
Cruzava o coração com o indicador e beijava a ponta do dedo cada vez que fazia isso, desejando que nada de
ruim acontecesse.
Chegou feito louco na portaria do cursinho e pediu para entrar:
- Você é aluno?
- Não.
- É parente de aluno?
Digo parou para pensar. Não ganharia nada dizendo a verdade.
- Sou irmão de Eduardo Braschi.
- Mostre sua identidade.
- Ok – meteu a mão no bolso, tirou a carteira e já ia abrindo quando o cara falou que não precisava mostrar
nada.
- Ok.
- Entre e vá para a diretoria, diga à secretária mandar alguém buscar seu irmão.
- Muito obrigado.
E Rodrigo seguiu para a diretoria. Pediu por Eduardo.
- Faltam apenas quinze minutos para acabar a aula – disse a loirinha simpática – Eu posso mandar alguém
avisá-lo que você está aqui, mas ele só vai poder sair depois que der o sinal.
- Não tem mesmo como falar com ele antes? É muito urgente.
- Eu gostaria muito de ajudá-lo, mas tenho que seguir essas normas.
- Eu entendo.
90
Rodrigo só disse que entendia porque faltavam apenas quinze minutos. Se tivesse que esperar mais do que isso
já teria derrubado a porta da sala de aula e arrancado o namorado de lá em seus braços.
.....
Quando o sinal tocou, o professor disse:
- Você rapaz, venha pegar suas fotos e vá para fora. O resto da turma, aguarde um pouquinho mais.
Eduardo levantou e caminhou para o enorme tablado. Sentia o olhar de todos como dedos de ferro em brasa
sobre sua pele. Mas foi com a cabeça erguida. Preferiu fazer isso do que se deixar montar por todo aquele
sentimento besta de superioridade que lhe dirigiam. A vida de Henrique era triste. Não queria a mesma coisa
para ele.
Subiu no tablado e o professor lhe entregou as fotos, e até o envelope com os negativos, que alguém havia
passado também, o que deixou Clara e Carlos totalmente furiosos.
- Pronto, agora, pode ir para seu intervalo.
Eduardo cruzou a enorme sala de aula, ainda sob os olhares da galera. Ele ainda pôde ouvir uma voz chorosa
reclamar:
- Droga! Ele é tão gato...
Tão logo Dú saiu da sala, o professor começou:
- O que vocês acham que estavam fazendo?
Silêncio.
- Eu sei muito bem que ele não trouxe aquelas fotos. E também sei que ele não gostou nada do que aconteceu
aqui. Vocês deviam ter muita vergonha do que fizeram, seja lá quem foi que fez essa maldade. Só quero dizer
que orientação sexual é algo particular. O que cada um faz ou deixa de fazer é problema pessoal. Aquele
garoto, mesmo sendo “doente”, como todos vocês acham que é, jamais faria isso com nenhum de vocês,
sabem porque? Porque ele é gente! Ele é humano. Não é igual ao monstro que tirou essas fotos.
Silêncio total.
- Só um monstro faria isso. Uma pessoa sem valor. E com muita, muita inveja daquele garoto. Porque quem
está contente e seguro, não vai se incomodar com a vida dos outros, a não ser que esse outro esteja ocupando
um lugar que de repente... a gente queria estar. Então, para quem armou isso, tente se resolver antes de
machucar um rapaz que não tem nada a ver com sua mente pequena e com sua vidinha medíocre.
Algumas pessoas concordaram.
Henrique sorria.
Fábio levantou e aplaudiu.
- Obrigado – disse o professor – Agora, vão para o intervalo, e ai de quem eu souber que andou fazendo
qualquer coisa com aquele garoto! Mas ai!
.....
Eduardo saiu da sala e rumou para o banheiro. Sua pele que já era branca por natureza, ainda estava mais
pálida do que de costume. Lavou o rosto, enxugou lentamente. O pátio já estava cheio de gente e só agora o
povo da sala dele começava a sair da sala de aula. Não demoraria muito, estaria rodeado por sabe-se lá que
tipo de pessoa. Sentou-se debaixo do grande cedro na área da cantina. O vento fresco e a sombra estavam lhe
fazendo bem. Seu pulso já se normalizava.
- Eddie!
- Rodrigo?? Que faz aqui?
- Fábio me ligou, vocês estavam em plena aula.
- Mas...
- Ele me contou o que houve.
- Foi uma droga! Horrível. Todos aqueles olhares. Tanta coisa horrível.
- É normal. Eles não entendem. Eles não sabem que a felicidade vem em medidas e formas diferentes para
cada pessoa.
- Mas isso não é felicidade...
Rodrigo mudou a expressão do rosto:
- Nunca mais diga isso de novo. Eu te amo tanto que só pensar que você existe me deixa muito feliz. Muito!
Eduardo olhou para o namorado. Como era lindo. E sempre tão verdadeiro.
Pôde sentir o carinho que a respiração dele transmitia.
- Eu queria te abraçar – Eduardo disse finalmente.
- É, eu sei. Mas olha para toda essa gente...
Fábio, que estivera à procura de Eduardo, já chegou falando:
- Rodrigo! Que bom que você já tá aqui! – sorriu e fofocou – o professor soltou o verbo na galera. Mas pisou
mesmo! Como todo mundo sabia que o Carlos que passou as fotos, enquanto o professor repreendia, ele se
encolhia cada vez mais e ia ficando vermelho, roxo, preto de vergonha. Disse que no fundo quem tinha vontade
de agarrar um homem era bem quem fez essa maldade.
- Mas eu achei que ele pensasse que as fotos eram minhas.
- Claro que não né? Ele só fez isso para te ajudar.
91
- Pô, esse cara é super gente boa hein?
- Verdade. Segurou a barra legal...
Fábio foi interrompido por uma voz furiosa:
- Mas aí está a bichinha! – era Carlos, de punhos cerrados.
- E aí está o otário – disse Fábio.
- Não se mete cara! Não se mete! – já disse empurrando.
- Quem é esse mané? – Rodrigo perguntou.
- O sujeito das fotos – Fábio informou.
- Ah é??? – disse Rodrigo sorrindo e estalando a junta dos dedos.
- E você? Quem... ah! – fez Carlos, reconhecendo-o pelas fotos – Você é o namoradinho né? Outra bichinha que
eu vou ter o prazer de...
- Vai ter o prazer de que? – indagou Eduardo, levantando-se furioso e peitando Carlos.
- É, ô mané, vai ter prazer de que? – disse Rodrigo, levantando-se também, ficando ao lado de Ed.
Como os dois eram bem maiores que Carlos, ele se esquivou:
- Olha, isso não vai ficar assim...
No mesmo instante, Jorge e Marcos, os amigos de Carlos, se aproximaram do local. Vendo que reforços
chegavam, o garoto já cantou de galo:
- Você tá muito ferrado na hora da saída!
Eddie olhou para os outros dois rapazes que adentraram a rodinha, ao que Marcos continuou:
- Agora são três, contra dois!
- Três contra três – disse Fábio.
- Não – corrigiu Marcos – são cinco contra um.
Eduardo olhou com espanto o skatista com cara de mongo, aquele mesmo, que vivia pedindo as resoluções dos
exercícios. Este tinha um sorriso franco e estendia a mão para Eduardo:
- Pôrra cara! Foi muita sacanagem isso!
Rodrigo sorriu.
- Você é super gente boa – completou o rapaz.
- É sim – fez Jorge – sempre ajudou a gente. Estávamos sentindo a falta da sua companhia na turma.
- Agora a gente sabe porque você se afastou. Tinha medo que a gente descobrisse né?
- Ainda mais com todas aquelas piadinha que a gente fazia sobre veado e essas coisas.
- Ué Jorge, pensei que gente assim fazia você querer vomitar – disse Fábio.
- Ah não! Era só para eu não perder a pose diante da turma. Coisa ridícula. Mas sabe qual é? A gente perdeu
um grande amigo por causa do preconceito.
- Eu não acredito no que estou ouvindo – bradou Carlos – será que todo mundo é viado?
- Não Carlos, nem todo mundo é veado, assim como nem todo mundo é otário que nem você! – disse Marcos –
E quer saber de mais uma coisa? Some daqui cara! Some! Você foi muito cuzão!
- É! Te manca cara! – disse Fábio, que já não ia com a cara de Carlos fazia muito tempo.
Henrique chegou na roda, ao que Carlos comentou:
- Pronto! Mais um! Agora são três frutinhas!
- Não são três, são quatro – Fábio consertou.
- Quatro? – Jorge indagou.
- Claro – disse Henrique – O Fábio também é gay.
- Mas era só o que me faltava – Carlos comentou com nojo.
- Não, só o que lhe faltava era um cérebro, sua múmia paralítica! – disse Rodrigo – E tem mais: a gente já não
mandou você cascar os “buios” daqui?
- Se não gosta de mim, nem do Fábio, nem do Henrique, e se a partir de agora não gostar mais do Jorge e nem
do Marcos... não precisa nem falar conosco – deu uma pausa e falou carregado de veneno – a gente não faz
questão!
Os olhos do rapaz furioso latejavam visivelmente. Ele estava sozinho naquela guerra. E era inútil tentar. Saiu
de lá pisando firme e resmungando coisas que ninguém entendeu.
.....
- O que você acha disso? – perguntou dona Sônia ao pai de Eduardo.
- Eduardo mereceu isso! – respondeu o homem.
- É verdade – a mulher anuiu.
- E eu digo que nosso filho é de ouro.
Os dois se abraçaram, contemplando um dos vários outdoors que estampavam Eddie como primeiro lugar geral
do vestibular.
.....
- Como grávida??? – Eduardo se espantou.
- Grávida! Oras!
- Camila! Isso é muito estranho!
92
- Eu sei, mas Eduardo... depois da seca que você me deu... quando eu arranjei um namorado, não quis nem
saber, eu mandei ver mesmo!
Eduardo riu, mas logo ficou sério:
- Você gosta dele?
- Claro que sim!
- Vão se casar?
- Não, eu sou muito nova. E ademais... casamento não é para mim. Não pelo menos a essa altura da minha
vida. Nem terminei o segundo grau!
- Pois é, e ainda mais com um filho Camila... as coisas não vão ser fáceis.
- Disso eu sei, mas eu tenho o apoio da minha família. Meus pais, que eu pensei que iam me matar, nem
fizeram tanta onda assim. Lógico que teve todo aquele aporrinhamento, mas normal! – e ela riu.
- Mas embora eu ache loucura, ainda estou fascinado com a idéia de ser titio.
- Não!
- Não?
- Quero que seja padrinho. Quando batizar a criança, quero você lá como padrinho dela.
- Ah Camila! Pode deixar! Eu topo mesmo! Um dia eu vou ter meus filhos!
- Como?
- Sei lá! Partenogênese!
- Partenoquê?
Ele riu largamente até que a garota comentou:
- Não é à toa que passou no vestibular!

.....
- Sabe, um dia eu vou querer ser que nem você – disse Eduardo com a cabeça no colo de Rodrigo, enquanto
esse acariciava seus cabelos.
- Sai fora! Dois de mim não!
- Seu bobo! Eu estou falando do seu jeito de ser. Você conquista todo mundo...
- Eduardo, não me interessa conquistar todo mundo. Eu já conquistei você.
- Puxa, como a gente tá ficando cafona!
- Posso ser cafona, mas se eu estiver contigo... sinto-me o cara mais feliz do planeta.
- Ah é? Então bota a mão na minha cueca que eu tenho uma coisinha para você...
Ao que Rodrigo respondeu:
- Coisinha? Isso é uma coisona!
E foi colocando a mão por dentro da calça de Eddie, até que tirou uma caixinha da cueca do outro. Abriu e viu a
aliança.
- Você quer ser meu noivo?
- Noivo? – os olhos de Rodrigo tinha lágrimas muito brilhantes.
- Eu quero me casar com você...
E o sorriso de Diguinho iluminou o universo.
.....

- Casar Eduardo?
- É mãe. Mas isso só daqui a algum tempo. E fala baixo, que o pai ta na sala do lado e pode escutar. Não quero
que ele pense nisso agora.
- Claro! Seu pai vai ficar desconcertado. Até agora ele aceitou bem, mas acho que se souber que o filho dele
quer casar com um outro homem...
- Eu sei mãe, é difícil para vocês aceitarem, mas tenho que seguir minha natureza. Tenho que seguir meu
coração.
- Mas... como é que dois homens se casam? Como fazer convites para a igreja?
- Ah não mãe! Não digo de casamento em igreja e essas coisas mãe. Só morar junto.
- Ah bom. Isso me alivia. Não consegui imaginar nenhum de vocês usando um vestido de noiva... aliás... meu
filho... uma coisa que me encuca muito... qual de vocês dois é a... – e a mulher parou por não saber como
indagar.
- O que?
- Você sabe, é a mulher...
- Ela quer saber quem come quem! – gritou Antônio, lá de dentro.
.....
Num quarto escuro e abafado de um motel de quinta categoria, uma drag queen de maquiagem borrada e
roupa barata estava de quatro levando ferro por trás. O “bofe” a penetrava com força e xingava com gosto,
puxando a peruca, que saiu da cabeça da drag.
93
Era Carlos.
.....
- Digam “x”! – Fábio pediu, enquanto apertava o controle remoto da máquina digital – temos que sair bem na
foto. Afinal festa assim é ocasião especial!
- É! Essa vai ficar para a história! – Camila comentou.
Dizendo isso, todos se abraçaram fazendo pose e o flash disparou sobre Eduardo, Rodrigo, Fábio, Camila e o
bebê em seu colo.

Cada um ficou com uma cópia desta fotografia para si.

A de Eduardo está no porta-retrato em que Rodrigo lhe dera o seu número de telefone escrito no vidro, quando
Eddie ainda estava naquele mundo incerto.

Tanta coisa mudara desde então.


Conquistara um amor único e verdadeiro.
Os pais de Edú e Rodrigo estavam orgulhosos de verem os filhos tão felizes juntos, de estarem se virando
sozinhos, de terem construído um bom começo de vida.
Fábio passara a gostar de Camila e eram praticamente melhores amigos. Chegava até querer ser o pai
“postiço” do bebezinho.
Marcos e Jorge foram se chegando cada vez mais nessa turma e agora eram dois incríveis “heteros sem
preconceito”.
Os pais de Rodrigo finalizariam a construção da clínica dentro de dois anos, e já esperavam Eduardo para
integrar-se à equipe médica tão logo fizesse sua especialização.
Rodrigo e Eduardo sabiam que a felicidade não era algo constante. Ela ia e vinha como sempre na vida. Para
todos. Mas saberiam ser fortes para lutar pelo que sentiam e para fazer de todos os momentos felizes, os mais
inesquecíveis de suas vidas, como o dia em que Fábio tirou a foto da galera.

Seriam momentos como esse, registrados belamente na memória assim como na foto, que dariam a força de
continuar a acreditar que tudo o que se precisa para ser feliz é aceitar que se pode ser feliz.

A fotografia tirada no dia do casamento dos rapazes, com os amigos reunidos, decorava a estante da sala do
apartamento em que moravam Eduardo e Rodrigo.

Fim...

Anda mungkin juga menyukai