As razões do acórdão
A essas razões de pedir, a maioria vencedora no tribunal
respondeu de duas maneiras.
O relator invocou a noção germânica de "lei-provimento"
(Massnahmegesetz), pretextando que a anistia teria surtido efeitos
imediatos e irreversíveis. Das duas, uma: ou aquele julgador
desconhece o sentido do conceito técnico por ele invocado; ou tem
perfeita ciência do que significa a expressão, e resolveu utilizá-la
unicamente para impressionar a platéia.
Há muito a ciência jurídica estabeleceu a distinção entre lei e
provimento administrativo (em alemão, Verwaltungsmassnahme); a
primeira geral e abstrata, o segundo concreto e específico. Foi com base
nessa distinção tradicional que Ernst Fortshoff,[1] após a Segunda
Guerra Mundial, impressionado pelo crescimento do poder normativo
das autoridades governamentais, máxime na implementação do Plano
Marshall de reconstrução da Europa, passou a denominar
Massnahmegesetze normas com forma de lei, mas de conteúdo idêntico
ao de provimentos administrativos. Por exemplo, a lei que determina a
construção de uma barragem, ou que fixa um termo final para os
trabalhos de modernização de ferrovias.
O deprimente em toda essa estória é que o Ministro relator, ao
mesmo tempo em que, na esteira da Procuradoria-Geral da República,
considerou enfaticamente que a anistia dos crimes cometidos pelos
agentes públicos contra oponentes políticos fora um "acordo histórico",
sustentou que ele nada mais seria, afinal, do que um simples
provimento administrativo.
De qualquer modo, pretender que a Lei nº 6.683 teve efeitos
imediatos e irreversíveis constitui grosseiro sofisma, por dois singelos
motivos. Em primeiro lugar, porque a premissa maior do silogismo já é
a sua conclusão (vício lógico denominado petição de princípio); ou seja,
a possibilidade de se reconhecer a conexão criminal entre delitos
praticados com objetivos ou propósitos contraditórios. Em segundo
lugar, porque, ao assim se exprimir, o magistrado demonstrou ignorar o
fato óbvio de que os alegados efeitos imediatos de uma lei de anistia
não podem estender-se a crimes continuados (como o de ocultação de
cadáver), cujos autores permanecem no anonimato.
A segunda via de refutação das razões apresentadas na petição
inicial foi também trilhada pelo relator, neste ponto pressurosamente
acompanhado pela ministra que o sucedeu na ordem de votação.
Entendeu, assim, o relator de desconsiderar o teor literal do pedido
formulado na petição inicial, para sustentar que a demanda não
objetivava uma interpretação da Lei nº 6.683, mas sim a sua revisão; o
que só o Poder Legislativo tem competência para fazer.
É fartamente conhecida a distinção, de que o relator do acórdão usa e
abusa, entre norma e texto normativo. Como o hábito do cachimbo
deixa a boca torta, Sua Excelência resolveu aplicar o discrime à própria
petição inicial da demanda. A arguente, afirmou ele, posto haver pedido
literalmente ao Tribunal que interpretasse a Lei nº 6.683, de 1979, à luz
dos preceitos fundamentais Constituição Federal de 1988, objetivou, na
verdade, alcançar com a demanda uma alteração legislativa substancial.
Que se saiba, em nenhum país do mundo incluiu-se na competência
jurisdicional a faculdade de psicanalisar as partes demandantes, a fim
de descobrir, por trás de suas declarações em juizo, intenções
recalcadas no subconsciente. Teríamos admitido isso entre nós por meio
de alguma Massnahmegesetz secreta?
O realmente curioso é que nenhum dos julgadores tenha se lembrado de
que, quase um ano antes, dia por dia, ou seja, em 29 de abril de 2009,
o mesmo tribunal decidira que a Constituição Federal havia revogado de
pleno direito a lei de imprensa de 1967, promulgada doze anos antes da
lei de anistia. Nesse outro julgado, o Supremo Tribunal Federal declarou
interpretar a lei à luz dos preceitos fundamentais da Constituição
Federal. Dois pesos e duas medidas para a mesma balança?
Tudo isso, sem falarmos no fato – gravíssimo – de que a
decisão proferida pela nossa mais alta Corte de Justiça, ao julgar a ADPF
nº 153, violou abertamente preceitos fundamentais do direito
internacional.
Ressalte-se, em primeiro lugar, que o assassínio, a tortura e o
estupro de presos, quando praticados sistematicamente por agentes
estatais contra oponentes políticos, são considerados, desde o término
da Segunda Guerra Mundial, crimes contra a humanidade; o que
significa que o legislador nacional é incompetente para determinar, em
relação a eles, quer a anistia, quer a prescrição.
Com efeito, o Estatuto do Tribunal Militar Internacional de
Nuremberg, de 1945, definiu como crimes contra a humanidade, em seu
art. 6, alínea c, os seguintes atos:
À guisa de conclusão
"Quem é o juiz do Supremo Tribunal Federal?", perguntou Rui
Barbosa[5]. E respondeu: "Um só é possível reconhecer: a opinião
pública, o sentimento nacional".
Essa respeitável opinião, certamente válida na época em que foi
emitida, já não é hoje admissível.
No início do século passado, a opinião pública era formada em
grande parte, entre nós, pelas manifestações publicadas na imprensa,
que não se achava, então, submetida a poder algum, estatal ou privado.
Hoje, porém, o conjunto dos meios de comunicação de massa, ou seja,
não apenas a imprensa, mas também o rádio e a televisão, estão
sujeitos à dominação de um oligopólio empresarial, que representa um
dos maiores sustentáculos do regime oligárquico. Não foi por outra
razão que o julgamento pronunciado pelo Supremo Tribunal Federal a
respeito da lei de anistia de 1979, salvo raras e honrosas exceções, não
mereceu nenhuma reprovação no conjunto dos meios de comunicação
social.
Mas há ainda outra razão para se recusar o alvitre de Rui
Barbosa acima lembrado. A partir da segunda metade do século XX,
criou-se um sistema supra-estatal de proteção dos direitos humanos,
consubstanciado em tribunais internacionais. A Convenção Americana de
Direitos Humanos de 1969, por exemplo, instituiu a Corte
Interamericana de Direitos Humanos, com competência para julgar
quaisquer casos de violação das suas disposições. O Brasil aderiu
formalmente àquela Convenção e acha-se, por conseguinte, submetido
à jurisdição da citada Corte.
Temos, pois, hoje, um juiz internacionalmente reconhecido do
nosso tribunal supremo. Doravante, o poder da espada já não é capaz
de desequilibrar, impunemente, a balança da Justiça.