Embora tal constatação possa nos trazer à tona uma série de (já acusadas)
pequenas e grandes inconsistências da ciência (e não apenas das ciências “moles”,
sociais), o objeto de nosso foco aqui é a comunicação e a cultura humanas, tal como
vêm sendo pesquisadas, narradas e consumidas nos centros do saber e, por extensão
vulgarizada, nas práticas do cotidiano.
A Implicância do Outro
Uma dessas dificuldades está relacionada a um sonho unificador de que o espírito
humano está prenhe, ao magnetismo irresistível que nos leva a buscar desesperadamente
afinidades, a recompor relacionamentos esgarçados, a justificar nossos fracassos e
incompetências, enfim, a apaziguar diferenças que escancaram a brecha original que se
deu com nossa expulsão do paraíso.
1
O termo “implicância” está aqui sendo utilizado com uma ambigüidade proposital para trazer o sentido
de “dar conseqüência” (implica em) e no sentido de atrapalhar, criara problemas (implicar com alguém).
2
2 “o tato não diz respeito apenas à pele mas à interação dos sentidos ... que nos possibilitam o contato”
Derrick de Kerckhove, in “A Pele da Cultura” (1995:80).
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reportam às nossas próprias dúvidas. Em outras palavras, como lembra Edgar Morin3,
que “os outros ... somos também nós”
A ciência da comunicação, construída como tal “après la lettre”, foi buscar numa
visão linear das tricotomias aristotélicas uma sustentação que pudesse justificar a
resistência antropocêntrica à insistência da alteridade. Segundo tais pressupostos,
estamos fora da natureza porque a natureza está fora de nós, um pensamento tautológico
e “autista” (tautismo) como classificou Sfez4, porque quer resolver de dentro algo que é
incapaz de perceber fora.
A questão do “ser” e do “não ser” passa a ser entendida e embalada para venda
como “o ser está sempre em vantagem sobre o não ser simplesmente porque é”. Poucos
levaram em consideração que o ser só o é porque o não ser não é. Ou seja, é a alteridade
que determina a existência de algo ou de alguém.
Caso a ciência da comunicação fosse constituída em tais bases, o tal receptor seria,
desde as mais remotas descrições do processo comunicativo, o elemento base para o
estabelecimento dos vínculos que produzem algo em comum (em comum [ic] ação).
Não se trata nem ao menos de se compartilhar entre emissor e receptor a
responsabilidade pelo processo porque a simples existência de alguém que recebe já
determina a existência de todo o processo: a recepção inclui, envolve e não pode
prescindir da emissão... ao passo que a emissão nem sempre encontra sua contrapartida
para iniciar a dinâmica das trocas.
3
- in “Sete Saberes...”, 2003
4
“tautismo é um “neologismo formado pela contração de tautologia (o repito logo provo, tão atuante na
mídia) e autismo (o sistema de comunicação torna-me surdo-mudo, isolado dos outros, quase autista)”
(SFEZ:1994,12-13)
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A alternância da alteridade
A vocação unificadora do mundo, a que nos referimos, é o maior sintoma (e
também a origem) de nossa insuportabilidade às diferenças, as quais podem ser
simbolizadas pela (muitas vezes) desagradável constatação (e dependência) da presença
operativa do outro em nossos projetos pessoais.
5
- fragmento 53 de Heráclito, traduzido e adaptado por Antonio Medina Rodrigues, no curso de Semiótica
da Literatura, Mito e Poesia, Programa de Pós-Graduação em Comunicação e Semiótica da Puc São
Paulo, 1990.
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Esses lugares existem, mas são, por vezes, considerados alternativos, desviantes
ou até mesmo inadequados aos propósitos de uma ciência que prega a
multidisciplinaridade e que sonha em abastecer-se de si mesma, afastando a tentação de
existir (Ciorán).
Abordar a comunicação de fora para dentro, parece-nos, então, ser o caminho mais
indicado para situarmos a horizontalidade de sua importância na religação (outra vez,
Morin) dos saberes e no reatamento de vínculos esgarçados pela especialização das
profissões no mercado de trabalho.
6
cf. “Ciência com Consciência” (PEA, Martin Codex:1994), “ O Método, vol III – O Conhecimento do
Conhecimento” (PEA, Martin Codex: 1987) e “Introdução ao Pensamento Complexo” (Piaget, Lisboa:
1990
7
in “Marxismo e Filosofia da Linguagem” (Hucitec: S. Paulo:1990)
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Bakhtin admite que as diferenças não necessitam ser conciliadas para que
produzam sentido ou gerem novos produtos culturais. Ao contrário, elas são
ingredientes ativos de um processo comunicativo que pode olhar o mundo porque sabe
que esse mundo encontra-se em si mesmo, num eterno e inconciliável conflito. Desse
conflito saem homens livres... e também escravos.
A Cultura e o Constrangimento
Não há lugar em que as diferenças mais se proliferem do que na cultura humana.
Se a comunicação um processo que busca afinidades em meio a diferenças, que não dá
conta de eliminar a complexidade, ainda que descubra nas identidades o apaziguamento
de alguns conflitos que ela mesma instaura, a cultura é o ecossistema no qual a
comunicação instaura seus “pólemos” e os amplia significativamente de forma a criar
redes vinculadoras ou textos, includentes e excludentes.
Pelo que sabemos até então, cultura é atributo humano, ou seja, é competência de
quem possui predisposições neurofisiológicas para atuar de forma metalingüística em
formatos de realidade que se auto-recriam. É também um fenômeno grupal, pois se
8
- Referimo-nos aqui às obras de Ivan Bystrina (Semiotik der Kultur), Yuri Lotman (La Semiosfera I, II e
III), às Teses Eslavas para uma Semiótica da Cultura ( in Irene Machado “ Escola de Semiótica”) e às
teses defendidas e expostas na obra, em três volumes, “ A Unidade do Homem” (Cultrix, São Paulo:
1978), organizada pelo CIEBAF (Centro Internacional de Estudos Bioantropológicos de de Antropologia
Fundamental), posteriormente transformado em Centro Royaumont Para uma Ciência do Homem. Estão,
também, nesse conjunto alternativo para o estudo da cultura as obras do francês Boris Cyrulnik ( “Os
Alimentos do Afeto” e “Memória de Homem e Palavra de Macaco”), fundados dos estudos de etologia
clínica humana e também de Desmond Morris (em “ O Animal Humano”), dentre outros.
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nutre de analogias e não pode acontecer fora das relações da vida social (política,
econômica, jurídica, etc...).
O conhecimento que torna coesa uma cultura não precisa ser expresso
didaticamente para ser compreendido e provocar adesão porque ele se transmite (ou se
impõe) pelo canal do afeto (no sentido que lhe empresta Cyrulnik, o da “afetação”),
num processo constrangedor de contaminação inevitável.
9
- Norval Baitello Júnior. O Animal que Parou os Relógios. Annablume. São Paulo :1997. pp. 25-27.
10
Pross, Harry, “Estructura Simbólica Del Poder”, pp.60-65
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Portanto, na raiz da cultura abre-se uma brecha, uma fenda pela qual as diferenças
se multiplicam, provocando aquilo que Homi Bhabha11 denomina um cenário de
discriminações necessárias ao exercício do poder (sobretudo político). As ideologias
necessitam desse espaço para estrategicamente instaurar “pólemos” que produzam
vencedores e vencidos, escravos e homens livres. As alternâncias na hegemonia desses
espaços não cicatrizam – senão de maneira paliativa – as feridas que acometem; muito
menos poupam os vencidos do constrangimento à vitória do outro.
Referencias:
Baitello Júnior, Norval. O Animal que Parou os Relógios. Annablume. São Paulo:
1997.
11
- Homi K. Bhabha, “O Local da Cultura”, Editora da UFMG, Belo Horizonte:1998, pp. 227 a 237.
12
- ver Jesus Martin-Barbero, “Dos Meios às Mediações – Comunicação, Cultura e Hegemonia”, Editora
da UFRJ, Rio:1997.
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Mitchell, Willian J. E-Topia. A vida urbana, mas não como a conhecemos. Editora do
Senac. São Paulo: 2002.
Moraes, Dênis de (org). Por uma outra comunicação. Record. São Paulo: 2003
Pross. Harry. Estructura Simbólica del Poder. Gustavo Gilli. Barcelona: 1980