1
Artigo apresentado no V Congreso Latinoamericano de Ciencia Política da ALACIP, realizado em Buenos
Aires de 28 a 30 de julho de 2010, sob o título: “Michel Foucault, governamentalidade e anarqueologia:
novas abordagens em Teoria Política”. Agradeço a Francisco Ripó pela leitura e sugestões.
Revista Brasileira de Ciência Política, nº 5. Brasília, janeiro-julho de 2011, pp. 81-107.
Contudo, uma leitura mais precisa mostraria que Foucault não somen-
te recusou o estatuto de historiador – em 1975 um estudante americano
pergunta-lhe se considerava-se filósofo ou historiador: “nem uma coisa nem
outra”, responde (FOUCAULT, 2001b, p. 466) – como conferiu à prática
historiográfica um forte traço nietzschiano, isto é político, afirmando que
a História lhe interessava como história do presente para a descoberta da-
quilo que somos hoje. Como notou Dean (1994), a perspectiva histórica de
Foucault retoma a noção de história efetiva de Nietzsche contra as filosofias
da história para apreender plenamente as transformações políticas da nossa
sociedade. É neste sentido que em Foucault a História é história política: não
a história dos objetos, mas “das práticas discursivas e não discursivas que
introduzem qualquer coisa no jogo do verdadeiro e do falso e a constitui
como objeto para o pensamento” (FOUCAULT, 2001b, p. 1.489). Por exem-
plo, ao fazer a história das práticas prisionais em Vigiar e punir, o objetivo
de Foucault foi o de descrever o exercício de um tipo de poder até então
pouco estudado pela Ciência Política: o poder disciplinar. E não obstante as
relações de poder estarem entre os aspectos significativos da análise política
(Dahl, 1980, p. 23), ao que parece, esta prática historiográfica singular que
Foucault chamou problematização, os historiadores souberam acolher com
maior sensibilidade que os politólogos.
A relação de Foucault com a política foi visivelmente marcada pela vi-
rulência de 1968 e pela sua militância no GIP (Grupo de Informação sobre
as Prisões). Durante um debate com Chomsky, gravado para um canal de
TV holandês em 1971, o entrevistador lhe pergunta “por que interessava-se
tanto pela política a ponto de preferi-la à filosofia”. Sua resposta é enfática e
ao mesmo tempo reveladora:
qual cegueira, qual surdez, qual densidade ideológica teria o poder de impedir meu
interesse pelo tema, sem dúvida, o mais crucial de nossa existência, ou seja, a sociedade
na qual vivemos, as relações econômicas pelas quais ela funciona, os sistemas que
definem as formas regulares, as permissões e as interdições que regem regularmente
nossa conduta? A essência de nossa vida é feita, após tudo, do funcionamento político
da sociedade na qual nos encontramos. (FOUCAULT, 2001a, p. 1.361)
rei. Diante de uma possível objeção contra o que seria sua incapacidade de
colocar a análise para além das relações de poder, pergunta:
não é um dos traços fundamentais de nossa sociedade que o destino assuma a forma
da relação com o poder, da luta com ou contra ele? O ponto mais intenso da vida,
aquele em que se concentra sua energia, é precisamente ali onde ela se choca contra
o poder, debate-se contra ele, tenta utilizar suas forças e escapar de suas armadilhas.
(FOUCAULT, 2001b, p. 241)
relevante não somente para renovar vários temas da Teoria Política, bem
como para a proposição de novos temas de estudo. Governamentalidade é a
descrição de um processo histórico pelo qual se constituíram o que Foucault
chamou de as três grandes economias de poder conhecidas no Ocidente:
Estado soberano, Estado administrativo e Estado de governo ou governa-
mentalizado. O que distingue essas três formações é a relação específica que
cada uma delas estabelece com o objeto de seu poder e os instrumentos daí
advindos. Os estudos foucaultianos da governamentalidade configuraram
uma nova forma de conceber o exercício do poder no Ocidente, distinta das
concepções marxista e liberal. A este respeito, Wendy Brown, escrevendo
no Handbook of political theory, chamou atenção para o fato de que, com os
estudos da governamentalidade, “Foucault transformou o cenário político-
teórico do poder num grau comparável aos efeitos que Marx-Nietzsche-
Weber produziram um século antes” (BROWN, 2006, p. 75).
Assim, a importância dos estudos da governamentalidade é hoje ampla-
mente reconhecida, sobretudo, graças ao vasto campo de saber inaugurado
pela escola anglófona governmentality studies. Todavia, no que concerne à
anarqueologia, a noção permanece praticamente inédita, tal como o curso
proferido por Foucault no Collège de France, no ano de 1980, no qual a
noção foi pela primeira vez elaborada, Du gouvernement des vivants2. O
melhor estudo que se tem notícia acerca da anarqueologia foi realizado
pela feminista espanhola Maite Larrauri (1989; 1999). Em seguida, a noção
é retomada por Negri e Hardt ao transcreverem a passagem que os autores
atribuíram a Foucault: “anarqueologia – método que apreende o poder como
não necessariamente aceitável (Du Gouvernement des Vivants)” (NEGRI e
HARDT, 1994, p. 292). E, por fim, a anarqueologia foi também citada em
Szakolczai (1998, p. 247) como “anarcheology of power”. A importância da
anarqueologia está no fato do prolongamento e da reelaboração que realiza
das análises da governamentalidade iniciadas por Michel Foucault em 1978.
Com a anarqueologia, Foucault investiga as práticas de governo no plano
discursivo e performático, tornando evidente os processos históricos pelos
quais verdade e subjetividade foram indexadas para a produção da obediência
no exercício do governo.
Ao leitor brasileiro é possível aproximar-se das instigantes elaborações de Foucault, realizadas no curso
2
o exercício do poder, esta prática muito singular da qual os homens não podem es-
capar, ou que escapam apenas por momentos, instantes, por processos singulares e
atos individuais ou coletivos; que coloca ao jurista, ao historiador, toda uma série de
problemas; esse exercício do poder como é possível regrá-lo e determiná-lo naquele
que governa? (FOUCAULT, 2004b, p. 314-315)
dos laços entre saber e poder para tornar-se capaz de se opor à verdade. Este
aspecto, diz ela, constitui a parte nodal do pensamento foucaultiano e a de
mais difícil compreensão.
Como lutar contra as verdades das ciências humanas que (...) me subjugam e domi-
nam uma vez que não posso deixar de percebê-las como verdades; ou ainda, como
liberar-se de uma verdade sem deixar de perceber que é verdade. (...) A empresa de
rejeitar a verdade do poder, empresa extremamente complicada visto que está nas
raízes mesmas do que somos, Foucault chamou-a de “anarqueologia”. “Anarqueologia”
é um jogo de palavras para sugerir que a tarefa de recusar o poder da verdade tem algo
de anarquismo epistemológico, já que se trata de mostrar que nenhum poder é neces-
sário e que, portanto, tampouco o poder da verdade o é. (LARRAURI, 1989, p. 124)
Você nunca adivinharia, a partir da avaliação de Foucault das mudanças nas ins-
tituições europeias durante os últimos trezentos anos, que durante esse período o
sofrimento decresceu consideravelmente, nem que as chances das pessoas escolherem
seus próprios estilos de vida cresceram consideravelmente. (RORTY, 1999, p. 259)
É preciso confiar na consciência política das pessoas. Quando você lhes diz: “vocês
estão em um Estado fascista, mas o ignoram”, as pessoas sabem que não é certo.
Quando lhes diz: “jamais as liberdades foram mais limitadas e ameaçadas como
agora”, as pessoas sabem que isso não é verdade. Quando é dito às pessoas: “os novos
Hitlers estão prestes a nascer sem que vocês se dêem conta”, elas sabem que é falso. Ao
contrário, se lhes fala de sua experiência real, dessa relação inquieta, ansiosa que elas
mantêm com os mecanismos de segurança – o que é canalizado em si, por exemplo,
numa sociedade inteiramente medicalizada? O que é canalizado, como efeito de
poder, nos mecanismos de Segurança Social que irão vos vigiar dia e noite? – então,
aqui se sentem melhor, sabem que não é o fascismo, mas qualquer coisa de novo.
(FOUCAULT, 2001b, p. 387)
desconhecer a especificidade de uma democracia dizer como e por que ela teve ne-
cessidade dessas técnicas [de coerção]. Que essas técnicas tenham sido recuperadas
pelos regimes de tipo totalitário, que as utilizaram em determinada maneira, é pos-
sível!, e não implica em suprimir as diferenças entre os dois regimes. Não é possível
falar em diferença de valor sem articulá-la sobre uma diferença analisável. Não se
trata de dizer: “isto é melhor que aquilo”, sem dizer em que consiste isto e aquilo.
(FOUCAULT, 2001b, p. 911)
Por essa razão Senellart (2002) afirmou que Foucault jamais negou as
diferenças existentes entre regimes democráticos e totalitários; o que fez
foi relativizar tanto quanto possível o constante hábito de opor esses dois
regimes termo a termo e, sobretudo, problematizou a tendência, tornada
quase natural em nossos dias, de pensar os primeiros como alternativa aos
segundos. Para Foucault, a diferença efetivamente existente é de grau não
de natureza, daí sua recusa em idealizar qualquer essência democrática para
supor nas sociedades liberais a negação radical dos sistemas totalitários.
A democracia, para ele, não era uma palavra vazia, mas tampouco consistia num
regime político, nem em uma forma de organização social dada. A democracia era,
antes de tudo, o esforço permanente dos governados para resistir à pretensão dos
governantes e expandir sua esfera de autonomia. (SENELLART, 2002, p. 43)
quanto a por que sejam bons, por que deveriam ser bons, ou por que seria
desejável tê-los” (MACPHERSON, 1978, p. 11). Segundo Macpherson, a
maioria dos teóricos políticos no campo da democracia liberal percebeu que a
plausibilidade do regime democrático repousa amplamente na maneira mais
ou menos eficaz com que as instituições sociais e econômicas modelam os
sujeitos políticos. E em geral, diz o autor, o que se tem visto, desde os séculos
XIX e XX, é “que o modo mais importante pelo qual todo o feixe de insti-
tuições sociais e relações sociais modela as pessoas como atores políticos é
pela maneira como modelam a consciência delas mesmas” (MACPHERSON,
1978, p. 12). Sendo assim, a análise recai não sobre a dimensão institucional
da democracia, mas sobre sua moralidade, visto que, como afirmou Avritzer,
uma “democracia depende, para a sua reprodução, não apenas daqueles pro-
cessos que ocorrem no sistema político strictu senso – aglutinação da opinião
pública em partidos, atividades parlamentares e eleições –, mas depende
também dos processos de formação e renovação de uma cultura política
democrática” (AVRITZER, 1996, p. 20). Em outras palavras, significa dizer
que, como pontuou Moisés, “sem crença nos mecanismos da democracia,
ninguém se dispõe a deixar o mundo da vida privada para ocupar o espaço
público, cuja dinâmica exige o esforço intenso de informação, de mobilização
e de organização” (MOISÉS, 1989, p. 131).
No seu esboço de mapeamento em “Teoria democrática”, Miguel (2005)
apontou cinco correntes de análise que hoje encontram maior ressonância
no debate político e acadêmico: a democracia liberal-pluralista, a democracia
deliberativa, o republicanismo cívico, a democracia participativa e o multicul-
turalismo. Ainda que estas cinco correntes não esgotem o debate em torno
da Teoria Democrática contemporânea, segundo Miguel (2005, p. 12), foi a
corrente deliberativa aquela que se tornou a principal alternativa teórica de
nossos dias. Seus principais teóricos são John Rawls, Jürgen Habermas e,
mais recentemente, John Dryzek. As análises deste último foram responsáveis
por integrar os estudos em governamentalidade no debate acerca da demo-
cracia, dando ênfase particularmente às questões acerca da normatividade
do discurso. Segundo Dryzek, Foucault
básicas sobre política que as pessoas compartilham entre si e que as tornam sujeitos
de regimes políticos. Sob este aspecto, o contemporâneo discurso hegemônico da de-
mocracia é precisamente a última fase da governamentalidade. (DRYZEK, 2000, p. 63)
o poder das palavras só se exerce sobre aqueles que estão dispostos a ouvi-las e a
escutá-las, em suma, a crer nelas. (...) O princípio do poder das palavras reside na
cumplicidade que se estabelece, por meio delas, entre um corpo social encarnado num
corpo biológico, o do porta-voz autorizado, e corpos biológicos socialmente moldados
para reconhecer suas ordens, mas também suas exortações, suas insinuações ou suas
injunções, e que são os “sujeitos falados”, os fiéis, os crentes. (BOURDIEU, 2000, p. 61)
participação não é um simples ‘fazer parte de’ (um simples envolvimento em algu-
ma ocorrência), e menos ainda um ‘tornado parte de’ involuntário. Participação é
movimento próprio e, assim, o exato inverso de ser posto em movimento (por outra
vontade), isto é, o oposto de mobilização. (SARTORI, 1994, p. 159)
Referências bibliográficas
AVELINO, Nildo. 2010. “Governamentalidade e anarqueologia em Michel
Foucault”. Revista Brasileira de Ciências Sociais, v. 25, n. 74, p. 139-157.
_______ & GODOY, Ana. 2009. “Educação, meio ambiente e cultura: alqui-
mias do conhecimento na sociedade de controle”. Educação em Revista,
v. 25, n. 3, p. 327-351.
Miller, Peter & Rose, Nikolas. 2008. Governing the present: administering
economic, social and personal life. Cambridge: Polity Press.
MIGUEL, Luis Felipe. 2005. “Teoria democrática atual: esboço de mapea-
mento”. BIB, n. 59, p. 5-42.
MOISÉS, José Álvaro. 1989. “Dilemas da consolidação democrática no Brasil”.
In: ALBUQUERQUE, José A. G. & MOISÉS, José Álvaro (orgs.). Dilemas
da consolidação da democracia. Rio de Janeiro: Paz e Terra.
POPKEWITZ, Thomas. 2000. “The denial of change in educational change:
systems of ideas in the construction of national policy and evaluation”.
Educational Researcher, v. 29, n. 1, p. 17-29.
_______. 2002. “How the alchemy makes inquiry, evidence, and exclusion”.
Journal of Teacher Education, v. 53, n. 3, p. 262-267.
_______. 2004. “The alchemy of the Mathematics curriculum: inscriptions
and the fabrication of the child”. American Educational Research Journal,
v. 41, n. 1, p. 3-34.
PROCACCI, Giovanna. 1993. Gouverner la misère: la question sociale en
France (1789-1848). Paris: éditions du Seuil.
RORTY, Richard. 1999. Ensaios sobre Heidegger e outros: escritos filosóficos.
Vol. 2. Trad. Marco A. Casanova. Rio de Janeiro: Relume Dumará.
SARTORI, Giovanni. 1994. A teoria democrática revisitada. Trad. Dinah de
A. Azevedo. São Paulo: Ática.
SEARLE, John R. 2002. Expressão e significado: estudos da teoria dos atos
da fala. Trad. Ana C. G. A. de Camargo e Ana L. M. Garcia. São Paulo:
Martins Fontes.
SENELLART, Michel. 2002. “Michel Foucault et la question de l’Europe”.
In: SILVESTRINI, G. (org.). Trasformazioni della politica: contributi al
seminario di teoria politica. Alessandria: Dipartimento di Politiche Pub-
bliche e Scelte Collettive, Università degli Studi del Piemonte Orientale
Amedeo Avogadro.
_______. 2006. As artes de governar. Trad. Paulo Neves. São Paulo: Ed. 34.
Szakolczai, Arpád. 1998. Max Weber and Michel Foucault: parallel life-
works. London: Routledge.
VEIGA-NETO, Alfredo. 2000. “Educação e governamentalidade neolibe-
ral: novos dispositivos, novas subjetividades”. In: PORTOCARRERO,
Resumo
No curso inédito Du gouvernement des vivants (1980), Foucault introduziu o tema da anar-
queologia que aborda o governo dos homens pela verdade. Este artigo procura situar a
anarqueologia na contribuição mais importante de Foucault para o debate com a Teoria
Política: os estudos em governamentalidade. Ao conferir maior grau de complexidade às
investigações de Foucault acerca do poder, a anarqueologia possibilita repensar a força
causal dos discursos na prática política e estabelecer interlocuções no debate sobre as
democracias liberais e a constituição do Sujeito democrático no interior do seu campo
reflexivo.
Palavras-chave: teoria política; democracia liberal; subjetividade; governamentalidade;
anarqueologia.
Abstract
In his unpublished lecture Du gouvernement des vivants (1980), Foucault introduced the
theme of the anarchaeology which discusses the government of men by the truth. This
article seeks to situate the anarchaeology within Foucault’s most important contribution
for the debate with the political theory: the governmentality studies. In giving a higher
degree of complexity to his investigations about power, the anarchaeology makes possible
rethinking the causal strength of discourses in political practice as well as establishing
interlocutions within the debate about liberal democracies and on the constitution of
the democratic subject within its reflexive domain.
Key words: political theory; liberal democracy; subjectivity; governmentality; anarchaeology.