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Nildo Avelino

Governamentalidade e democracia liberal


novas abordagens em Teoria Política

Ao contrário do que se passou no campo da História, a recepção de Michel


Foucault na Ciência Política ocorreu somente muitos anos após sua morte, e
de forma comparativamente muito modesta1. Enquanto Paul Veyne (1998),
ainda no final da década de 1970, descrevia como o pensamento foucaultia-
no revolucionara a História, no que concerne à Ciência Política foi preciso
esperar quase uma década após a morte do filósofo para o surgimento das
primeiras reflexões suscitadas pelo seu pensamento: o que ocorre apenas
no começo dos anos 1990, quando vem a público o livro organizado por
Burchell, Gordon e Miller (1991).
Uma explicação simplista consistiria em dizer que foi devido ao fato dos
estudos de Foucault concernirem efetivamente ao campo da História; fato
atestado no próprio título de suas principais obras: com efeito, Foucault es-
creveu não uma política, mas uma história da loucura e da sexualidade. Além
disso, dir-se-ia que o filósofo não foi apenas testemunha, mas protagonista
no importante processo de transformação do saber histórico iniciado pela
experiência dos Annales, ao valorizar e retomar, por exemplo, a história se-
rial, de Pierre Chaunu (1978). Depois de tudo, torna-se compreensível que
a acolhida de Foucault pelos historiadores tenha sido imediata.

1
Artigo apresentado no V Congreso Latinoamericano de Ciencia Política da ALACIP, realizado em Buenos
Aires de 28 a 30 de julho de 2010, sob o título: “Michel Foucault, governamentalidade e anarqueologia:
novas abordagens em Teoria Política”. Agradeço a Francisco Ripó pela leitura e sugestões.
Revista Brasileira de Ciência Política, nº 5. Brasília, janeiro-julho de 2011, pp. 81-107.

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Contudo, uma leitura mais precisa mostraria que Foucault não somen-
te recusou o estatuto de historiador – em 1975 um estudante americano
pergunta-lhe se considerava-se filósofo ou historiador: “nem uma coisa nem
outra”, responde (FOUCAULT, 2001b, p. 466) – como conferiu à prática
historiográfica um forte traço nietzschiano, isto é político, afirmando que
a História lhe interessava como história do presente para a descoberta da-
quilo que somos hoje. Como notou Dean (1994), a perspectiva histórica de
Foucault retoma a noção de história efetiva de Nietzsche contra as filosofias
da história para apreender plenamente as transformações políticas da nossa
sociedade. É neste sentido que em Foucault a História é história política: não
a história dos objetos, mas “das práticas discursivas e não discursivas que
introduzem qualquer coisa no jogo do verdadeiro e do falso e a constitui
como objeto para o pensamento” (FOUCAULT, 2001b, p. 1.489). Por exem-
plo, ao fazer a história das práticas prisionais em Vigiar e punir, o objetivo
de Foucault foi o de descrever o exercício de um tipo de poder até então
pouco estudado pela Ciência Política: o poder disciplinar. E não obstante as
relações de poder estarem entre os aspectos significativos da análise política
(Dahl, 1980, p. 23), ao que parece, esta prática historiográfica singular que
Foucault chamou problematização, os historiadores souberam acolher com
maior sensibilidade que os politólogos.
A relação de Foucault com a política foi visivelmente marcada pela vi-
rulência de 1968 e pela sua militância no GIP (Grupo de Informação sobre
as Prisões). Durante um debate com Chomsky, gravado para um canal de
TV holandês em 1971, o entrevistador lhe pergunta “por que interessava-se
tanto pela política a ponto de preferi-la à filosofia”. Sua resposta é enfática e
ao mesmo tempo reveladora:

qual cegueira, qual surdez, qual densidade ideológica teria o poder de impedir meu
interesse pelo tema, sem dúvida, o mais crucial de nossa existência, ou seja, a sociedade
na qual vivemos, as relações econômicas pelas quais ela funciona, os sistemas que
definem as formas regulares, as permissões e as interdições que regem regularmente
nossa conduta? A essência de nossa vida é feita, após tudo, do funcionamento político
da sociedade na qual nos encontramos. (FOUCAULT, 2001a, p. 1.361)

Com a mesma gravidade Foucault defendeu seu interesse pela política


ao escrever sobre as lettres de cachet ou ordens de prisão expedidas pelo

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rei. Diante de uma possível objeção contra o que seria sua incapacidade de
colocar a análise para além das relações de poder, pergunta:

não é um dos traços fundamentais de nossa sociedade que o destino assuma a forma
da relação com o poder, da luta com ou contra ele? O ponto mais intenso da vida,
aquele em que se concentra sua energia, é precisamente ali onde ela se choca contra
o poder, debate-se contra ele, tenta utilizar suas forças e escapar de suas armadilhas.
(FOUCAULT, 2001b, p. 241)

Foi desta forma que Foucault, recusando o estatuto de historiador e


filósofo, afirmou um eloquente interesse pela política. Mas em relação a
este interesse, a Teoria Política guardou um silêncio prudente. Preocupada,
talvez, com o que Ball (2004) chamou de “teorizações de primeira ordem”
relacionadas ao ordenamento social (justiça, equidade, legitimidade, repre-
sentação política etc.), é bem provável que naquele contexto a Teoria Política
estivesse pouco disposta a colocar em discussão os pressupostos de suas
próprias concepções. E foi, sobretudo, em relação a esses pressupostos que
a crítica de Foucault se dirigiu.
Logo após a aparição do primeiro volume da sua História da sexualidade,
Foucault (2001b, p. 231) afirmou que o essencial de seu trabalho foi “uma
reelaboração da teoria do poder” na qual afirma ter abandonado a concepção
tradicional do poder como mecanismo essencialmente jurídico que dita a
lei ou do poder como interdição com seus efeitos negativos de exclusão,
rejeição etc. Foi no âmbito dessa reelaboração que ele forjou os neologismos
governamentalidade e anarqueologia, ambos destinados a analisar relações
de poder sob diferentes aspectos: o primeiro no plano das racionalidades
e tecnologias de governo, e o segundo relacionado aos regimes de verdade
(AVELINO, 2010). Estas duas noções constituem a contribuição mais impor-
tante de Foucault para o debate com a Teoria Política, sendo preciso colocá-
las ao lado dos trabalhos de John Rawls, John Pocock, Quentin Skinner e
Jürgen Habermas, os quais, segundo Ball (2004, p. 15), foram decisivos para
o extraordinário impulso dado à disciplina a partir dos anos 1970.
No entanto, a contribuição dos estudos foucaultianos só encontraria
acolhida a partir dos anos 1990, quando os estudos da governamentalidade
produzem um impacto considerável, sobretudo nos países anglo-saxões,
provocando uma enorme produção discursiva que contribuiu de maneira

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relevante não somente para renovar vários temas da Teoria Política, bem
como para a proposição de novos temas de estudo. Governamentalidade é a
descrição de um processo histórico pelo qual se constituíram o que Foucault
chamou de as três grandes economias de poder conhecidas no Ocidente:
Estado soberano, Estado administrativo e Estado de governo ou governa-
mentalizado. O que distingue essas três formações é a relação específica que
cada uma delas estabelece com o objeto de seu poder e os instrumentos daí
advindos. Os estudos foucaultianos da governamentalidade configuraram
uma nova forma de conceber o exercício do poder no Ocidente, distinta das
concepções marxista e liberal. A este respeito, Wendy Brown, escrevendo
no Handbook of political theory, chamou atenção para o fato de que, com os
estudos da governamentalidade, “Foucault transformou o cenário político-
teórico do poder num grau comparável aos efeitos que Marx-Nietzsche-
Weber produziram um século antes” (BROWN, 2006, p. 75).
Assim, a importância dos estudos da governamentalidade é hoje ampla-
mente reconhecida, sobretudo, graças ao vasto campo de saber inaugurado
pela escola anglófona governmentality studies. Todavia, no que concerne à
anarqueologia, a noção permanece praticamente inédita, tal como o curso
proferido por Foucault no Collège de France, no ano de 1980, no qual a
noção foi pela primeira vez elaborada, Du gouvernement des vivants2. O
melhor estudo que se tem notícia acerca da anarqueologia foi realizado
pela feminista espanhola Maite Larrauri (1989; 1999). Em seguida, a noção
é retomada por Negri e Hardt ao transcreverem a passagem que os autores
atribuíram a Foucault: “anarqueologia – método que apreende o poder como
não necessariamente aceitável (Du Gouvernement des Vivants)” (NEGRI e
HARDT, 1994, p. 292). E, por fim, a anarqueologia foi também citada em
Szakolczai (1998, p. 247) como “anarcheology of power”. A importância da
anarqueologia está no fato do prolongamento e da reelaboração que realiza
das análises da governamentalidade iniciadas por Michel Foucault em 1978.
Com a anarqueologia, Foucault investiga as práticas de governo no plano
discursivo e performático, tornando evidente os processos históricos pelos
quais verdade e subjetividade foram indexadas para a produção da obediência
no exercício do governo.

Ao leitor brasileiro é possível aproximar-se das instigantes elaborações de Foucault, realizadas no curso
2

de 1980, pelos excertos recentemente publicados em Foucault (2010).

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Governar os homens pela verdade de si mesmo


O desdobramento dos estudos da governamentalidade possibilitado pela
anarqueologia dos saberes tem uma importância central para compreender
a elaboração do tema da estética da existência do chamado último Foucault.
Isto pode ser percebido quando a atenção é deslocada para o momento
da passagem de ambas as noções buscando apreender o que ocorreu na
elaboração reflexiva de Foucault no intervalo entre a governamentalidade
e a anarqueologia.
Definida no curso de 1978 como uma análise genealógica do poder
para descrever os caracteres específicos da tecnologia do poder do Estado
(FOUCAULT, 2004a), no curso do ano seguinte Foucault aprimora concei-
tualmente a análise da governamentalidade. Em O nascimento da biopolítica
afirma que seu objeto de estudo não foi a prática governamental real, ou seja,
o modo efetivamente como os governos governam. O objetivo foi estudar
a maneira refletida de governar ou o conjunto de reflexões sobre a melhor
maneira de governar; ou seja, o objetivo da governamentalidade é estudar a
“instância reflexiva” das práticas de governo e sobre as práticas de governo.
Foucault tomou por objeto de estudo os modos de conceitualização das
práticas de governo com a finalidade de apreender a maneira pela qual essa
conceitualização estabeleceu os objetos, as regras gerais e os objetivos de con-
junto que são próprios ao seu domínio. Trata-se, em suma, de um estudo da
racionalização da prática governamental no exercício da soberania política.
No final do curso, precisamente na última aula, Foucault diz:

o exercício do poder, esta prática muito singular da qual os homens não podem es-
capar, ou que escapam apenas por momentos, instantes, por processos singulares e
atos individuais ou coletivos; que coloca ao jurista, ao historiador, toda uma série de
problemas; esse exercício do poder como é possível regrá-lo e determiná-lo naquele
que governa? (FOUCAULT, 2004b, p. 314-315)

Segundo Foucault, as sociedades ocidentais conheceram duas grandes


formas de regrar o exercício do poder naquele que governa. Uma delas con-
sistiu, durante a Idade Média, em indexar o exercício do poder à sabedoria e à
verdade do texto religioso, à verdade da revelação e da ordem do mundo. Em
seguida, com o Estado moderno, o exercício do poder foi indexado não mais
à sabedoria religiosa, mas à sabedoria do Príncipe. Todavia, essa indexação

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conheceu na história duas formas distintas de racionalidades: num primeiro


momento, ela se deu sob a forma da Razão de Estado como racionalidade do
soberano na qual o poder de soberania ocupa um papel central. Mas, num
segundo momento, essa racionalidade deixou de assumir a forma unitária
da Razão de Estado e adotou a forma do pacto e do contrato social, agora
relacionados a uma série de novos problemas não mais ligados ao Príncipe,
mas ao mercado, à população e à economia.
Essa passagem da indexação do exercício do poder que leva da racionali-
dade do Príncipe para a racionalidade do contrato social foi considerada por
Foucault um ponto de clivagem e de transformação absolutamente impor-
tante na economia do poder. O que significa, afinal, indexar o exercício do
poder à racionalidade do contrato social? Significa, simplesmente, indexá-lo
sobre a racionalidade daqueles que são governados, e que são governados
de modo particular: “como sujeitos econômicos, como sujeitos de interesse,
como indivíduos que, para satisfazer seus interesses, utilizam de maneira
mais ou menos livre as regras e os objetos disponibilizados pelo mercado”
(FOUCAULT, 2004b, p. 314-315). Em outras palavras, o ponto de clivagem é
importante porque ele inaugura nossa modernidade determinando o modo
como nós somos governados hoje.
Com efeito, quando se apreende a questão da legitimidade do poder na
história do pensamento político desde o século XVII, percebe-se facilmente
como, das teorias contratualistas ao liberalismo clássico e contemporâneo,
a resposta a essa questão tornou inquestionável que o consentimento dos
governados deve ser a fonte originária e o único fundamento do poder po-
lítico legítimo. Em um plano conceitual, a noção de legitimidade expressa a
capacidade efetiva que possuiu um regime político de conquistar e manter
um apoio social majoritário, transformando a simples concordância em
adesão ativa e assegurando a obediência sem necessidade de recorrer ao uso
arbitrário da força (MELLO, 1989). Deste modo, a racionalidade política
do contrato, configurada pelo liberalismo dos séculos XVIII e XIX, e pelo
neoliberalismo de nossos dias, consiste em indexar o exercício do poder na
racionalidade daqueles sobre os quais o próprio poder é exercido. Foi assim
que, após a Razão de Estado, a racionalidade política do contrato introduziu
a exigência, tornada indispensável para o exercício do poder, deste elemento
que precedentemente tinha pouca importância: o Sujeito. O exercício do
poder será doravante uma atividade cuja indexação não é independente de

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uma subjetividade, de um Eu, de um Si. Daí a afirmação de Foucault segundo


a qual “a reflexão sobre a noção de governamentalidade não pode deixar de
passar, teórica e praticamente, pelo elemento de um sujeito que se definiria
pela relação de si consigo” (FOUCAULT, 2002a, p. 247).
Assim, é da tríade Poder, Governo e si mesmo que se ocupa a anarque-
ologia introduzida por Michel Foucault no curso Do governo dos vivos. Este
encadeamento faz a governamentalidade aparecer sob uma nova configura-
ção, a do “encontro entre as técnicas de dominação exercidas sobre os outros
e as técnicas de si” (FOUCAULT, 2001b, p. 1.604). Entretanto, a maneira
como ocorre esse encontro, quais são os objetos próprios do seu domínio
e no que ele constitui, são aspectos obscuros para os quais existem poucos
elementos na obra publicada de Foucault permitindo elucidá-los. Quais in-
terseções estabelecer, e como estabelecê-las, entre as técnicas de dominação
e as técnicas de si, é uma questão que o curso de 1980 permite responder de
uma maneira mais precisa. Uma visão rápida sobre a gênese do curso ajuda
compreender de que maneira.
Segundo Daniel Defert (2001, p. 77), a partir de janeiro de 1979, a his-
tória da confissão conduziu Foucault “a estudar os primeiros textos dos
Padres da Igreja, [João] Cassiano, [Santo] Agostinho, Tertuliano. Nasce
progressivamente uma nova matéria para o segundo volume da História da
sexualidade, “As Confissões da carne” [Les Aveux de la chair]: o estudo dos
primeiros textos cristãos orienta sua pesquisa genealógica em direção aos
textos latinos da Antiguidade tardia”. O curso que no Collège de France será
o meio pelo qual Foucault apresentará os resultados desses estudos sobre
os Padres da Igreja é Du gouvernement des vivants. Deste modo, o curso de
1980 foi inicialmente destinado a constituir o segundo volume da História da
sexualidade. Mas, como se sabe, isso não ocorre. Em 1982, Foucault publica
um artigo intitulado “O combate da castidade” na revista Communications;
o artigo, reproduzido nos Ditos e escritos, inicia-se dizendo que o “texto foi
extraído do terceiro volume da História da sexualidade” [grifo meu], e uma
nota dos organizadores complementa a informação dizendo que esse ter-
ceiro volume é “As confissões da carne. Nesta época o Uso dos prazeres não
havia sido cindido em dois volumes” (FOUCAULT, 2001b, p. 1.114). Quer
dizer, As confissões da carne passa a figurar não mais como segundo, mas
como terceiro volume da série História da sexualidade, colocado após O uso
dos prazeres. Sobre esta reorientação da série, Foucault dirá em entrevista

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que a dificuldade se colocou porque de início ele escreveu um livro sobre


sexualidade que, em seguida, foi colocado de lado (o 1º volume, A vontade
de saber); depois ele escreveu um livro sobre as técnicas de si cristãs no qual
a sexualidade desapareceu (As confissões da carne); em seguida, ele se viu
obrigado a reescrever pela terceira vez um livro no qual procurou manter
um equilíbrio entre um e outro (presume-se que seja O uso dos prazeres).
Tudo indica que, para equilibrar o tema da sexualidade, O uso dos prazeres
torna-se o 2º volume da série. Mas foi o volume As confissões da carne, “o
livro sobre o cristianismo”, que obrigou Foucault a rever o volume O uso
dos prazeres e cindi-lo em dois volumes para constituir o que será o terceiro
volume da série: O cuidado de si.
Depois de tudo, o livro As confissões da carne, pensado inicialmente
como 2º volume da série História da sexualidade, foi realocado para figurar
como o 4º volume; além disso, ele foi o volume responsável pela reorienta-
ção e reelaboração dos volumes Os usos dos prazeres e O cuidado de si. Por
quê? Deleuze forneceu uma resposta: é que o tema da estética da existência,
delineado pelos dois últimos volumes, possibilitou a Foucault conceber um
poder da verdade desvinculado da verdade do poder, ou seja, uma verdade
decorrente das formas de resistência. Foucault mostrou como os gregos
“dobraram a força, sem que ela deixasse de ser força”, relacionando-a consigo
mesma. Os gregos, “longe de ignorarem a interioridade, a individualidade,
a subjetividade, inventaram o sujeito, mas como uma derivada, como o
produto de uma ‘subjetivação’. Descobriram a ‘existência estética’, isto é, o
forro, a relação consigo, a regra facultativa do homem livre” (DELEUZE,
1995, p. 108). Mas tudo isso não ocorreu sem antes passar pelas técnicas
de si do cristianismo que, ainda segundo Deleuze, devem ter entristecido
muito Foucault. Aqui pode estar uma das razões pela qual, conforme Didier
Eribon, os editores de Foucault consideraram os manuscritos de As confissões
da carne como sendo o livro-chave da série.
Em todo caso, para fazer a genealogia do tipo de racionalidade governa-
mental que tem como traço principal o de indexar o exercício do poder sobre
a subjetividade do governado, Foucault realizou este longo recuo histórico
até as práticas cristãs de confissão. Por qual razão? Parece que uma questão
subjacente que atravessa a reflexão foucaultiana sobre o poder seja o pro-
blema da obediência. Se retomarmos o que foi dito sobre a técnica liberal e
neoliberal de indexação do exercício do poder na racionalidade do contrato

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social, ou seja, na racionalidade daqueles sobre os quais o poder será exer-


cido, como é óbvio, essa indexação somente será eficaz se a racionalidade
daqueles sobre os quais o poder é exercido estiver orientada, determinada,
direcionada, organizada. Em suma, a indexação do poder só será possível se
a racionalidade do governado estiver de algum modo ajustada ou disposta
para a produção da obediência: a produção de racionalidades suficientemente
obedientes aos objetivos do poder é um problema político historicamente
importante: “a arte de governar está inteiramente na capacidade de fazer-se
obedecer” (SENELLART, 2006, p. 37). Deste modo, a racionalidade do gover-
nado não pode ser produto do acaso, resultado espontâneo de processos que
escapam ao exercício do poder; ao contrário, é preciso que a racionalidade
do governado seja suficientemente suscitada, provocada e motivada pela e
para a obediência. O curso Do governo dos vivos descreve precisamente a
história genealógica dessa racionalidade direcionada para a produção da
obediência, mostrando de maneira contundente e decisiva que não há pro-
dução de obediência possível sem tecnologias de si. Foucault mostra que só
foi possível ao liberalismo e ao neoliberalismo indexar o exercício do poder
na racionalidade dos governados porque existe há séculos, da parte destes
sobre os quais se exerce o poder, práticas de relação de si consigo produtoras
de estados de obediência. É preciso uma relação de si consigo, são necessárias
tecnologias de si para realizar a governamentalização dos indivíduos. É por
esta razão que os estudos da governamentalidade serão focados, a partir de
1980, sobretudo na dimensão programática das artes de governar, isto é, sobre
os programas e racionalidades para o governo das condutas.
Por racionalidades Foucault entendia os conjuntos de prescrições calcula-
das e razoáveis que organizam instituições, distribuem espaços e regulamen-
tam comportamentos; neste sentido, as racionalidades induzem uma série de
efeitos sobre o real. “São fragmentos de realidade que induzem esses efeitos
de real tão específicos que são aqueles da separação do verdadeiro e do falso
na maneira pela qual os homens se ‘dirigem’, se ‘governam’, se ‘conduzem’ a si
mesmos e aos outros” (FOUCAULT, 2001b, p. 848). Portanto, é o problema
da verdade que está em jogo nas racionalidades: como estabelecer relações
de conhecimento recusando ao mesmo tempo o poder que a verdade exerce
sobre os homens? A questão parece trivial, mas envolve um aspecto político
bastante complexo. A feminista espanhola Maite Larrauri chamou atenção
precisamente para isso. O problema, segundo ela, é que não basta ter clareza

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dos laços entre saber e poder para tornar-se capaz de se opor à verdade. Este
aspecto, diz ela, constitui a parte nodal do pensamento foucaultiano e a de
mais difícil compreensão.

Como lutar contra as verdades das ciências humanas que (...) me subjugam e domi-
nam uma vez que não posso deixar de percebê-las como verdades; ou ainda, como
liberar-se de uma verdade sem deixar de perceber que é verdade. (...) A empresa de
rejeitar a verdade do poder, empresa extremamente complicada visto que está nas
raízes mesmas do que somos, Foucault chamou-a de “anarqueologia”. “Anarqueologia”
é um jogo de palavras para sugerir que a tarefa de recusar o poder da verdade tem algo
de anarquismo epistemológico, já que se trata de mostrar que nenhum poder é neces-
sário e que, portanto, tampouco o poder da verdade o é. (LARRAURI, 1989, p. 124)

O poder da verdade referido aqui, e contra o qual a anarqueologia se


opõe, opera sobretudo sob a forma da subjetividade: é no momento em que
somos chamados a nos constituir como Sujeito que aceitamos o império
dos discursos científicos e não científicos que tem por função revelar aquilo
o que verdadeiramente somos. Então, do mesmo modo como o austríaco
Paul Feyerabend, no começo dos anos 1970, propôs o anarquismo como
um “tratamento médico para a epistemologia e para a filosofia da ciência” e
localizou a possibilidade de uma metodologia e “ciência anarquista” no ato
de transgressão metodológica (FEYERABEND, 1993, p. 23), Foucault, de
maneira semelhante, propôs, com o nome de anarqueologia dos saberes, a
anarquia como atitude crítica diante do poder da verdade.

Interlocuções com a Teoria Política


Os interlocutores de Foucault na Teoria Política frequentemente aponta-
ram a incapacidade da sua leitura em conferir qualquer tipo de positividade
ao ordenamento político existente. Esta crítica foi pontuada por Rorty (1999)
ao imprimir ao filósofo francês a posição de “cavaleiro da autonomia”: alguém
tentado a servir à causa da liberdade humana e ao mesmo tempo unicamente
interessado na sua autonomia pessoal; um “estranho sem face, desarraigado,
apátrida para a humanidade e a história” (RORTY, 1999, p. 260). Esse último
aspecto teria impedido Foucault de qualquer avaliação positiva do estado
liberal. O elemento de bloqueio seria, como apontou Habermas (2000), a
unilateralidade na história foucaultiana das configurações do poder e da

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produção das subjetividades que ignora todos os ganhos de liberdade e de


expressão nas sociedades democráticas.

Você nunca adivinharia, a partir da avaliação de Foucault das mudanças nas ins-
tituições europeias durante os últimos trezentos anos, que durante esse período o
sofrimento decresceu consideravelmente, nem que as chances das pessoas escolherem
seus próprios estilos de vida cresceram consideravelmente. (RORTY, 1999, p. 259)

Segundo Rorty, a análise foucaultiana do poder introduz uma espécie de


“ambiguidade mutiladora” entre uma noção de poder que seria pejorativa
e outra que seria apenas descritiva. Essa ambiguidade fez com que a análise
apreendesse tudo – do jogo de xadrez à educação matemática – como atra-
vessado por estratégias de poder. Desta forma, nenhuma instituição social
seria justificável na medida em que todas, sem diferença, teriam por função
a exteriorização de poderes normalizantes.
O fundamento da sociedade liberal, na perspectiva de Rorty, não está
na criação ou na invenção de sujeitos, mas no tornar possível aos diferentes
sujeitos alcançarem seus propósitos privados. Neste sentido, ele declara
a incapacidade de Foucault em mostrar a existência de “algo errado com
qualquer rede de poder que esteja destinada a forjar indivíduos, indivíduos
com um sentido de responsabilidade moral” (RORTY, 1999, p. 262). Mas,
como mostrou Costa (1995), a crítica de Rorty é fortemente reducionista
uma vez que não leva em consideração a dimensão contingencial do sujei-
to e da linguagem na análise foucaultiana. Diferentemente de Rorty, para
Foucault (2001b), processos de liberação “são insuficientes para definirem
práticas de liberdade que serão em seguida necessárias para que um povo,
uma sociedade e seus indivíduos possam dar-se formas plausíveis e aceitáveis
de sua existência ou da sociedade política” (FOUCAULT, 2001b, p. 1.529).
Ao tomar como exemplo a sexualidade, dizia: melhor que clamar “liberemos
nossa sexualidade”, o problema mais urgente é procurar definir as práticas de
liberdade através das quais seria possível fazer jogar o prazer sexual, erótico
e amoroso. “Este problema ético da definição das práticas de liberdade é,
parece-me, muito mais importante do que a afirmação, um pouco repetitiva,
de que é preciso liberar a sexualidade ou o desejo” (FOUCAULT, 2001b, p.
1.529). Certamente, não é possível a existência de práticas de liberdade, ou
apenas é possível que elas existam de modo bastante limitado, sem pro-

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cessos de liberação. Mas aqui, os processos de liberação jogam o papel de


desfazerem estados de dominação nos quais “as relações de poder, ao invés
de serem móveis e de permitirem aos diferentes parceiros uma estratégia
que as modifique, encontram-se bloqueadas e cristalizadas” (FOUCAULT,
2001b, p. 1.529-1.530).
A liberação de arranjos coercitivos funciona, sem dúvida, como condição
histórico-política para o funcionamento das práticas de liberdade. Foram
necessários processos de liberação no campo da sexualidade para que o
poder opressivo do macho, do heterossexual etc., fosse contestado. “Mas,
essa liberação não faz aparecer o ser feliz e pleno de uma sexualidade em
que o sujeito alcançaria uma relação completa e satisfatória. A liberação abre
um campo para novas relações de poder que torna necessário seu controle
por práticas de liberdade” (FOUCAULT, 2001b, p. 1.530). Em outras pala-
vras, para Foucault a ênfase não recai na liberação do sujeito das relações
de coerção nas quais se encontra preso. A simples eliminação dos arranjos
repressivos sobre a sexualidade e a liberalização do sexo faria apenas emer-
gir um sujeito sexual recalcado. Nas palavras de Costa (1995, p. 132), “não
basta dar pão sexual aos famintos; é preciso que deixemos de produzir um
mesmo tipo de fome.”
A crítica de Habermas e Rorty da unilateralidade na análise do poder em
Foucault é ainda mais patente em relação à democracia, na medida em que a
reflexão foucaultiana a ela aplicada provocaria uma postura necessariamente
destinada a negá-la. Com isso, a análise de Foucault incorreria também no
que Robert Dahl (2005, p. 41) descreveu como “noção fácil”, segundo a qual
“as mudanças de regime político não têm muita importância.” Segundo Dahl,
ao invés de fazer tabula rasa do funcionamento do poder, mais pertinente
seria procurar perceber as diferenças que o caracterizam. Contudo, se é certo
que na análise foucaultiana inexiste qualquer atitude valorativa da democra-
cia, trata-se de uma ausência que não impede uma postura analítica sobre
o presente; ao contrário, reclama-a. Em uma entrevista sobre segurança e
Estado, Foucault dizia:

É preciso confiar na consciência política das pessoas. Quando você lhes diz: “vocês
estão em um Estado fascista, mas o ignoram”, as pessoas sabem que não é certo.
Quando lhes diz: “jamais as liberdades foram mais limitadas e ameaçadas como
agora”, as pessoas sabem que isso não é verdade. Quando é dito às pessoas: “os novos

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Governamentalidade e democracia liberal 93

Hitlers estão prestes a nascer sem que vocês se dêem conta”, elas sabem que é falso. Ao
contrário, se lhes fala de sua experiência real, dessa relação inquieta, ansiosa que elas
mantêm com os mecanismos de segurança – o que é canalizado em si, por exemplo,
numa sociedade inteiramente medicalizada? O que é canalizado, como efeito de
poder, nos mecanismos de Segurança Social que irão vos vigiar dia e noite? – então,
aqui se sentem melhor, sabem que não é o fascismo, mas qualquer coisa de novo.
(FOUCAULT, 2001b, p. 387)

O que está em jogo na análise é um esforço de diferenciação: a compre-


ensão recai precisamente sobre este “novo” caracterizado pelas sociedades
neoliberais e que não se confunde com os regimes totalitários. Foucault
coloca sob reserva a afirmação segundo a qual a passagem dos regimes
monárquicos administrativos para o regime liberal representou a transição
de um governo autoritário para outro mais tolerante. “Não quero dizer que
não tenha sido, mas tampouco quero dizer que o tenha. Quero dizer que
uma proposição semelhante é desprovida de qualquer sentido histórico ou
político” (FOUCAULT, 2004b, p. 64).
De um lado, é desprovida de sentido histórico na medida em que não
explica o processo de majoração dos efeitos de poder provocados pelas
tecnologias de segurança inauguradas pelas sociedades liberais no século
XVIII. Com o advento do liberalismo, diz Foucault, os

mecanismos de poder perderam o caráter lacunar que tinham no regime feudal e


sob os regimes absolutistas: ao invés de ter por objeto pontos, gamas, indivíduos,
grupos arbitrariamente definidos, o liberalismo encontrou mecanismos de poder
que podiam se exercer sem lacunas e penetrar o corpo social em sua totalidade.
(FOUCAULT, 2002b, p. 108)

Nas sociedades liberais, o poder se torna inevitável no sentido de que


seu exercício não dependerá mais dos caprichos da soberania, mas será
inscrito como lei fatal e necessária aplicada sobre cada um e todos. Portanto,
qual sentido histórico existe em afirmar
que esta monarquia administrativa deixava mais ou menos liberdade
que um regime, digamos, liberal que tem a tarefa de se encarregar conti-
nuamente, eficazmente, dos indivíduos, de seu bem-estar, saúde, trabalho,
suas maneiras de existir, se conduzir, até mesmo de morrer etc.? (Fou-
cault, 2004b, p. 64)

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94 Nildo Avelino

De outro lado, a proposição é desprovida de sentido político na medida


em que, para Foucault, a prática governamental do liberalismo faz bem mais
que garantir e respeitar as liberdades individuais. Mais precisamente, é uma
prática de governo profundamente “consumidora de liberdade” no sentido
em que exige para seu funcionamento certas liberdades indispensáveis, tais
como a de mercado, comércio, propriedade, circulação etc. Em outras pala-
vras, o liberalismo é obrigado a produzir todas essas liberdades dando-se por
tarefa organizá-las e, nesta medida, o governo liberal coloca-se como gestor
das liberdades, produzindo as condições pelas quais será possível ser livre.
No liberalismo o sujeito é liberado de ser livre. Mas, o problema, segundo
Foucault, é que o liberalismo, ao gerir e organizar as condições nas quais os
sujeitos serão livres,

instaura, no próprio coração da prática liberal, uma relação problemática, sempre


diferente, sempre móvel, entre a produção de liberdade e aquilo mesmo que, produ-
zindo-a, arrisca limitá-la e destruí-la. O liberalismo, no sentido em que o compreendo,
este liberalismo que é possível caracterizar como a nova arte de governar formada
no século XVIII, traz no seu coração uma relação de produção/destruição [com] a
liberdade (...). É preciso com uma mão produzir a liberdade, mas este gesto implica
por si mesmo que, com a outra mão, se estabeleçam limitações, controles, coerções,
obrigações apoiadas sobre ameaças etc. (Foucault, 2004b, p. 65)

Para poder proclamar as liberdades individuais, o liberalismo foi obri-


gado a colocar em funcionamento mecanismos de poder extremamente
coercitivos e que serviram para balancear as novas liberdades econômicas
e sociais. Não teria sido possível, segundo Foucault, liberar os indivíduos
sem a adoção de processos para a correção de suas condutas. Deste modo,
o que está em questão na leitura foucaultiana não é a rejeição das liberdades
liberais clássicas – rejeição que pode ser legítima do ponto vista ideológico,
mas que é estéril do ponto de vista analítico. A moda presente nas esquerdas
dos anos 1970 de denunciação sistemática e recusa global do Estado liberal
restringiu enormemente as possibilidades analíticas de uma reflexão crítica
das sociedades democráticas neoliberais.
Como pontuou Donzelot (2005, p. 62), a suspeita e o hábito de pensar
contra o liberalismo engendrou uma atitude de não pensá-lo, ignorando a
inteligência que lhe é subjacente e que compõe sua força de expansão quase
ilimitada. É, portanto, uma atitude analítica que Foucault estabelece com a

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Governamentalidade e democracia liberal 95

democracia ao investigar o que ele chamou de governamentalidade liberal.


“Ao falar de governamentalidade liberal não quero, pela própria utilização
dessa palavra ‘liberal’, sacralizar ou valorizar logo de entrada este tipo de go-
vernamentalidade liberal. Não quero dizer tampouco que não seja legítimo,
caso se queira, odiar o Estado” (FOUCAULT, 2004b, p. 197). Trata-se, ao
contrário, de estudar a especificidade efetiva dos regimes de poder. A esse
respeito, Foucault questiona por que, afinal, seria

desconhecer a especificidade de uma democracia dizer como e por que ela teve ne-
cessidade dessas técnicas [de coerção]. Que essas técnicas tenham sido recuperadas
pelos regimes de tipo totalitário, que as utilizaram em determinada maneira, é pos-
sível!, e não implica em suprimir as diferenças entre os dois regimes. Não é possível
falar em diferença de valor sem articulá-la sobre uma diferença analisável. Não se
trata de dizer: “isto é melhor que aquilo”, sem dizer em que consiste isto e aquilo.
(FOUCAULT, 2001b, p. 911)

Por essa razão Senellart (2002) afirmou que Foucault jamais negou as
diferenças existentes entre regimes democráticos e totalitários; o que fez
foi relativizar tanto quanto possível o constante hábito de opor esses dois
regimes termo a termo e, sobretudo, problematizou a tendência, tornada
quase natural em nossos dias, de pensar os primeiros como alternativa aos
segundos. Para Foucault, a diferença efetivamente existente é de grau não
de natureza, daí sua recusa em idealizar qualquer essência democrática para
supor nas sociedades liberais a negação radical dos sistemas totalitários.

A democracia, para ele, não era uma palavra vazia, mas tampouco consistia num
regime político, nem em uma forma de organização social dada. A democracia era,
antes de tudo, o esforço permanente dos governados para resistir à pretensão dos
governantes e expandir sua esfera de autonomia. (SENELLART, 2002, p. 43)

Deste modo, uma leitura foucaultiana da democracia consistiria em


investigar a maneira como são concebidos os processos de subjetivação em
seu campo reflexivo, procurando privilegiar a investigação acerca das rela-
ções entre sujeito e poder para levar em consideração a dimensão ética nos
modelos em teorização política: os enunciados que expressam o desejável,
bom ou correto; “enunciados quanto ao que seja um sistema político ou uma
sociedade política, como ele ou ela opera ou poderia operar, e enunciados

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96 Nildo Avelino

quanto a por que sejam bons, por que deveriam ser bons, ou por que seria
desejável tê-los” (MACPHERSON, 1978, p. 11). Segundo Macpherson, a
maioria dos teóricos políticos no campo da democracia liberal percebeu que a
plausibilidade do regime democrático repousa amplamente na maneira mais
ou menos eficaz com que as instituições sociais e econômicas modelam os
sujeitos políticos. E em geral, diz o autor, o que se tem visto, desde os séculos
XIX e XX, é “que o modo mais importante pelo qual todo o feixe de insti-
tuições sociais e relações sociais modela as pessoas como atores políticos é
pela maneira como modelam a consciência delas mesmas” (MACPHERSON,
1978, p. 12). Sendo assim, a análise recai não sobre a dimensão institucional
da democracia, mas sobre sua moralidade, visto que, como afirmou Avritzer,
uma “democracia depende, para a sua reprodução, não apenas daqueles pro-
cessos que ocorrem no sistema político strictu senso – aglutinação da opinião
pública em partidos, atividades parlamentares e eleições –, mas depende
também dos processos de formação e renovação de uma cultura política
democrática” (AVRITZER, 1996, p. 20). Em outras palavras, significa dizer
que, como pontuou Moisés, “sem crença nos mecanismos da democracia,
ninguém se dispõe a deixar o mundo da vida privada para ocupar o espaço
público, cuja dinâmica exige o esforço intenso de informação, de mobilização
e de organização” (MOISÉS, 1989, p. 131).
No seu esboço de mapeamento em “Teoria democrática”, Miguel (2005)
apontou cinco correntes de análise que hoje encontram maior ressonância
no debate político e acadêmico: a democracia liberal-pluralista, a democracia
deliberativa, o republicanismo cívico, a democracia participativa e o multicul-
turalismo. Ainda que estas cinco correntes não esgotem o debate em torno
da Teoria Democrática contemporânea, segundo Miguel (2005, p. 12), foi a
corrente deliberativa aquela que se tornou a principal alternativa teórica de
nossos dias. Seus principais teóricos são John Rawls, Jürgen Habermas e,
mais recentemente, John Dryzek. As análises deste último foram responsáveis
por integrar os estudos em governamentalidade no debate acerca da demo-
cracia, dando ênfase particularmente às questões acerca da normatividade
do discurso. Segundo Dryzek, Foucault

esboçou a ideia de uma “governamentalidade” que constitui os sujeitos de maneira a


torná-los melhor conduzidos pelo controle governamental. Tal controle não se exerce
por meio de coerções ou obrigações de qualquer tipo, mas por meio de suposições

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básicas sobre política que as pessoas compartilham entre si e que as tornam sujeitos
de regimes políticos. Sob este aspecto, o contemporâneo discurso hegemônico da de-
mocracia é precisamente a última fase da governamentalidade. (DRYZEK, 2000, p. 63)

Em outro escrito, mencionando a ênfase de Foucault sobre a força causal


dos discursos, Dryzek e Holmes afirmaram que, não obstante atribuírem sua
noção de discurso a este último, o tratamento que dispensam a sua análise é
retomado da noção de campo discursivo de Bourdieu. A partir dessa noção,
afirmam que “os atores políticos são constrangidos (e em parte constituídos)
pelas estruturas desse campo. Mas esses atores, por sua vez, por meios de
suas intervenções, contestações e interações, podem afetar os limites e as
estruturas desse campo, assim como a particular posição (discursiva) que
nele ocupam” (DRYZEK e HOLMES, 2002, p. 17). Mas o problema é que
este grau de intencionalidade concedido por Dryzek aos atores do campo
discursivo nas suas relações com as racionalidades governamentais reduz o
caráter estratégico (ou acontecimental) que Foucault atribuiu aos discursos.
Para Foucault, de um lado, as racionalidades governamentais devem ser
tomadas como estilos de pensamento e modos de tornar a realidade pensá-
vel numa tal direção visando torná-la condutível a determinados cálculos e
programas de governo. Trata-se do caráter discursivo da governamentalidade
ou, como chamou Dean (1999, p. 31), da episteme do governo: a conexão
entre governo e pensamento necessária para a análise das conceitualizações,
explicações e cálculos que habitam o campo governamental e que reclamam
a utilização da linguagem. Tão importante quanto o mercado, o comércio,
as instituições etc., é o campo discursivo, no interior do qual esses proces-
sos, problemas, lugares e formas de visibilidade são delineados e dotados
de significação. “É neste campo discursivo que o próprio ‘Estado’ emerge
como dispositivo histórico de uma variável linguística para conceitualizar e
articular modos de organização.” (MILLER e ROSE, 2008, p. 57) Assim, em
sentido foucaultiano, o discurso deve ser tomado não apenas como realidade
que traduz as lutas, mas também como aquilo pelo que se luta: o poder do
qual é preciso se apoderar (FOUCAULT, 1999).
Mas, de outro lado, a força causal dos discursos na política é devida,
sobretudo, ao caráter performativo do enunciado, e isto devido ao fato de
eles requererem instituições extralinguísticas: no geral, a classe dos atos de
fala performativos exige um sistema de regras constitutivas que se somam

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às regras constitutivas da linguagem. Conforme afirmou Searle (2002), para


a realização bem-sucedida dos enunciados performativos, isto é, para que
estes enunciados produzam a correspondência entre o conteúdo proposi-
cional e a realidade do mundo, é preciso que existam sempre instituições
extralinguísticas em relação às quais tanto o falante quanto o ouvinte ocupam
determinados lugares no seu interior. “É apenas por haver instituições como
a igreja, o direito, a propriedade privada, o Estado – e posições especiais do
falante e do ouvinte no interior dessas instituições – que se pode excomungar,
designar, doar e legar bens, declarar guerra” (SEARLE, 2002, p. 28). Estas
instituições investem o falante e o ouvinte do estatuto necessário à força
ilocucionária do enunciado. É neste sentido que, antes mesmo dos atores
estarem em condições para alterar as estruturas do campo discursivo, eles
mesmos encontram-se definidos pelas condições previamente dadas nos
jogos de linguagem. Em outros termos, não somente o campo discursivo,
mas os sujeitos que nele habitam são produtos da palavra, efeitos de discurso.
Existe, portanto, uma anterioridade ao campo discursivo que diz respeito ao
sujeito e as condições nas quais foram constituídas as subjetividades. Como
observou Bourdieu:

o poder das palavras só se exerce sobre aqueles que estão dispostos a ouvi-las e a
escutá-las, em suma, a crer nelas. (...) O princípio do poder das palavras reside na
cumplicidade que se estabelece, por meio delas, entre um corpo social encarnado num
corpo biológico, o do porta-voz autorizado, e corpos biológicos socialmente moldados
para reconhecer suas ordens, mas também suas exortações, suas insinuações ou suas
injunções, e que são os “sujeitos falados”, os fiéis, os crentes. (BOURDIEU, 2000, p. 61)

Tanto os elementos previamente dados na situação em que o enunciado


performativo é pronunciado quanto o estatuto do sujeito da enunciação são
indispensáveis para que a força ilocutória do discurso produza seus efeitos. O
enunciado performativo é definido por um jogo específico no qual o estatuto
daquele que fala e a situação em que ele se encontra estabelecem previamente
o que se pode e o que se deve dizer. Por esta razão, ao considerar o caráter
performativo da linguagem, a “análise do discurso político permite-nos
elucidar não apenas os sistemas de pensamento através dos quais as autori-
dades introduzem e especificam os problemas de governo, mas também os
sistemas de ação através dos quais conferem eficácia ao governo” (MILLER
e ROSE, 2008, p. 57).

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Governamentalidade e democracia liberal 99

Nessa perspectiva, são relevantes as análises de Barbara Cruikshank


(1999) e sua noção de tecnologias de cidadania (technologies of citizenships),
por meio das quais ela procurou analisar a maneira como domínios dis-
cursivos constituem sujeitos democráticos. Segundo Cruikshank, nas de-
mocracias liberais a participação democrática foi geralmente vista como
solução para a ausência de poder, autoestima, consciência política etc. O
discurso da participação democrática tem em conta sujeitos incapazes de se
rebelarem contra a exploração e desigualdade, que não agem em seu próprio
interesse e que, portanto, não exercem sua liberdade política. Neste sentido,
“o vocabulário analítico e normativo da teoria democrática está repleto de
formulações expressando ausências: ‘impotência’, ‘não participação’, ‘não
decisão’, e ‘infelicidade’ [counterfactuals]”. (CRUIKSHANK, 1999, p. 3) A
partir disso, seria preciso perguntar: como, na reflexão democrática, indi-
víduos apáticos e impotentes são transformados em sujeitos democráticos
ativos e participativos? Por quais meios o indivíduo constitui a si mesmo
como sujeito democrático? De que maneira a sujeição é tornada subjetivi-
dade participativa?
Nas democracias liberais, como assinalou Moisés (1989, p. 132), o que
importa saber é “quais são as instituições que se fazem necessárias, nos
processos de construção da democracia, para obter a credibilidade e, mais
do que isso, a franca adesão ou o consentimento ativo dos setores sociais que
constituem a base das sociedades capitalistas?” Segundo Moisés, a questão
comporta dois ângulos importantes:

1. quais são as instituições que podem facultar e, se necessário, estimular os diferentes


interesses a se expressarem, se agregarem influírem no processo de decisões que é
típico da democracia? 2. que complexo de instituições, vale dizer, que dinâmica ins-
titucional permite e, se necessário, convoca os cidadãos para controlarem a ação do
poder público que atua em seu nome, de tal forma que o princípio segundo o qual
a sua intervenção é essencial para alterar os rumos das coisas não seja apenas algo
abstrato, sem efeito prático? (MOISÈS, 1989, p. 132)

Desta forma, seria preciso admitir com Cruikshank que a governamen-


talidade das democracias liberais concerne menos com a autonomia e os
direitos individuais do que com a produção social de cidadãos. Sendo assim,
nos casos em que os indivíduos não agem em seu interesse próprio ou em
que parecem indiferentes ao seu desenvolvimento como cidadãos de pleno

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100 Nildo Avelino

direito, o limiar dos direitos individuais e liberdades perseguidos pelo Estado


liberal é frequentemente ultrapassado.

Acredito que os esquemas democráticos e de participação – que chamo tecnologias


de cidadania –, para corrigir as deficiências dos cidadãos, são endêmicos no interior
das sociedades democráticas. Tecnologias de cidadania operam em acordo com uma
racionalidade política para o governo das pessoas de maneira a promover sua autono-
mia, autossuficiência e engajamento político (...). Este é um modo de governar ligado
não a instituições e organizações violentas ou ao poder do Estado, mas assegurando
a complacência voluntária dos cidadãos. (CRUIKSHANK, 1999, p. 23)

Não obstante, as tecnologias de cidadania são simultaneamente coercitivas


e voluntárias, na medida em que regulam as ações do cidadão direcionando-
as para agir com certos objetivos e propósitos. Este fato, como observou
Cruikshank, possui graves implicações políticas, pois “quando dizemos hoje
que alguém é sujeito consentido, dependente ou apático, estamos avaliando
uma pessoa através de um ideal normativo de cidadania” (CRUIKSHANK,
1999, p. 24). Além disso, se for verdade, como afirmou Sartori (1994),

participação não é um simples ‘fazer parte de’ (um simples envolvimento em algu-
ma ocorrência), e menos ainda um ‘tornado parte de’ involuntário. Participação é
movimento próprio e, assim, o exato inverso de ser posto em movimento (por outra
vontade), isto é, o oposto de mobilização. (SARTORI, 1994, p. 159)

Então, é certo que este tipo de inscrição do cidadão pelas tecnologias


de cidadania, voltada para transformar a participação democrática em
movimento próprio, exigiu uma enorme extensão da governamentalidade
democrática que recobriu diversos campos estratégicos da prática social,
entre os quais a educação.
Além do eixo disciplinar corporal, historicamente a educação foi articu-
lada para a disciplina do eu sob a forma de sujeitos cidadãos (AVELINO e
GODOY, 2009). Após os movimentos da Revolução Francesa, a moral não
se estabeleceu apenas no plano da inteligência e da memória, mas implicou
também, como observou Procacci (1993, p. 242), um processo de educação
dos pobres nos valores sociais burgueses do século XIX. A educação não só
oferecia a ocasião para intervenção sobre os indivíduos no momento mesmo
em que se esboçava sua ignorância – a infância –, mas teve que elaborar

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Governamentalidade e democracia liberal 101

um saber apropriado para “simples operários”, que, segundo os economistas sociais,


tinham a única necessidade de saber ler, escrever e contar. Fora dessas poucas noções
elementares, a escola deveria sobretudo servir para inculcar uma disciplina desde a
mais tenra infância. (PROCACCI, 1993, p. 243)

A partir desse processo de moralização abre-se uma linha de intervenção


específica pela constituição do cidadão como sujeito politicamente respon-
sável e capacitado para participar nos processos de representação política.
As sociedades liberais possuem a característica, resultado de seu quadro
conceitual político, que exige tomar como referência o indivíduo na quali-
dade de sujeito autônomo e fonte do direito: o indivíduo não somente funda,
mas delimita e estabelece as fronteiras para o exercício do poder político.
Cruikshank (1999, p. 19) chamou atenção para o fato de que a distinção entre
cidadãos e súditos, feita por Tocqueville em 1830, serviu de parâmetro crítico
para separar as atividades e as qualidades do cidadão democrático de outras
formas de ação política. Para Tocqueville, o cidadão autogovernado é aquele
que possui capacidade e poder para participar da política, para agir sobre
seus interesses coletivos, desejos e objetivos. Com isso a noção de cidadania
torna a sociedade governável desde seu interior e provoca uma mutação de
sentido na noção de liberdade do cidadão: ela se torna o resultado de um
aprendizado da sociabilidade. Esboça-se um vasto projeto pedagógico que
tem por objetivo formar cidadãos, o sujeito da sociedade civil, fazendo da
sociabilidade individual o campo aberto e ilimitado de uma pedagogia que
traz em seu núcleo a noção de dever. O indivíduo será finalmente definido
por seu “dever de ser cidadão”, entendido no duplo sentido como sujeito
político de direitos e como “elemento subjetivo de um sistema de deveres
engendrados por suas relações com os outros” (Procacci, 1993, p. 307).
A noção de cidadania teve grande importância nas políticas escolares.
Alimentada por uma necessidade inerente ao quadro conceitual das socie-
dades democráticas, os discursos acerca da formação do cidadão ganharam
uma dimensão cada vez maior. A cidadania foi vista como única garantia
contra as tendências despóticas do Estado, na medida em que nela reside a
capacidade real dos indivíduos de governarem a si mesmos, interiorizando
a própria natureza do poder. A educação constituiu-se como via direta para
o self-government dos cidadãos, na direção de uma cidadania ativa. Foi
Dewey quem enfatizou, no começo dos anos 1940, a educação como o objeto

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102 Nildo Avelino

primeiro do neoliberalismo: “com isto desejo acentuar que sua tarefa é a de


ajudar a formação de hábitos da mente e do caráter, de padrões morais e
intelectuais, que estejam de algum modo mais concordes com a atual marcha
dos acontecimentos” (DEWEY, 1970, p. 64-65).
Os historiadores da educação perceberam como a inscrição pedagógica
do cidadão nos indivíduos foi uma função importante e uma das principais
características dos diversos regimes pedagógicos desde o final do século
XVIII até os nossos dias. Popkewitz (2000; 2002; 2004) sugeriu que essa
inscrição pedagógica da cidadania pode ser compreendida contempora-
neamente atuando como uma espécie de alquimia. Tomando os saberes
da administração como práticas, Popkewitz (2000, p. 18) sustentou que as
teorias do Currículo podem ser pensadas como desempenhando uma função
alquímica sobre saberes disciplinares, uma vez que transformam tradições
intelectuais bastante específicas (de historiadores, físicos ou matemáticos, por
exemplo) no interior de práticas pedagógicas. Ao considerar que os saberes
envolvem não apenas relações institucionais particulares, mas também sis-
temas de racionalidade que dispõem sobre a pesquisa, o ensino e o estatuto
profissional, ele evidencia como

a pedagogia escolar extrai continuamente sua existência ao mesmo tempo de dois


espaços sociais. Um é o espaço disciplinar em que as produções da ordem interna do
saber são criadas, sustentadas e transformadas. (...) O segundo espaço é o contexto
cultural e político em que funciona a disciplina. Hoje, a produção do saber discipli-
nar ocorre em relação com constelações sociais e culturais particulares, tais como as
agências estatais concernidas com questões de bem-estar sobre os efeitos da pobreza,
as organizações filantrópicas que têm como “alvo” certas questões sociais e grupos
na sociedade, as empresas comerciais interessadas em um certo consumismo etc.
(POPKEWITZ, 2000, p. 23)

A alquimia consiste em transferir a produção dos espaços sociais espe-


cíficos da investigação disciplinar para o interior de práticas pedagógicas
inseparáveis de contextos socioculturais mais amplos. Nesse movimento, a
pedagogia promove a tradução dos temas disciplinares em conteúdos psi-
cológicos. Os padrões de currículo da educação estão concernidos, funda-
mentalmente, “com crianças hábeis para pensar, para desenvolver habilidade
em comunicação, para produzir um trabalho de qualidade e para realizar

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Governamentalidade e democracia liberal 103

conexões com a comunidade” (Popkewitz, 2002, p. 262-263). Os padrões


curriculares em educação utilizam uma terminologia que prescreve um certo
desenvolvimento cognitivo para a criança através do qual ela se torna pessoa
autônoma e responsável no aprendizado, na resolução de problemas e no
processo reflexivo. Foi desta forma que, afirmou Veiga-Neto (2009, p. 17),
o currículo não apenas funcionou “como condição de possibilidade para a
lógica disciplinar”, mas também para a “eficiente maquinaria de fabricação
do sujeito moderno”. Fabricação que assume um duplo aspecto: de um lado,
“o sujeito é aquele que seu currículo diz quem ele é”; e de outro, o próprio
currículo “é aquilo que ele mesmo [o sujeito] (ou alguém por ele) registrou
quem ele é” (VEIGA-NETO, 2009, p. 19).
A peculiaridade do liberalismo, “uma sociedade formada por sujeitos
que são, cada um e ao mesmo tempo, objeto (governado de fora) e parceiro
(sujeito autogovernado) do governo” (VEIGA-NETO, 2000, p. 187), confere
uma ampla produtividade à educação: a de criar, aplicar e difundir tecnologias
de inscrição pedagógica de cidadãos. Hoje, mais do que nunca, a educação
faz mais que ensinar: ela é o imperativo político de uma economia de mer-
cado avançada cujo funcionamento exige não simplesmente trabalhadores
que saibam ler e escrever, mas “trabalhadores especializados capazes de ler
projetos e executar instruções escritas, engenheiros, técnicos, cientistas,
contadores, advogados, gerentes de todos os tipos” (DAHL, 2005, p. 86).
Depois de tudo, é provável que estejamos experimentando plenamente em
nossos dias aquilo que no tempo de Dewey (1970, p. 237) não passava de
uma aposta importante dos regimes democráticos: “a extensão à democra-
cia da moral científica até fazê-la parte do equipamento ordinário de cada
indivíduo comum”. Essa massiva sobreposição estratégica é um dos traços
políticos importantes de nossas atuais sociedades democráticas, sobre os
quais os estudos em governamentalidade e anarqueológicos ajudam elucidar.

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Resumo
No curso inédito Du gouvernement des vivants (1980), Foucault introduziu o tema da anar-
queologia que aborda o governo dos homens pela verdade. Este artigo procura situar a
anarqueologia na contribuição mais importante de Foucault para o debate com a Teoria
Política: os estudos em governamentalidade. Ao conferir maior grau de complexidade às
investigações de Foucault acerca do poder, a anarqueologia possibilita repensar a força
causal dos discursos na prática política e estabelecer interlocuções no debate sobre as
democracias liberais e a constituição do Sujeito democrático no interior do seu campo
reflexivo.
Palavras-chave: teoria política; democracia liberal; subjetividade; governamentalidade;
anarqueologia.

Abstract
In his unpublished lecture Du gouvernement des vivants (1980), Foucault introduced the
theme of the anarchaeology which discusses the government of men by the truth. This
article seeks to situate the anarchaeology within Foucault’s most important contribution
for the debate with the political theory: the governmentality studies. In giving a higher
degree of complexity to his investigations about power, the anarchaeology makes possible
rethinking the causal strength of discourses in political practice as well as establishing
interlocutions within the debate about liberal democracies and on the constitution of
the democratic subject within its reflexive domain.
Key words: political theory; liberal democracy; subjectivity; governmentality; anarchaeology.

Recebido em outubro de 2010.


Aprovado em dezembro de 2010.

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