EULER JANSEN**
INTRODUÇÃO
Há algum tempo, os princípios eram abstraídos das normas e, por isso, não se podia
relegá-las por conta daqueles. Entretanto, a partir do momento que foram assegurados na
Constituição, contam, atualmente, com mais força que as leis e chegam a pedir a inaplicabilidade
dessas, quando contrariados.
Dentre as garantias constitucionais, uma das mais festejadas é o devido processo legal.
Pretendemos analisar minuciosamente este instituto jurídico do processo constitucional, desde o
seu já longínquo nascedouro, estabelecendo sua efetiva importância e mostrando tudo que o seu
conceito envolve e suas facetas de atuação.
Atinente ao devido processo legal, que de logo chamamos de contemporâneo, ou
melhor, de indispensável a qualquer tempo e lugar, traçaremos uma abordagem que o
correlaciona com o atual princípio da proporcionalidade ou razoabilidade.
Trata-se, de forma simples, o tema do devido processo legal, não esquecendo das suas
inovações e interações com outros princípios. Afinal, raro hodiernamente encontramos petição,
parecer ou sentença que não louve o devido processo legal, que não o enalteça ou o busque
tenazmente e tudo isso, como veremos, de forma extremamente merecida.
1 ACOMPANHAMENTO HISTÓRICO
O primeiro ordenamento que teria tratado desse princípio foi a Magna Carta1 do rei John
Lackland (João “Sem-Terra”), de 15 de junho de 1215, quando o seu art. 39 se referiu a legem
terrae, termo posteriormente traduzido para a língua inglesa como law of the land, sem, contudo,
mencionar a expressão que hoje conhecemos, due process of law.
Em 1354, ainda na Inglaterra do rei Eduardo III, no conhecido Statute of Westminster of
*
Artigo elaborado em agosto de 2003.
**
Euler Paulo de Moura Jansen é juiz de Direito da 3ª Vara de Bayeux/PB, professor de Direito Processual Penal
(ESMA/PB) e do módulo de Sentença Criminal (FESMIP/PB), especialista lato sensu em Direito Processual
Civil (PUC/RS) e em Gestão Jurisdicional de Meios e de Fins (UNIPÊ/PB) e autor do livro Manual de Sentença
Criminal (Renovar-RJ, 2006).
1
Escrita originalmente em Latim, idioma dos intelectuais da época. Disponível nessa versão na Internet em
http://www.thelatinlibrary.com/magnacarta.html. Acesso em 22 de agosto de 2003.
2
the Liberties of London, por um legislador desconhecido, foi utilizada a expressão definitiva2 e,
de forma mais importante, incorporado aquele texto aos dispositivos da Common Law. Há de se
admitir, no entanto, que durante toda essa época, o instituto era meramente formal, sem
utilização e sem expressão.
A Constituição dos Estados Unidos da América3, onde muito se desenvolveu o devido
processo legal, não trata originalmente do instituto, sendo abordado explicitamente nas suas
emendas, na 5ª e na 14ª Emenda4 5. Na primeira emenda referida, a cláusula due process of law
apareceu pela primeira vez ao lado do trinômio “vida, liberdade e propriedade” e, na segunda,
sofreu grande transformação-evolução, passou a significar também a “igualdade na lei”, e não só
“perante a lei”, além de marcar a sua utilização efetiva. Tais inserções deram-se pela tendência
de acompanhar a evolução das Constituições de alguns Estados, como Maryland, Pensilvânia e
Massachusetts, que já contavam com a garantia em testilha, pois, por sua vez, acompanhavam as
Declarações de Direitos das Colônias de Virgínia, Delaware, Carolina do Norte, Vermont e de
New Hampshire, posteriormente transformados em Estados federados.
Na América Latina, a Argentina e o México, desde o nascedouro de suas Constituições,
em 1853 e 1857, respectivamente, já contavam com o instituto6.
Na Europa continental, a Itália e a Alemanha, países onde há enorme aprofundamento
científico no direito processual serviram de exemplo para os demais, como Espanha e Portugal.
A Declaração Universal dos Direitos do Homem (Paris, 1948), a 6ª Convenção Européia
Para Proteção dos Direitos Humanos e Liberdades Fundamentais (Roma, 1950) e o Pacto
Internacional de Direitos Civis e Políticos das Nações Unidas (1966) consagram proteções e
garantias individuais que denotam o encampar daquele princípio.
No Brasil, é pacífico entre os doutrinadores que o princípio do devido processo legal foi
abraçado por todas as Constituições pátrias, desde 1924, em especial a de 1967 e Emenda
Constitucional nº 01, de 1969, pois, quando consignaram os princípios da ampla defesa, do
contraditório e da igualdade, teriam, tacitamente, aceitado a existência daquele.
Impossível olvidar a nossa Constituição de 1988, adjetivada “cidadã”, que explicitamente
2
None shall be condemned without trial. Also, that no man, of what estate or condition that he be, shall be put out
of land or tenement, nor taken or imprisoned, nor disinherited, nor put to death, without being brough to answer
by due process of law. NERY JUNIOR, Nelson. Princípios do processo civil na Constituição Federal. 7. ed. rev e
atual com as Leis 1-0.352/2001 e 10.358/2001 – São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2002. pg. 33. nota 6.
3
Disponível na Internet em http://www.house.gov/Constitution/Constitution.html. Acesso em 22 ago 2003.
4
No person shall be held to answer for a capital, or otherwise infamous crime, unless on a presentment or
indictment of a Grand Jury, except in cases arising in the land or naval forces, or in the Militia, when in actual
service in time of War or public danger; nor shall any person be subject for the same offence to be twice put in
jeopardy of life or limb; nor shall be compelled in any criminal case to be a witness against himself, nor be
deprived of life, liberty, or property, without due process of law; nor shall private property be taken for public
use, without just compensation. Disponível na Internet em http://www.house.gov/ Constitution/Amend.html.
Acesso em 22 ago 2003.
5
All persons born or naturalized in the United States, and subject to the jurisdiction thereof, are citizens of the
United States and of the State wherein they reside. No State shall make or enforce any law which shall abridge
the privileges or immunities of citizens of the United States; nor shall any State deprive any person of life,
liberty, or property, without due process of law; nor deny to any person within its jurisdiction the equal
protection of the laws. Idem. Idem.
6
THEODORO JÚNIOR, Humberto. A garantia fundamental do devido processo legal e o exercício do poder de
cautela no Direito Processual Civil. Revista dos Tribunais, São Paulo, a. 80, v. 665, mar. 1991. p. 11.
3
estabeleceu, no art. 5º, inciso LIV: “ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem o
devido processo legal”.
Sabemos que a Magna Carta não teve, na sua gênese, a intenção mais pura de servir à
cidadania, à democracia ou ao povo em geral, posto criada como uma espécie de garantia para os
nobres, do baronato, contra os abusos da coroa inglesa. Entretanto, ela continha institutos
originais e eficazes do ponto de vista jurídico para a repressão dos abusos do Estado, que até
hoje se fazem reluzentes em praticamente todas as constituições liberais do mundo.
2 COMPREENSÃO E IMPORTÂNCIA
7
DONADEL, Adriane; et al. As garantias do cidadão no processo civil. Org. Sérgio Gilberto Porto Alegre:
Livraria do Advogado, 2003. p. 263.
4
Due process não pode ser aprisionado dentro dos traiçoeiros lindes de uma fórmula...
‘due process’ é produto da história, da razão, do fluxo das decisões passadas e da
inabalável confiança na força da fé democrática que professamos. ‘Due process’ não é
um instrumento mecânico. Não é um padrão. É um processo. É um delicado processo de
adaptação que inevitavelmente envolve o exercício do julgamento por aqueles a quem a
Constituição confiou o desdobramento desse processo9.
O devido processo legal, assim, não tem uma definição estanque, fixa ou, muito menos,
perene. Isso permite a sua mutabilidade, adaptação gradual ou, principalmente, evolução, de
acordo com a demanda da sociedade.
Luiz Rodrigues Wambier cita:
Arturo Hoyos entende que o princípio do devido processo legal está inserido no
contexto, mais amplo, das garantias constitucionais do processo, e que somente
mediante a existência de normas processuais, justas, que proporcionem a justeza do
próprio processo, é que se conseguirá a manutenção de uma sociedade sob o império do
Direito10.
Como veremos, o devido processo legal, foi concebido e conceituado durante muito
tempo como amparador ao direito processual, buscando uma adequação do processo à ritualística
prevista, praticamente confundindo-se ao princípio da legalidade. Ele ganhou força expressiva no
direito processual penal, mas já se expandiu para processual civil e até para o processo
administrativo e processo tributário. Numa nova fase, encontra-se invadindo a seara do direito
material.
O devido processo legal encontra-se, como já declinado supra, expresso no art. 5º, LIV,
da Constituição Federal, onde refere-se aos bens jurídicos da liberdade e da propriedade.
Em sentido genérico, conforme a doutrina pátria e americana, a due process clause visa à
tutela do trinômio “vida, liberdade e propriedade”.
Fazendo uma breve análise comparada do instituto, vemos que ele, entre nós, se encontra
desassociado do elemento “vida”, daquele trinômio. Tal elemento não deveria ter sido omitido.
Ora, ou o legislador constituinte esqueceu-se que no nosso país existe efetivamente a pena de
morte11, ou não imaginou que passasse pela mente do intérprete que o bem da vida não estaria
protegido, vez que bens que podemos considerar menores como a liberdade e a propriedade
estão. A segunda, apesar de mais segura, não é de boa técnica legislativa.
A vida não se refere apenas ao arrebate da vida, mas também aos valores permitem um
melhor exercício dela. Assim, o lazer, a honra, a intimidade, entre outros direitos que geram
“qualidade de vida”.
8
DINAMARCO, Cândido Rangel. Instituições de Direito Processual Civil
9
BOLQUE, Fernando César. A efetividade dos direitos fundamentais (art. 5º da Constituição Federal) e o
princípio da razoabilidade das leis: a atuação do Ministério Público. Disponível na Internet: <http://bus
calegis.ccj.ufsc.br/arqui vos/civel%2006.pdf>. Acesso em 22 ago 2002.
10
HOYOS, Arturo. Apud WAMBIER, Luiz Rodrigues. Anotações sobre o princípio do devido processo legal.
Revista dos Tribunais, São Paulo, a. 78, v. 646, p. 33-40, ago. 1989. p. 34.
11
Para os Crimes Militares em Tempo de Guerra, conforme apregoam os arts. 55, a, e 355 usque 397 do Código
Penal Militar, Decreto-Lei 1.001, de 21 de outubro de 1969.
5
12
RANGEL, Paulo. Direito Processual Penal. 7. ed. rev. ampl. atual. Lumen Juris: Rio de Janeiro, 2003. p. 04.
13
ARAÚJO CINTRA, Antônio Carlos de; GRINOVER, Ada Pellegrini; DINAMARCO, Cândido Rangel. Teoria
Geral do Processo. 14ª ed. São Paulo: Malheiros, 1998. p. 56.
6
julgamento regular, em que lhe seja assegurada ampla defesa) e de leis retroativas (ex post facto
law), além da vedação de auto-incriminação forçada (self incrimination), do julgamento duas
vezes pelo mesmo fato (double jeopardy) e do direito à ampla defesa e ao contraditório.
A doutrina, mesmo ciente da vigência da cláusula due process of law nas constituições
anteriores e do seu alcance a todos os tipos de procedimentos, debruçou-se especialmente na sua
aplicação ao direito processual penal.
Convém lembrar também da sua aplicação ao direito processual civil, sendo indiscutível
que nesse campo, entre outros, garante o direito à citação, do conhecimento do teor da acusação,
de julgamento rápido e público, à igualdade de partes, à proibição da prova ilícita, à gratuidade
da justiça ou ao desembaraçado acesso a essa, ao contraditório, ao juiz natural e imparcial, ao
duplo grau de jurisdição, à ampla defesa.
Resumindo o que foi dito sobre este importante princípio, verifica-se que a cláusula do
procedural due process of law nada mais é do que a possibilidade efetiva de a parte ter
acesso à justiça, deduzindo pretensão e defendendo-se do modo mais amplo possível,
isto é, de ter his day in Court, na denominação genérica da Suprema Corte dos Estados
Unidos14
A título de esclarecimento sobre essa expressão his day in, ela é utilizada nos Estados
Unidos como nós brasileiros, dizemos num restaurante, “quero tudo que tenho direito”. Assim,
verifica-se que esse princípio visa a tornar o processo judicial ou administrativo pleno de direitos
para a parte, “na corte”, em juízo.
14
NERY JUNIOR, Nelson. Princípios do Processo Civil na Constituição Federal. 7. ed. rev e atual com as Leis 1-
0.352/2001 e 10.358/2001 – São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2002, p.40.
7
segundo W. Holmes, um real substancial nexo com o objetivo que se quer atingir”15.
Em verdade, o devido processo legal material não apresenta limites e, pode abranger
quaisquer direitos que a imaginação permita conceber.
15
ADIn n° 1511-7 DF - Medida Liminar, julgado em 14.08.1996
16
É comum os juízes do Bundesverfassungsgericht (Corte Constitucional Alemã) adotarem a proporcionalidade
como critério balizador de suas decisões.
17
Em Portugal a proibição de excesso é mandamento constitucional expresso, ex vi do art. 18, 2, da Constituição
lusitana: "A lei só pode restringir os direitos, liberdades e garantias nos casos expressamente previstos na
Constituição, devendo as restrições limitar-se ao necessário para salvaguardar outros direitos ou interesses
constitucionalmente protegidos". Disponível em <http://www.portugal.gov.pt/pt/Sistema+Politico/Constituicao/
Constituicao_p02.htm> Acesso em 27 ago 2003.
8
18
BULOS, Uadi Lammêgo. Constituição Federal anotada. 4. ed. ver. e atual. Até a Emenda Constitucional n.
35/2001. São Paulo : Saraiva, 2002. p. 242.
19
Uma visão do direito, muito difundida no início dos anos noventa, nascida do abraçar de jovens magistrados
gaúchos, vinculando sua aplicação à justiça, mesmo que para isso seja necessário inobservar a norma jurídica.
20
O princípio do devido processo e a razoabilidade das leis. Disponível em <http://www.tex.pro.
br/wwwroot/processocivil/oprincipiododevidoprocessoearazoabilidadedasleis.htm>. Acesso em 23 de agosto de
2003.
9
CONCLUSÕES
A força desse princípio é imensurável, mas não devemos nos privar de utilizá-lo somente
porque ele pode cair em mãos inescrupulosas, posto que o correto é que o utilizemos com
responsabilidade para que nossa cidadania evolua e, conseqüentemente, evoluamos
individualmente e socialmente.
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