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ENTRE FOTOGRAMAS, SONS E CONCEITOS:

AMOSTRAS DE FILOSOFIA NO CINEMA E NA MÚSICA

Gerson Luís Trombetta*


gersont@upf.br

Introdução

O que nos motiva neste artigo é a possibilidade de apresentar


um recorte dentro das relações entre arte (especificamente o cinema
e a música), ciência e filosofia. Ainda que existam especificidades
claras em cada uma dessas expressões do pensamento humano,
interessa-nos enfocar mais os momentos de “partilha”, os momentos
em que as fronteiras se tornam mais flexíveis e nos vemos diante de
uma riqueza de conteúdo que atinge não somente a nossa capacidade
de articular conceitos, fatos e experiências, mas também nossa
capacidade de perceber e sentir. Neste particular, compartilhamos
com a posição de Nelson Goodman que dilui qualquer hierarquia
entre as diversas formas de conhecimento. Os traços gerais de sua
epistemologia servirão de parâmetro tanto para sustentar o valor
cognitivo comportado pela arte como para ver nela a exemplificação e
a compreensão de conceitos e perspectivas filosóficas.
Para realizar esse propósito, organizamos o trabalho em cinco
momentos. Inicialmente (1) apresentamos os aspectos centrais da
epistemologia de Goodman, dando destaque à visão construtivista e à
idéia de que, no território do conhecimento, o que podemos dispor
são versões simbólicas do mundo que adotamos conforme seu
potencial explicativo. Em seguida (2), descrevemos rapidamente
como a arte e o discurso científico (e por que não a própria filosofia)
são sistemas simbólicos que realizam a mesma função, o que exigirá
(3) um detalhamento de como a arte realiza sua função simbólica,

*
Doutor em Filosofia; professor do Curso de Filosofia e do Programa de Pós-
Graduação em História da Universidade de Passo Fundo
2

destacando especialmente o conceito de exemplificação. No quarto


momento (4), pontuamos brevemente as características mais cruciais
dos sistemas simbólicos estéticos que garantem o valor da arte no
mesmo patamar dos demais discursos. (científico e filosófico) Por fim,
a título de “experimentar” a teoria delineada, apresentamos uma
breve análise do filme Laranja mecânica, de Stanley Kubrick,
enfatizando sua trilha sonora e como os efeitos conseguidos na
relação entre fotogramas e sons exemplificam conceitos filosóficos,
de modo especial os de racionalidade e irracionalidade. A idéia aqui
não é, evidentemente, esgotar uma interpretação do filme, mas tão
somente ressaltar como fotogramas e sons deixam ver e ouvir
propriedades dos conceitos filosóficos.

1. Compreender é construir mundos simbólicos

Nelson Goodman é um dos pensadores mais originais e


importantes para compreender as experiências que fazemos com a
arte. Nascido em 1906, no estado americano de Massachussetts e
falecido em 1998, Goodman acumulou uma rica biografia ligada às
artes que incluiu desde uma intensa produção teórica sobre o assunto
até a direção de uma galeria (Walker-Goodman Art Gallery) onde se
revelou um bem sucedido negociante. Em Harvard fundou o Project
Zero voltado à compreensão do pensamento criativo nas artes, nas
humanidades e nas ciências, tanto no campo individual quanto
institucional1. É um projeto alimentado pela idéia de que o
conhecimento das artes é uma importante atividade cognitiva. Em
Harvard também fundou e dirigiu o Harvard Dance Center, voltado à
criação de peças de dança. No campo da produção teórica destacam-
se as seguintes obras: The structure of appearance (1951), Fact,
Fiction and Forecast (1954), Languages of art (1968), Problems and

1
Detalhes sobre o Project Zero podem ser encontrados no site http:
//www.pz.harvard.edu/index.htm.
3

projects (1972), Ways of worldmaking (1978) e Of mind and other


matters (1984). Somam-se a esses livros inúmeros artigos que
abarcam vasta gama de temáticas filosóficas.
A compreensão da especificidade da arte, do seu valor ou
mérito estético, segundo Goodman, depende de uma complexa
epistemologia, cuja tese mais geral é a do construtivismo. O
construtivismo sustenta que tudo o que conhecemos do mundo são
versões, o que inviabiliza radicalmente a possibilidade de garantir a
existência e a descrição de um mundo fora de nós2. Se existe, esse
mundo fora de nós é tão somente inacessível. Portanto, nem o modo
como o mundo é dado, nem nenhum modo de ver ou figurar ou
descrever nos conduz ao modo como o mundo é. (GOODMAN, 1972)
O que existe são mundos construídos, versões-de-mundo que nos
permitem viver de forma significante. O que resulta disso é que nós
não podemos chegar a alguma coisa sobre o modo como o mundo é
perguntando sobre o modo mais realístico de representá-lo, pois, os
modos de ver e figurar são muitos e variados; alguns são fortes,
efetivos, úteis, intrigantes ou sensíveis; outros são fracos, cômicos,
desanimados, banais ou confusos. (GOODMAN, 1972) Uma versão-
de-mundo ou construção-de-mundo é um sistema que dá forma e
significatividade ao que julgamos ser nossa visão de um mundo
separado de nós.
Para Goodman, se o que temos são versões, não vale a pena
falar de um mundo em si. O que importa é por em discussão as
versões, suas vantagens e desvantagens e seus critérios de validade.
Não podemos encontrar propriedades puramente objetivas,
independentes dessas construções. Nesse particular, a posição de
Goodman compartilha a noção kantiana que não encontramos no

2
Goodman propõe uma crítica radical à teoria pictórica da linguagem do primeiro
Wittgenstein. Segundo ele, nenhuma teoria defendida em anos recentes por
filósofos do primeiro time parece mais obviamente errada do que a teoria pictórica
da linguagem (GOODMAN, 1972). O problema de tal teoria residiria exatamente no
postulado de um mundo cujo acesso seria garantido pela estrutura lógica da
linguagem.
4

mundo senão aquilo que antes lá tivemos posto. Há uma diferença,


porém: Goodman não postula a existência de uma coisa em si, uma
realidade, um mundo inacessível ao nosso conhecimento. Pensar ou
descrever um mundo só tem sentido quando tal gesto é relativizado a
uma forma de tal descrição. O resultado disso é que não podemos
chegar a alguma coisa sobre o modo como o mundo é perguntando
sobre o mais fiel ou realístico modo de vê-lo.
As versões são construídas de acordo com nossas necessidades,
ou seja, de acordo com a dinâmica dos problemas, demandas e
convenções que vão aparecendo num setor da vida, seja na ciência,
na arte ou na filosofia. Mesmo no nível mais elementar da sensação
já estamos nos colocando na direção de um sistema simbólico.
Quando percebemos algo, nosso olhar não é neutro e/ou
desinteressado; percebemos o que o sistema simbólico com o qual
estamos operando permite perceber. Esse é o motivo pelo qual a
epistemologia de Goodman, além de construtivista, é pluralista e
relativista. Pluralista porque sustenta que há uma riqueza de versões-
de-mundo as quais, sob o ponto de vista de sua validade, são
igualmente importantes. Tanto as teorias científicas, as teorias
filosóficas, os poemas, as composições musicais, os filmes, as demais
artes e mesmo a relação mais direta e sensível que temos com as
coisas, compõem essa gama de versões. A distinção entre elas se dá
pelas características internas e não pela sua função. Uma vez que
existe uma diversidade muito grande de símbolos também se pode
construir uma diversidade muito grande de sistemas simbólicos aptos
para gerarem versões diversas e até mesmo incompatíveis3. Quanto
ao relativismo, podemos dizer que aparece aqui de forma moderada.
Para Goodman, (1972) nenhuma versão é mais correta que a outra.
Nenhuma delas pode nos dizer como o mundo é, mas cada uma delas
nos diz um modo como o mundo é. Isso não significa que não possam

3
Veja-se, por exemplo, o caso das diferenças na idéia de mundo na física
newtoniana e na física da relatividade.
5

existir sistemas simbólicos incorretos, mas sim que, entre os


sistemas simbólicos corretos, nenhum é melhor que o outro: “Todas
as versões verdadeiras que se encontram em conflito são verdadeiras
em mundos diferentes. Estes, por sua vez, devem ser entendidos
como mundos reais e não como mundos possíveis”. (D’OREY, 1995,
p. 10. Grifos do autor.) Os sistemas simbólicos são corretos na
medida em que desenvolvem programas de correção interna. Tal
correção depende de três fatores: consistência, constância e sucesso
continuado das suas categorias.

2. Os sistemas simbólicos da arte e da ciência

Um sistema simbólico consiste num esquema (conjunto de


símbolos) aplicado a um campo de referência. (conjunto de
referentes) Ser um símbolo é assumir uma função dentro de um
sistema; não é, portanto, uma propriedade intrínseca de um objeto.
Tal função é de referir, estar por algo. Os símbolos não podem ser
tomados isoladamente. Só existem símbolos enquanto existem
sistemas simbólicos. A rigor, tudo pode funcionar como símbolo,
embora existam certos objetos como as palavras, os sons (de uma
escala musical, por exemplo) e as imagens, que, com mais
freqüência, desempenham essa função. Uma nota musical ou uma
palavra funcionam bem mais frequentemente como símbolos do que
montanhas ou rios que, por sua vez, funcionam mais frequentemente
como referentes. Entretanto, para um alpinista, uma montanha
também pode simbolizar um desafio ou uma conquista.
Não existem símbolos em si mesmos. Um símbolo é, por assim
dizer, uma capacidade, cujos limites e propriedades são inteiramente
determinados pelo sistema no qual se encontra funcionando4.
Simbolização e referência se constituem nos termos básicos a partir
4
Assim como nas Investigações Filosóficas de Wittgenstein o significado de uma
palavra só podia ser compreendido num jogo de linguagem específico, aqui também
o símbolo só pode ser compreendido num contexto bem determinado.
6

dos quais Goodman apresenta a sua noção de mundo. Tais termos


são usados com um sentido bastante amplo, abrangendo a relação
entre um símbolo e aquilo pelo qual está. (seja de qual forma for) A
referência de um símbolo pode aparecer de duas maneiras: por
denotação ou por exemplificação5. A denotação ocorre quando o
símbolo se aplica a algo diretamente, quando se refere diretamente a
um objeto. O objeto, aqui, é a sua extensão, e o símbolo poderia
levar o nome de etiqueta. Um exemplo de denotação ocorre no uso
dos nomes próprios: quando afirmamos que o nome “Arthur” refere o
Arthur, fica estabelecida uma relação de denotação entre uma
etiqueta, a palavra “Arthur”, e um referente, o Arthur propriamente
dito. A exemplificação, por sua vez, ocorre quando o símbolo é uma
amostra da etiqueta, um caso de alguma coisa. Fica evidente que,
para haver uma exemplificação, tem de ter ocorrido uma denotação
anterior. Uma palavra como “filho” pode denotar um filho específico,
o meu filho, por exemplo; por isso, posso apresentar o meu filho
como uma amostra de “filho”.
Outra distinção importante no pensamento de Goodman é a que
existe entre esquema e domínio. Tal distinção é particularmente
importante para delinear as diferenças/semelhanças entre os
sistemas simbólicos da arte e da ciência. O esquema é o conjunto dos
símbolos, enquanto o domínio é o conjunto dos referentes. Um
sistema denotativo usa um esquema formado por etiquetas cujo
domínio é um conjunto de objetos. Num sistema exemplificativo o
esquema é composto por um conjunto de objetos que funcionam
como símbolos e o domínio por um conjunto de etiquetas.
Quando se admite a idéia que a compreensão designa um
processo cognitivo através do qual construímos mundo de qualquer

5
Outras relações de simbolização, tais como a representação, a descrição e a
citação são formas de denotação; já a expressão é uma forma de exemplificação.
Em outros casos, como na alusão, intervêm tanto a denotação como a
exemplificação. Essa tipologia das relações de simbolização é detalhada em
Linguagens da arte, principalmente nos capítulos II e IV.
7

espécie – bem como os resultados obtidos dessas construções -, fica


sem fundamento a concepção que opõe arte e ciência6. Construir
mundos através de sistemas simbólicos é uma tarefa comum entre
esses dois territórios da compreensão humana: “Ambas podem ser
corretas ou incorretas de diferentes maneiras; ambas podem ter um
domínio de aplicação universal: para ambas existem critérios de
aceitabilidade, e testes e experiências a que podem ser submetidas;
em nenhum caso há garantias definitivas.” (D’OREY, 1995, p. 17)
Das semelhanças apontadas não se pode depreender que arte e
ciência sejam a mesma coisa, apenas se está dizendo que a
dicotomia tradicional que põe, do lado da arte, a beleza, a intuição e
a emoção e, do lado da ciência, a verdade, a racionalidade e a lógica,
não pode mais ser sustentada. Onde reside a diferença, então? Trata-
se de uma diferença que pode ser localizada nos processos símbolos
que constituem cada um dos sistemas. Os sistemas da ciência são,
geralmente, construídos por processos denotativos, lingüísticos e
literais, onde os símbolos possuem um referente direto e único. Na
arte, os sistemas são mais ricos, através de meios não literais e de
processos exemplificativos. No caso da pintura, da arquitetura, da
música e da dança os sistemas são construídos através de símbolos
não-verbais, que são densos e saturados e onde o referente é
indireto e múltiplo. No entender de Goodman, todas as outras
diferenças entre arte e ciência decorrer destas.
A ciência só aceita sistemas que permitem segurança na
determinação dos resultados experimentais e a busca de consenso na
comunidade científica, daí decorre sua preferência por sistemas
denotativos e verbais. Já a arte tende a tomar a sério a ambigüidade
e as diferenças das sensibilidades como características que
enriquecem sua interpretação. A arte privilegia a densidade, a
saturação, a exemplificação e a referência múltipla e complexa,

6
Poderíamos acrescentar também a própria filosofia como outro discurso que,
seguidamente, é definido a partir de critérios opostos aos da arte.
8

características que são denominadas por Goodman como “sintomas


do estético”7. Tais características opõem-se à articulação, atenuação,
denotação e referência simples e direta, que são “sintomas do não-
estético”, ou seja, da linguagem científica.

3. Arte e exemplificação

A exemplificação talvez seja o traço mais fundamental dos


mundos construídos pela arte. A exemplificação é um tipo de relação
simbólica em que o objeto refere algumas das propriedades que
possui. Ela permite compreender, segundo Goodman, a função
referencial presente em todas as obras de arte, inclusive as mais
minimalistas e abstratas. Quando observamos um quadro de
Kandinsky – como, por exemplo, o Amarelo, vermelho, azul, de 1925
-, mesmo na falta de uma referência denotativa, podemos encontrar
exemplificações de cores e de formações geométricas. A função
exemplificativa da arte permitiria assegurar que todas as obras são
símbolos e referem algo, mesmo quando não denotam nada.
No capítulo IV de Modos de fazer mundo, sob o título de
“Quando há arte?”, Goodman expõe mais detalhes sobre a dinâmica
da função simbólica da arte. A construção do argumento segue um
itinerário tipicamente socrático. Primeiro concede a palavra aos seus
“inimigos teóricos”, os formalistas ou puristas, para depois
demonstrar seu ponto de vista. Segundo os formalistas, o que
importa numa obra de arte são suas propriedades em si mesmas e,
exatamente por isso, a arte pura deveria evitar a simbolização. A
simbolização desviaria a atenção de suas propriedades intrínsecas. O
que Goodman propõe, na seqüência do argumento, é que a posição
purista está errada ao julgar que a simbolização significa sempre uma
referência a algo exterior às obras de arte. Considerando o exemplo
7
Uma explicação mais detalhada dos “sintomas do estético” pode ser encontrada
em Linguagens da Arte, no capítulo VI, seção 5 e, de maneira breve, em Modos de
fazer mundos, capítulo IV.
9

de uma pintura “verdadeiramente pura”, Goodman demonstra que,


por mais que procuremos, não vamos encontrar nela uma
propriedade interna totalmente específica. Propriedades como cores e
formas não são exclusivas da obra de arte supostamente “pura”; elas
põem a obra sempre em contato com o exterior e com outras obras.
Para ilustrar seu argumento, Goodman propõe uma análise do
que acontece quando nos vemos diante de uma amostra de tecido:
Considere-se de novo uma vulgar amostra de tecido no
catálogo de amostras de um alfaiate ou de um
estofador. É improvável que seja uma obra de arte, que
represente pictoricamente ou exprima alguma coisa. É
simplesmente uma amostra – uma simples amostra.
Mas de que ela é uma amostra? Da textura, da cor, da
tecedura, da grossura, das fibras de que é feita...; tudo
o que importa nesta amostra, somos tentados a dizer,
é que ela foi cortada de uma peça de tecido e tem as
mesmas propriedades do resto do material. Mas isso
seria demasiado precipitado. (GOODMAN, 1995, p. 109)

O exemplo serve para visualizar que uma amostra de tecido é


amostra (ou exemplo) de apenas algumas propriedades e não de
outras. Amostras de tecido exemplificam cores, textura e padrão,
mas não exemplificam forma e tamanho. Ou seja, exemplificam
apenas aquelas propriedades que possuem e referem naquela
circunstância específica. Se expandirmos as conclusões para o
domínio das artes, verificamos que algumas obras de arte – de modo
especial as mais abstratas - também exibem suas próprias
propriedades, selecionando algumas para despertar nossa atenção.
Porém, não há, ao contrário das amostras de tecido, critérios e
procedimentos seguros para determinar o que uma obra de arte
exatamente exemplifica ou representa. É ao trabalho reflexivo e
crítico que compete tal tarefa, que, como conditio sine qua non,
precisa conhecer o sistema a que ela pertence. O próprio Goodman
(1995, p. 110) conta uma anedota sobre o que pode ocasionar o
desconhecimento de um sistema simbólico mesmo na ocasião banal
de escolher tecidos por intermédio de uma amostra:
10

A Sra. Mary Tricias analisou um catálogo de amostras,


fez a sua seleção e encomendou da sua loja de tecidos
favorita material suficiente para o seu sofá e cadeira
estofados – insistindo que esse material deveria ser
exatamente igual à amostra. Quando a encomenda
chegou ela abriu-a avidamente e ficou consternada
quando várias centenas de peças com 6 cm x 10 cm,
com lados cortados em ziguezague exatamente como a
mostra, esvoaçaram pelo chão. Quando telefonou para
a loja, protestando ruidosamente, o proprietário
replicou, magoado e aborrecido: “Mas, Sra, Tricias, a
senhora disse que o material devia ser exatamente
como a amostra. Quando ele chegou ontem da fábrica,
mantive aqui os meus empregados metade da noite a
cortá-lo para ficar exatamente como a amostra”.

Como a exemplificação é uma forma de simbolização, fica


assegurado que mesmo no caso de uma pintura “pura” ainda existe
uma função simbólica. Uma função simbólica, de qualquer forma que
seja – como representação, exemplificação, expressão ou outra –, é
algo que se encontra em todas as obras de arte e é a condição
necessária para que algo funcione como arte.

4. O valor cognitivo da arte

Uma vez delineados os traços mais gerais da epistemologia de


Goodman, cuja conseqüência mais importante – para o interesse
desse trabalho – é que as obras de arte são sistemas simbólicos
específicos, a questão do valor da arte fica mais simples de ser
demonstrada. A questão do valor da arte é tratada de forma breve na
seção 6 do capítulo “A arte e a compreensão”, de Linguagens da arte.
A primeira possibilidade sugerida por Goodman para explicar o
valor da arte é a satisfação. Tal possibilidade, porém, se mostra
inútil, já que não esclarece nada: a idéia que a arte é boa porque é
satisfatória é simplesmente redundante. No caso da arte, ser boa e
ser satisfatória são sinônimos. Afirmar que uma obra de arte é
satisfatória ou boa é também admitir nela certa capacidade de
realizar uma função: “[...] ser satisfatório é, em geral, relativo a uma
11

função de propósito.” (GOODMAN, 2006, p. 269) Mas qual seria,


então, este propósito? Como já mencionamos anteriormente, as
obras de arte são sistemas simbólicos e, como tais, sua função é a
mesma de todos os sistemas simbólicos, ou seja, “[...] as obras de
arte ou os seus exemplares desempenham uma ou mais de entre um
conjunto de certas funções referenciais: representação, descrição,
exemplificação, expressão”.(GOODMAN, 2006, p. 269) A questão é
saber a que propósito serve tal simbolização.
Para apresentar uma resposta precisa à questão da função da
simbolização, Goodman analisa três possibilidades. A primeira é que a
simbolização exercita e desenvolve competências para enfrentar
futuras contingências, tornando-nos mais aptos para sobreviver,
conquistar e ganhar. A experiência estética “[...] torna-se um
exercício de ginásio, sendo as imagens e sinfonias os halteres e sacos
de boxe que usamos para fortalecer os músculos
intelectuais”.(GOODMAN, 2006, p. 269) A arte teria, por decorrência,
o reconfortante poder de canalizar a energia em excesso afastando-
nos do que é destrutivo. A segunda possibilidade é quase oposta e
bem mais simplista: a simbolização é uma propensão natural, tal
como é o jogo. Jogar e simbolizar são empreendimentos divertidos e
isso atrai naturalmente o homem. Uma terceira possibilidade, para
além da oposição entre o prático e o divertido, seria a comunicação.
Simbolizamos através da arte para comunicar fatos, pensamentos, e
sentimentos.
No entender de Goodman, cada uma destas explicações – seja
exercício (ginástica), brincadeira (jogo) ou comunicação (conversa) -,
embora estejam ligadas à atividade simbólica, são apenas verdades
parciais. O que as três ignoram é que a motivação maior da atividade
simbólica é a curiosidade e o objetivo é a compreensão e o
esclarecimento. Em outras palavras, a função última da simbolização
é o conhecimento:
12

O uso de símbolos para além da necessidade imediata


faz-se em nome da compreensão e não da prática; o
que compele é a ânsia de conhecer, o que delicia é a
descoberta e a comunicação é secundária relativamente
à apreensão e formulação do que comunica. O objetivo
principal é a cognição em si e para si; o caráter prático,
o prazer, a compulsão e a utilidade comunicativa
dependem todas deste objetivo (GOODMAN, 2006, p.
271).

As obras de arte, do mesmo modo que as teorias científicas,


possibilitam fazer associações, distinções e categorizações,
contribuindo para a organização da nossa experiência com as coisas,
conosco mesmos e com os outros. Se for por causa de sua função
cognitiva que a arte adquire valor, não é nem mais nem menos
valiosa que a ciência ou qualquer outra forma de criar mundos. O que
a epistemologia de Goodman propõe é que a arte, apesar de ter
especificidades internas, não tem um valor específico.
Qual seria, então, a especificidade (ou excelência) dos objetos
estéticos? Para responder tal questão, em primeiro lugar é preciso
registrar que a subsunção do estético sob a função cognitiva não
implica em descartar o sensorial e o emotivo: “[...] o que
conhecemos através da arte tanto se sente nos ossos, nervos e
músculos como é apreendido pela mente, que toda a sensibilidade e
resposta do organismo participa na invenção e interpretação de
símbolos”.(GOODMAN, 2006, p. 272) Em segundo lugar, é preciso
recordar que os sistemas simbólicos têm modos específicos de
organizar o mundo e que as características internas que nos fazem
preferir um sistema são denominadas de critérios de correção. De
fato, ainda no capítulo “Sobre a correção da apresentação”, de Modos
de fazer mundos, Goodman examina detalhadamente o tema da
verdade propondo que tal conceito é uma questão de ajustamento
entre versões, numa referência facilmente aplicável às teorias
científicas. Tal idéia de verdade, no entanto, pode ser prescindida
quando se avalia os sistemas da arte, onde o critério de qualidade
13

passa a ser a correção da amostra (ou do exemplo)8. Assim,


procurando agora formalizar a resposta à questão formulada no início
do parágrafo, se levarmos em conta que um dos sintomas do estético
é a exemplificação, relação em que o símbolo funciona como
amostra, (exemplo) podemos concluir que símbolos estéticos são tão
mais corretos quanto mais projetáveis ou representativos.
(GOODMAN, 1995) A projetabilidade ou representatividade é a
capacidade de exemplificar predicados (etiquetas) que podem aplicar-
se a novos casos. Uma amostra é correta, prossegue Goodman
(1995, p. 190) quando pode ser “[...] projetada para o padrão,
mistura, ou outra característica relevante do todo ou de amostras
posteriores”.
Um aspecto importante a destacar, aqui, é que
representatividade ou projetabilidade requer a boa prática de
interpretação de amostras, que, por sua vez, depende do hábito, da
revisão contínua, da atenção ao contexto e da convivência com a
invenção e a frustração. Quando há densidade – um dos sintomas do
estético – num sistema de símbolos, “[...] a familiaridade nunca é
completa e final; outro olhar pode sempre desvelar novas sutilezas
significativas. Além disso, o que lemos num símbolo e através dele
varia com o que trazemos conosco”. (GOODMAN, 2006, p. 272)
Através dos símbolos em geral e talvez mais acentuadamente com os
símbolos estéticos, não só compreendemos melhor o mundo como
compreendemos e reavaliamos os símbolos que trazemos conosco.
Quando isso acontece, novas associações são possíveis e novas
separações ficam claras alargando o nosso potencial cognitivo.

5. E, para finalizar, uma amostra de conceitos em som e


imagem

8
Além dos critérios de ajustamento entre sistemas e correção de amostras, podem
aparecer outros quando se avalia um sistema simbólico. No caso de sistemas
lingüísticos podemos destacar a validade dedutiva e indutiva como um dos critérios
mais importantes.
14

Partimos agora para o momento um momento de


“experimentação” das idéias postas até aqui. A análise esboçada a
seguir não pretende, de forma nenhuma, esgotar a riqueza semântica
do filme ou de sua trilha sonora. Quer apenas demonstrar como
conceitos filosóficos podem ser “exemplificados” em imagens
(fotogramas, no caso) e sons, como forma de enriquecer o mundo
simbólico em que participam. Ampara-nos a convicção que tais
expressões humanas, quando compreendidas também como
referentes dos sistemas simbólicos filosóficos, podem nutrir e
revigorar alternativas didáticas para o ensino de filosofia. Passemos
ao experimento, então.
O filme Laranja Mecânica9 é uma daquelas obras capazes de
articular e congregar uma série de elementos estéticos (fotografia,
trilha sonora, performances dos atores, diálogos, cenários, figurinos,
etc.) levando o espectador a inserir-se numa atmosfera
aparentemente distante e surreal. A rigor, o roteiro é bastante
simples, sem nada de extraordinário ou impressionante. É a saga de
um jovem (Alex, vivido por Malcolm McDowel) e seus seguidores
(drugues), empenhados em desfrutar prazer às custas de sexo e
ultra-violência. Preso e submetido a um tratamento experimental
(técnica Ludovico) o jovem é dado como tecnicamente curado.
(institucionalizado) Após a cura, o jovem se torna o pivô de um briga
política que envolve altos quadros do governo. Dada a repercussão
negativa do tratamento, Alex acaba sendo submetido a um novo
tratamento, visando recuperar sua personalidade original. Nesse
ponto o círculo se fecha. Como já disse, em termos de roteiro, nada
muito impressionante; já vimos isso em muitas outras películas. O
que faz de Laranja Mecânica, então, um filme que marcou época?
É claro que as seqüências de fotogramas podem exemplificar
um sem número de conceitos filosóficos. Questões sobre o limite da

9
Filme de 1971, dirigido por Stanley Kubrick. O filme é uma adaptação do romance
homônimo de Anthony Burgess (1962).
15

liberdade, sobre a relação entre indivíduo e sociedade, sobre a


relação entre prazer e violência, sobre a relação entre desejo e
alteridade podem, muito bem, ser enriquecidas pelas cenas e
diálogos. Gostaríamos, entretanto, de provocar um olhar um pouco
diferente; um olhar na direção do tema sonoro que atravessa o filme
e que se constitui, ao mesmo tempo, naquilo que parece ser o último
reduto de sensibilidade de Alex: a música de Beethoven. Gostaríamos
de explorar, de modo especial, a cena em que, ao som do quarto
movimento da Nona Sinfonia, irrompem na tela imagens da Segunda
Guerra Mundial nas quais se vê, além de soldados nazistas perfilados
e em marcha, maravilhas da tecnologia, como aviões e bombas, em
ação.
Uma pergunta, então, poderia ser formalizada: por que
Beethoven? O que Beethoven tem a ver com cenas tão dramáticas e
tão aparentemente distantes dos sentimentos e idéias que suas
composições suscitam? Existe alguma raiz comum desconhecida
entre a música organizada de acordo com as regras do sistema tonal
e os acontecimentos mais drásticos do século XX?
Para desenhar uma possível resposta a tais questões, é preciso
esclarecer alguns elementos filosóficos que subjazem ao som da Nona
Sinfonia. Beethoven representa, ao menos em parte, o auge de um
movimento musical que teve início no Renascimento. A música, a
partir de então, passou a ser um espaço de expressão da
subjetividade. A relação dessa subjetividade com o material sonoro
se dá tendo como protagonista à vontade racional do sujeito; ou seja,
é o sujeito que, como base em um tema, estrutura o material sonoro
para compor a música. O modo como o material sonoro é organizado
se ampara no seguimento de regras fornecidas pelo sistema musical
conhecido como tonalismo. O sujeito, nesse contexto, estabelece com
o material uma relação de domínio quase absoluto; cada nota se
encaixa perfeitamente no plano de expectativas definido pelo sujeito.
O funcionamento da composição musical, apesar dos importantes
16

acréscimos de genialidade e sensibilidade do sujeito-compositor, fica


bastante próximo do ato científico. Assim como na ciência o objetivo
é criar um mundo que elimine o mistério a partir do domínio total do
suposto objeto, na composição tonal, o objetivo é estruturar o som
aos temas conforme as regras do sistema. Uma das provas desse
elemento científico estruturante que marca a composição é que a
Nona Sinfonia não foi ouvida, não foi experimentada esteticamente
por Beethoven. Como se sabe, nessa época, Beethoven encontrava-
se num estado de surdez bastante avançado. Beethoven não precisa
experimentar esteticamente aquilo que já está dominado e conhecido
na experiência mental.
A música de Beethoven é, por decorrência, mais que simples
som. É também uma exemplificação do estado geral da racionalidade
gestada pela modernidade. (artística e científica) Tal razão parece ter
simplesmente perdido a medida
de si mesma. Mergulhada na
tentativa de objetificar e
dominar o que se encontra ao
seu redor e marcando sua
posição apenas num movimento
auto-referente, tal razão perdeu
o conteúdo, perdeu a noção do seu próprio limite, entregou-se a
exercícios formais de esquadrinhamento dos espaços. (sejam eles
estéticos ou científicos) A decorrência disso é que suas “maravilhas”
passaram a gerar o perigo do aniquilamento. Expliquemos melhor:
nas cenas destacadas no filme, o que se vê, não obstante os efeitos
catastróficos da Segunda Guerra, são exemplares do que a razão é
capaz: soldados enfileirados e bombas são produtos do
desenvolvimento de uma razão que não se deu conta dos absurdos
irracionais que se escondem por trás de sua forma de proceder
baseada na dominação. A razão moderna produziu Beethoven, mas,
paradoxalmente, o mesmo princípio produziu a bomba atômica. A
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“Ode à alegria” ("Ode an die Freude", poema de Schiller cantado na


Nona Sinfonia e que valorizava valores humanistas como
fraternidade, liberdade e igualdade) poderia ser substituída por “Ode
à razão”. A mesma razão que se sente bem ouvindo Beethoven já
não consegue mais se orgulhar por inteiro dos seus atos. Alex não
compreendeu a dimensão disso ao dizer: “É um pecado, é um
pecado!!! [...] Usar Ludwig Van assim!! Ele nunca fez mal a
ninguém!”. Sim, Beethoven tem algo a ver com isso, sim.

Bibliografia

D’OREY, Carmo. Introdução. In: GOODMAN, Nelso. Modos de fazer


mundos. Porto: ASA, 1995. p. 5-29.
GOODMAN, Nelson. Languages of art: an approach to a theory of
symbols. Indianápolis: Hackett, 1997.
_____. Linguagens da arte: uma abordagem a uma teoria dos
símbolos. Lisboa: Gradiva, 2006.
_____. Modos de fazer mundos. Porto: ASA, 1995.
_____. Problems and projects. Indianápolis/New York: The Bobbs-
Merril Company, 1972.
LARANJA mecânica. Direção e produção: Stanley Kubrick. Los
Angeles: Warner Brothers, 1971. 1 DVD.
WITTGENSTEIN, Ludwig. Investigações filosóficas. 5.ed. São Paulo:
Nova Cultural, 1991.
_____. Tractatus logico-philosophicus. São Paulo: EDUSP, 1993.

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