Rousseau ¿miente?
Érica Milaneze
Mestranda em Estudos Literários, FCL-UNESP/Araraquara
honig@ig.com.br
No Discours sur les Sciences et les Arts (1750), Jean-Jacques Rousseau mostra
que os valores do Iluminismo, o progresso, as ciências e as artes, são nocivos
ao ser humano, surgindo o paradoxo que fará a unidade de todo o seu
pensamento: o homem é bom e feliz por natureza, mas a civilização
corrompeu e arruinou essa felicidade primitiva. O homem civilizado se alienou
da felicidade original e de suas virtudes naturais, devido ao luxo e a dissolução,
resultando em uma escravidão social que atribuiu ao indivíduo um valor
econômico. De acordo com Rousseau, a felicidade está na vida simples e a
virtude depende da consciência e não da ciência. Atualmente, as obras de Jean
Maire Gustave Le Clézio parecem ecoar as idéias de Rousseau, pois atacam a
articulação do sistema capitalista e da tecnoestrutura da sociedade pós-
industrial, responsáveis por instaurar uma civilização regida por leis
intelectuais, sociais e morais, que escravizam o homem e impedem sua
liberdade. Em Voyages de l’autre côté (1975), as personagens vivem à
margem do mundo moderno, sem passado e interesses materiais,
perambulando através da cidade em busca de lugares mágicos, como o país
das árvores, onde encontram a verdade e a liberdade, por meio da fusão com
a natureza. Assim, ao descobrir a vida secreta da natureza, essas personagens
percebem que a felicidade está além do imediatismo cotidiano.
Rousseau e Kleist
“Ah! meu Deus! como as pessoas razoáveis são frias! Há muito fujo delas;
parece-me que nem mesmo dispomos de uma língua comum”. A observação
de Julie de Lespinasse, endereçada em carta de 24 de abril de 1774 a
Condorcet, parece indicar que a emoção atuaria como uma língua estrangeira
no interior de uma linguagem oficial e convencional. Cumpria, então, elevar-se
contra essa língua comum, língua dos corações secos e dos espíritos frios;
impunha-se, assim, inventar uma nova linguagem, a linguagem das paixões.
Como, pois, dizer a emoção? Eis a interrogação que obseda boa parte da
literatura setecentista que, nos seus mais diversos gêneros, amalgama a
questão do páthos e a questão da expressão. Em um século em que
romancistas são também críticos de arte, como Diderot, ou músicos, como
Rousseau, não surpreende que a invenção literária por vezes transborde o
registro poético. Duas serão aqui as balizas deste trabalho. A primeira,
emprestada de Diderot, que enuncia a seguinte observação, quase à maneira
de um adágio, em seus Essais sur la Peinture: “a expressão é, em geral, a
imagem do sentimento”. A segunda, de Rousseau, que afirma em La Nouvelle
Héloise: “[...] é unicamente da melodia que sai esta potência invencível dos
tons apaixonados; é dela que deriva todo o poder da música sobre a alma”. A
partir destas duas balizas que apontam, na verdade, para um único motivo,
aquele de um patética romanesca, percorrer-se-á algumas páginas
paradigmáticas de La Religieuse (Diderot) e de La Nouvelle Héloise (Rousseau),
procurando verificar de que maneira romance e pintura e romance e música
conformam um único sentido, trabalhado essencialmente por uma gramática
do corpo e das emoções. E por uma retórica, por vezes silenciosa mas sempre
eloqüente, das paixões e do sofrimento que se dizem pela literatura, pela
pintura e pela música.
“Me voici donc seul sur la terre, n’ayant plus de frère, de prochain, d’ami, de
société que moi-même”, essa a afirmação patética, na leitura de alguns
comentadores, com a qual têm início Les rêveries du promeneur solitaire.
Banido do convívio dos homens, Rousseau mergulha na solidão e, ao abrigo do
olhar e do julgamento dos outros, pode viver livremente a experiência do
exame de si mesmo. O filósofo não suportaria, no entanto, ser dispensado pela
obra que escreveu, o “Eu” ceder lugar ao “Ele”. Daí que o objetivo da presente
comunicação é analisar o “informe journal de mes rêveries” como expressão do
medo e da angústia da solidão que atinge o escritor por intermédio da obra, na
sugestão de Maurice Blanchot.