um marco na história da saúde pública e da medicina comunitária é a
conferência de alma-ata que, em sua declaração final (18 de setembro de 1978) lança a proposta dos cuidados primários de saúde, conceituados como “cuidados essenciais de saúde, baseados em métodos e tecnologias práticos, cientificamente bem fundamentados e socialmente aceitáveis, colocados ao alcance universal de indivíduos, famílias e comunidade, mediante plena participação destes, e a um custo com o qual a comunidade e o país podem arcar (...). fazem parte integrante tanto do sistema de saúde do país, do qual constituem a função central e o foco principal, quanto do processo de desenvolvimento social e econômico da comunidade. representam o primeiro nível de contato das pessoas, da família e da comunidade com o sistema nacional de saúde, através do qual os cuidados de saúde são levados o mais próximo possível dos lugares em que as pessoas vivem e trabalham. constituem o primeiro elemento de um continuado processo de assistência à saúde.” uma pergunta que se poderia fazer é: onde funciona, este primeiro nível de contato do sistema de saúde com indivíduos, família e comunidade? qual a sua expressão física? e a resposta se impõe: é o ambulatório; a unidade sanitária, o posto de saúde, ou qualquer outro nome que a esse lugar se queira dar. o ambulatório é a linha de frente da assistência à saúde. tem, portanto, uma importância que dificilmente poderia ser exagerada. importância, mas não prestígio. este é um fato conhecido por todos, e não apenas os profissionais de saúde. em matéria de assistência médica costuma se falar em um binômio: hospital-ambulatório. mas os termos deste binômio tem expressão diferente. hospital é sinônimo de tecnologia, de sofisticação. o hospital fica na cidade propriamente dita, diferente do ambulatório, que está localizado em um bairro, numa vila popular – na periferia (e o sentido depreciativo desta denominação é bem conhecido dos brasileiros). o hospital é uma instituição intramuros, para a qual a admissão é controlada. no ambulatório todo mundo entra. ou seja: no sistema, quando ele existe, o ambulatório é o patinho feio daquela história infantil. esta visão, além de distorcida, é extremamente danosa, prejudicial ao sistema de saúde, prejudicial para a equipe de saúde, prejudicial para a população. muito antes de alma ata já se sabia que reverter esta visão era um passo essencial para dar às pessoas cuidados “colocados ao alcance universal de indivíduos, famílias e comunidade, mediante plena participação destes, e a um custo com o qual a comunidade e o país podem arcar.” a tradução disto, contudo, resultou em um estereótipo: é medicina para pobre, portanto inferior – como são todas as coisas dos pobres. como reverter esta visão? de novo, a resposta se impõe: trata-se de preparar adequadamente a equipe de saúde para que ela possa desempenhar sua missão com competência e com satisfação. trata-se de mostrar que “simples” não quer dizer “inferior”; a simplicidade no atendimento só pode resultar de um profundo e real conhecimento, aquele conhecimento que permite distinguir entre o necessário e o supérfluo, entre o autêntico e o ilusório. medicina ambulatorial é ciência e arte, tão ciência e tão arte como o é a medicina hospitalar, se é que se pode, em verdade, estabelecer alguma diferença entre ambas que não seja baseada em idéias pré- julgadas. a expressão mais conhecida do treinamento médico é o manual, alguns dos quais, pela longa trajetória tornaram-se verdadeiros clássicos da medicina. pois estamos diante de uma obra que é séria candidata a essa denominação. desde a primeira edição medicina ambulatorial: condutas clínicas em atenção primária tornou-se referência obrigatória na área. em primeiro lugar por causa dos editores: bruce b.duncan, maria inês schmidt e elsa r.j.giugliani são nomes de primeira grandeza no ensino e na pesquisa em nosso meio. em segundo lugar pela concepção da obra que é vasta e abrangente: são cerca de 170 capítulos, abordando os temas mais comuns em ambulatório, como é o caso da prevenção da doença cardiovascular, da dor lombar e da depressão, capítulos estes escritos por colaboradores de grande competência. há várias inovações, como é o caso dos símbolos indicando níveis de evidência para condutas terapêuticas e preventivas. aliás, medicina baseada em evidência é uma expressão-chave nesta obra, como o é na medicina moderna. reflete a necessidade cada vez maior de trocar o “instinto” ou o “princípio da autoridade” pela racionalidade dos critérios lógicos e científicos. finalmente, e mostrando a adequação da obra à nova metodologia da informação, cada capítulo apresenta uma lista de portais eletrônicos indicando leituras complementares. internet é hoje um instrumento de trabalho básico, um mar de informações – mas um mar revolto, no qual é impossível navegar sem indicações precisas como esta, dos portais mais adequados. por todas estas razões, esta obra é um triunfo, pelo qual está também de parabens a artes médicas, editora pioneira na área médica (e gaúcha, para nosso orgulho). o espírito de alma-ata está presente nestas páginas – como presente está também a esperança (melhor dizendo, a certeza) de que estamos, com iniciativas assim, dando passos seguros em direção ao ideal da saúde como um direito humano por todos reconhecido. É possível, como na história infantil, transformar o patinho feio da atual assistência ambulatorial no belo cisne que a todos encanta? se é, não tenham dúvida de que a fórmula para tal encontra-se neste livro. moacyr scliar é médico, especialista em saúde pública, doutor em ciências, e diretor do departamento de medicina preventiva da fundação faculdade federal de ciências médicas de porto alegre. autor de 67 obras em vários gêneros.