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o mundo de singer

moacyr scliar
“entre dois mundos” foi o título que jacó guinsburg, editor, deu a uma
coletânea de ficção judaica. título muito significativo, uma metáfora que remete a
um característico importante de um grupo humano cuja história ficou marcada pelo
sofrimento. constantemente perseguidos e ameaçados, os judeus muitas vezes
tiveram de emigrar; constituíam assim um povo errante, sempre em movimento,
entre dois ou vários países, entre dois ou vários mundos.É fácil imaginar os
problemas de identidade que daí resultam: em casa, uma cultura, um idioma, uma
culinária; fora de casa, outra cultura, outro idioma, outra culinária. uma situação
verdadeiramente esquizofrenizante, mas o conflito que dela emerge pode resultar, ao
menos para algumas pessoas, em benefícios inesperados. É o caso dos escritores,
que têm aí uma fonte inesgotável de inspiração. isto nos ajuda a entender porque os
escritores judeus formaram um grupo tão numeroso e tão destacado. os estados
unidos é um exemplo disto. a literatura judaico-americana representa uma
verdadeira vertente que, como assinala o crítico irving howe, tornou-se um
equivalente do regionalismo sulista de um faulkner. ali temos, entre outros, o nobel
saul bellow, philip roth, bernard malamud, cintia ozick... neste grupo, isaac bashevis
singer ocupa uma posição singular.
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nascido em radzymin, polônia, a 14 de julho de 1904, singer chamava-se em
realidade icek hersz zynger. mudou o nome em 1925, aproveitando para
homenagear, com o bashevis do meio, a mãe, batsheva. passou a maior parte da
infância em varsóvia, onde o pai, descendente de rabinos, tinha um beth din, espécie
de tribunal religioso destinado a acomodar litígios entre membros da comunidade.
pinkhos menachem era ligado à seita chassídica. este grupo religioso, muito
importante na europa oriental, surgiu como uma reação à religião tradicional, mais
austera, mais elitista e mais distante. os chassidim, pobres, pouco letrados, viam
deus em toda a parte, inclusive na natureza, e procuravam chegar à divindade pelo
canto e pela dança – ou seja, era uma culto alegre. conta singer que a casa do pai, na
rua krochmalna, era um local de debates, orações, de estudo – mas era também a
sede de alegres celebrações, e um lugar em que pessoas se reuniam para contar
histórias, as histórias que constituiriam a semente de sua literatura.
o pai de singer era um homem amável; a mãe, filha de um rabino mitnagued
(opositor do chassidismo) era culta e inteligente, mas tinha, com o filho, uma relação
distante. singer costumava dizer que seus pais formavam um casal errado: ela
deveria ter sido o marido, e ele a esposa. de qualquer modo, havia na casa um
ambiente propício à cultura e sobretudo à literatura, e de fato, o irmão mais velho,
israel yehoshua, falecido em 1944, tornou-se escritor bastante conhecido, autor de
“os irmãos aschkenazi”. isaac tinha também uma irmã, igualmente mais velha,
hinde esther, uma espécie de ovelha negra da família. instável emocionalmente,
sofria de histeria e de epilepsia. segundo singer, “às vezes parecia possuída por um
dibuk [mau espírito]”. mulheres assim, vítimas de uma húbris não isenta de
erotismo, serão personagens freqüentes em sua ficção.
***
singer foi um menino introspectivo, solitário, dessas crianças que preferem
manter distância do mundo. de novo: este distanciamento, este não-envolvimento,
não é raro entre aqueles que, como diz kafka, preferem “trocar a vida por palavras”,
os escritores. tudo colaborava para que bashevis singer se voltasse para a literatura;
e, nessa literatura, solidão e desamparo seriam componentes importantes. quando fez
treze anos a mãe levou-o, juntamente com o irmão menor, para morar com
familiares na pequena cidade de bilgoray. esta experiência foi muito importante para
singer, em termos de convívio com a comunidade, mas depois tornou-se sufocante.
aos dezoito anos mudou-se de novo, indo morar com o irmão mais velho em
varsóvia. graças a israel yehoshua, passou a freqüentar o clube dos escritores em
iídiche, “centro de idéias, aspirações, teorias, fantasias, sonhos”. havia então uma
vigorosa literatura em iídiche, idioma que, como a cultura judaica, era uma síntese:
hebraico, alemão, russo... nas palavras de singer: “um idioma do exílio, não ligado a
um território, não amparado pelo poder estatal; um idioma desprezado por gentios e
por judeus emancipados... o iídiche é um sábio e humilde idioma, o idioma de nossa
atemorizada, mas esperançosa, humanidade.”
em iídiche havia também um rico folclore, que incluía numerosas historietas e
anedotas. o humor judaico é um humor peculiar, contido, melancólico, filosófico;
não é um humor para gargalhadas, antes para um sorriso. este humor freqüentemente
funcionou como um antídoto contra o desespero resultante de uma situação de
crônica inferioridade, de submissão, de risco. não é de estranhar que escritores
judeus tenham feito do humor um importante componente de sua literatura: scholem
aleichem, peretz, até mesmo kafka. no clube, singer teve sua iniciação aos clássicos;
ao talmud e à cabala uniam-se agora platão, spinoza, tolstoy, dostoievsky, thomas
mann (traduziu “a montanha mágica” para o iídiche). também ali conheceu a
primeira esposa, com quem teve seu único filho. pouco preparado para assumir o
papel de marido e pai, acabou por deixar a família quando emigrou (1935) para a
américa, de novo por iniciativa do irmão, que agora estava em nova york. neste ano
também publica “satã em goray”, primeira importante obra, história de uma moça
que, histérica e epiléptica, parece possuída pelo demônio – uma história claramente
inspirada pela irmã.
***
em nova york, singer começou vida nova. precariamente: de inglês, a única
frase que sabia era “take a chair”, pegue uma cadeira (como disse depois, não
precisou fazer tal oferecimento: em seu quartinho só havia uma cadeira, a dele, e, de
qualquer modo, ninguém o visitava). o irmão arranjou-lhe um emprego no
“forverts”, conhecido jornal em iídiche. o jornalismo não era muito rentável; como
disse o próprio singer, se o moisés bíblico fosse pago pela tabela dos jornais, teria de
escrever, não dez mandamentos, mas dois mil, para ganhar alguma coisa. no
“forverts” publicou novelas, sob a forma de capítulos em série; mas houve um
momento em que parou de escrever ficção, por absoluta descrença: não acreditava
que ainda houvesse público para a literatura em iídiche. em 1937, encontrou apoio
naquela que viria a ser a companheira de sua vida, alma, judia de origem alemã.
embora não falasse iídiche, alma tinha gosto literário e era muito devotada ao
desamparado singer; por ele, deixou marido e dois filhos. mais: como os ganhos de
singer com literatura eram insignificantes, ela sustentava o casal trabalhando como
vendedora na loja lord & taylor. não era fácil conviver com singer, um homem que
tinha suas idiossincrasias; era inclusive vegetariano (“não por causa da minha saúde,
por causa da saúde das galinhas”).
vencida a crise, singer voltou a escrever. em 1945 publicou o autobiográfico
“a família muskat”, e três novelas: “o pequeno sapateiro”, “gimpel, o tolo” e “breve
sexta-feira”, retratatando o shtetl, a aldeia judaica da europa oriental. suas obras
começaram a ser traduzidas para o inglês, um processo no qual ele próprio
participava. depois de “a família muskat” vieram “o mágico de lublin” e “o
escravo”. também nesta época, e por sugestão de uma de suas tradutoras, começou a
escrever histórias infantis. sua reputação como escritor consolidava-se, tanto por seu
talento, como pelo fato de dar testemunho de uma cultura quase aniquilada pelo
holocausto – e que ele não esquecia. quando, em 1978 recebeu o nobel de literatura,
disse que, com o dinheiro do prêmio, compraria uma nova máquina de escrever com
tipos em iídiche; a sua, velha de 40 anos, se recusava a funcionar quando não
gostava do que seu dono escrevia. continuou publicando até sua morte, em 1991, aos
87 anos de idade.
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desde os primeiros escritos ficou claro que a literatura de singer era, antes de
mais nada, um reflexo de sua infância e adolescência na polônia. o shtetl é um
cenário preferencial, mas os personagens estão longe de ser caricaturais ou
ingênuos; o que temos aqui são pessoas que estão à mercê de paixões e de fantasias
poderosas, inspiradas pelo misticismo e pelo folclore judaicos. o dibuk
freqüentemente está presente nas histórias, o que faz delas um equivalente judaico
do realismo mágico de um garcía marquez. mas a atitude de singer em relação ao
misticismo não é de frio distanciamento; ele crê, como declarou no discurso de
recepção do prêmio nobel, nas forças da espiritualidade. desde criança ouvindo do
irmão israel os argumentos racionalistas de spinoza e max nordau, singer tinha
dolorosa consciente do antagonismo entre tradição judaica e modernidade ocidental.
mas também confiava nas “ respostas que a fé em deus oferece para nossas
dúvidas”. diz a respeito, em seu discurso: “a despeito do meu desencanto e do
ceticismo, acredito que se pode aprender muito com o judaísmo”, sobretudo a sua
capacidade de “encontrar felicidade onde outros apenas veriam miséria
humilhação... o gueto não era só o local de uma minoria perseguida, era um reduto
de humanismo.”
***
sou um contador de histórias, dizia singer. grande contador de histórias,
desses escritores que acreditam na literatura como uma forma de alargar os
horizontes da experiência humana, de criar novas perspectivas, de estabelecer uma
continuidade entre passado, presente e futuro mediante o uso da palavra. na tradição
judaica, diz singer, “nunca houve diferença entre o poeta e o profeta”. poetas e
profetas convivem juntos nas páginas da bíblia: ali está o cântico dos cânticos, ali
estão as profecias de isaías. a bíblia é um texto de caráter histórico, ético, religioso,
mas é também a evidência palpável da verdadeira reverência do judaísmo pela
palavra escrita. este pequeno povo não se celebrizou pela arte ou por monumentos
gigantescos; o que deixou para a posteridade foi um livro, mas este livro, passando
de geração em geração, condicionou boa parte da mentalidade do ocidente.
em relação à sua própria literatura, singer era modesto, e até irônico: “quando
eu era criança”, declarou, “diziam que era mentiroso. depois que cresci, virei
escritor.” não via a literatura como um vôo do intelecto e muito menos como um ato
de redenção da humanidade: “quando a literatura torna-se demasiadamente
intelectual, quando ignora emoções, torna-se estéril, tola, vazia.” isto não exclui,
contudo, o cuidado formal, a necessidade de reescrever de forma constante,
mediante uma boa dose de auto-crítica: “a cesta de papéis é a melhor amiga do
escritor.”
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a presente antologia é muito representativa da ficção de singer. aqui
estão,entre outros contos, “gimpel, o bobo”, “o spinoza da rua do mercado”, “breve
sexta-feira”, “um amigo de kafka”, “uma coroa de penas”, “o poder das trevas”. este
último tem como cenário varsóvia, mais precisamente a já famosa rua krochmalna,
onde vive o narrador, um menino em tudo parecido ao pequeno isaac: filho de rabino
e estudioso do talmud, está começando a descobrir o sexo e seus mistérios. no início
da história, somos apresentados a henia dvosha, que “sofria dos nervos” e tem uma
estranha fantasia: está convencida de que a irmã, dúnia, está apaixonada por seu
marido, issur godel. quer morrer, para que os dois possam viver juntos. henia dvosha
morre, de fato, e dúnia, mulher emancipada, mundana, casa com o cunhado, que
também abandona o estilo de vida religioso. os filhos de henia e issur agora são
matriculados numa escola secular e recebem nomes “gentios”. tzeitel, mãe de henia,
vê a falecida em sonhos, queixando-se de que não pode repousar na sepultura. mais
que isto, o espírito da falecida instala-se, como um dibuk, no ouvido esquerdo de
tzeitel e ali fica, recitando a torá e pregando sermões. começa a primeira guerra, o
conflito que desembocará na revolução russa e que mudará o destino do judaísmo,
mas o espectro de henia dvosha continua presente: agora, mete-se na cama entre
issur e dúnia, que acabam se divorciando. “os vivos morrem para que os mortos
possam viver”, é a última frase do conto, irônico e melancólico paradoxo que
resume a literatura de singer.
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termino com um depoimento pessoal. em 1989, e a convite de uma instituição
cultural norte-americana, fui aos estados unidos para um programa de visitas a
escritores, entre eles, singer. eu ansiava por encontrar o grande expoente da literatura
iídiche, mas, para minha decepção, ele não estava em nova york, onde eu me
encontrava, e sim na florida – aquele clássico paraíso dos idosos americanos. o
coordenador do programa sugeriu que eu ligasse e tentasse agendar um encontro. foi
o que fiz: liguei para a florida. do outro lado da linha respondeu-me uma rouca
vozinha, aparentemente de uma senhora de idade, que imediatamente começou a se
queixar do assédio da imprensa, de intelectuais e do mundo em geral. ouvi durante
algum tempo e finalmente disse: muito bem, senhora singer, agora por favor chame
o seu marido. mas eu sou o isaac bashevis singer, disse a voz, agora irada. pedi
desculpas, conversamos um pouco e depois desliguei.
esta é a recordação que tenho do grande escritor americano. embutida nela,
uma dúvida: de quem era a estranha voz que escutei? isaac bashevis singer pode até
ter pensado que era ele quem falava. acho que não era. acho que era um dibuk.

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