REFORMA PSIQUIÁTRICA
É LENTA, MAS AVANÇA
Balanço da política
de Saúde Mental
mostra conquistas
inegáveis, apesar
das resistências
e dificuldades
Fragilidade da vida:
no futuro, um novo
indicador de saúde?
Conferência das
Cidades defende a
reforma urbana já
e
O S É ES O S
d o
aú i ç ã
J M RÃ à n
O O ã o pu
G P ç a
E M A t e nç ã o
T a
de c i
ir o e g o
tá n
c re r e
Se e f e
pr
RADIS no compartilhamento
do conhecimento em saúde
Conversa de doido
Comunicação e Saúde
• RADIS no compartilhamento
B aruch Spinoza dizia que o homem livre pensa sempre na morte, mas que
sua sabedoria está em meditar sobre a vida. Delicada e revolucionária, a
psiquiatra Nise da Silveira não conheceu Spinoza, mas, 300 anos após a morte
do conhecimento em saúde 2
Editorial
do filósofo, lhe escrevia cartas para aproximar-se dele “como discípula e • Conversa de doido 3
como amiga”. Porém Nise conheceu Arthur Bispo do Rosário no antigo hospí-
cio Pedro II e pôde incentiva-lo a criar e revelar sua arte consagrada em Cartum 3
todo o mundo. O sanitarista David Capistrano Filho não conheceu o escritor
Lima Barreto, que escreveu Diário do hospício quando internado pela polí- Cartas 4
cia no Pedro II, mas promoveu a histórica intervenção e humanização na
terrível Casa de Saúde Anchieta, em Santos (SP), e teve como discípulo o
Súmula 6
secretário de saúde Luiz Odorico, que fechou o manicômio Casa de Repou-
so Guararapes, onde morrera Damião Ximenes Lopes, sem a chance de ver
Toques da Redação 9
Luís Tófoli coordenar uma rede de atenção integral à saúde mental em
Sobral (CE), nem de ouvir falar de Gastão Wagner ou Rosana Onocko e da
rede de centros de atenção psicossocial de Campinas (SP). Hilton Marinho
é um simples assistente-administrativo num pequeno município fluminense,
mas defende o SUS com paixão, como sua vizinha na seção de cartas desta
revista, Christiane Brito, que é baiana como Raul Seixas, compositor prefe- Saúde mental
rido da Rádio TamTam e das festas registradas pela TV Pinel. César Victora • Como anda a Reforma Psiquiátrica? 10
conhece Jairnilson Paim, que conhece José Temporão, que conhece Madel
Luz, que conhece Pedro Gabriel, irmão de Paulo Delgado, autor do Projeto de
Lei pelo fim dos manicômios, alterado e aprovado na forma do substitutivo de
Sebastião Rocha, texto criticado por Jéferson Rodrigues. Todos defendem o
SUS, a Reforma Psiquiátrica e a Reforma Sanitária, como o doutor Domingos Debates na Ensp/Fiocruz — Epidemiologia
e tantos outros conhecidos e anônimos que não aparecem nesta edição de • Investigação e avaliação
Radis. E todos provavelmente admiravam Herbert de Souza, o Betinho, que dos serviços em saúde 20
amava o povo brasileiro. Todos loucos, que é uma “categoria social”, como • César Victora: “Nem todas
as populações são iguais” 21
ensina o mestre Paulo Amarante, discípulo de Franco Basaglia. Loucos por
• Jairnilson Paim: “Nosso campo
acreditar e lutar pela saúde de cada um e da coletividade. Loucos pela vida. está no olho do furacão” 25
História da Fiocruz
• Memórias que valem a pena 32
O cara vai passando em
frente a um hospício quando uma Entrevista: José Gomes Temporão
roda do carro se solta. Sem os • “Nada na saúde foi construído em
cima de punições, mas de articulação
parafusos, o que fazer? Um sujei- e pactuação” 33
to que via a cena da janela grita:
— Tira um parafuso de cada Serviço 34
roda, fica com três em cada.
Surpreso com a solução, ele Pós-Tudo
conserta a roda, mas antes de • Poder do cidadão 35
partir não resiste à pergunta:
— Vem cá, se você é capaz
de uma idéia tão genial, por
que está aí dentro? Capa Aristides Dutra sobre pintura de
— Ué, sou louco mas não Hieronymus Bosch
sou burro. Ilustrações Cassiano Pinheiro
RADIS 38 OUT/2005
[ 4 ]
C A RTA S
L OGOMARCA DO SUS (acima). Não obstante, nas fachadas das duas chamadas para medicamentos
Unidades de Saúde ainda é rara essa genéricos. Mas já tem médico “impli-
presença, pois a gestão nos municípios cando” indiretamente, “sugerindo”
está muito centrada no “prefeito”, por que se gaste menos espaço com le-
culpa do próprio ministério. E, geralmen- tras e “desenhos” para sobrar mais
te, nenhum prefeito entende e nem espaço para a prescrição (aquela
quer entender de SUS; portanto, divul- garranchada que todos conhecemos),
gar a responsabilidade que o SUS traz certamente de “não-genéricos”.
junto com a marca não é prioridade. E o PCCS do SUS, enquadrando
A tira do Marcelo é genial! Pre- nas mesmas regras os servidores das
cisa ser espalhada! E o exemplo de três esferas de governo, é fundamen-
Santa Catarina, ao se somar aos ou- tal e urgente, inadiável. Com o cala-
tros, anima-nos a acreditar que o SUS mitoso quadro atual, promover a mar-
ainda será respeitado e consolidado. ca implicará o risco de desmoralizá-la
Será aquele trabalho de construção para sempre!
da casa, tijolo-a-tijolo, sobre os ali- Hilton de Abreu Marinho, Santo
cerces já fundados. Não pode é ha- Antônio de Pádua, RJ
ver retrocesso.
O Ministério da Saúde devia ir P ROBLEMAS MUNICIPAIS
para a TV, de maneira séria e honesta
P RIMEIRO EXEMPLAR
complemento ótimo para nós que nos
S EMPRE EM PAUTA interessamos por saúde.
Gostaria de perguntar se os agen-
tes comunitários de saúde de uma cida-
R ecebi o primeiro exemplar da re-
vista Radis após solicitar minha as-
sinatura. Gostaria de agradecer por este
de que estão em dia com o trabalho e o presente e enfatizar a importância des-
fazem bem podem ser demitidos por um ta revista como meio de disseminação
administrador por motivos políticos, ten- de informações de extrema relevân-
do em vista que esses ACS tinham em sua cia para todos os que se interessam
maioria quase quatro anos de experiên- pela Saúde Pública em nosso país.
cia. Após essa demissão em massa colo- Vanessa Barreto Fassheber, Juiz de
caram outros agente, sem perfil algum Fora, MG
para o trabalho, tanto que já foram tro-
cados em apenas três meses. Será que o T ERCEIRO EXEMPLAR
Ministério da Saúde não pode fazer nada,
não pelos direitos dos AGS demitidos, mas
pelos direitos do povo, que está sofren-
do muito? Às vezes ficam até dois meses
sem dipirona, sem contar o descaso.
Adalberto Luiz Santos, agente co-
munitário de saúde de 2001 a 2004,
A TRASO SUPERADO
colegas de trabalho, que também
gostaram muito. Como sou agente co-
munitário de saúde e a revista trata-
va justamente do assunto, fiquei ain-
G ostaria de agradecer pelo envio
da revista, mas ultimamente ela
está chegando atrasada. Para se ter uma
da mais motivada: era a edição nº 4, idéia, a nova edição já está online e
de novembro de 2002. Já que se pas- somente ontem recebi a edição ante-
saram quase três anos, gostaria de rior (a da logomarca do SUS). Acredito
sugerir nova reportagem, para mos- que a demora seja por problemas de
trar os desafios deste profissional,
como o trabalho está sendo visto tan-
to pela população como pelas auto-
postagem, mas nós que amamos esta
revista não conseguimos ficar tanto tem-
po esperando. Continuem produzindo
E stou recebendo pelo 3º mês a edi-
ção da revista e confesso que é uma
aula de cultura e informação. Sem con-
ridades e os resultados obtidos com este importante veículo de comunica- tar que ficamos nós, assinantes desta
o programa. ção e interação para o Setor Saúde. revista, orgulhosos de poder participar
Sônia Regina Godinho Borcard, Juiz Julio Cesar da Silva Sanches, Nova de uma equipe competente e profissi-
de Fora, MG Friburgo, RJ onal. Estou me dedicando à leitura todo
mês, e aprendendo sobre problemas
sociais, políticos, culturais e, por que
E XEMPLARES ÚTEIS
SÚMULA
S ou estudante de Enfermagem do
6º semestre da Universidade Esta-
dual do Sudoeste da Bahia. Quero
agradecer os exemplares da Radis, que Guarujá (SP) quando sofreu contu-
serão utilizados como referencial em VIOXX NA J USTIÇA : R$ 600 MILHÕES são. “Apareceram com uma solução
meu projeto de monografia em saúde caseira que foi aplicada no ombro, e
pública. É considerável o compromis-
so da Radis na divulgação de temas
relevantes do panorama de saúde,
U m tribunal de Angleton, no Texas
(Estados Unidos), considerou o
laboratório farmacêutico Merck cul-
a melhora foi bem rápida”, contou o
médico Dagoberto Brandão, dono da
consultoria Pharma Consulting. Os três,
abordando com pertinência o rompi- pado de negligência por vender o então, deram início ao processo de
mento do sistema médico-assistencial analgésico Vioxx, e deu ganho de desenvolvimento do antiinflamatório
privatista, voltado para a doença, e a causa a Carol Ernst, cujo marido, fitoterápico nacional.
inserção e validação do modelo da Robert Ernst, tomava o remédio e O farmacólogo pretende conti-
vigilância em saúde, que trabalha com morreu enquanto dormia aos 59 nuar aproximando as pesquisas feitas
o perfil epidemiológico e as necessi- anos. O tribunal estabeleceu a in- na universidade e a iniciativa privada.
dades de saúde da população. denização em US$ 253,4 milhões (cer- “Existe muito ranço sobre essa ques-
Christiane da Silva Brito, Jequié, BA ca de R$ 600 milhões), que cobrem tão no Brasil. De um lado, é preciso
os salários que Ernst receberia como dizer que não adianta nada existir a
gerente de produção da rede vare- patente se, por trás disso, não vier a
que os remédios homeopáticos fun- ção. Haverá intercâmbio de informa- mas eles chegam a 98% no Lower Ninth
cionem mais do que o placebo (pílu- ções entre os laboratórios e a reali- Ward, bairro que ficou quase comple-
las sem efeito usadas em estudos zação de pesquisas para o tratamen- tamente submerso e onde ocorreu o
comparativos). Os autores, das uni- to de outras doenças, como mal de maior número de mortes. A vítimas fa-
versidades de Zurique e Berna, na Chagas e tuberculose. tais eram quase 1.000 em 19 de se-
Suíça, e de Bristol, na Inglaterra (li- tembro, mas as autoridades enco-
derados pelo professor Matthias mendaram 25 mil sacos plásticos para
Egger, de Berna), dizem que “é hora KATRINA EXPÕE A POBREZA AMERICANA transporte de corpos. O respon-
de parar” com as pesquisas sobre a
homeopatia e que os homeopatas
deveriam ser honestos com seus pa-
cientes e revelar a “falta de benefí-
cios” da homeopatia. O grupo anali-
sou 110 estudos sobre tratamentos e
remédios homeopáticos, e não encon-
trou provas “convincentes” de que
estes medicamentos tenham efeito.
A polêmica a respeito da homeo-
patia é antiga. The Lancet cita um
relatório anterior, da Organização
Mundial de Saúde (OMS), que con-
traria o trabalho dos pesquisadores
suíços e britânicos. Edzard Ernst,
professor de Medicina Complemen-
tar na Escola de Medicina de Exeter,
disse que os testes citados pela
OMS “não são os mais rigorosos, nem
os mais recentes”.
Em 2002 o ex-ilusionista america-
no James Randi, que se dedica a des-
truir mitos, ofereceu US$ 1 milhão
O s americanos foram confrontados
com a pobreza do Terceiro Mun-
do em sua própria casa, após a passa-
sável pela defesa civil dos EUA foi de-
mitido por acusar os flagelados de ig-
norarem os alertas de abandono da
(cerca de R$ 2,39 milhões) a quem gem do furacão Katrina, apontou a cidade. Mas um terço do meio milhão
provar, em testes de laboratório, que agência Inter Press Service (IPS), de habitantes de Nova Orleans, por
homeopatia cura. Até o momento, sediada em Roma. Milhares de habi- exemplo, não tinha carro próprio.
ninguém ganhou o prêmio. Na Grã- tantes de três estados do Sul Muitos nem sequer sabiam aonde ir.
Bretanha (assim como no Brasil), a (Mississipi, Louisiana e Alabama), es- O abismo entre ricos e pobres
homeopatia está disponível para usu- pecialmente os negros, perderam não pára de aumentar nos EUA, e em
ários do sistema público de saúde. casas, empregos e ficaram sem comi- meados de setembro estava prevista
Alguns afirmam que deveria ter o uso da e água. Foi um choque para o ame- a votação de uma lei que eliminaria
mais difundido, enquanto outros sus- ricano “médio”. “Vi tais cenas na te- os impostos sobre imóveis. O Tesou-
tentam que não deveria ser usada de levisão antes, mas sempre em lugares ro perderá 1 trilhão de dólares em 10
modo algum. distantes”, escreveu um repórter do anos — o que representa mais cortes
New York Daily News. “Em nações do em serviços sociais.
Terceiro Mundo, não aqui.” Nos primeiros dias da cobertura
B RASIL E A RGENTINA JUNTOS CONTRA A agência observou que o status da tragédia, a grande imprensa não
A A IDS de superpotência e de país-templo do atentou para esses fatores, lembra a
consumismo sempre escondeu a rea- IPS. Até que um apresentador da CNN,
Hugh Kaufman, da Agência de Prote- não conseguiu o status de urgência além de levar uma testemunha. A paci-
ção Ambiental americana, que ajudou urgentíssima para o exame da maté- ente também terá de assinar um ter-
a limpar Nova York depois dos ataques ria. Agora, só em 2007. mo de responsabilidade e um outro de
de 11 de setembro de 2001. “Estamos advertência. “Ela precisa saber que, se
falando de uma quantia equivalente não foi estuprada, o aborto será um
ao dinheiro que está sendo posto no D OUTORES DA A LEGRIA EM REVISTA crime”, disse ao Correio Braziliense de
Iraque.” E aí está o problema: o pre- 7/9 Regina Viola, técnica da Saúde da
sidente Bush já deve muito à indús- Mulher do Ministério da Saúde.
tria bélica, pois o Congresso, embora O Conselho Federal de Medici-
de maioria republicana, não conse- na (CFM), que sempre recomendou
gue aprovar novos aportes de recur- aos médicos que exijam o boletim de
sos na velocidade dos gastos bélicos. ocorrência nesses casos, para que
Estará Bush disposto a deixar de lado não sejam vítimas de processo na
seu esforço de guerra para recons- Justiça, preparava-se em setembro
truir cidades pobres? No dia 15/9 ele para rever a questão. Para a secre-
garantiu que sim, que gastará o que tária-executiva da Rede Nacional Fe-
for necessário na reconstrução da minista de Saúde, Fátima Oliveira,
Costa do Golfo. não faz sentido apresentar BO em
hospital. “O Código Penal brasileiro
C ÉLULAS - TRONCO
NO B RASIL
EM CULTIVO A o completar 14 anos de fundação,
o grupo Doutores da Alegria, a pri-
meira organização brasileira fundada
dispensa o boletim, só quem fazia
essa exigência era o CFM, que é um
órgão conservador”, disse. A Confe-
com o objetivo de levar a arte do rência Nacional dos Bispos do Brasil
P ORTARIA BO
PLP 1/03 APROVADO NA CCJ
DO É RESTABELECIDA
A Polícia Federal e o Ministério Pú-
blico Federal prenderam duas qua-
S AÚ D E M E N TA L
Como anda
a Reforma
Psiquiátrica?
Pergunta-se mais: como tratar sem O movimento, nesse momento,
Katia Machado excluir, sem retirar o indivíduo do deixou claro à sociedade que não
convívio social e familiar? bastava humanizar os hospícios, me-
A
Organização Mundial de Saú- A internação em hospícios e asi- lhorar o ambiente manicomial ou am-
de dedica a data de 10 de los manicomiais e, conseqüentemen- pliar o número de profissionais des-
outubro ao Dia Mundial da te, a exclusão do convício social das sas instituições. A idéia era muito mais
Saúde Mental. Nesses tempos pessoas com transtornos mentais, ampla: em lugar dos manicômios, a
de balanço da democracia, em que a passou a ser fortemente questiona- proposta era trazer o “louco” de vol-
sociedade exige mais ética na políti- da no país a partir da década de 70, ta ao convívio social, resgatar a cida-
ca, e o próprio governo propõe uma com o surgimento do movimento da dania dos que passaram anos de suas
reavaliação do Sistema Único de Saú- Reforma Psiquiátrica. Formado inici- vidas trancafiados, sofrendo maus tra-
de (SUS), é oportuno debater os ru- almente por profissionais da área da tos e humilhações (ver box nas pági-
mos das políticas públicas de saúde saúde mental, o movimento incorpo- nas 14 e 15).
mental e o estado da arte do trata- rou as famílias dos pacientes, os pró- O movimento se caracterizou por
mento aos transtornos mentais. A Lei prios pacientes e ganhou força a par- um conjunto de iniciativas políticas,
nº 10.216, aprovada em abril de 2001, tir dos avanços da Reforma Sanitária, sociais, culturais, administrativas e ju-
que estabelece os direitos dos paci- consagrados na Constituição de 1988, rídicas que tinham um objetivo: trans-
entes e regula as internações psiqui- e, posteriormente, do advento do formar. Transformar a relação da soci-
átricas, está prestes a completar cinco SUS, com a Lei 8.080, de 1990. edade com o doente, transformar a
anos de vigência, no contexto das As ações do movimento começa- instituição e o setor médico-psiquiá-
mais de duas décadas do Movimento ram a ter visibilidade com a 1ª Confe- trico, transformar as próprias práticas,
Nacional de Luta Antimanicomial e dos rência Nacional de Saúde Mental e o estabelecidas séculos antes, do lidar
15 anos do SUS. 2º Congresso Nacional dos Trabalha- com as pessoas que apresentam
Vale a pergunta: mudou a for- dores de Saúde Mental, em Bauru transtornos mentais.
ma de lidarmos com o doente men- (SP), em dezembro 1987, quando o A Reforma Psquiátrica se
tal, em comparação ao passado? secretário de Saúde da cidade era o organizou então em torno dos
Está sendo de fato posta em práti- médico-sanitarista David Capistrano da princípios de desinstituciona-
ca nossa avançada legislação, que Costa Filho (1948-2000), ativo militan- lização e desospitalização, para
preconiza o não-tratamento em ins- te das duas reformas, posteriormen- a garantia dos direitos de cidadania
tituições asilares ou manicomiais? te secretário e prefeito de Santos. dos doentes mentais. No entendimento
RADIS 38 OUT/2005
[ 12 ]
do médico-psiquiatra Pedro Gabriel em Santos, em 1989, com o fechamen- da Rádio e da TV Tam Tam, produzidas
Godinho Delgado, coordenador-ge- to da Casa de Saúde Anchieta, na épo- por ex-internos da Casa de Saúde
ral da Saúde Mental do Ministério ca conveniada ao antigo Inamps, e a Anchieta, e a República Manequinho,
da Saúde (área ligada ao Departa- criação de núcleos de atenção em homenagem a seu primeiro mora-
mento de Ações Programáticas Es- psicossocial (NAPs) e de centros de dor, para acolher ex-internos sem casa
tratégicas, da Secretaria de Aten- atenção psicossocial (CAPs) — que ou família. Segundo o educador Rena-
ção à Saúde), a reforma tinha dois serviram de modelo para todo o país. to Di Renzo, idealizador e coordena-
vetores: a desconstrução do modelo Esses serviços prestavam atendimen- dor desse projeto hoje transformado
hospitalocêntrico e a expansão de to assistencial humanizado 24 horas em organização não-governamental, a
uma nova proposta. por dia com o paciente e sua família, proposta era dialogar com a socieda-
A inspiração dessa nova propos- em bases territoriais, sem internação. de e acabar com a idéia de que louco
ta vinha da Europa, da modelar refor- “Era comum as pessoas morre- precisa ser trancafiado em asilos
ma psiquiátrica italiana, liderada pelo rem de delírio e alucinações nesses manicomiais. “E o projeto deu certo:
Os cartazes
que ilustram
esta reportagem
pertencem ao acervo
do professor Paulo
Amarante, da
Ensp/Fiocruz
destinadas a pacientes com transtor- Nesse trabalho, coordenado Gabriel, há uma rede de atenção
nos mentais egressos de internações pela Saúde Mental do ministério, psicossocial de base comunitária, de
psiquiátricas de longa permanência, estão outras propostas: a inclusão âmbito nacional, que ampliou “radical-
com dificuldades de reintegração das ações da saúde mental na aten- mente” o acesso ao atendimento dos
familiar, moradia e reinserção soci- ção básica; a política de atenção in- portadores de transtornos mentais.
al); e nas Unidades Psiquiátricas em tegral a usuários de álcool e outras Outro indicador importante na
Hospitais Gerais (UPHG). drogas; a extensão a todo o país opinião de Pedro Gabriel diz respeito
do programa “De Volta Para Casa” ao financiamento do SUS para a saú-
(que reintegra socialmente os pa- de mental: em 1997, 93,14% dos re-
Radis adverte cientes de transtornos mentais
egressos de longas internações e
cursos remuneravam internações psi-
quiátricas, sobrando um resíduo de
paga-lhes o auxílio-reabilitação 6,8% para o sistema extra-hospitalar;
psicossocial); um programa perma- ao fim de 2004, os percentuais eram
nente de formação de recursos hu- de 63,86% e 36,16%, respectivamen-
manos para a reforma psiquiátrica; a te. “O dinheiro do SUS está saindo
promoção dos direitos dos usuários do sistema hospitalar em direção aos
e de suas famílias, incentivando a serviços comunitários”, afirma Pedro,
participação no cuidado; a garantia “seguindo o paciente”, como preco-
do tratamento digno e de qualida- niza Benedetto Saraceno, diretor de
de ao paciente infrator, superando Saúde Mental da OMS.
o modelo de assistência centrado
no Manicômio Judiciário; avaliação EXCLUSÃO TUTELADA
contínua de todos os hospitais psi- E na prática, como estão sendo
quiátricos pelo Programa Nacional de cumpridos os objetivos propostos? A
Avaliação dos Serviços Hospitalares lei tem ajudado de fato na redução
(Pnash/Psiquiatria). do número de leitos psiquiátricos e
Este seria o mundo ideal: tais de manicômios no país? Na opinião de
ações atenderiam às recomendações Paulo Amarante, a Lei 10.216 promo-
da Organização Mundial de Saúde, veu menos mudanças do que preco-
que prevêem a mudança gradativa nizava o projeto de Paulo Del-
do modelo centrado na internação gado. “A nova legislação, que
pelo modelo de atenção de base co- afinal substituiu o projeto, não
O RADIS aproveita para cor-
munitária, consolidado em serviços fala em acabar com os mani-
roborar a advertência de
territoriais e de atenção diária. cômios: estabelece apenas
1999: o hospício continua
Pedro Gabriel considera que os que não se pode ter mais ins-
fazendo mal à saúde.
avanços na reforma brasileira são tituições com características asila-
inquestionáveis. No período de 2000 a res, e não define o que é um asilo”,
RADIS 38 OUT/2005
[ 14 ]
lamenta. “Em meu entendimento, dos hospitais psiquiátricos, de algu- Outra crítica marcante, para ele,
todo local que se baseia na exclu- mas associações de familiares de pa- diz respeito à regulamentação da in-
são tutelada é um asilo”. cientes (Radis nº 18), vinculadas a ternação psiquiátrica que, segundo
Para o professor, o fato de o pro- esses hospitais e por eles influenci- a lei, está dividida em três tipos: a
jeto ter ficado 12 anos em tramitação adas, e pelo setor da psiquiatria tra- voluntária, quando o paciente assina
— de 1989 (quando proposto) a 2001 dicional e conservadora que acha um documento e aceita a internação;
(quando substituído pela Lei 10.216) que doença mental é perigosa, a involuntária, quando julgada neces-
— deveu-se à resistência dos donos incapacitante e sem cura. sária pelo médico; e a compulsória,
Emygdio de Barros
Adelina Gomes
RADIS 38 OUT/2005
[ 15 ]
decidida pela Justiça quando a pes- te”, questiona. “Mas, se ela não acei- tornos para o próprio MP que, se-
soa comete algum delito justificado tar, é internada involuntariamente”. gundo o professor, “não sabe o que
por um transtorno mental severo. Ou seja, de qualquer forma há a fazer com essa notificação, e alega
Em sua opinião, há uma contradição internação. A diferença é que, quan- que não lhe cabe questionar a auto-
nessa classificação. “Se a pessoa do involuntária, o médico precisa avi- ridade médica”, diz Amarante.
está em crise e aceita ser internada sar ao Ministério Público em 72 ho- Da mesma opinião, o enfermeiro
é porque ela tem lucidez e capaci- ras, conforme determina o parágrafo Jeferson Rodrigues, especialista em
dade para entender que está doen- 7º da lei. Isso acaba gerando trans- Atenção Psicossocial pela Universidade
do Estado de Santa Catarina (Udesc), número de pacientes atendidos por dia mente CAPs/NAPs, e havia uma inter-
acredita que a lei deixou de lado duas e de profissionais disponíveis. pretação “meio livre” de que os NAPs
das principais lutas do Movimen- Para Amarante, o problema dessa funcionavam 24 horas. “Portanto, não
to Antimanicomial, a da extinção portaria é que ela retirou do texto a houve esta mudança na concepção ori-
dos hospícios e a da inclusão dos “lou- expressão NAPs — de Núcleo de Aten- ginal”, afirma Pedro Gabriel. “Ao con-
cos” na sociedade. “Tudo devido à ção Psicossocial —, uma proposta as- trário, houve um reforço e uma fixa-
ação corporativa de algumas catego- sociada aos CAPs. Embora criados com ção do papel territorial dos serviços”.
rias profissionais e aos interesses das a mesma função, a de substituir o mo- Mas Amarante insiste na crítica: ao
indústrias farmacêuticas, que conse- delo de internações psiquiátricas e categorizar os tipos de CAPs, a portaria
guiram alterar o artigo 1º, que proibia, manicômios, cuidando na família e na acabou impondo a necessidade de um
em todo o território nacional, a cons- sociedade de pessoas que sofrem de diagnóstico preciso do paciente. E, para
trução de novos hospitais psiquiátricos transtornos mentais, os dois tipos guar- ele, diagnosticar é muito complicado
e de novos leitos nos já existentes”, dam pequena e importante diferença. quando se fala de transtorno mental,
“Então, é justamente o contrário do ar- quiátrica saia do campo da teoria para “O CAPs é sensacional nesse as-
gumento apresentado, foi esta medida a prática. “Muitas pessoas ainda con- pecto, e é uma real novidade tecno-
que deu sustentabilidade financeira à fundem a Reforma Psiquiátrica com uma lógica”, elogia. Pedro conta que em
expansão dos serviços substitutivos”, mera reorganização de serviços, ou setembro participou de longa reu-
contrapõe. “Perguntem a qualquer se- com a modernização da instituição psi- nião num CAPs de Natal que come-
cretário municipal de Saúde”. quiatria”, reflete. Como Amarante, morava 10 anos de funcionamento,
Para Jeferson, entretanto, o que Jeferson acredita que essa reforma é com mais de 30 usuários, todos ex-
temos hoje em termos de legislação não “um processo social complexo que pacientes graves e sofrida história
é suficiente para que a Reforma Psi- envolve movimentos, atores, conflitos manicomial. “Nenhum deles tinha
precisado internar-se no último ano, da médica-sanitarista Rosana Onocko De acordo com Rosana, há ain-
mas falavam disso como um duro tra- Campos, especialista em Saúde Men- da uma Unidade de Atenção à Crise
balho cotidiano — o trabalho da tal e super-visora clínica na área (NAC) e um pequeno núcleo de pa-
cura. Onde estariam eles se não fos- de Campinas (SP), a rede na cida- cientes crônicos. “O fato de contar
se o CAP?”. de desenvolveu-se positivamente com um CAPs por distrito de saúde
Para o especialista, o modelo na última década no que diz res- honra a proposta de regionalização
proposto de substituição dos mani- peito à desospitalização. “Houve do SUS”, orgulha-se. “Sem falar
cômios está centrado no paciente, crescimento do número de CAPs, que a grande quantidade de CAPs
em sua inclusão ativa na vida cotidia- com implantação do tipo 3, e foi 3, em tese, favorece a queda das
na. E o CAPs ajuda na articulação da desativado um hospital psiquiátri- internações psiquiátricas”. Em sua
rede de saúde mental em determina- co”, conta. “Essa desativação foi opinião, o exemplo de Campinas é
do território, aproximando a rede bá- realizada de maneira pioneira, ofe- válido para mostrar que há instru-
sica, os ambulatórios, as residências recendo às pessoas que ali traba- mentos legais suficientes para fa-
Integram-se à rede as equipes e O trabalho realizado em saúde caiu expressivamente, assim como a
unidades do Saúde da Família de Sobral. mental na cidade se destaca, na opi- média de permanência de internação.
Segundo Luís Tófoli, os profissionais nião de Luís Tófoli, pelo fato de que “Eram cerca de 30 dias, e agora é de 7
do CAPs começaram um trabalho con- os CAPs não são meramente servi- ou 8 dias”, informa. Além disso, pacien-
junto com o programa desde 2000, por ços substitutivos do modelo manico- tes cuja única forma de tratamento era
meio do modelo Atenção Colaborativa mial, “mas verdadeiros centros de entrar e sair do hospital puderam ter
Integral em Saúde Mental. “Esse tra- interação com a comunidade”. Os sua cidadania respeitada, fazendo par-
balho foi se fortalecendo com o tem- centros psicossociais da cidade vêm te dos grupos terapêuticos do CAPs e
po e se ampliando”, conta. “Atualmen- atendendo não só pacientes inten- da Associação Encontro dos Amigos da
te, todas as unidades de Saúde da sivos e semi-intensivos, como tam- Saúde Mental de Sobral, fundada em
Família são visitadas por supervisores bém os ambulatoriais. 2003. Outros ainda conseguiram rece-
psiquiatras ou uma enfermeira com es- Sobral vem colhendo bons frutos. ber alta da residência terapêutica, vol-
pecialização em psiquiatria, avaliando O número de dias internados de cida- tando para suas famílias ou vivendo sós.
e discutindo casos, e não simplesmen- dãos sobralenses e da macrorregional “Fora isso, a mentalidade da cidade vem
mudando paulatinamente, perdendo o
preconceito e aceitando o tratamento
não-segregador”, alegra-se Luís.
Loucos de pedra Apesar do sucesso do trabalho, há
alguns desafios ainda a enfrentar. Para
Investigação
e avaliação
dos serviços
em saúde
res, profissionais e convidados, lotavam de
Marinilda Carvalho e Thiago Vieira* o Salão Internacional do quarto an- acompa-
dar da escola, aguardando as pales- nhar.” A idéia
A
comissão de pós-graduação tras em clima de excitação — houve dos organizadores é
da Escola Nacional de Saú- até um tombo espetacular na busca estabelecer focos, priori-
de Pública Sergio Arouca de bons lugares! —, já que o tema é dades e desafios que orientem
promoveu em 4 de agosto no de grande interesse para o pessoal da o cotidiano da pós-graduação da Ensp,
auditório da escola, em Manguinhos, saúde. Como não parava de chegar em processo de reformulação. Como
Rio de Janeiro, o primeiro de uma sé- gente, antes do fim da intervenção de os temas estão no foco do Programa
rie de debates sobre saúde pública. César Victora os organizadores se vi- RADIS, registraremos as palestras.
O evento marcou o lançamento de ram obrigados a transferir o evento Carlos Coimbra, editor dos Cader-
edição especial sobre “Investigação para o auditório principal, no térreo. nos de Saúde Pública, saudou a inicia-
e avaliação dos serviços em saúde” O diretor da Ensp, Antônio Ivo de tiva inédita de casar o lançamento de
dos Cadernos de Saúde Pública, pu- Carvalho, abriu os trabalhos comen- uma edição temática às atividades da
blicação bimestral da Ensp/Fiocruz. tando o boom de debates na escola. pós-graduação. “Nossas forças unidas
As coordenadoras da edição, Cláudia “A cada manhã e a cada tarde te- juntam muito mais gente do que podí-
Travassos e Maria Dutil, convidaram mos recebido autores renomados, amos imaginar”, disse, provocando ri-
os epidemiologistas César Victora e no esforço de proporcionar um in- sos no auditório lotado. Carlos expli-
Jairnilson Paim para falarem sobre a tercâmbio permanente entre alunos, cou que os números temáticos dos
importância das duas disciplinas nos professores e colegas de outras ins- Cadernos visam atender a uma deman-
serviços e nos sistemas de saúde. tituições”, disse. “Esse evento se ins- da de aprofundamento das discussões
Fazia muito calor, e mais de 150 creve nesse programa intensivo de sobre grandes temas de interesse da
pessoas, entre estudantes, professo- debates, num ritmo quase impossível saúde coletiva.
RADIS 38 OUT/2005
[ 21 ]
saber quem está sendo atingido pelo os mais pobres, o grupo em que have- agentes comunitários iam às casas e
programa. A desigualdade de cober- ria maior impacto. levavam a intervenção. Mesmo um
tura é questão fundamental, que Então, o estudo já tem uma série enfoque probabilístico exige um ar-
exige estudos descritivos. Temos es- de imperfeições, e a necessidade da gumento de plausibilidade para tor-
tudos de eficácia de intervenção, intervenção pode ser menor do que nar a evidência crível e plausível.
queremos saber se aquela linha de naquele lugar em que se fez o ensaio Mas a questão é somente de efi-
intervenção funciona em condições controlado. Aplico vitamina A numa cácia e efetividade? E o que existe
ideais, aí precisamos também de es- região sem tanta necessidade. Final- no meio? Por exemplo, para a eficá-
tudos experimentais e às vezes mente, os fatores contextuais po- cia clínica de uma droga ou vacina:
observacionais, pois é um tipo de dem não existir nessa outra rotina, as condições são ideais? Oferecemos
evidência. Basicamente temos que e não se consegue o mesmo impac- a todo mundo? A droga é grátis? E a
voltar aos estudos observacionais to. Os ensaios clínicos randomizados aderência do paciente, também é
para medir efetividade em larga es- ideal, há vantagens para as pessoas
cala: nem todas as populações são participarem? Então, trata-se de um
iguais. A modificação de efeito, que ensaio individual. No segundo tipo de
é um termo usado em epidemiologia, Temos que ensaio, que chamamos de regime,
é a regra, e não a exceção, e signi-
fica que um programa numa popula- pensar um entra a saúde pública: as unidades
já são um grupo (um município, um
ção pode ser diferente em outra.
Isso é especialmente válido no cam-
pouco mais sobre centro de saúde, uma escola), faze-
mos uma oferta ideal e adotamos
po da saúde internacional, pois en- a interferência medidas especiais para que a ade-
saios clínicos e resultados de um rência seja ideal também (damos
país não se aplicam necessariamen- sem adotá-la traansporte, tratamentos grátis e be-
te a outros países, devido a siste-
mas de saúde diferentes e a popu-
automaticamente nefícios para que participem). Cha-
mo isso de eficácia de regime, por-
lações diferentes. que as pessoas recebem a droga
efetivamente, ela chega ao recipi-
AS CONDIÇÕES IDEAIS priorizam a validade interna, a loca- ente da melhor maneira.
O estudo de eficácia responde a ção aleatória reduz a probabilidade.
uma pergunta: a intervenção funciona Não anula, mas reduz a uma probabi- A EFICÁCIA IDEAL
quando implantada em condições ide- lidade conhecida a priori. Segundo, Há outro tipo de eficácia, a de
ais? Um programa de vacinação, de trei- o cegamento, o fato de que as pes- oferta, muito parecido com eficácia de
namento de agentes comunitários, de soas sabem ou não sabem se estão regime: a intervenção é do tipo ideal,
suplementação de ferro funciona em recebendo a intervenção, também mas sem nada de excepcional para
condições ideais? Esse modelo tem al- reduz o viés da informação. Já fiz meia melhorar a aderência: não se paga pas-
gumas características: geralmente é dúzia de ensaios randomizados, e eles sagem etc. Apenas uma intervenção
muito bem implementado. Treinam-se são ótimos, são essenciais — só que bem-oferecida. Isso é uma eficácia de
as pessoas, fornecem-se os equipamen- não vão até o fim, lá onde a saúde oferta: grande parte dos estudos que
tos e tudo funciona em condições óti- pública precisa chegar. fazemos aqui no Brasil é de eficácia de
mas. A cobertura populacional é muito Na saúde pública, as cadeias cau- oferta. O fato de existir uma pesquisa
alta. Paga-se até o transporte do paci- sais num programa de vacinação, por já melhora um pouco a oferta do servi-
ente; se ele não vem, alguém vai atrás. exemplo, são muito mais complexas — ço, as pessoas sabem que estão sendo
E são atingidos os mais pobres. até a vacina chegar ao indivíduo tem estudadas, as unidades sabem que ssão
Por exemplo, não se faz um ensaio que acontecer um monte de coisas. parte de um estudo. Eu diria que já
de vitamina A no Rio Grande do Sul, mas Um exemplo clássico é uma droga de não é a rotina, e sim a boa prática, um
no interior do Nordeste. Isso é impor- efeito farmacológico que cura uma pouquinho melhor do que a rotina.
tante, porque às vezes o programa é doença: essa é uma cadeia que eu Uma quarta opção é a eficácia de
usado onde não é tão necessário. Fi- chamaria de curta do ponto de vista programa. O programa é oferecido no
nalmente, os fatores contextuais, as ca- da saúde pública. O ensaio clínico contexto de uma situação de estudo:
racterísticas do ambiente raramente randomizado mostra a probabilidade de não é ideal, não faço nada de excepci-
são descritas no ensaio de eficácia. que o resultado se deva à intervenção. onal, mas o programa é oferecido a al-
No outro extremo, o que a efe- É uma afirmativa probabilística. Ele por gumas unidades de saúde. Mas estou
tividade responde? O gestor quer sa- si só não basta, exige outras evidênci- interessado mesmo é na efetividade:
ber se a intervenção funcionará, mas as. Em termos de plausibilidade biológi- tenho grupos que recebem e outros
a implementação dos estudos de efe- ca, é preciso explicar como age o agen- que não recebem, tudo sob condições
tividade geralmente é imperfeita, e te que causou tal efeito, entender de rotina. Então, para medir efetividade,
não se consegue um programa bem como isso ocorre; e de plausibilidade sendo ensaio randomizado ou não, a mera
implementado como o estudo de efi- operacional, no caso de um progra- presença de um grupo de pesquisadores
cácia em condições de rotina. Não há ma, é preciso mostrar os municípios já influencia. Temos que fazer isso por
treinamento adequado, a cobertura é que receberam a intervenção, que métodos observacionais. Infelizmente te-
parcial, e provavelmente são excluídos as pessoas foram treinadas, que os mos um grande viés, que é nossa herança
RADIS 38 OUT/2005
[ 23 ]
problemas de desnutrição, então, to- nados; dos que foram treinados, 80%
Em inglês, Consolidated Standards das essas etapas têm de ocorrer. No melhoraram o conhecimento; des-
of Reporting Trials, ou recomen- nosso estudo randomizado, investiga- ses, 80% melhoraram o desempenho...
dações destinadas a melhorar a mos o efeito significativo e consegui- Então eu fiz uma conta: isso dá 21%
qualidade dos relatórios de ensai- mos documentar todas as etapas; en- de efetividade. Mesmo com um nível
os, com lista de verificação (check tão qual é, na verdade, a validade alto de eficácia em cada ponta, a
list) e de fluxograma. Alguns auto- externa do meu estudo em áreas po- efetividade final vai ser muito baixa.
res falam em 22 itens. bres de Pelotas? É que em Pelotas há Então, temos que colocar os pés
uma série de coisas que normalmente no chão dessa realidade complexa.
também da clínica, de que se o estudo as pessoas não mostram. Primeiro, ha- Por que dizemos que os ensaios
não é randomizado não é bem feito. via uma equipe central competente de eficácia podem não ser generali-
Nós, sanitaristas, temos que res- que adaptou o programa. Segundo, os záveis para rotina? Primeiro, a dose da
ponder a essa crítica e valorizar ou- intervenção pode ser menor na rotina
tros tipos de estudos experimentais. do que a usada no estudo, o que cha-
Um consort, rotina de informações num mamos de “modificação de efeito
ensaio clínico (grande parte das revis- O ensaio clínico comportamental”, o comportamento
tas nem aceita artigos sem consort),
tem todas essas características, que randomizado do agente e do recipiente. A dose é
menor porque o agente não aderiu
são 21. E só uma dessas 21 característi-
cas é a validade externa, o resto é tudo
é bom para alguns, bem ao programa, ou porque a popu-
lação não estava usufruindo desse pro-
interna. Claro, se o estudo não tem mas não resolve grama na proporção certa. A segunda
validade interna também não terá ex- coisa é quando a relação dose-respos-
terna, mas vejo um viés nessa tão gran- a questão da ta é feita de forma diferente, o que
de valorização da validade interna —
de como esse estudo pode ser gene-
saúde pública chamamos de “modificação de efeito
biológico”: a população é diferente
ralizado para outras populações, a ques- daquela do estudo. Quanto maior a
tão crítica da saúde pública. cadeia causal, ou seja, quanto mais
Quando faço um ensaio em saúde agentes são treináveis, ou seja, dada a etapas tivermos, maior a probabilidade
pública, ele é randomizado, mas já te- complexidade do programa educativo, de que haja alguma modificação de-
remos uma visão em saúde pública. Pri- a qualidade do agente era adequada. pois. Então, é óbvio que, se eu faço
meiro, temos que oferecer intervenção (Participei de avaliações de programas um estudo de deficiência de vitamina A
do nível central, do ministério ou da se- em vários países: na Tanzânia, por numa população com muita carência
cretaria de saúde, que precisa chegar exemplo, o programa era muito incom- de vitamina A, a resposta vai ser enor-
às comunidades. No nível local os tra- pleto e o agente de saúde tinha um me. Com pouca carência, a resposta
balhadores de saúde têm que aderir, e nível tão básico que era não-treinável. vai ser menor — mas aí o poder de es-
a população também. Somente no fim Na verdade, essa é uma expressão ina- tatística é pequeno, todo mundo vai
terei um efeito biológico da interven- dequada — o programa é que era ruim. atrás do lugar onde tem muito proble-
ção. As cadeias causais com que estamos Em Pelotas, o agente era treinável.) ma para fazer estudos.
lidando são muito mais complexas. Mais: é necessário pesar a crian- Bom, quais são as limitações da
Se um programa da OMS é expor- ça, então precisamos ter balança. O metodologia dos ensaios clínicos para
tado para mais de 100 países, há um serviço de saúde: se ninguém apare- esse tipo de implementação em larga
componente nutricional: o estímulo ce para consultas, o problema é sé- escala? Muitas vezes não é possível
ao aleitamento materno ou a uma rio. No Níger, o número de consultas randomizar, ou não é ético ou não é
complementação alimentar adequada por ano é de 0,5, ou seja, uma crian- político. Por exemplo, a cidade onde
para a criança a partir dos 6 meses, ça vai ao médico meia vez por ano. De nasceu o secretário de saúde sempre
com alimentos ricos em energia e pro- 0 a 5 anos vai duas vezes e meia ao tem que estar no grupo que recebe...
teínas. Então é uma intervenção serviço de saúde pública, ou seja, não [A platéia ri]. A outra coisa que acon-
comportamental de mudança de hábi- dá para fazer um estudo, de tanto que tece muito em nosso país é que a gen-
tos de alimentação de crianças meno- o acesso é limitado. Os alimentos têm te implementa sem avaliar. A avaliação
res de 2 anos. O programa precisa ser que estar disponíveis, não adianta fa- em si atrapalha a intervenção. Além
adaptado ao país: temos que treinar zer educação alimentar se a popula- desses estudos de probabilidades que
os agentes de saúde para melhorar seu ção não tem condição de comprar o estão constituindo o padrão-ouro para
desempenho, para transmitir à mãe o alimento. E, finalmente, a falta de ali- avaliação de eficácia de agentes bio-
conhecimento, pois é a mãe que vai mentos tem que ser uma causa da des- lógicos, nutricionais e principalmen-
mudar a dieta da criança, aumentar sua nutrição. Em alguns lugares não é — te em contextos clínicos, há outros
ingestão calórica e protéica e melho- pode ser um excesso de alimento de- enfoques, que chamamos de “quase-
rar o ganho de peso. teriorado, e não falta de alimento. experimentos”, de alguns experimen-
Para colocar os pés na realidade, tos naturais. Há estudos de adequa-
A VALIDADE EXTERNA se tiver 80% de sucesso em cada etapa ção descritivos e de plausibilidade.
Se se trata de uma intervenção do programa qual é o impacto final? Uma variação de adequação é muito
dirigida a uma população ainda com Tenho 80% dos agentes de saúde trei- simples: se o meu programa tem uma
RADIS 38 OUT/2005
[ 24 ]
meta, por exemplo, reduzir a mortali- para ver aquele sinal de desidratação, tão, precisamos de mais evidências para
dade infantil em 20%, pergunto se foi que hoje em dia já não se vê mais. Hou- melhorar essa plausibilidade.
atingido ou não. Se meu programa não ve um grande programa na década de
tem meta quantitativa, pergunto se as 90, o Programa Nacional de Controle das O PESO DO JULGAMENTO
tendências observadas foram na dire- Doenças Diarréicas, que envolvia a te- Então, muita coisa mudou no
ção certa e na magnitude esperada. rapia de hidratação oral, soro caseiro, Nordeste, felizmente tínhamos da-
soro de pacote distribuído nas unida- dos do Censo (saneamento, pobre-
IMPACTO INSUFICIENTE des sanitárias. E nós resolvemos medir za, amamentação, prevalência de des-
Se com isso liquidamos metade isso retrospectivamente usando dados nutrição), e criamos um modelo de
dos programas que existem no Brasil, secundários, que é outra coisa que a simulação que usava os riscos relativos,
simplesmente as coisas não estão se gente tem que resgatar. No caso, usa- que já existiam de outros estudos bra-
desenvolvendo com o impacto que de- mos hospitalizações e tivemos contro- sileiros. Desta forma, constatávamos
veriam. A avaliação de adequação é a que, se aumentou o saneamento em
coisa mais simples que existe, e tam- tantos porcento, a diarréia tinha que
bém tem limitações. O que chamamos ter diminuído tantos; se a amamentação
de adequação é a significância sanitá- Como um aumentou de tanto para tanto, a diar-
ria. Quando um gestor de saúde pode
tomar decisões? Primeiro, quando a si- estudo pode réia tinha que ter diminuído tanto. E
essa simulação mostrou que esperaría-
tuação não melhora, ou o programa
está ruim ou aconteceu alguma coisa
ser generalizado para mos 21% de declínio na mortalidade de-
vido a esses fatores contextuais. Mas,
na cidade que aumentou a prevalência outras populações é na verdade, houve um declínio de 57%,
da doença. Quando há melhora, três bem maior que o previsto. Logo, algu-
fatores têm que estar presentes: pri- a questão crítica ma coisa ocorrera além de saneamen-
meiro, a magnitude é grande; segun-
do, a cadeia causal é relativamente
da saúde pública to, amamentação etc. A melhora da di-
arréia parece ser devida ao programa.
curta, ofertando um programa que No estudo de plausibilidade usamos
leva um efeito mais ou menos imedia- muito o julgamento. Tudo apontava no
to; terceiro, quando a probabilidade le histórico e geográfico. Naquela sentido certo. Então, posso ficar tran-
de confusão é baixa, uma avaliação de época não havia sistemas de informa- qüilo: se sou gerente do serviço em
adequação pode ser suficiente. Final- ções hospitalares, então pegamos um saúde, secretário ou ministro, conti-
mente, a avaliação de adequação é estudante de Medicina e colocamos nuo com o programa.
analisar o antes e o depois, é obser- em cada um dos maiores hospitais Esses estudos observacionais que
var as tendências daquele evento e pediátricos nordestinos (porque o Nor- a gente tem que resgatar precisam ser
observar depois o problema. deste era a maior região do país em valorizados, porque quando são bem fei-
Agora, vou citar alguns estudos mortalidade por diarréia). Esses estu- tos podem ajudar na tomada de deci-
de plausibilidade — lembrem, proba- dantes revisaram 10 anos de prontuári- sões em saúde sem nenhuma dúvida.
bilidade é o randomizado, eu tenho os. E viram quantos porcentos de crian- Mas, quando usamos essa avaliação de
uma afirmativa restrita de probabili- ças eram admitidas em função da diarréia. plausibilidade? Primeiro, quando o ensaio
dade e estatística, e plausibilidade é E são impressionantes esses dados: clínico é tão artificial que não é adequa-
quando eu não posso fazer isso. Eles em 1980, quase 60% das internações de do à complexidade da intervenção, que
respondem à pergunta seguinte: o crianças menores de 1 ano eram por na prática vai ser muito diferente da que
impacto observado parece ser devido diarréia (tinha enfermaria de diarréia foi construída no ensaio. Segundo, quan-
a minha intervenção? Então tenho que no hospital); 10 anos depois eram 30%, do temos eficácia, mas vamos ver se fun-
ter algo para comparar, e essa compa- ainda era bastante, mas a metade. Em ciona na rotina. Terceiro, quando há ra-
ração pode ser histórica, antes ou 1980 ninguém usava hidratação oral, os zões éticas ou práticas que impeçam a
depois, e geográfica — lugares onde pediatras resistiam. Ao mesmo tempo, randomização. Quando a intervenção
haja mais daquela intervenção e lu- eu não tinha denominador. Então, re- é rapidamente universalizada e não há
gares com menos. É o velho estudo solvi pegar tudo quanto era óbito de tempo de ter controle e é preciso
observacional aplicado à avaliação menor de 1 ano por diarréia e dividir avaliar de qualquer maneira. Estamos
de impacto de programas de saúde. pelo total de óbitos do estado. Era uma tentando resgatar a importância dos
Tenho que controlar a possibilida- mortalidade proporcional modificada — estudos randomizados. Precisamos de
de de que outros fatores expliquem óbito de menor de 1 ano por diarréia estudos de eficácia e de efetividade,
o que aconteceu quando o progra- por total de óbitos. Em 1980, 13% dos precisamos de estudos randomizados
ma foi implementado. óbitos registrados no Nordeste em e observacionais. Temos que ter va-
E o exemplo que queria dar, ainda qualquer idade era diarréia de crian- lidade interna, mas também temos
que um pouco velho, é interessante: a ça, e caiu para 4% 10 anos depois. Foi que nos preocupar mais com a vali-
diarréia. Hoje em dia a gente não con- uma queda enorme também. E se eu dade externa. E, finalmente, as agên-
segue ensinar aos nossos alunos o que mostrar isso a qualquer epidemiologista cias financiadoras e as revistas médi-
é desidratação. Apareceu lá em Pelotas ele vai dizer, e com razão, que se está cas têm que ser mais receptivas a esse
um menino com prega cutânea persis- subindo uma e baixando a outra, signi- tipo de estudo, porque freqüentemente
tente e chamaram a faculdade inteira fica que uma é a causa da outra. En- isso não é publicado no exterior.
RADIS 38 OUT/2005
[ 25 ]
do ponto de vista concreto das insti- sas. Há ênfase na pesquisa básica, na cisão. Temos momentos em que falta co-
tuições e das práticas. dicotomia com a pesquisa aplicada, en- nhecimento para a tomada de decisões,
Testa mostra como a vida cotidia- tendendo a pesquisa básica por “conhe- mas temos momentos em que há co-
na vai criando mitos que se relacionam cer e entender” e a aplicada, por “co- nhecimento suficiente, e as decisões
com outras formas de construção de nhecer e utilizar”. Há uma cobrança muito são postergadas porque implicam opção.
mitos, como a religião e a história, o grande para que a investigação de serviços Em outras palavras, nem sempre é por
que constrói uma determinada manei- em saúde seja aplicada. falta de conhecimento que as decisões
ra de ver as coisas, que pode se trans- não são tomadas.
formar em determinado saber-fazer e ENTRE PROVAS E CRENÇAS Também há momentos em que as
resultar em práticas profissionais e No Modo 1, o enfoque disciplinar, decisões são necessárias mesmo dian-
culturais. Nas ciências naturais, já se a transferência unidirecional e poste- te de escassas evidências. Não vamos
começa com uma teoria de desenvol- rior dos conhecimentos e tecnologias, esperar 10, 20, 30 anos para que os
vimento metodológico e epistemológico, efeitos dos transgênicos se façam
chegando a crescimento e mudança demonstráveis e determinadas deci-
com essa validação de resultados. Nas sões sejam assumidas. Nosso campo
humanas e sociais, há uma imersão do Não vamos está no olho do furacão, entre políti-
pesquisador nesse mundo social.
Então, quando falamos de uma ins- esperar 10, 20, cas e programas baseados em evidên-
cias — ou baseados em crenças.
tituição, já temos um olhar muito próxi-
mo, uma familiaridade, o pressuposto de
30 anos para que os As investigações que recortam
das práticas de saúde ao conjunto
que se conhece tudo daquela institui- efeitos dos transgênicos de políticas são um desenvolvimen-
ção. Portanto, a necessidade de passar to do que realizamos na América La-
por cima dessa pré-noção e chegar à se façam tina e no Brasil ao longo da década
construção do conceito de uma teo-
ria, para nos distanciarmos daquilo que
demonstráveis de 90. Conseguimos atravessar as vá-
rias estratégias de investigações mais
está mais próximo, passa pelo que o “macro”, que trabalhavam com con-
autor chama de “hermenêutica zero” ceitos mais robustos, até mediações
— uma construção do objeto. Para isso ênfase em método científico, recursos que nos fizeram chegar a investiga-
buscamos enfoques teóricos que ori- públicos e planejamento centralizado — ções mais concretas e empíricas. Em
entem o desenvolvimento metodológico os recursos públicos financiam a maior vez de investigações sobre grandes
e técnico da investigação. A validação parte das investigações ditas tradicionais. determinantes das políticas de saú-
interna já é uma segunda hermenêutica A outra forma de produzir conhe- de, chegamos a preocupações muito
nesse campo das investigações sociais cimento, o socialmente distribuído, mais relacionadas à implementação
e humanas, criando novas positividades não parte de instituições fechadas, dessas políticas, às trajetórias, do que
e, por sua vez, em última análise, re- mas de redes de colaboração entre aos processos decisórios.
sultando na militância social. instituições. A agendas são definidas
Isso foi ilustrado em duas diferen- em contextos de aplicação, não tan- COMO “NÓS” GOVERNAMOS?
tes formas de produção de conheci- to pela cabeça do pesquisador. Há Uma pergunta nos inspirou nes-
mento científico, numa esquematização muita preocupação com solução de se período: como o governo gover-
de Gibbons. A primeira ele chama de problemas, enfoque transdisciplinar ou na a saúde? Trabalhos transforma-
Modo 1 ou tradicional, e a outra, de interdisciplinar, intercâmbio permanen- dos em livros tentaram mostrar
Modo 2 ou forma socialmente distribu- te de conhecimentos e tecnologias. Há como os diferentes governos con-
ída. A forma tradicional de produzir co- uma preocupação, sim, com o método templavam a vigilância sanitária na
nhecimento científico se caracteriza científico, mas acoplado à relevância ditadura, na Nova República e mais re-
por instituições com paredes, geralmen- social, a múltiplos meios para difundir centemente. Quanto mais nós, da saú-
te universidades e centros de pesquisa. esse conhecimento, e não somente às de coletiva, nos aproximarmos do Esta-
As agendas são definidas por pesquisa- chamadas revistas científicas. E uma do, do governo, da gestão, dos processos
dores em função de suas disciplinas, su- diversidade de fontes, de financiamen- de decisão, surgem perguntas mais es-
bordinados ao meio-fio de suas pesqui- tos públicos e privados, e a necessida- pecíficas: como a saúde coletiva gover-
de de criação de espaços de interação. na a saúde? Quando a “classe operária
Com algum exagero, eu diria que chega ao paraíso?” Ou quando o sanita-
Doutor em Física, mestre em ra- as investigações de serviços em saúde, rista chega ao núcleo mais poderoso do
dioastronomia, matemático, en- na área de planificação e gestão, ten- Estado, que é o Ministério da Fazenda [ri-
genheiro, hoje secretário-geral dem muito mais ao modo 2 do que ao sos na platéia] e espaços da administra-
da Association of Commonwealth modo 1. O que não significa que não ção central são ocupados pelos salubristas,
Universities, a Associação das Uni- devamos explorar o mais criativamente os sanitaristas, os médicos sociais e os
versidades da Comunidade Britâ- possível certas características do modo socialistas da saúde, enfim, todas as tri-
nica na Organização para a Coo- 1. Ao mesmo tempo, temos que ter em bos e subtribos, como governamos?
peração e o Desenvolvimento conta toda a complexidade da área de Esta não é uma preocupação in-
Econômico (OCDE). planificação e gestão, com diferentes gênua. A chamada ciência neoliberal,
tipos de momentos para orientar a de- que tinha um conjunto de reformas
RADIS 38 OUT/2005
[ 27 ]
FRAGILIDADE
DA VIDA
Um futuro indicador
de saúde? O espaço rural também é atin-
gido, mas minimamente, acredita ela,
porque mal se pode dizer que exista uma
sociedade rural — há apenas resquícios. No
grande processo de urbanização, os valores
ligados à solidariedade, a grupos solidários, à
família desaparecem completamente. Nessa
outora em Ciência Política pela USP, sociedade urbana, os valores são a competi-
mestra em Sociologia pela UCL da ção, a busca de sucesso, o individualismo, o
Bélgica e formada em Filosofia pela consumismo, de onde brotam a hostilidade, a
UFRJ, a professora da Uerj Madel violência. “E isso põe em questão a vida”, afir-
Terezinha Luz presidiu em julho, em Florianó- ma. “Produz isolamento, ansiedade, estresse
polis, o 3º Congresso Brasileiro de Ciências Soci- e gera doenças novas, ditas contemporâneas,
ais e Humanas em Saúde. Antes de viajar em me- como pânico, bulimia, anorexia, a loucura pela
ados de agosto para Paris, onde estudará a forma física — afastar-se dessas normas é co-
relação entre ciências sociais e saúde e também locar-se na anormalidade”.
o surgimento tardio dessa relação, Madel con- De acordo com Madel, essa fragilidade se
versou com a apresentadora e roteirista Márcia relaciona ao sofrimento psíquico e ao desam-
Fixel, do Departamento de Comunicação e Saú- paro das pessoas, o que se verifica mais for-
de do Cict/Fiocruz. temente em alguns grupos. No congresso de
Para Madel, o tema do congresso, “Desa- Florianópolis predominaram o diálogo entre os
fios da fragilidade da vida”, está nas preocupa- profissionais e o pensamento ligado à saú-
ções das ciências humanas não apenas por con- de coletiva e às ciências sociais e
ta da violência, do terrorismo, das epidemias, humanas — algo relativa-
do surgimento de novas doenças, mas também mente recente, que
pela perda de valores e sentidos na sociedade vem se consoli-
atual — criando no futuro, quem sabe, até um dando.
novo indicador de saúde. “O que chama aten-
ção atualmente das ciências humanas é a
fragilidade da vida humana, principalmente
no espaço urbano”, diz.
RADIS 38 OUT/2005
[ 29 ]
Água, esgoto,
lixo e drenagem,
o “quarteto mágico”
da saúde pública
Dele participaram, além do pre- to do que seria preciso para come-
Claudia Lopes sidente do Instituto Brasil Pnuma, o çar a atender à necessidade da po-
secretário Nacional de Saneamento pulação brasileira. Ao falar da visão
A
s doenças causadas pela con- Ambiental, Abelardo de Oliveira Filho, do setor empresarial sobre o cená-
taminação da água e pela o superintendente Nacional de Sanea- rio atual do saneamento, Azevedo re-
falta de saneamento básico mento e Infra-Estrutura da Caixa Eco- correu a estimativas do próprio go-
respondem por 50% das in- nômica Federal, Rogério Tavares, o verno federal, de que é preciso um
ternações hospitalares nos países vice-presidente da Associação Brasi- investimento anual de R$ 9 bilhões,
em desenvolvimento e levam apro- leira de Infra-Estrutura e Indústria de em média, pelos próximos 20 anos,
ximadamente 3 milhões de crianças Base (Abdib), Newton Azevedo, a dire- para que os serviços de tratamento
à morte a cada ano, de acordo com tora-tesoureira da Confederação Na- de água e esgotamento sanitário se-
a Organização Mundial de Saúde cional das Associações de Moradores jam universalizados no país.
(OMS). Os dados foram apresentados (Conam), Bartíria Lima da Costa, e a Azevedo acredita que o proble-
por Haroldo Mattos de Lemos, presi- deputada Maria do Carmo Lara (PT-MG). ma só pode ser resolvido com parce-
dente do Instituto Brasil Pnuma (Co- rias Estado-iniciativa privada, mas res-
mitê Brasileiro do Programa das Na- DEFESA UNÂNIME saltou que a participação do capital
ções Unidas para o Meio Ambiente), Os palestrantes foram unânimes privado depende do estabelecimen-
na 6a Conferência das Cidades, reali- na defesa do PL 5.296/05, que pro- to do marco regulatório, o que será
zada na Câmara dos Deputados entre põe que os sistemas públicos de abas- alcançado com a aprovação do PL
23 e 25 de agosto. tecimento de água e esgotamento 5.296/05. O empresário também citou
O evento, que teve como tema A sanitário, de manejo de águas pluvi- dados da OMS mostrando que água e
reforma urbana é uma realidade legal, ais (drenagem) e de gerenciamento esgoto tratados reduzem a mortali-
reuniu parlamentares, representantes de resíduos sólidos (lixo) sejam trata- dade em 20%, e destacou que sanea-
dos governos municipais, estaduais e dos de forma integrada pelo poder mento gera empregos.
federal, de movimentos populares, do público. Em sua palestra, “Disponibi- Haroldo Mattos de Lemos lem-
setor empresarial, dos trabalhadores e lidade de recursos financeiros para brou que reduzir à metade a percen-
de entidades não-governamentais. saneamento e formas de acesso”, tagem de pessoas sem abastecimen-
Rogério Tavares, superintendente de to de água potável até 2015 é uma
DIREITO ESQUECIDO Saneamento e Infra-Estrutura da CEF, das metas do milênio da ONU. Ele tam-
No Brasil, calcula-se que 45 milhões explicou que a maior parte dos re- bém enfatizou a necessidade de mais
de pessoas não tenham acesso a água cursos para o saneamento básico vem investimentos em saneamento, criti-
potável de qualidade, 93 milhões não do Fundo de Garantia por Tempo de cando o ritmo lento dos avanços na
tenham serviços de esgoto e 15 milhões Serviço (FGTS), e que o governo con- área, em comparação ao de outros
não tenham coleta de lixo. Por isso, a ta, no momento, com R$ 2,6 bilhões setores de infra-estrutura.
Política Nacional de Saneamento (PNS), para os investimentos nessa área.
proposta no Projeto de Lei 5.296/05, foi Embora o montante seja, segun- TITULARIDADE INDEFINIDA
um dos assuntos de maior destaque no do Tavares, um dos maiores já inves- Lemos reconheceu que o Brasil
encontro, tendo sido discutida no pai- tidos em saneamento, na opinião do teve algumas conquistas na área nos
nel Saneamento básico — um direito de vice-presidente da Abdib, Newton últimos anos, como a instituição da Lei
todos, na tarde do dia 24. Azevedo, o valor não chega a um quar- de Crimes Ambientais (Lei 9.605/98)
RADIS 38 OUT/2005
[ 31 ]
HISTÓ R I A DA F IO C RUZ
O
fundo musical preparava
os espíritos: a voz de Chico
Buarque recebia os convi-
dados nos jardins do Cas-
telo Mourisco, sede da Fundação
Oswaldo Cruz no Rio. O pretexto da
cerimônia, em 26 de agosto, era a
inauguração da estátua do médico-
sanitarista Sergio Arouca (1942-2003),
nos 20 anos de sua posse na direção
da Fiocruz; o motivo real, a celebra-
ção permanente da democracia, Uma foto de Arouca discursando em frente ao carro de som da Asfoc
inspirou o escultor Otto Dumovich
para que não se perca o hábito. E
os espíritos vieram: os deste mun- ro, foi o sanitário), o diretor-geral não deu certo e a valorizar o que
do, em torno de 500, para homena- da Associação dos Servidores da deu certo”.
gear o amigo que partiu num sábado Fiocruz, Rogério Lannes, a viúva de
de agosto há dois anos; os do ou- Arouca, a sanitarista Lucia Souto, ONDE ESTÁ JORGE CARELI?
tro, para espiar a festa. O chefe de os filhos Pedro e Lara, a neta Nina. A pergunta ressoou, três dias de-
Gabinete da Fiocruz, Arlindo Fábio Freire, em sua fala, disse que pois, no Auditório Arthur Neiva, do Ins-
Gomez de Sousa, um dos três vice- Arouca não é apenas saudade: “Faz tituto Oswaldo Cruz. Desta vez, o fun-
presidentes da gestão Arouca, foi o uma tremenda falta na compreensão do musical era Villa-Lôbos: as Bachianas
mestre de cerimônias: “Quisemos de tudo o que aí está e do que seja e o Trenzinho caipira, nos violoncelos
que Arouca, símbolo dos novos tem- a esquerda hoje”. Paulo Buss refe- do Duo Santoro, pontuaram a entrega
pos de nossa instituição, ficasse ao riu-se com emoção ao modelo de da Medalha Jorge Careli, concedida
lado de nossos símbolos maiores, gestão participativa (Radis 33) que anualmente pela Associação dos Servi-
Oswaldo Cruz e Carlos Chagas”. Arouca adotou em sua administração dores da Fiocruz a personalidades que
De fato, ali perto estão os bus- (1985-1989). “Vejo aí fora instituições se destacam na defesa dos direitos
tos dos grandes mestres. O mesmo com problemas graves, servidores em humanos. Também foi entregue o 2º
lugar em que foram espalhadas as cin- dificuldades — Arouca provou que Prêmio Sergio Arouca de Saúde e Cida-
zas de Arouca, e onde cresce uma vale a pena investir nos servidores dania, ao procurador da República
jabuticabeira plantada em sua honra. públicos”, disse. Humberto Jacques de Medeiros, do
Descerraram a estátua, juntos, velhos “Filho desta casa, do partido sa- Ministério Público Federal da Saúde.
companheiros, como o ministro da Saú- nitário e da Reforma Sanitária”, dis- Receberam a medalha Catia Pa-
de, Saraiva Felipe, o presidente da se o ministro em seguida, “foram 30 tricia da Silva, representando as famí-
Fiocruz, Paulo Buss, o parasitologista anos de convivência com os vários lias das vítimas da Chacina de Queima-
Luiz Fernando Rocha Ferreira da Sil- Aroucas, o sanitarista, o deputado, o dos (noite de horror em que policiais
va, o deputado Roberto Freire, presi- amigo, o companheiro da utopia de executaram 29 pessoas na Baixada
dente do PPS (o segundo partido em Montes Claros” [experiência de inici- Fluminense, em 31/3), Elizabeth Cam-
que Arouca militou — o primeiro, cla- ada em 1974, considerada o projeto pos Silva, ativista da comunidade de
fundador do Manguinhos, Rita Mattos, ex-diretora
FOTOS: ARISTIDES DUTRA
E N T R E V I STA
D
o Rio de Janeiro, onde estava Mas haverá alguma punição?
para assinar acordo com o pre- Essa discussão é inadequada para o
feito César Maia, o secretário momento. Nosso foco é a repactuação,
de Atenção à Saúde do Mi- que definirá como será a nova lei que, é
nistério da Saúde, José Gomes Temporão, importante frisar, é necessária.
conversou por telefone com a Radis
para esclarecer a decisão de arquivar Então, virá um novo projeto?
o anteprojeto da Lei de Responsabili- Sim. E essa lei deverá refletir todo
dade Sanitária (LRS). o conjunto de leis e discussões que
Um novo projeto deverá ser cria- surgirem do pacto de gestão e da defi-
do, mas este não é o foco do ministé- nição dos novos padrões de repasses
rio, e sim a montagem de um pacto de de recursos.
gestão que defina metas e prioridades
para gestores e mecanismos que redu- O deputado Roberto Gouveia (PT-SP), Roberto Gouveia e podemos nos inspi-
zam os hoje numerosos padrões de re- que tem um projeto de Lei de Res- rar em experiências como as adotadas
passe de recursos. ponsabilidade Sanitária, será ouvido? pela França, por exemplo, para fazer-
Médico-sanitarista, militante histó- Sim, inclusive já conversamos com mos avançar esse projeto preliminar que
rico da reforma sanitária, no início do ele, que concordou com a nossa deci- estamos desenhando e que será avalia-
ano integrou o colegiado de coordena- são de modificar o projeto anterior. O do tanto pela Comissão Intergestores
dores da “intervenção” do Ministério da deputado, até, já tem idéias a respeito Tripartite quanto pelo Conselho Nacio-
Saúde no SUS do Rio (Radis nº 33). Habi- do pacto de gestão que vamos rediscutir. nal de Saúde, evidentemente.
tuado à negociação, como a maioria
dos sanitaristas históricos, Temporão ar- E o que será o Código de Direitos do Haverá tempo de se aprovar uma nova
gumenta contra o formato atual da Usuário do SUS? lei, tendo em vista que o governo
LRS: “Nada na área da saúde foi Embora a Constituição Federal es- entrou na reta final e que as votações
construído em cima de punições, mas tabeleça o direito à saúde, o Código de no Congresso nem sempre ocorrem
de conversas, articulação e pactuação”. Direitos do Usuário do SUS vai dar ga- com a rapidez necessária?
rantias mais objetivas, que não estão Essa é uma questão que transcende
Por que sepultar a LRS? detalhadas na lei. Vai versar desde a a minha avaliação. Mas acredito que o
O termo “sepultar” não é correto. questão da privacidade do paciente até Congresso terá sensibilidade de votar uma
A LRS é questão estratégica, mas o mi- seu direito de saber o nome do médico lei que tem uma grande importância.
nistério entende que é fundamental co- que o está atendendo, qual o conjunto
meçar pelo pacto de gestão, redefinindo de procedimentos a que está sendo sub- O projeto anterior abria muito espaço
o papel dos gestores e mudando os pa- metido e as informações sobre a quem para as intervenções. Que avaliação o
drões dos repasses de recursos, que recorrer nos casos em que julgar ne- senhor faz disso?
hoje chegam a 111. Isso é inadmissível e cessário. Será um passo importante, pois Acreditamos que a intervenção
inadministrável. O ideal seria um só pa- vai fazer com que cada cidadão seja, de deva ser algo muito pontual, muito es-
drão, mas claro que isso não é possível. certa forma, um fiscal da lei. pecífico, e não uma regra. O nosso foco
Vamos discutir que soluções podemos é a negociação, a articulação. Se um
encontrar. Quanto ao pacto de gestão, Esse código não restringiria os direi- acordo como este que assinamos hoje
posso dizer que ele será um grande avan- tos dos usuários? [8/9/05]aqui no Rio tivesse sido feito
ço para a saúde, pois hoje não temos Não, porque o código não se refe- antes, acredito que grande parte dos
controle, metas ou prioridades. re à questão do acesso ou dos serviços a transtornos poderia ter sido evitada.
que o usuário tem direito, mas à ques-
Por que a crítica à pena de prisão para tão da qualidade do serviço que lhe é Qual é o acordo?
o gestor que descumprir a lei? prestado pelo sistema público de saúde. Pelo acordo, a prefeitura do Rio
A versão que recebemos da LRS era devolverá ao MS quatro hospitais que ha-
um libelo persecutório. Da forma como Quando deve sair o pacto de gestão? viam sido municipalizados em 1999. Além
estava, ninguém gostaria de ser um Já está sendo discutido. Mantemos disso, a prefeitura se comprometeu a am-
gestor de saúde. A previsão de pena de a expectativa de que isso tudo seja pliar o Programa de Saúde da Família, pas-
prisão era um equívoco grave, um viés concluído ainda este ano. Estamos con- sando das atuais 86 equipes para cerca
inadequado. Nada na área da saúde foi versando bastante com o deputado de 260 até o fim deste ano.
RADIS 38 OUT/2005
[ 34 ]
S E RV I Ç O
PÓS-TUDO
ARISTIDES DUTRA
Poder do
cidadão
Em 3 de novembro de 2005
Betinho completaria 70 anos. O Ibase
(www.ibase.org.br) vem promovendo
encontros para debater suas idéias e
estruturas que beneficiam uns e ig-
noram milhões de outros. E querer
mudar a realidade a partir da ação
com os outros, da elaboração de pro-
nomia. Não estamos falando de coisas
abstratas, de boas intenções ou dese-
jos humanitários de alguns.
Cidadania é, portanto, a condi-
reuniu seus textos na seção “Conver- postas, da crítica, da solidariedade ção da democracia. O poder demo-
sas com Betinho”, de onde foi retira- e da indignação com o que ocorre crático é aquele que tem gestão,
do este artigo, publicado em encarte entre nós. controle, mas não tem domínio nem
da revista Democracia, nº 113, 1995 Um cidadão não pode dormir subordinação, não tem superiorida-
com um sol deste: milhares de cri- de nem inferioridade. Uma socieda-
anças trabalhando em condições de de democrática é uma relação entre
Herbert de Souza (1935-1997)
escravidão, trabalhadores sobrevi- cidadãos e cidadãs. É aquela que se
vendo com suas famílias num qua- constrói da sociedade para o Estado,