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Saúde e masculinidade:

reflexões de uma perspectiva de gênero

Rosely Gomes Costa*

Com base em uma pesquisa com homens que procuraram um ambulatório


de reprodução humana em busca de tratamento para esterilidade ou de
informações e métodos de planejamento familiar, o artigo discute como as
representações e atitudes em relação ao cuidado com a saúde e à procura por
médicos estão perpassadas por atribuições de gênero. Tais atribuições, ao
alocarem nos homens características como força, assertividade e não-
vulnerabilidade – associadas à masculinidade hegemônica –, levam a um menor
cuidado com a saúde e a uma menor procura de médicos por parte destes, uma
vez que esse cuidado e essa procura são representados como uma fraqueza.
Mas a pesquisa também apontou que essas atribuições podem ser contestadas
ou mesmo modificadas.

Palavras-chave: Gênero, Masculinidades; Saúde.

Introdução (1988), considero que gênero se refere a


categorias de diferenciação de tudo o que
O presente artigo busca realizar uma desenha a imagem sexual, indicando os
discussão sobre como as representações meios pelos quais as características de
e atitudes em relação ao cuidado com a masculino e feminino tornam concretas as
saúde e à procura por médicos estão idéias das pessoas sobre a natureza das
perpassadas por atribuições de gênero. Tais relações sociais.
atribuições, ao alocarem nos homens Segundo Connell (1995), a masculini-
características como força, assertividade e dade faz parte de um processo e não é uma
não-vulnerabilidade – associadas à mascu- categoria estática e universal que possa ser
linidade hegemônica –, levam a um menor definida em definitivo. As masculinidades
cuidado com a saúde e a uma menor são configurações das práticas das relações
procura de médicos por parte destes, uma de gênero, da mesma forma como estão
vez que esse cuidado e essa procura são perpassadas pelas relações de raça e de
representados como uma fraqueza. Contu- classe social. O autor propõe a existência,
do, elas podem também ser contestadas ou atualmente, de quatro padrões principais
mesmo modificadas. de masculinidade na ordem de gênero do
As reflexões que se seguem se ba- Ocidente: a hegemônica, a subordinada, a
seiam em uma pesquisa que resultou em cúmplice e a marginalizada. A masculini-
minha tese de doutoramento (Costa, 2001), dade hegemônica seria aquela ligada à
que investigou as representações masculi- legitimidade do patriarcado, que garante a
nas da paternidade e o que estas revelavam dominação dos homens e a subordinação
sobre a masculinidade e, de uma maneira das mulheres. A masculinidade subor-
mais ampla, sobre como o gênero é consti- dinada diz respeito à dominância e subordi-
tuído. Seguindo a proposição de Strathern nação entre grupos de homens, como é o

*
Professora do Departamento de Antropologia Social do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Estadual de
Campinas (Unicamp).
Costa, R.G. Revista Brasileira de Estudos de População, v.20, n.1, jan./jun. 2003

caso da dominação dos homens hete- mães, Nascimento (1999, p. 2) observou


rossexuais e a subordinação dos homens que as principais estratégias utilizadas para
homossexuais. A masculinidade cúmplice a atualização do modelo hegemônico de
se define pela conexão com o projeto de masculinidade eram:
masculinidade hegemônica, mas sem a [...] a idealização do passado, implicando
completa incorporação deste projeto. São uma redefinição do tempo cronológico
masculinidades cúmplices porque perce- capaz de configurar a experiência atual
bem e desfrutam de algumas vantagens do como passageira e atípica; a superva-
patriarcado sem, no entanto, defenderem lorização dos amigos reais ou fictícios, e
a criação de ‘outros’ marginalizados como
publicamente esta posição. A masculini- os ‘maconheiros’, os homossexuais e as
dade marginalizada refere-se a relações mulheres.
entre as masculinidades e classes ou
grupos étnicos dominantes e subordinados; Leal e Boff (1996) mostram que no uni-
é uma masculinidade que está margina- verso masculino de grupos populares
lizada devido à condição subordinada de urbanos do sul do país, até mesmo as
classe ou raça. queixas dos homens são feitas mediante
Connell enfatiza que a masculinidade um discurso baseado em suas qualidades
hegemônica não tem um caráter fixo, igual viris. A virilidade é a referência recorrente
em qualquer tempo ou lugar. É uma no discurso do que é ser homem, indepen-
masculinidade que ocupa a posição dente da situação vivida por estes homens,
hegemônica em um dado padrão de de sua fase do ciclo de vida, e de suas
relações de gênero, sendo uma posição trajetórias individuais e conjugais.
sempre contestável. A masculinidade Fonseca (1995), estudando famílias de
hegemônica não diz respeito a um estilo de classes populares de Porto Alegre, relata
vida, mas a configurações que formam as que o marido/pai é considerado o respon-
relações de gênero. Novos grupos podem sável por prover a esposa e os filhos, e que
desafiar antigas soluções e construir uma esta percepção persiste mesmo que a
nova hegemonia. A hegemonia está presença do marido não garanta a sua
relacionada à dominância cultural na contribuição econômica. Segundo a autora,
sociedade como um todo. O número de ho- os poucos ganhos obtidos pelo marido, as
mens que praticam rigorosa e inteiramente incertezas do mercado de trabalho e o gasto
o padrão hegemônico de masculinidade do dinheiro com consangüíneos, amigos ou
pode ser pequeno, mas a maioria dos outras mulheres fazem com que o homem
homens usufrui dessa hegemonia, pois se não consiga sustentar sua família, e a
beneficia do dividendo patriarcal da subor- mulher termine responsável tanto por cuidar
dinação geral das mulheres. dos filhos como por sustentar a casa.
Nascimento (1999) mostrou como mes- Outras pesquisas feitas junto a popu-
mo homens em condições de extremo lações de baixa renda trazem como traços
distanciamento dos elementos postulados marcantes da masculinidade a autonomia
como parte do modelo de masculinidade dos homens perante as mulheres, seu papel
hegemônica acabam por desenvolver ativo, a iniciativa sexual, a prescrição da
recursos para a atualização deste modelo. força e da disputa, e sua associação à esfera
O autor define o modelo hegemônico de pública (Leal, 1992; Villela e Barbosa, 1996;
masculinidade como caracterizado pela Parker e Barbosa, 1996).
compreensão de que o homem tem auto- Assim, no nível empírico, em vista das
ridade, sobretudo no lar; é autônomo e livre pesquisas citadas acima referidas ao Brasil,
diante de outros homens; tem força e poder-se-ia dizer que os elementos que
coragem e não expressa suas emoções, aparecem associados a um modelo hege-
tampouco chora; é provedor do lar; é hete- mônico de masculinidade são: virilidade
rossexual. Pesquisando homens extrema- (vigor e energia); sustento dos filhos; auto-
mente pobres de Camaragibe (PE), desem- nomia e autoridade em relação às mulhe-
pregados e sustentados pelas esposas ou res; iniciativa sexual; prescrição de força e

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disputa; heterossexualidade; associação A participação dos entrevistados na


com a esfera pública. Portanto, o conceito pesquisa foi voluntária. Esclareci a eles que
de masculinidade hegemônica pode ser útil sua recusa em participar não alteraria em
aos estudos sobre masculinidades em nada seu atendimento no referido ambu-
determinadas sociedades, desde que não latório. A identidade dos participantes foi
seja tomado como fixo, universal, auto- mantida em sigilo, uma vez que as fichas e
explicativo, identitário, o que o colocaria em as entrevistas foram organizadas por
uma camisa-de-força pouco produtiva. números, não contendo qualquer informa-
Falar em masculinidade hegemônica seria ção que permita identificar o entrevistado.
referir-se também à luta pela posição Posteriormente dei a eles nomes fictícios.
hegemônica, o que implica considerá-la Como referi acima, antes das entrevis-
como um padrão orientador exposto a tas eu aplicava um pequeno questionário
disputas de poder. para colher os dados sociodemográficos dos
depoentes. O Quadro 1 resume esses dados.
Sujeitos e métodos O quadro mostra que a maioria dos en-
trevistados tinha idades entre 26 e 35 anos,
A pesquisa foi realizada com homens sendo que o mais jovem tinha 20 anos e o
que procuravam um ambulatório de re- mais velho, 50 anos. Eu perguntei aos en-
produção humana de uma universidade trevistados qual a sua cor ou raça e anotei
paulista em busca de tratamento para exatamente a resposta que me deram. Doze
esterilidade ou de informações e métodos responderam que eram brancos, quatro que
de planejamento familiar. eram pretos ou negros, e quatro se disseram
Para realizar a pesquisa, detive-me ini- morenos, pardos ou mulatos.
cialmente na coleta de dados sociodemo- A maioria dos entrevistados afirmou ser
gráficos acerca desses homens, reunidos católica, mas estes foram também os que
em fichas. Em seguida, realizei com eles mais afirmaram irem raramente à igreja. O
entrevistas abertas e em profundidade, a nível de escolaridade pode ser considerado
partir de um roteiro prévio e maleável de baixo, uma vez que metade deles possuía
questões, tendo sido utilizada também a apenas o primário completo e três quartos
técnica de “história de vida”. Utilizei as apenas completaram o primeiro grau. Ape-
“histórias de vida” como um relato motivado nas um tinha nível superior completo. Dois
pelo pesquisador, que nele interfere com entrevistados estavam desempregados no
perguntas, e que se restringe às infor- momento da entrevista e os rendimentos da
mações dadas pelo entrevistado, sem maioria que trabalhava não eram superiores
complementação de outras fontes. Neste a seis salários mínimos. Os desempregados
caso, o entrevistado se refere preferen- viviam de trabalhos temporários ou das eco-
cialmente àquela parcela de sua vida nomias que tinham feito. Um dos entrevis-
ligada ao tema da pesquisa, sem esgotar tados se destaca dos demais por ganhar
sua biografia (Bertaux, 1980; Kofes, 1994). um salário de R$ 4.000,00, ter uma renda
Foram entrevistados 21 homens, nú- familiar de R$ 5.000,00, e nível superior
mero bem próximo do sugerido em minha completo. Neste caso, o ambulatório estava
proposta inicial (20), e que se mostrou efeti- sendo procurado para tratamento de esterili-
vamente adequado, por satisfazer o “critério dade, porque é um centro de referência e
de saturação”. Esse critério consiste em rea- um centro avançado de pesquisa. O entre-
lizar as entrevistas até o ponto em que se vistado ao qual me refiro, já tendo procurado
perceba que não estão sendo obtidos da- médicos particulares (muitas vezes muito
dos novos (Patton, 1990). Segundo Bertaux caros), e sem ter obtido sucesso na resolu-
(1980), o fenômeno da saturação aparece ção de seu problema, procurou este ambu-
quando os elementos de conhecimento das latório na esperança de encontrar avanços
relações socioestruturais trazidas por cada científicos na área da esterilidade que julga
“história de vida” permitem uma totalização não haverem chegado ao conhecimento
da proposta inicial da pesquisa. dos médicos que consultara.

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QUADRO 1
Dados sociodemográficos dos entrevistados

Idade
20 – 25 anos 5
26 – 35 anos 12
36 – 50 anos 4

Raça ou cor
Branca 12
Preta/Negra 4
Morena 3
Parda 1
Mulata 1

Religião
Católica 16
Protestante/Evangélica 4
Nenhuma 1

Freqüência à missa/culto
Raramente 10
Uma vez por semana 7
Uma vez por mês 2
Uma vez por ano 1

Trabalho
Empregados 19
Desempregados 2

Salário (em salários mínimos* )


De 1 a 2 SM 1
Mais de 2 a 3 SM 2
Mais de 3 a 4 SM 3
Mais de 4 a 6 SM 7
Mais de 6 a 8 SM 1
Mais de 8 a 14 SM 4
Mais de 20 SM 1

Escolaridade
Primário completo 10
Ginasial completo 4
Colegial completo 5
Superior incompleto 1
Superior completo 1

Estado marital
Casado 16
Vive junto 4
Solteiro 1

Escolaridade da esposa/companheira
Primário incompleto 2
Primário completo 9
Ginasial completo 1
Colegial completo 4
Superior incompleto 2
Superior completo 1
Nenhuma 1

Esposas/companheiras que trabalham 7

(continua)

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Costa, R.G. Revista Brasileira de Estudos de População, v.20, n.1, jan./jun. 2003

(continuação)
Salário da esposa/companheira (em salários mínimos)
1 SM 1
De 2 a 3 SM 2
Mais de 3 a 4 SM 2
Mais de 4 a 6 SM 2

Renda familiar total (em salários mínimos)


De 1 a 2 SM 1
Mais de 2 a 3 SM 1
Mais de 3 a 4 SM 1
Mais de 4 a 6 SM 4
Mais de 6 a 8 SM 3
Mais de 9 a 10 SM 4
Mais de 10 a 15 SM 3
Mais de 15 a 20 SM 1
Mais de 20 SM 2
Não sabe 1

Homens com filhos 14

Número de filhos
Um 9
Dois 2
Três 2
Cinco 1

Motivo para procurar o ambulatório


Tratamento para esterilidade 12
Planejamento familiar 9

*
Estou me baseando no salário mínimo dos meses de agosto e setembro de 1998, correspondente a R$120,00.

A maioria dos entrevistados era casada. nheira, rendas temporárias de trabalhos


Apenas um era solteiro, apesar de ter tido informais e a ajuda de filhos ou pais (como
uma filha, de ter assumido a paternidade é o caso dos dois entrevistados desempre-
desta, e de continuar namorando a mãe da gados), mostrou uma variação que vai de
criança e acompanhá-la ao ambulatório – dois até mais de vinte salários mínimos. As
cada qual continuava vivendo na casa de rendas mais altas e que se destacavam da
seus pais. maioria eram a de um entrevistado que disse
A maioria das esposas/companheiras morar com os pais (R$ 3.000,00) e a do en-
havia freqüentado a escola e tinha o primá- trevistado citado acima (R$ 5.000,00), uma
rio completo. Duas tinham o primário incom- exceção nesse contexto. Um entrevistado
pleto, sendo que todos os maridos/compa- disse não saber a renda familiar total porque
nheiros tinham pelo menos o primário vivia com sua esposa na casa de seus pais.
completo. O nível educacional das parcei- Nove entrevistados eram migrantes que
ras também pode ser considerado baixo, já trabalhavam na área rural e foram procurar
que a maioria completou apenas o primeiro (eles ou seus pais) emprego e melhores con-
grau e somente uma havia terminado a dições de vida na cidade. Os migrantes vieram
universidade. A maior parte das parceiras do interior de Rondônia (1), Rio Grande do
não trabalhava fora de casa, e as que Norte (1), Minas Gerais (1), Paraná (1), Ser-
trabalhavam ganhavam menos que seus gipe (1), Alagoas (1), Mato Grosso (1) e São
maridos/companheiros – nenhuma chegava Paulo (2). Um outro entrevistado sempre
a ganhar mais de sete salários mínimos. morou na área rural, no interior de São Paulo,
A renda familiar, que inclui o salário do e se diferenciava por nunca ter tido neces-
esposo/companheiro, o da esposa/compa- sidade financeira de sair de suas terras.

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Estar procurando o ambulatório para indagar se eu estava me referindo ao ambu-


tratamento de esterilidade não significava latório, ao que eu respondi que me referia a
que o entrevistado não tivesse filhos, ou que médicos de uma maneira geral. Mesmo ten-
não estivesse criando um filho (adotivo, da do procurado não focalizar a pergunta nos
atual esposa ou de outro parente). De fato, serviços oferecidos pelo ambulatório (trata-
entre os 12 entrevistados que estavam pro- mento para esterilidade e planejamento
curando tratamento para esterilidade, um familiar), os entrevistados relacionaram a
tinha uma filha de seu primeiro casamento, maior procura de médico por parte das
que morava com a ex-esposa, e criava os mulheres com seu aparelho sexual e repro-
três filhos que a atual parceira tinha de seu dutivo. Acredito que essa referência vai
primeiro casamento; o casal desejava ago- além da possível influência do fato de eles
ra ter um filho que fosse dos dois; um criava estarem no ambulatório. Indica uma con-
como sua a filha da irmã; um já tinha um cepção de que a diferença no aparelho
filho com a esposa e desejava outro, mas a sexual e reprodutivo de homens e mulheres
esposa estava tendo dificuldades para é também a causa da diferença entre a
engravidar novamente; um tinha uma filha saúde de homens e mulheres.
adotiva; um tinha cinco filhos do primeiro De fato, ao falarem sobre as mulheres,
casamento, sua atual esposa tinha dois os entrevistados referiam-se a exames gine-
filhos do primeiro casamento, mas o casal cológicos, a mamografias, ao passo que
desejava ter um filho porque nenhum filho quando falavam sobre os homens se refe-
morava com eles; e um tinha um filho com a riam a exames de sangue e do coração.
esposa, criava o filho que a esposa teve no Parece que para eles os problemas de
primeiro casamento, e agora a esposa saúde das mulheres referem-se principal-
havia se arrependido de ter feito laqueadura mente ao seu aparelho sexual e reprodutivo,
e desejava ter outro filho. que precisa ser examinado e cuidado com
maior freqüência, enquanto os problemas
Resultados que atingem os homens seriam menos
relacionados com seu aparelho sexual e
Respondendo a uma das perguntas, reprodutivo.
todos os entrevistados afirmaram concordar Muitos entrevistados afirmaram acre-
com a afirmação de que as mulheres ditar que as mulheres são mais frágeis que
procuram mais os médicos que os homens. os homens, e por isso dependem mais de
Isto poderia estar relacionado ao fato, ginecologistas, o que indica que, para eles,
apontado por diversos autores (Fundação a maior fragilidade das mulheres está asso-
MacArthur, 2000), de que o cuidado de si e ciada ao seu aparelho sexual e reprodutivo.
dos outros e a preocupação com a saúde Os homens, por sua vez, precisam ir ao
não são tidos como atribuições masculinas médico apenas uma vez por ano, e mesmo
e, ao mesmo tempo, com as prescrições assim apenas se estiverem doentes.
sociais que representam o risco não como A diferença entre a saúde de mulheres
algo a ser evitado pelos homens, mas como e homens referida pelos entrevistados,
algo a ser superado cotidianamente por alocada nos órgãos sexuais e reprodutivos,
eles. O argumento é o de que, em lugar do aparece relacionada à internalidade versus
autocuidado, os homens, em geral, adotam exterioridade desses órgãos. Segundo um
um estilo de vida autodestrutivo, como entrevistado:
demonstrado pelas taxas de mortalidade Não costumo fazer exame porque sinto meu
por fatores externos (homicídio, acidente corpo bom, ótimo. Nunca senti uma dor. Senti
automobilístico etc.) sempre muito maiores uma dor uma vez na barriga, aqui. Senti essa
entre homens do que entre mulheres. dor, estava me doendo, e eu disse: vou
Quando eu perguntei aos entrevistados procurar um médico. Quando eu fui procurar
o médico eu já sabia o que tinha. Quando eu
se concordavam ou não com essa afirmação fui procurar já fui internado para operar. [...]
eu não havia especificado nenhuma es- Porque o homem, ele já conhece mais o corpo
pecialidade médica. Alguns chegaram a dele. A mulher, ela conhece também, mas na

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base da medicina. Mais por dentro, não. O uma dor na barriga eu não venho. Mulher,
homem, não tem nada pra ele conhecer por não. Se ela tiver uma coceira na orelha ela
dentro do homem. As partes da mulher já é está no médico. Isto eu acho que se deve ao
mais... sei lá como fala. A mulher já é fato da vaidade, a mulher tem mais vaidade.
totalmente diferente, tem que procurar o Então, qualquer probleminha se torna um
médico mais vezes, uma dorzinha em problemão. O homem, não. O homem gosta
qualquer lugar tem que correr no médico. de acumular os problemas pra resolver de
uma vez. Então, se eu tiver um corte aqui no
Para este entrevistado, parece ser a braço eu vou lá e quero fazer um curativo,
internalidade dos órgãos sexuais e repro- mas se não tiver eu não vou lá. Realmente a
dutivos o motivo de as mulheres procu- mulher vai mais ao médico, ela procura mais
o médico e pode ser por qualquer motivo.
rarem mais os médicos que os homens, pois Eu conheço uma que vai só por ir, sem
é só através de exames médicos que elas precisar.
podem saber o que está se passando no
interior de seu corpo, se há algum problema, Assim, o que poderia ser considerado
alguma doença. Já os homens conhecem uma iniciativa para a prevenção de doenças
melhor seus corpos porque “não tem nada por parte das mulheres é visto por este
para conhecer por dentro do homem”, em entrevistado como vaidade própria das
uma referência à exterioridade dos órgãos mulheres, e o que poderia ser visto como
sexuais e reprodutivos masculinos. A idéia falta de prevenção por parte dos homens é
de que os homens conhecem melhor seu visto como sinal de assertividade e força.
corpo começa referida aos órgãos sexuais A consideração da ida mais freqüente
e reprodutivos e acaba por estender-se da mulher ao médico como uma atitude
para o corpo inteiro, como se viu no caso positiva, seja porque é uma forma de
do entrevistado que disse que quando foi prevenção de doenças, seja porque indica
ao médico por causa de uma dor na barriga que as mulheres têm consciência dessa
ele já sabia o que tinha. Tanto já conhecia o necessidade, esteve presente nas falas de
problema que procurou o médico em um alguns entrevistados. Para estes, as mu-
lheres procuram mais os médicos porque
caso extremamente necessário, quando já
são mais inteligentes, mais espertas que os
havia a necessidade de cirurgia.
homens; porque os homens são “machistas”
Quando falavam sobre a saúde dos
e acham que nunca vão ficar doentes; ou
homens, os entrevistados citavam princi-
até mesmo porque os homens têm medo
palmente problemas relacionados a partes
de ir ao médico. Segundo um deles:
do corpo sem referência à sexualidade e
reprodução, como barriga, braço ou cora- A mulher se previne mais; o homem é mais
ção. Quando consideravam os problemas desleixado. O homem, enquanto não vê que
o bicho está pegando, ele não vai. Já a
de saúde das mulheres, referiam-se prin- mulher, não. Ela se previne mais.[...] Pode
cipalmente àqueles relativos aos órgãos ser um pouco a mais de inteligência, medo
sexuais e reprodutivos. da situação piorar. Já o homem, não.
Porém, os entrevistados também ofere-
Apenas um entrevistado manifestou
ceram outros motivos para a maior procura
preocupação com a prevenção de doenças,
de médicos por parte das mulheres. Um
com a idéia de cuidado com a saúde. Ele
deles atribuiu tal comportamento a uma
referiu ainda ter muito contato com os filhos,
questão de vaidade, ou a tendências
muito cuidado pessoal com eles e muita
hipocondríacas. Na sua fala observa-se a
interação, além de uma preocupação com
consideração de que os homens são mais
a esposa, com sua saúde, em dividir o tra-
assertivos, mais fortes e mais tolerantes,
balho doméstico.
uma vez que acumulam os problemas para
Portanto, a maior freqüência das mulhe-
resolvê-los todos de uma vez, agüentam res aos médicos também foi interpretada
mais a dor, e vão ao médico só quando como prova de que elas são mais
realmente necessitam: inteligentes e espertas; os homens, ao
Eu falo por mim. Se eu tenho uma dor nas comportarem-se como “machões”, agindo
costas eu não venho ao médico, se eu tenho de forma desleixada, acabam não sendo

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inteligentes, pois consideram que nada vai relacionados a partes do corpo sem
acontecer com eles e assim não cuidam de referência à sexualidade e reprodução, ao
sua saúde. Essas opiniões ilustram as dife- passo que os problemas de saúde das
rentes interpretações que uma mesma ati- mulheres são referidos aos seus órgãos
tude pode suscitar: a pouca procura de cui- sexuais e reprodutivos.
dados médicos por parte dos homens pode Para contribuir na análise desta ques-
ser vista como sinal de força e asser- tão introduzo uma idéia apresentada por
tividade, consideradas próprias da masculi- Sahlins (1979) em seu estudo sobre o siste-
nidade, ou como sinal de falta de inteligência ma de vestuário americano. Aqui me ins-
e esperteza, determinada por um comporta- piro livremente nas idéias deste autor sobre
mento “machista”. marcado e não marcado, sem a pretensão
Um entrevistado considerou que os ho- de acompanhar toda a sua análise lingüís-
mens vão menos ao médico por falta de tica estrutural. Diz Sahlins (1979, p. 211):
tempo e por machismo. No seu caso, disse Como tem sido freqüentemente observado,
que precisava ir ao médico ver um problema há uma assimetria no gênero de quase todos
no braço, mas que ainda não foi para não os objetos, incluindo os do vestuário: são as
faltar ao trabalho, e também para não ficar coisas femininas que são marcadas e
esperando na fila, pois “[...] homem odeia exclusivas; os objetos masculinos, mesmo
algo como lâminas de barbear ou bar-
esperar na fila; mulher tem paciência de ficar beadores elétricos, são freqüentemente
na fila, homem não tem”. usados por mulheres ou existem em versões
Essa observação remete a uma consi- femininas.
deração feita por outro entrevistado, que
Referindo-me a esta reflexão de Sahlins,
disse estar esperando há horas no ambula-
considero que a concepção dos entrevis-
tório para que a companheira fosse aten-
tados aparece indicando a idéia do corpo
dida. Ele disse que o pessoal do ambula-
feminino como marcado e do corpo mascu-
tório fazia as pessoas esperarem tanto
lino como não marcado pelo gênero. Assim,
porque a maioria ali era composta por mu-
os corpos das mulheres, marcados pelo
lheres, e que se a maioria fosse formada
gênero, aparecem nas falas dos entrevis-
por homens isso não aconteceria, porque
tados como mais frágeis, mais propensos a
os homens começariam a reclamar, a gritar.
doenças, mais vulneráveis e problemáticos
Assim, parece que estes entrevistados con-
que os corpos dos homens. Considero que
sideram que as mulheres têm mais paciên-
tal concepção dos entrevistados reflete, ao
cia que os homens para esperar atendimen-
mesmo tempo em que afirma, o processo
to, para ficar em filas. O interessante dessas
de medicalização do corpo feminino.
observações é que elas estão relacionadas
Segundo Vieira (1990), no Brasil, desde
à espera e a filas no ambulatório, uma vez
o século XIX a concepção médica do corpo
que muitas outras filas, como de bancos ou
feminino implica que uma vida saudável
de empregos, são freqüentadas por ho-
para as mulheres se estabelece através do
mens sem desencadearem as reações
casamento com finalidades reprodutivas:
referidas por eles. Essas observações
parecem indicar como territórios expressam [...] a história da medicalização do corpo
atribuições de gênero, isto é, ao conside- feminino se estabelece no século XIX em
rarem o ambulatório como território feminino, meio aos discursos de exaltação da
maternidade, que se torna então objeto da
os homens são vistos como tendo menos
medicina. (Vieira, 1990, p. 62)
paciência que as mulheres para perma-
necerem ali esperando. De acordo com Rohden (2000), na for-
mação da ginecologia, no século XIX, des-
Discussão taca-se uma preocupação com a definição
da diferença entre homens e mulheres e o
Os relatos acima mostram como, predomínio da função reprodutiva para a
na visão dos entrevistados, os problemas vida das mulheres. Mulheres que buscam
de saúde dos homens encontram-se satisfação sexual sem o objetivo de procriar,

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que recorrem ao uso de métodos anticon- reprodutivo masculino. Neste sentido, Martin
cepcionais, ao aborto ou ao infanticídio, são (1996) também chama a atenção para os
alvo de atenção dos médicos, que formulam tratados de medicina onde o óvulo é descrito
um conhecimento específico sobre tais como passivo e o espermatozóide como
“perturbações”. ativo, mesmo depois que pesquisas mos-
Osis (1994) mostra como a medicina traram que a propulsão da cauda do
procurou, desde o século XVIII, controlar os espermatozóide é muito fraca e que a su-
corpos das mulheres de maneira a asse- perfície do óvulo é preparada para pegá-lo
gurar o nascimento de crianças saudáveis antes que escape. Segundo a autora, isto
e adequadas às normas sociais, dentro de indica uma interpretação sobre a concepção
um processo de higienização social. A preo- baseada em estereótipos de gênero.
cupação com a saúde das mulheres sempre Voltando à argumentação de Pfeffer, a
esteve expressa na atenção com a repro- autora enfatiza que o sistema reprodutivo
dução biológica, visando a uma adequada masculino é muito menos conhecido que o
reprodução social. Assim, cuidados com a feminino, e por isso é considerado simples.
gravidez e o parto somavam-se às preocu- Por exemplo, a idéia de que os homens não
pações com o aleitamento materno e a possuem idade reprodutiva e são capazes
educação das crianças, tendo os médicos de gerar filhos em qualquer idade está
desempenhado a função de educadores baseada no fato de alguns homens idosos
físicos e morais. terem se tornado pais. Entretanto, há evi-
Ainda em relação à medicalização do dência médica de que os órgãos reprodu-
corpo feminino, Pfeffer (1985) argumenta tivos masculinos se atrofiam com a idade,
que os livros sobre ginecologia e sobre re- embora sua significância em termos de fer-
produção enfatizam o potencial para tilidade não possa ser afirmada. Os poucos
doenças do aparelho reprodutivo feminino, estudos morfológicos em homens mais ve-
enquanto obscurecem esses problemas lhos mostram evidência de reduzida esper-
nos homens. A autora dá como exemplo os matogênese. As mudanças nos níveis de
títulos de dois capítulos de um livro: um hormônio estão relacionadas com uma
chamado “The male reproductive system” maior incidência de atrofia do testículo,
(O sistema reprodutivo masculino), e o perda de pêlos e redução na função sexual.
seguinte denominado “Gynaecological Entretanto, como há uma forte associação
pathology” (Patologia ginecológica). entre esterilidade e impotência sexual, não
Pfeffer observa que a esterilidade existe um questionamento sobre a perda
feminina é tratada como patologia, ao passo da fertilidade advinda com a idade1.
que a masculina é tratada em termos da Exemplo da idéia de que os homens não
qualidade do esperma. A função reprodu- possuem idade reprodutiva pode ser en-
tiva masculina é vista como simples: pro- contrado no próprio ambulatório em que
dução e condução de esperma; já a femi- realizei a pesquisa. Segundo as normas de
nina é vista como comportando mudanças admissão do ambulatório para tratamento de
cíclicas complexas. Com inúmeros exem- esterilidade, as mulheres devem ter no má-
plos, a autora mostra a linguagem negativa ximo 38 anos de idade e não há idade-limite
e desqualificadora empregada para tratar para o homem. O médico que dirige o am-
do sistema reprodutivo feminino, ao con- bulatório justifica essa norma dizendo que
trário da linguagem valorativa e vitoriosa fica muito difícil uma mulher conseguir engra-
(“o triunfo do espermatozóide ao penetrar vidar depois dessa idade, ao passo que para
o óvulo”) utilizada em relação ao sistema o homem a idade não influencia na fertilidade.

1
Minha pesquisa também mostrou como a esterilidade (ou sua possibilidade) é um problema que fere a masculinidade, uma vez
que sua representação encontra-se associada, entre os entrevistados, com a idéia de impotência sexual. Isto é, a esterilidade é
vista como uma ameaça à virilidade. Este tema, de grande relevância no contexto da pesquisa, encontra-se desenvolvido em
Costa (2002).

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Pfeffer conclui que a linguagem e os As duas interpretações citadas acima


termos utilizados em tratados de ginecologia indicam, pela afirmação ou pela negação,
e livros de medicina acerca da reprodução que a procura por médicos por parte dos
estão perpassados pelas atribuições tradi- homens significa alguma demonstração de
cionais de gênero. Ao tratar dos aparelhos fraqueza e vulnerabilidade. Por um lado,
reprodutivos masculino e feminino, assim pela afirmação de que as mulheres procu-
como do processo reprodutivo, os autores ram mais os médicos porque necessitam
desses livros e tratados reproduzem as mais, são mais frágeis, sendo os homens
atribuições femininas de fragilidade, vulnera- mais fortes e menos necessitados de tais
bilidade, passividade, e as masculinas de cuidados. Por outro lado, pela negação da
força, agilidade, invulnerabilidade. Se as inteligência e da esperteza imposta pelo
conclusões da autora estão corretas, pode- comportamento considerado machista.
se considerar que as representações dos Assim, aponta-se para a concepção de
entrevistados não estão longe daquelas uma masculinidade normativa que se apro-
encontradas nessas obras. xima da noção de masculinidade hegemô-
Mas as opiniões expressas pelos en- nica examinada no início deste artigo,
trevistados também mostraram como uma marcada pela demonstração de força,
mesma atitude – a não procura de médicos controle e não-vulnerabilidade. Esta mascu-
por parte dos homens – pode suscitar dife- linidade normativa pode ser alvo tanto de
rentes interpretações. Esta atitude pode ser afirmação quanto de crítica por parte dos
vista como sinal de força e assertividade, entrevistados; pode ser vista como própria
ou sinal de falta de inteligência e de esper- dos homens ou como levando a atitudes
teza. A interpretação de falta de inteligência pouco inteligentes (como é o caso do não
e esperteza remete às idéias a respeito do cuidado de si mesmo).
“novo homem”, que enfatizam que os ho- A postura crítica parece informada por
mens também são prejudicados ao cum- alguns aspectos das reflexões feministas e
prirem com as exigências de uma masculi- por um novo enfoque sobre a masculini-
nidade que não permite demonstrações de dade. Se alguns dos entrevistados reconhe-
afeto, fraqueza, dependência, cuidado de si ceram sua atitude de não procurar por
e dos outros etc. médicos como fruto de um “machismo”
Os autores que escrevem sobre o “novo presente na sociedade (no qual foram
homem” (Nolasco, 1995; Figueroa Perea socializados), o entrevistado preocupado
et al., 1995; Montgomery, 1994) denunciam com sua saúde e que vai ao médico quando
os problemas sofridos pelos homens em necessário alocou o “machismo” em outros
conseqüência da expectativa social de que homens. Assim, percebe-se que os relatos
cumpram seu “papel tradicional”. Esse dos entrevistados contribuem no sentido de
“papel tradicional” privilegiaria compor- ora reforçar (considerando que os homens
tamentos marcados pela agressividade, são mais fortes e assertivos que as
assertividade, potência, virilidade, ação, mulheres), ora resistir (considerando que é
dominação, imposição, decisão, poder, a predominância de uma perspectiva
autonomia, controle emocional, raciona- cultural “machista” que leva a atitudes
lidade, frieza, homofobia, coragem, força. pouco inteligentes), ou mesmo modificar
Assim, o cumprimento desse papel traria (considerando a necessidade do cuidado
conseqüências negativas para os homens, com a própria saúde e procurando mé-
como a impossibilidade de demonstrar seus dicos), as atribuições da masculinidade
sentimentos; a cobrança contínua de se normativa.
mostrar sempre forte, capaz e corajoso; ter A pesquisa mostrou como as respon-
de viver quase que exclusivamente em sabilidades reprodutivas são consideradas
campos competitivos; ser o responsável atribuições femininas. Para os entrevis-
pelo sustento do lar; perder o contato com tados, são as mulheres que possuem a
filhos e amigos; não cuidar de si e dos outros competência técnica socialmente reco-
etc. nhecida (que leva à aquisição desta

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competência) nas questões relativas à horários de atendimento de planejamento


saúde reprodutiva, competência esta que familiar estão ou acompanhando suas par-
está atrelada à sua responsabilidade tanto ceiras, ou cuidando das crianças enquanto
por gerar filhos como por evitá-los. Por isso a parceira está na consulta, ou esperando
são consideradas as responsáveis pela (junto com as parceiras) para serem
iniciativa e pelos empreendimentos neces- entrevistados pela assistente social, nos
sários à procura e adoção de métodos an- casos de solicitação de laqueadura ou,
ticoncepcionais, pela utilização do método, muito raramente, vasectomia.
pela procura por tratamento da esterilidade Já nos casos de busca por tratamento
e pela realização do tratamento. São tam- para esterilidade, as enfermeiras disseram
bém as mulheres as responsáveis por leva- que apesar de um número um pouco maior
rem seus companheiros aos ambulatórios, de homens sozinhos ter procurado o ambu-
consultórios e clínicas de reprodução. Neste latório por indicação de amigos/parentes,
sentido, é importante esclarecer que ne- esses casos também foram raros. Na
nhum dos entrevistados encontrava-se no maioria das vezes são as mulheres que
ambulatório por iniciativa própria; todos procuram o ambulatório, diretamente, por
estavam ali por iniciativa da parceira, tanto indicação de amigas/parentes, ou por
nos casos de tratamento para esterilidade encaminhamento do posto de saúde ou de
quanto nos de procura por planejamento médicos particulares. Muitas vezes é o casal
familiar. que procura o ambulatório (tanto direta-
Observando a sala de espera do am- mente quanto por encaminhamento). Mas,
bulatório, percebi que a maioria dos homens segundo as enfermeiras, durante a en-
que lá se encontravam parecia não se trevista com o casal é a parceira que res-
sentir nada à vontade naquele ambiente. ponde às perguntas, é ela quem se mani-
Muitos preferiam esperar do lado de fora festa. Na descrição de uma das enfermeiras,
do prédio. Uma paciente, cujo marido se o parceiro fica “como um vaso” ao lado da
recusou a participar da entrevista, me disse companheira que responde às perguntas,
que teve de fazer muito esforço para levá- como uma peça decorativa, sem partici-
lo ao ambulatório. A assistente social do pação na entrevista. Nos casos de trata-
ambulatório, com quem tive oportunidade mento para esterilidade os homens são
de conversar em várias ocasiões, contou obrigados a comparecer no ambulatório.
que muitos homens vão ao ambulatório Porém, as mulheres serem considera-
porque são obrigados, vão contrariados, de das responsáveis pelos cuidados refe-
má vontade, porque a parceira exige. Disse rentes à saúde reprodutiva não significa que
também que algumas pacientes chegam a necessariamente serão elas que tomarão
esconder do marido/companheiro o motivo as decisões relativas ao número de filhos
pelo qual ele deve ir ao ambulatório, senão ou à escolha de métodos anticoncepcionais.
ele não iria. Há estudos que mostram a influência do
Os homens vão ao ambulatório leva- parceiro na escolha de métodos anticon-
dos por suas parceiras. Conforme o depoi- cepcionais (Mundigo, 1995; Herndon, 1998;
mento das enfermeiras, nos casos de pro- Robey, Bryant e Drennan, 1998), e outros que
cura por informações e métodos de plane- mostram como muitas vezes esta decisão é
jamento familiar, raríssimas foram as vezes tomada por ele (Mahmood e Ringeim, 1997;
em que homens procuraram sozinhos o Los Hombres, 1992). Além disso, em um
ambulatório solicitando vasectomia (quatro âmbito mais geral, os homens predominam
ou seis casos lembrados). Na maioria abso- na arena reprodutiva como investigadores,
luta das vezes são as mulheres que médicos, policymakers, legisladores (Berer,
procuram o ambulatório, diretamente, pela 1996). Portanto, as decisões políticas a
indicação de parentes/amigas, ou enca- respeito da reprodução estão na maior parte
minhadas por postos de saúde ou outros das vezes nas mãos de homens, que
ambulatórios do Hospital das Clínicas. Os ocupam a maioria dos cargos políticos nos
homens presentes no ambulatório nos governos e nas instituições médicas.

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Considero que não somente o ambu- de passividade, de “pacientes”. Ou seja, um


latório, mas ambientes médicos de uma poder que, em sua concepção, os feminiza.
maneira geral são vistos como femininos, Assim, o ambulatório seria um território
como mostra a fala dos entrevistados sobre duplamente feminino: por ser um ambiente
a maior procura por médicos por parte das médico e por ser local de tratamento de
mulheres. O que nos remete à consideração questões consideradas relativas às respon-
de Foucault (1979) sobre ambientes médi- sabilidades femininas.
cos serem lugares de produção do saber e O fato de o ambulatório ser conside-
de exercício do poder médicos. Segundo rado território feminino também explica o
esse autor, todo saber tem sua gênese em argumento de alguns entrevistados de que
relações de poder, todo saber constitui as mulheres, diferentemente dos homens,
novas relações de poder e assegura o exer- têm paciência para esperar pelo atendi-
cício de um poder. É o saber como tal que mento. Ao considerarem o ambulatório
se encontra dotado estatutariamente, como território feminino, os homens são
institucionalmente, de determinado poder. vistos como tendo menos paciência que as
No caso da medicina, o médico possui mulheres para permanecerem ali espe-
um saber que lhe outorga poderes sobre o rando, mesmo que enfrentem filas e
paciente: poder de diagnosticá-lo, de deter- esperas em outros territórios.
minar que remédios deve tomar, a que Concluindo, o artigo buscou mostrar
exames deve submeter-se; poder de salvar como as representações e atitudes a
sua vida, de mandar o paciente tirar a roupa, respeito do cuidado com a saúde e da
de fazer perguntas sobre sua vida privada. procura por médicos estão recortadas por
Minha sugestão é a de que a resistência atribuições de gênero. E como tais atri-
dos entrevistados em procurar qualquer buições se encontram em processo cons-
especialista médico também pode ser tante de afirmação, resistência ou modi-
interpretada como uma forma de resistência ficação, articulando-se conforme relações
a esse poder, que os coloca em uma posição e contextos.

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Abstract

Health and masculinity: reflections from a gender point of view

The article discusses how representations and attitudes regarding health care and the
search for a physician are permeated by gender attributions. These attributions, because they
associate masculinity with characteristics of force, assertivity and invulnerability – associated
with the hegemonic masculinity – lead to less concern for health and less search for doctors by
men, since this is seen as a weakness. But the study also showed that these attributions can be
contested and even modified.

Key words: Gender; Masculinity; Health.

Recebido para publicação em 27/01/2003.

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