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Professora do Departamento de Antropologia Social do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Estadual de
Campinas (Unicamp).
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QUADRO 1
Dados sociodemográficos dos entrevistados
Idade
20 – 25 anos 5
26 – 35 anos 12
36 – 50 anos 4
Raça ou cor
Branca 12
Preta/Negra 4
Morena 3
Parda 1
Mulata 1
Religião
Católica 16
Protestante/Evangélica 4
Nenhuma 1
Freqüência à missa/culto
Raramente 10
Uma vez por semana 7
Uma vez por mês 2
Uma vez por ano 1
Trabalho
Empregados 19
Desempregados 2
Escolaridade
Primário completo 10
Ginasial completo 4
Colegial completo 5
Superior incompleto 1
Superior completo 1
Estado marital
Casado 16
Vive junto 4
Solteiro 1
Escolaridade da esposa/companheira
Primário incompleto 2
Primário completo 9
Ginasial completo 1
Colegial completo 4
Superior incompleto 2
Superior completo 1
Nenhuma 1
(continua)
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(continuação)
Salário da esposa/companheira (em salários mínimos)
1 SM 1
De 2 a 3 SM 2
Mais de 3 a 4 SM 2
Mais de 4 a 6 SM 2
Número de filhos
Um 9
Dois 2
Três 2
Cinco 1
*
Estou me baseando no salário mínimo dos meses de agosto e setembro de 1998, correspondente a R$120,00.
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base da medicina. Mais por dentro, não. O uma dor na barriga eu não venho. Mulher,
homem, não tem nada pra ele conhecer por não. Se ela tiver uma coceira na orelha ela
dentro do homem. As partes da mulher já é está no médico. Isto eu acho que se deve ao
mais... sei lá como fala. A mulher já é fato da vaidade, a mulher tem mais vaidade.
totalmente diferente, tem que procurar o Então, qualquer probleminha se torna um
médico mais vezes, uma dorzinha em problemão. O homem, não. O homem gosta
qualquer lugar tem que correr no médico. de acumular os problemas pra resolver de
uma vez. Então, se eu tiver um corte aqui no
Para este entrevistado, parece ser a braço eu vou lá e quero fazer um curativo,
internalidade dos órgãos sexuais e repro- mas se não tiver eu não vou lá. Realmente a
dutivos o motivo de as mulheres procu- mulher vai mais ao médico, ela procura mais
o médico e pode ser por qualquer motivo.
rarem mais os médicos que os homens, pois Eu conheço uma que vai só por ir, sem
é só através de exames médicos que elas precisar.
podem saber o que está se passando no
interior de seu corpo, se há algum problema, Assim, o que poderia ser considerado
alguma doença. Já os homens conhecem uma iniciativa para a prevenção de doenças
melhor seus corpos porque “não tem nada por parte das mulheres é visto por este
para conhecer por dentro do homem”, em entrevistado como vaidade própria das
uma referência à exterioridade dos órgãos mulheres, e o que poderia ser visto como
sexuais e reprodutivos masculinos. A idéia falta de prevenção por parte dos homens é
de que os homens conhecem melhor seu visto como sinal de assertividade e força.
corpo começa referida aos órgãos sexuais A consideração da ida mais freqüente
e reprodutivos e acaba por estender-se da mulher ao médico como uma atitude
para o corpo inteiro, como se viu no caso positiva, seja porque é uma forma de
do entrevistado que disse que quando foi prevenção de doenças, seja porque indica
ao médico por causa de uma dor na barriga que as mulheres têm consciência dessa
ele já sabia o que tinha. Tanto já conhecia o necessidade, esteve presente nas falas de
problema que procurou o médico em um alguns entrevistados. Para estes, as mu-
lheres procuram mais os médicos porque
caso extremamente necessário, quando já
são mais inteligentes, mais espertas que os
havia a necessidade de cirurgia.
homens; porque os homens são “machistas”
Quando falavam sobre a saúde dos
e acham que nunca vão ficar doentes; ou
homens, os entrevistados citavam princi-
até mesmo porque os homens têm medo
palmente problemas relacionados a partes
de ir ao médico. Segundo um deles:
do corpo sem referência à sexualidade e
reprodução, como barriga, braço ou cora- A mulher se previne mais; o homem é mais
ção. Quando consideravam os problemas desleixado. O homem, enquanto não vê que
o bicho está pegando, ele não vai. Já a
de saúde das mulheres, referiam-se prin- mulher, não. Ela se previne mais.[...] Pode
cipalmente àqueles relativos aos órgãos ser um pouco a mais de inteligência, medo
sexuais e reprodutivos. da situação piorar. Já o homem, não.
Porém, os entrevistados também ofere-
Apenas um entrevistado manifestou
ceram outros motivos para a maior procura
preocupação com a prevenção de doenças,
de médicos por parte das mulheres. Um
com a idéia de cuidado com a saúde. Ele
deles atribuiu tal comportamento a uma
referiu ainda ter muito contato com os filhos,
questão de vaidade, ou a tendências
muito cuidado pessoal com eles e muita
hipocondríacas. Na sua fala observa-se a
interação, além de uma preocupação com
consideração de que os homens são mais
a esposa, com sua saúde, em dividir o tra-
assertivos, mais fortes e mais tolerantes,
balho doméstico.
uma vez que acumulam os problemas para
Portanto, a maior freqüência das mulhe-
resolvê-los todos de uma vez, agüentam res aos médicos também foi interpretada
mais a dor, e vão ao médico só quando como prova de que elas são mais
realmente necessitam: inteligentes e espertas; os homens, ao
Eu falo por mim. Se eu tenho uma dor nas comportarem-se como “machões”, agindo
costas eu não venho ao médico, se eu tenho de forma desleixada, acabam não sendo
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inteligentes, pois consideram que nada vai relacionados a partes do corpo sem
acontecer com eles e assim não cuidam de referência à sexualidade e reprodução, ao
sua saúde. Essas opiniões ilustram as dife- passo que os problemas de saúde das
rentes interpretações que uma mesma ati- mulheres são referidos aos seus órgãos
tude pode suscitar: a pouca procura de cui- sexuais e reprodutivos.
dados médicos por parte dos homens pode Para contribuir na análise desta ques-
ser vista como sinal de força e asser- tão introduzo uma idéia apresentada por
tividade, consideradas próprias da masculi- Sahlins (1979) em seu estudo sobre o siste-
nidade, ou como sinal de falta de inteligência ma de vestuário americano. Aqui me ins-
e esperteza, determinada por um comporta- piro livremente nas idéias deste autor sobre
mento “machista”. marcado e não marcado, sem a pretensão
Um entrevistado considerou que os ho- de acompanhar toda a sua análise lingüís-
mens vão menos ao médico por falta de tica estrutural. Diz Sahlins (1979, p. 211):
tempo e por machismo. No seu caso, disse Como tem sido freqüentemente observado,
que precisava ir ao médico ver um problema há uma assimetria no gênero de quase todos
no braço, mas que ainda não foi para não os objetos, incluindo os do vestuário: são as
faltar ao trabalho, e também para não ficar coisas femininas que são marcadas e
esperando na fila, pois “[...] homem odeia exclusivas; os objetos masculinos, mesmo
algo como lâminas de barbear ou bar-
esperar na fila; mulher tem paciência de ficar beadores elétricos, são freqüentemente
na fila, homem não tem”. usados por mulheres ou existem em versões
Essa observação remete a uma consi- femininas.
deração feita por outro entrevistado, que
Referindo-me a esta reflexão de Sahlins,
disse estar esperando há horas no ambula-
considero que a concepção dos entrevis-
tório para que a companheira fosse aten-
tados aparece indicando a idéia do corpo
dida. Ele disse que o pessoal do ambula-
feminino como marcado e do corpo mascu-
tório fazia as pessoas esperarem tanto
lino como não marcado pelo gênero. Assim,
porque a maioria ali era composta por mu-
os corpos das mulheres, marcados pelo
lheres, e que se a maioria fosse formada
gênero, aparecem nas falas dos entrevis-
por homens isso não aconteceria, porque
tados como mais frágeis, mais propensos a
os homens começariam a reclamar, a gritar.
doenças, mais vulneráveis e problemáticos
Assim, parece que estes entrevistados con-
que os corpos dos homens. Considero que
sideram que as mulheres têm mais paciên-
tal concepção dos entrevistados reflete, ao
cia que os homens para esperar atendimen-
mesmo tempo em que afirma, o processo
to, para ficar em filas. O interessante dessas
de medicalização do corpo feminino.
observações é que elas estão relacionadas
Segundo Vieira (1990), no Brasil, desde
à espera e a filas no ambulatório, uma vez
o século XIX a concepção médica do corpo
que muitas outras filas, como de bancos ou
feminino implica que uma vida saudável
de empregos, são freqüentadas por ho-
para as mulheres se estabelece através do
mens sem desencadearem as reações
casamento com finalidades reprodutivas:
referidas por eles. Essas observações
parecem indicar como territórios expressam [...] a história da medicalização do corpo
atribuições de gênero, isto é, ao conside- feminino se estabelece no século XIX em
rarem o ambulatório como território feminino, meio aos discursos de exaltação da
maternidade, que se torna então objeto da
os homens são vistos como tendo menos
medicina. (Vieira, 1990, p. 62)
paciência que as mulheres para perma-
necerem ali esperando. De acordo com Rohden (2000), na for-
mação da ginecologia, no século XIX, des-
Discussão taca-se uma preocupação com a definição
da diferença entre homens e mulheres e o
Os relatos acima mostram como, predomínio da função reprodutiva para a
na visão dos entrevistados, os problemas vida das mulheres. Mulheres que buscam
de saúde dos homens encontram-se satisfação sexual sem o objetivo de procriar,
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que recorrem ao uso de métodos anticon- reprodutivo masculino. Neste sentido, Martin
cepcionais, ao aborto ou ao infanticídio, são (1996) também chama a atenção para os
alvo de atenção dos médicos, que formulam tratados de medicina onde o óvulo é descrito
um conhecimento específico sobre tais como passivo e o espermatozóide como
“perturbações”. ativo, mesmo depois que pesquisas mos-
Osis (1994) mostra como a medicina traram que a propulsão da cauda do
procurou, desde o século XVIII, controlar os espermatozóide é muito fraca e que a su-
corpos das mulheres de maneira a asse- perfície do óvulo é preparada para pegá-lo
gurar o nascimento de crianças saudáveis antes que escape. Segundo a autora, isto
e adequadas às normas sociais, dentro de indica uma interpretação sobre a concepção
um processo de higienização social. A preo- baseada em estereótipos de gênero.
cupação com a saúde das mulheres sempre Voltando à argumentação de Pfeffer, a
esteve expressa na atenção com a repro- autora enfatiza que o sistema reprodutivo
dução biológica, visando a uma adequada masculino é muito menos conhecido que o
reprodução social. Assim, cuidados com a feminino, e por isso é considerado simples.
gravidez e o parto somavam-se às preocu- Por exemplo, a idéia de que os homens não
pações com o aleitamento materno e a possuem idade reprodutiva e são capazes
educação das crianças, tendo os médicos de gerar filhos em qualquer idade está
desempenhado a função de educadores baseada no fato de alguns homens idosos
físicos e morais. terem se tornado pais. Entretanto, há evi-
Ainda em relação à medicalização do dência médica de que os órgãos reprodu-
corpo feminino, Pfeffer (1985) argumenta tivos masculinos se atrofiam com a idade,
que os livros sobre ginecologia e sobre re- embora sua significância em termos de fer-
produção enfatizam o potencial para tilidade não possa ser afirmada. Os poucos
doenças do aparelho reprodutivo feminino, estudos morfológicos em homens mais ve-
enquanto obscurecem esses problemas lhos mostram evidência de reduzida esper-
nos homens. A autora dá como exemplo os matogênese. As mudanças nos níveis de
títulos de dois capítulos de um livro: um hormônio estão relacionadas com uma
chamado “The male reproductive system” maior incidência de atrofia do testículo,
(O sistema reprodutivo masculino), e o perda de pêlos e redução na função sexual.
seguinte denominado “Gynaecological Entretanto, como há uma forte associação
pathology” (Patologia ginecológica). entre esterilidade e impotência sexual, não
Pfeffer observa que a esterilidade existe um questionamento sobre a perda
feminina é tratada como patologia, ao passo da fertilidade advinda com a idade1.
que a masculina é tratada em termos da Exemplo da idéia de que os homens não
qualidade do esperma. A função reprodu- possuem idade reprodutiva pode ser en-
tiva masculina é vista como simples: pro- contrado no próprio ambulatório em que
dução e condução de esperma; já a femi- realizei a pesquisa. Segundo as normas de
nina é vista como comportando mudanças admissão do ambulatório para tratamento de
cíclicas complexas. Com inúmeros exem- esterilidade, as mulheres devem ter no má-
plos, a autora mostra a linguagem negativa ximo 38 anos de idade e não há idade-limite
e desqualificadora empregada para tratar para o homem. O médico que dirige o am-
do sistema reprodutivo feminino, ao con- bulatório justifica essa norma dizendo que
trário da linguagem valorativa e vitoriosa fica muito difícil uma mulher conseguir engra-
(“o triunfo do espermatozóide ao penetrar vidar depois dessa idade, ao passo que para
o óvulo”) utilizada em relação ao sistema o homem a idade não influencia na fertilidade.
1
Minha pesquisa também mostrou como a esterilidade (ou sua possibilidade) é um problema que fere a masculinidade, uma vez
que sua representação encontra-se associada, entre os entrevistados, com a idéia de impotência sexual. Isto é, a esterilidade é
vista como uma ameaça à virilidade. Este tema, de grande relevância no contexto da pesquisa, encontra-se desenvolvido em
Costa (2002).
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Abstract
The article discusses how representations and attitudes regarding health care and the
search for a physician are permeated by gender attributions. These attributions, because they
associate masculinity with characteristics of force, assertivity and invulnerability – associated
with the hegemonic masculinity – lead to less concern for health and less search for doctors by
men, since this is seen as a weakness. But the study also showed that these attributions can be
contested and even modified.
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