Por tal razão, vários estudiosos terminaram por categorizar a doutrina daimista
(daime + hinos + ritualística) como "processo xamanístico", com base em estudos
de Mircea Eliade e outros antropólogos que desde o Século XIX se debruçam sobre
o tema do xamanismo. Nas análises feitas no correr de duas décadas, porém, nas
quais se repete a hipótese até convertê–la em lugar comum (que se esquiva à
necessidade de prova, de tão repetido…), não se reflete sobre a mais importante
dimensão teológica da obra de mestre Raimundo Irineu Serra: a reafirmação do
evangelho cristão, no plano da salvação, por obra da Graça.
Apenas para traçar um paralelo com o viés de enfoque que veio se dando na
sucessão de trabalhos científicos que se referenciam e se reforçam mutuamente
uns aos outros – já que "sistemas religiosos que contêm traços xamanísticos não
implica caracterizá–los como xamânicos"257 –, a alguém ocorre dizer que o
cristianismo, instaurado por Pedro e Paulo em nome de nosso Senhor, Jesus Cristo,
é "xamanístico", em função das curas feitas no correr da missão evangélica?
E não é apenas com Jesus que isso se dá! Nos Atos dos Apóstolos citam–se
duas curas feitas por Pedro, várias por Paulo (entre elas, uma prosaica
disenteria!), três êxtases (um de Pedro e dois, de Paulo), a anunciação de uma
morte (por Pedro), uma cura feita por Ananias, uma ressurreição (feita por
Pedro!), um transporte corporal (Filipe) e inclusive a causação de cegueira em um
homem, por Paulo, como demonstração do poder de Deus.
Neste sentido, como ocorre no Novo Testamento, é essencial frisar que, se "a
função essencial e rigorosamente pessoal do xamã sul–americano continua sendo
a cura"258, o núcleo fundamental da obra de mestre Irineu não diz respeito ao
papel de "curador", embora sempre também o tenha exercido, mas ao de
evangelizador, dada a fecunda existência de cerne cristão naquilo que, de
"xamanismo", tem apenas aparência.
"E eu confesso que tive muito medo e, no princípio, um enorme medo, por ver
o corpo se levantar da terra, levado pelo espírito com grande suavidade, quando
não se resiste. Não se perdem os sentidos; eu, ao menos, ficava num estado em
que podia perceber que era arrebatada"261.
(Repare que Paulo menciona ter estado no "terceiro céu" e "no paraíso" durante
a vida terrena, como a indicar com segurança ser isso possível na vida atual, antes
da "morte"…)
Mas se isso também pode ser aplicado a parte do trabalho de mestre Irineu
durante sua estada no mundo, seguramente ele extravasa tal leito raso, como
mostra à exaustão qualquer análise criteriosa dos hinos da base doutrinária
daimista.
Como exemplo, mesmo havendo a percepção de que "o culto daimista rompe
com a antiga tradição de uso do chá (…) não só em relação aos povos indígenas
do Alto Amazonas mas, também, no que se refere ao conjunto de crenças do
curandeirismo amazônico"264, não houve quem fizesse a sistematização do
conteúdo teológico oferecido pela doutrina daimista – em contraponto às antigas
ou atuais tradições locais e regionais – e uma interpretação analítica deste
conteúdo.
Ora, se é bem verdade que a experiência extática pode ocorrer nos rituais da
doutrina daimista, não é verdade que isto seja estranho ao cristianismo. Um ligeiro
estudo sobre o "cristianismo oficial" – entendendo–se aqui, como "oficial", o
cristianismo baseado no Novo Testamento – mostra que o êxtase é ocorrência
humana recorrente na Escritura; como exemplo, "Pedro subira ao terraço da casa
para rezar; era cerca de meio–dia. Mas sentiu fome e quis comer. Estavam lhe
preparando uma refeição quando um êxtase o surpreendeu. Ele contempla um céu
aberto: desce de lá um objeto indefinível, uma espécie de pano imenso, vindo
pousar sobre a terra por quatro pontas; e dentro dele, todos os animais
quadrúpedes, os que rastejam sobre a terra, os que voam no céu. Uma voz se
dirigiu a ele: 'Vamos, Pedro! Mata e come!' Pedro respondeu: 'Jamais, Senhor!
Nunca em minha vida comi nada imundo nem impuro'. E de novo uma voz se
dirigiu a ele, pela segunda vez: 'Não te atrevas a chamar imundo o que Deus
tornou puro!' Isso repetiu–se três vezes, e o objeto foi imediatamente recolhido ao
céu"266.
Ou, como narra santa Teresa de Ávila, "estando em oração, tive um grande
arroubo e me pareceu que nosso Senhor me levara o espírito até junto de Seu Pai
e lhe dissera: 'esta, que me deste, eu te dou'. E parecia–me que me aproximava
de Si. Isto não é coisa imaginária, mas vem com uma grande certeza e uma
delicadeza tão espiritual que não se sabe descrever. Ele me disse algumas
palavras de que não me lembro; algumas falavam de conceder–me graças. Durou
algum tempo o ter–me junto de Si"267.
Com sinceridade, sem tal tipo de exercício associativo, que põe a realidade de
ponta–cabeça, não seria mais modesto entender que "Clara" – "Uma Senhora
vestida de branco mais brilhante que o sol", assim a pastorinha Lúcia descreveu a
Virgem Maria nas visões de Fátima –, "Rainha da floresta" ou "Rainha das flores"
são representações locais de revelações privadas da Imaculada Conceição269,
assim como o são também as nossas Senhoras cultuadas em diferentes regiões do
mundo, das quais Banneux, Caravaggio, Fátima, Lourdes e Guadalupe são os
exemplos mais cabais, para nem falar do culto devocional às nossas Senhoras
Aparecida, do Rosário, do Desterro, da Paz, do Consolo, da Assunção, da Soledade,
da Luz, da Piedade, da Saúde, da Guia e da Purificação, entre tantas outras?
Não seria mais simples e mais fiel ao conteúdo dos hinos da base doutrinária
ver o sol como representação local de nosso Senhor, Jesus Cristo, da forma como
os Evangelhos foram derramados pela doutrina daimista na particular cultura de
Rio Branco, Acre?
Como ensina dona Percília, "por aí chamam Rainha da floresta ou Rainha das
flores, mas é a mesma Mãe de nosso Senhor, Jesus Cristo, nossa Senhora da
Conceição. É Ela mesma, vem em muitos nomes, mas é Ela, Ela mesma, não
sabe?" 270.
Neste sentido, a Escola vedanta narra que, uma vez, antes de partirem um
melão, perguntaram a Shankaracharya, sábio hindu do século IX a.C., quantas
sementes havia em seu interior. "Tantas, quantos os deuses que criaram o
universo", foi a resposta. Aberta a fruta, foi encontrada uma única semente.
A um ponto tal que, segundo alguns dos primeiros daimistas, a obra de mestre
Raimundo Irineu Serra configura um "terceiro Testamento".
Bem verdade ser árduo ver sentido nesta afirmação, já que os ensinos de
mestre Irineu em nada alteram o conteúdo dos Evangelhos (o "segundo
Testamento"), quer lhes acrescendo algo, quer deles algo retirando.
Razão pela qual não há como classificar sua obra como Terceiro Testamento
mesmo havendo a crença em outra vinda do Paráclito, o Intercessor, tal como a
prometida pelo Filho eterno de Deus, em Jesus Cristo, na continuidade de sua
missão273, não mais no modelo mais usual e conhecido – intermediado por
sacerdotes e expectante, no aguardo da "vinda" do Reino – mas, bem ao contrário,
com o Espírito Santo de Deus se reinstalando como Ensinador, Ele em Si e o Verbo,
por vontade e bondade de Deus, no mistério de Deus Uno e Trino e, no caso da
doutrina daimista, por meio de uma missão mariana.
Pois "não se precisa de terceiros para chegar a Vós!", como exclama santa
Teresa de Ávila274.
"A missão implica a origem da Pessoa enviada e a habitação pela graça (…) Se
falamos de missão considerando a origem, então a missão do Filho é distinta
daquela do Espírito Santo, como a geração [o é] da processão276. Mas, se
considerarmos o efeito da graça, as duas missões têm na graça sua raiz comum,
distinguindo–se nos efeitos desta graça, a saber: a iluminação da inteligência e o
abrasamento do amor. Vê–se por aí que uma não pode existir sem a outra, pois
que nenhuma das duas é sem a graça santificante, nem uma Pessoa se separa da
outra"277.
Discutiremos melhor tal delicada questão mais à frente (no capítulo DEUS PAI E
DEUS FILHO, NO ESPÍRITO SANTO), mas, para continuar o relato, nas décadas de
40 e 50 o trabalho espiritual de mestre Irineu já era admirado localmente e
empresários, fazendeiros ou políticos locais o respeitavam e à sua atividade
contínua de ativa benemerência e orientação.
Razão pela qual é inverídica, para ser útil, a afirmação de que mestre Irineu
"escolheu o Padrinho Sebastião, dentre os seus discípulos, para que levantasse a
bandeira da Comunidade que a Doutrina exigia"280: não houve esta escolha, nem
tal bandeira foi algum dia da doutrina daimista.
Ao contrário, por admitir e respeitar a imensa diversidade de formas de
dinâmica pessoal, organização familiar e ordenação do cotidiano, própria do
coletivo humano saudável e intensamente tendencial na fase que a humanidade
vive na alvorada do Terceiro Milênio, mestre Irineu sempre adotou um modelo
gregário, e nunca comunitário, no qual irmãos e irmãs se encontravam com
regularidade em função de propósito espiritual análogo e se solidarizavam uns aos
outros no correr do dia–a–dia, quer morassem no Alto Santo ou em outros locais
de Rio Branco, mantendo preservada sua identidade individual ou familiar de
hábitos e costumes, porém.
O que havia no Alto Santo, isto sim, era a prática freqüente de mutirões
produtivos, milenar e multicultural: "O padrinho Irineu também tinha lá o roçado
dele. Era tudo vizinho, compadre, né?, tinham de se ajudar. O Mestre foi reunindo
todo esse povo, foi ensinando a gente a se ajudar, a trabalhar junto a terra.
Porque a gente estava numa situação que precisava se ajudar mesmo… O trabalho
foi ficando mais organizado. Quando era época de colheita ou de derrubada, o
padrinho Irineu juntava todo mundo e, cada dia, a gente ia trabalhar nas terras de
um (…) com os vizinhos trabalhando junto, cada um ajudando seu irmão"283.
Outras vezes, mestre Irineu contratava para trabalho em sua própria terra:
"Papai vinha trabalhar para ele e, quando terminava o dia, ele perguntava:
'Luiz, quanto é o seu trabalho?' Papai respondia: 'o que é isso, padrinho, não é
nada não, não dá nem um dia de serviço'. Ele dizia: 'olhe, Luiz, eu agradeço, mas
você não pode trabalhar assim para mim, não quero que você faça isso não, você
precisa'. Papai não dizia o preço, mas diz que ele não pagava menos do que um
dia de serviço como se pagava por ali, sempre pagava mais, metia a mão no bolso
e, pronto… Uma das palestras marcantes que ele fez dentro de um trabalho – ele
se referiu a ele, isso numa raridade muito grande, porque ele nunca se elogiava –
ele se referiu a ele dizendo assim, uma raridade: 'Eu sou o espelho, olhem para
mim e façam como eu faço' 284. É muita coragem, né?, porque dizer, qualquer
um diz, mas ele dizia e mostrava por que era o espelho"285.
É que "a evangelização depende em grande parte da capacidade e das virtudes
do evangelizador, que deve ser fiel e merecer credibilidade, deve levar consigo a
força e a capacidade do profeta, deve acolher e viver em si mesmo a mensagem
que anuncia, deve saber amar o homem que, através da mensagem, Deus quer
salvar"286.
Aliás, Sebastião Mota de Melo foi um dos muitos que dele se aproximaram à
busca de cura, assim como Daniel Pereira de Matos, fundador da Igreja "da
Barquinha".
Mandou buscar, deu–lhe roupa (feita por dona Percília), abrigou–o em sua casa
e em breve Daniel se afastou da bebida, passando a tocar violino nas sessões de
concentração, já que mestre Irineu gostava de música instrumental durante tais
reuniões – embora nem sempre. Tempos à frente Daniel mirou um barco no mar
sagrado, com um povo dentro e um anjo entregando–lhe um grande livro azul
aberto, levou a miração ao Mestre e soube que inauguraria uma outra forma de
servir a Deus Jesus (na Missão em que, aliás, eu aprendi tal expressão).
(Recordo com ternura que anos atrás, em uma das viagens ao Acre, levei
comigo os "Concertos de violinos", de Mozart, e num impulso pedi para ser tocado
no longo intervalo de um serviço bailado: foi comovente ver dezenas de irmãos e
irmãs, "na luz do daime", sentadinhos quietos e entregues à melodia do genial
compositor!)
Começou a receber as definições rituais e hinos (ou "salmos", como até hoje
são chamados na Igreja "da Barquinha") e em 1949 deu origem a uma nova forma
de servir à espiritualidade, por um bom tempo trabalhando com daime enviado por
mestre Irineu.
"Mas depois ele arranjou um amor lá com uma dona [parece que Joana] e foi a
perdição dele, que a mulher era de outra linha [parece que "mãe–de–santo"] e
misturou tudo, foi o fim dele", e voltou a beber287.
Em 1958 fez sua passagem e, já como frei Daniel, na base da vocação
franciscana da casa, deixou à frente da Missão mestre Antonio Geraldo da Silva,
que a dirigiu de 1959 a 2000, quando também fez sua passagem.
Como afirma dona Percília, "de lá vem vindo, de lá vem vindo, a história de
mestre Irineu".
Certo dia decidiu procurar mestre Irineu para obter a cura de um grave
problema estomacal que o afligia desde sempre e nada resolvera.
Assim, mesmo tendo começado lá, sua destinação era outra: foi ao Alto Santo,
recebeu outra cura pedida e ficou, vindo a ser um dos principais feitores de daime
da sede de serviços dirigida por mestre Irineu.
Dava–se o mesmo com, entre alguns, José Nunes, Joaquim Baiano e Raimundo
"Loredo" Ferreira (no hoje bairro do Barro Vermelho), dadas as distâncias
envolvidas em um tempo em que só dava para viajar no lombo de boi ou na lama
e o deslocamento da "Colônia 5.000" até o Alto Santo, para se ter uma idéia,
cobrava até um dia inteiro: por isso receberam autorização para servir daime a
quem precisasse, com uma pequena reserva local para aqui ou acolá atender a
emergências, comemorar algum aniversário ou mesmo cantar um hinário, desde
que não em Noite Santa.
Wilson Carneiro de Souza teve a sua autorização retirada por mestre Irineu no
começo do ano de 1971, em cena presenciada por Antonio "Cancão"
Rodrigues292, irmão de João Rodrigues Facundes, mas serviu para aglutinar mais
pessoas ainda em torno do velho Mota e gerar a futura versão de Wilson Carneiro
ter sido incumbido do "pronto–socorro do daime"293 pelo próprio Mestre, como se
tal "pronto–socorro" houvesse algum dia existido.
Em 1980 a direção dos serviços espirituais no Alto Santo passou para Francisco
Fernando Filho, o "Tetéu", pela passagem de Leôncio Gomes da Silva, e se rompeu
a unidade dos irmãos até então congregados em torno da doutrina revelada por
mestre Irineu: dona Peregrina Gomes Serra, viúva do Mestre, que expulsara os
moradores das terras herdadas – até os primeiros e mais fiéis seguidores de
mestre Irineu, entre eles dona Percília e seu segundo marido, Pedro Domingos da
Silva, a quem ela conhecera em 1961 –, não aceitou a nova direção e encampou o
poder, mantendo–se à frente da antiga sede de serviços de mestre Irineu.
Dona Peregrina casara com mestre Irineu em setembro de 1955, aos 19 anos
de idade, seis meses apenas após ele ter sido abandonado por sua terceira mulher,
Raimunda Feitosa, a quem vimos atrás, ao que se diz "para que o Mestre não
ficasse sozinho, já velho, sem ter quem cuidasse dele"296.
De pronto, com apenas cinco meses na direção, "Tetéu" se desligou e abriu nas
cercanias da velha sede de serviços uma outra, em terra cedida por uma filha
adotiva do mestre Irineu e de dona Peregrina, Marta Gomes Serra, também com
ela já rompida.
Pois, como justifica Alex Polari de Alverga, "na medida em que sua 'reforma' ou
evolução da tradição doutrinária (comunidade, expansão planetária da Doutrina,
ênfase messiânica e aceitação de outras plantas sagradas) não puderam ser
absorvidas pelos mecanismos institucionais que sobreviveram ao Mestre fundador,
foi ele [o velho Mota] obrigado a ser protagonista de certas mutações e
evoluções"297.
O tempo mostraria que Sebastião Mota de Melo viria a ser usuário contumaz de
múltiplos princípios psicoativos simultâneos: "cansei de ser tirado do hinário
porque o padrinho me chamava para irmos pitar a santa maria, tomei san pedrito
[um tipo de cacto] dado pelo padrinho, uma vez meti a cabeça na cozinha da
madrinha [Rita] e uma menina com um copo de chá de cogumelo, até a boca, me
entregou a mando da madrinha este copo"298.
Como exemplo banal, no que se refere aos momentos em que se serve daime
aos presentes no serviço, explicou–me Luiz Mendes do Nascimento:
– Não, o termo "despacho" veio depois. Era "servir daime". O Mestre dizia:
"'Seu' Chico, sirva daime para fulano de tal, você hoje é quem vai servir o daime
na hora da serventia".
Por esta razão os usuários de maconha combinada com daime dizem cultuar
uma "doutrina da santa maria" e, dada a inexistência de qualquer apuro teológico
ou doutrinário, se declaram "marianos"301.
Mas em que consiste tal "doutrina"? Quais são seus princípios teológicos? A qual
explicitação determinada da espiritualidade ela se refere? A qual ordenamento
humano ela atende? Como são seus rituais específicos?
O máximo que consegui foi algo como isso: "O Padrinho diz que um anjo
desceu dos céus e veio mostrar a ele uma planta; mostrou a planta e mostrou
para que servia. E depois mostrou como se plantava, como se devia cuidar dela
(…). Mas que para ser santa maria deveria se fazer as seguintes regras: plantar
por três gerações com orações e invocações para que o espírito da planta viesse
trazer a cura, o alimento e o saber, com todo poder que pode existir na planta, e
ela nos passar as informações. As plantas, durante as três gerações, deveriam
receber, além de água, orações diárias para o seu bom desenvolvimento e
pensamentos relativos ao que se deseja alcançar. E que o seu uso podia ser como
chá ou fumada"302.
Mas a mesma fonte relata: "uma vez eu vi um irmão trazer com todo carinho
um tablete do Paraguai, dando–o ao padrinho Sebastião; aí, um daqueles (…) que
sempre falam o que não devem e costumam desmerecer o irmão disse: 'é, mas
isto aí não é santa maria, isto veio do tráfico, está cheia de coisa ruim'… O irmão
que dera o tablete ao velho ficou assim sem graça (…) mas o embaraço foi logo
cortado pelo velho, que disse assim: 'É, pode ser assim também, mas a planta é
boa, ela nasce lá no canto dela e nós, homens, é que vamos lá e fazemos dela o
que queremos, a planta é boa e, se passou pela mão de gente ruim, é só pegar a
erva assim na mão, colocar a mão por cima e pedir que seja consagrada e que se
afaste toda perseguição e guerra que aí está. E, pronto!, taí a erva boa, como
sempre foi'".
E vai adiante: "Para se ter idéia, eu vi várias vezes o padrinho [Sebastião] ser
procurado para falar da Santa Maria. Uma vez uma mulher chegou perto do
padrinho e disse: 'Padrinho, eu posso continuar a fumar a Santa'? O padrinho
disse para a mulher: 'Não use mais, pois eu já parei, e quem 'tá comigo já parou
também'. A mulher, com cara de sofrida mas aliviada, saiu do quarto e, ao ver a
mulher sair do quarto, o padrinho me perguntou: 'cadê, ô carioca, o que você
trouxe? Vamos logo ver o que esta erva tem para nos dizer'. E eu acendi o pito e
rimos muito com o que tinha acabado de acontecer"303.
Então, por não ter nem mínima densidade, a "doutrina da santa maria" força
por obter lastro na doutrina daimista – em função de ação institucional incessante,
com este intuito –, turvando a compreensão sobre os claros ensinamentos de
mestre Irineu e multiplicando conceitos vagos e panteístas304 como "o espírito da
planta"…
Parte significativa dos irmãos que serviam no Alto Santo passara a servir na
"Colônia 5.000" a partir de 1975305, após o rompimento do velho Mota com a
direção do Alto Santo, por reconhecimento ao brilho e profundidade espirituais de
Sebastião Mota de Melo e de seu primeiro hinário ainda em formação, "O
Justiceiro", todo ele de devoção a Deus e de gratidão e respeito a mestre Irineu.
A seguir, porém, após a opção pelo uso da maconha em serviços espirituais com
daime, que gerou o afastamento de muitos dos que o seguiram no início, em 1977
ocorreu o episódio mais obscuro da história de Sebastião Mota de Melo, o qual, em
meu entender, estabelece o início do seu desnorteamento espiritual307: o "duelo
astral"308 com um "pai–de–santo" apelidado por "Ceará" e sua omissão pessoal
na castração e no assassinato deste homem, no correr dos acontecimentos, por
moradores da "Colônia 5.000".
A menção a este episódio não deve ser entendido aqui como denúncia, pois é
fato público largamente noticiado na imprensa após ter originado uma ação
penal309: seu entendimento é crucial pelo grave desvio doutrinário que encerra,
pois "quando o mal é denunciado e acusado, tende a reagir recorrendo às armas.
Se lhe fazemos o favor de responder golpe por golpe, ao final sairemos perdendo,
pois seremos envolvidos por ódio e paixão. Por isto é necessário começarmos por
nós mesmos, evitando cometer os erros que censuramos"310.
Como ensinou nosso Senhor, Jesus Cristo, "assim vos tratará meu Pai celeste,
se cada um de vós não perdoar a seu irmão do fundo do coração"311.
E como mestre Irineu poderia ter dito, "segundo a graça que Deus me deu,
como bom arquiteto lancei o fundamento, um outro constrói em cima. Mas tome
cada um cuidado com sua maneira de construir. Quanto ao fundamento, ninguém
pode lançar outro que não seja o já posto: Jesus Cristo"312.
Então, a partir de 1981, quando ele já estava no meio da mata bruta, abrindo o
seringal "Rio do Ouro" (de cujas terras foi obrigado a sair em 1983, indo adiante e
terminando por instalar o "Céu do Mapiá" já no Estado do Amazonas), e a "Colônia
5.000" se reduzira gradualmente de 380 hectares – originalmente doados para a
utopia comunitária por 43 famílias – para apenas 50 hectares316, agora sob o
comando de Wilson Carneiro de Souza e seu filho, Raimundo Nonato Teixeira, os
centros de serviço espiritual que adotavam sua orientação se espraiaram feito
"movimento religioso–ecológico"317 ou "modalidade de cultura eco–religiosa"318.
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