A fábula falava de um pintor que expôs a sua obra num local público para escutar as
críticas de quem passasse. De entre muitos que teceram apreciações à obra, passou um
sapateiro que começou, como era seu mister, por criticar a feiúra dos chinelos de uma
figura de um dos quadros. O artista apreciou a crítica incisiva do sapateiro. Este porém,
acima dos chinelos. O autor não gostou e encolerizado, afastou o nosso crítico com esta
enfática frase: “Não suba o sapateiro para além dos chinelos.” É com este
constrangimento que aqui venho falar-vos, tendo bem presente que não devo subir além
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Lei, direito e justiça são conceitos que ao longo da história dos grupos sociais
organizados ganharam uma dependência entre si de tal forma que, não raras vezes,
que cultivamos assim não permite. Contudo, os amigos às vezes, por confiança
amizade.
Pediu-me o Juiz Paulino que falasse perante platéia sabida, sobre “ a justiça que
da Lei e Ordem e Investigadores Criminais. Com certeza que devem reconhecer que as
indulgência e que o déficit do tempo que ireis dispender a ouvir-me seja debitado ao
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“adequado”, “aceite”, “ajustado”, “consensual” para todos. Era essa substância aferitiva,
retirada do conjunto de outras substâncias dos códigos sociais acima mencionados, tais
Platão considerava que quem devia governar a cidade ideal eram os sábios,
considerando ele sábio, o filósofo. Ora, numa sociedade estratificada como a preconizada
por Platão, que ia dos escravos que não contavam, passando pelos comerciantes,
militares até aos sábios, naturalmente que a justiça que ele defendia, no plano da
filosofia, só podia recair de uma forma estratificada sobre os vários grupos por ele
justo, diz que é aquele que cumpre as leis e respeita a igualdade que deve existir entre os
com a condição de cada um, isto é, cada igual era igual ao seu igual e todos os iguais
eram iguais entre si. Assim e logo à partida, se infere que a lei também era igual para os
iguais. Deste modo, a justiça e a igualdade são conceitos que devem ser encarados numa
Nas sociedades de poder horizontal, por exemplo, em que o Chefe é primus inter
pares, isto é, o mais capaz de entre os pares, tal que só é chefe dos caçadores, o melhor
até religiosas, o melhor desse sector e finalmente o chefe dos chefes, aquele que todos os
chefes reconhecem como o melhor de entre todos. Aqui, a aplicação da lei é consensual,
mensuração das penas em caso de punição. Por isso mesmo, neste tipo de exercício de
poder, que não é nem virtual nem residual e arcaico, as igualdades são visíveis. Contudo,
Entretanto, quando o poder é vertical, é chefe não aquele que melhor faz, mas
sim quem melhor discurso produz sobre como fazer. Do acto passou-se para a palavra.
simplificada. Este dizia que o poder devia ser exercido pelos sábios, agora o poder é
holdings, parcerias mais ou menos forçadas e para exercer o poder estabelecem regras,
que vão desde simples regulamentos e outras disposições mais aprofundadas que se
por áreas e sectores que concorrem para o mesmo fim, para garantir a coesão de
institucionais sistémicos, ficam constrangidos a produzir leis que lhes permitem gerir as
pessoas e bens que constituem a razão de ser desse mesmo estado. Ora, o conceito
mesmo ordenamento jurídico. As constituições são a lei mãe, donde emanam todas as
Recuando algumas linhas nesta dissertação, apresentei o que era o meu ponto de
vista sobre a ligação sócio-cultural dos conceitos justiça e igualdade. Chegados aqui,
continuidade conceptual desses dois conceitos face ao sentido filósfico que o termo
anicha de imediato numa determinada organização, qualquer que seja a sua natureza,
grupos sociais têm para si de modo a garantir o direito de bem estar e de igualdade dos
e civilizações exógenas. Mas voltando ainda atrás, vimos que já Aristóteles ao levantar a
havia que considerar que alguns são mais iguais que outros, o que em última
acesso à riqueza, à educação, à saúde ou até mesmo à habitação, para falarmos dos
direitos mais básicos de que deve beneficiar-se um cidadão, alguns são mais iguais que
um exercício de difícil abordagem. Em primeiro lugar devo inferir que a Justiça que se
espera de que eu fale é aquela que se confunde com a ordem estatal e tribunalística
cidadãos perante os códigos sociais tendo em conta duas facetas, uma a de prevenir
transgressões dos valores e outra de natureza distributiva dos bens materiais entre os
inspiração, ela aparece na essência como suporte ao direito estabelecido pela legalidade
avocado pelo estado através de leis por si estabelecidas. Paralelamente podemos dizer
que apesar das diferenças na sua essência e natureza, a justiça tribunalística persegue a
na distribuição, mas perante leis estabelecidas pela cadeia de comando e não a partir do
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Senhoras e Senhores,
Só o facto de a questão ser colocada de uma forma plural e colectiva, denota uma
demanda que exige uma reflexão aprofundada. Quem somos nós? A nossa existência
atribulado foram ocupando, de uma forma mais ou menos arbitrária, como aliás o fizeram
uma forma acriteriosa, grupos étnicos e linguísticos, por um lado, como também
imprevísivel. Estes episódios ocorreram há mais ou menos um século, isto é, nos finais
do século 19. Com este facto da história da humanidade, a África sofria um segundo
golpe profundo que marcará de uma forma essencial o devir do continente: refiro-me em
primeiro lugar ao cruel e intenso tráfico de escravos que durou três séculos, que de
África transferiu para as Américas, sobretudo, milhões dos mais activos e válidos filhos
africano não carece de comprovação. África debilitou-se tendo permitido que a segunda
algumas bolsas de resistência. Não importa aqui referir que quer no tráfico de escravos
cumplicidades locais. Esta questão poderá merecer uma bordagem em outro forum que
não este.
respiguemos a definição do que se entende como grupo social, isto é, uma colectividade
que ocupa um espaço de uma forma mais ou menos permanente ou delimitada, que
ainda que este desiderato permite que o grupo crie de uma forma natural, códigos de
de mentalidade.
determinam aquilo a que se designa de cultura. É assim que, num longo processo de
África viveu pois, na sua história mais recente, dois momentos de genocício humano,
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Senhoras e Senhores,
identidade e dos nossos valores não podia ser feita sem a eliminação do colonialismo, a
visava o resgate, a busca de tudo quanto foi espezinhado pelo colonialismo, o retorno à
africanidade. Ainda do ponto de vista teórico, era suposto que seria do equilíbrio entre o
movimento de rejeição e o de busca das raízes que sairia o novo africano, pronto a gerir
o que de melhor herdou da sua convivência com o dominador e o melhor que pode
salvaguardar os seus interesses. Outros ainda, tiveram que encetar duras batalhas contra
as suas potências coloniais, chegando mesmo a recorrer à luta armada. Assim, aquilo
que em teoria poderia eventualmente ser visualizado como sendo um processo normal
de busca de equilíbrio para o futuro de África, se verifica na prática que se tornou num
havemos de encontrar um sem número de debate de ideias que visavam a melhor forma
de colocar a África no concerto das nações respeitadas no mundo. Desde as ideias pan-
trazidos pela Globalização, penso que o debate anterior não terminou, afunilou apenas o
foco.
reflexão cultural à volta deste debate. Assim, encontraremos nomes como Nkuame
Nkuruma, Abdule Nasser, Julius Nyerere, Sekou Touré, Leopold Senghor, como os
nomes mais citados na história de África, sendo todos eles politicos. Ouso desafiar os
apresentado ideias de impacto continental e que tenha encontrado eco com a mesma
KZerbo, que os próprios políticos mal conhecem, pois raramente citam ou referem as
suas ideias. Já não falo dos escritores, de entre os quais temos três prémios nobel.
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Senhoras e Senhores,
Maputo e que tem o seu pai, o Sr. Asslam, algures na província do Niassa. Os nomes de
Contudo, eles frequentam a igreja cristã. No entanto o pai de Jonasse, o Sr. Asslam, tem
seis esposas. É um homem respeitado, considerado ancião da sua aldeia. Por outro lado, o
Dr. Jonasse, pós-graduado nos EUA, é casado com uma nigeriana, tem uma casa na
confortos que a vida urbana de Maputo concede aos seus cidadãos mais abastados.
Jonasse tem 2 filhos que estudam na Escola Americana. Quando a família Jonasse visita
o velho Asslam na província do Niassa, toda a aldeia vai cumprimentar o menino Jonasse
porque ele representa o orgulho e a projecção que todos eles desejariam para si e para os
seus. Jonasse sujeita-se a todos os rituais de boas vindas, de visitas aos antepassados e de
cumprimentos aos mais velhos da família uterina. Não sente nenhum constrangimento
tentaram resgatar. Os filhos do casal e a esposa nigeriana porém não se integram neste
processo. Esta porque os seus valores não se cruzam com os valores da província de
Niassa e as crianças porque consideram aquilo algo muito estranho e qu nada lhes diz.
Com esta pequena história, pretende o socioólogo José Luís Cabaço discutir uma
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Senhoras e Senhores,
moçambicano.
Do ponto de vista histórico, sabemos que resultamos como estado, da luta contra o
população moçambicana vive nas zonas rurais, trabalha a terra, lida directamente com a
denominador comum da maioria é ser negro de origem Bantu, havendo outros grupos
São estes elementos que deverão ser considerados factores básicos que
qualquer actor que tenha intervenção activa na política, na ciência e em todos os outros
sectores, incluindo o cultural e económico, deverão ter em conta quando quer se referir à
questão da moçambicanidade.
para ser sentida um dia por todos como um sentimento de identidade e factor de
que se buca e que referi linhas atrás. Quando atingimos a independência, os contornos da
homem real que viveu o colonialismo para atingir a perfeição que a justeza da luta lhe
impunha, devia procurar o seu ideal num mundo livre de injustiças. A mudança para o
difusa, uma espécie de mito que só se concretiza no plano do discurso, do tipo “ Digo,
logo existo”.
justiça sem que o tal conceito caia em saco roto. Se me permitirem, para tornar o meu
1. Anita era uma rapariga pré-adolescente que nasceu e sempre viveu na sua
aldeia no interior da província de Tete. Como todas as raparigas da sua idade, Anita
acedeu às várias etapas da vida desde a fase familiar à socialização através dos ritos de
plano, com base no programa estratégico da expansão da rede escolar, após a fase de
reposição das escolas destruidas pela Guerra, implantou uma escola de nível básico na
aldeia de Anita, com 8 salas de aulas, equipamento suficiente, bem como os professores
enviarem os filhos para a escola e encorajava-se também o envio das raparigas. Os pais
da Anita aderiram e ela foi inscrita, assim como muitas outras jovens daquela aldeia, mas
não todas, porque o número de salas e de professores não era suficiente para que isso
acontecesse. Portanto, uma parte ficou de fora, seguindo o normal ciclo de passagem do
dia a dia e a outra foi para a Escola, entre elas a nossa Anita.
Acabado o ciclo básico impunha-se aos jovens irem para a sede do distrito em
que aquela aldeia se inseria ou abandonar os estudos. A Anita não seguiu para o distrito.
Voltou para o seio da sua família e da comunidade, procurando reintegrar-se nos ciclos
da vida da aldeia. Naturalmente que estava desfazada e começou a sentir-se estranha. Aos
quinze anos, não se sentindo totalmente membro da sua comunidade, Anita resolve por
sua conta e risco ir atrás da Escola. Escalou o distrito e daqui aportou na capital da
província. Mas Anita não encontrou a Escola que procurava, aquela Escola que conheceu
droga. Caiu na malha da polícia, levada a tribunal e condenada nos termos da Lei.
dos camponeses seus vizinhos que depois vendia aos comerciantes de outras capitais dos
distritos e até na capital, Pemba. Sulemane comprou uma camioneta em terceira mão,
mas que o ajudou a fazer crescer o negócio, passando a ostentar alguns sinais de riqueza
feitiçaria.
confirmou que Sulemane utilizava artes mágicas que punham toda a gente da sua aldeia
a trabalhar para si, durante a noite, e que era por isso que de dia toda a gente estava
cansada, não rendendo nos seus próprios afazeres. Perante estas evidências foram
indeminização ao povo. Sulemane teve que se desfazer dos seus bens para pagar e hoje
por força da Guerra, passou a trabalhar a terra com a sua família. Campira tinha cinco
filhos menores. A partir de um determinado momento, o casal Campira perdeu três dos
cinco filhos num espaço de seis messes. Os irmãos aconselharam-no a procurar as razões
daquelas mortes junto do seu adivinho. Este apontou a sogra de Campira como a
feiticeira que estava a dizimar os netos. Os irmãos de Campira foram e mataram a velha.
levou os valentes irmãos ao tribunal, que por sua vez os julgou e condenou por
aos seus valores , enfurecida, voltou-se contra o Secretário da aldeia que teve de fugir
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essência de se ser moçambicano está no domínio de instrumentos que lhes permitam não
ferir os códigos sociais que ao longo do tempo se sedimentaram nesta busca incessante
do equilíbrio entre os dois pólos que constituem a nossa essência de sermos africanos na
modernidade, isto é, com uma universalidade virada para a herança que transportamos
das nossas origens coloniais e uma singularidade que é a de termos as raízes bem
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Senhoras e Senhores,
da Justiça no nosso País anda mal. O que em última análise aquilo que os analistas mais
atentos têm compreendido é que nas condições em que está construído o nosso estado,
outra coisa não seria de esperar. Não depende da competência nem da honestidade dos
seus dirigentes. Tomemos como referência o que se diz de mal sobre a cadeia de
todos dirão que o sistema instituído no nosso país favorece a impunidade, o nepotismo, a
corrupção, a incompetência e não serve os objectivos para o que foi criado. Esta
privados assim o confirma. Quer isto dizer que o cidadão de uma forma generalizada não
nutre respeito nem confia nas instituições estabelecidas para a governação da sua vida.
Algumas mais, outras menos. Por isso, antes de perguntar que justiça queremos, por que
promover a justiça como ponto de partida, a primeira etapa é não considerar que os
desabou sobre este sector, nem pensar que o grosso dos cidadãos desonestos deste País
Olho para esta platéia e vejo pessoas que me merecem apreço e vislumbro
semblantes de quem quer fazer algo que contribua para que, cada vez mais, o seu
sector.
Contudo, o sistema foi montado de tal forma que adivinho, sem ser bruxo, que
Do meu ponto de vista, o mal é do sistema no seu todo. Estamos a vestir um fato
que não foi devidamente confeccionado para nós. Volto às nossas Escolas de Direito.
aplicados e apreciemos o exercício dos seus actores, juízes, magistrados, advogados, réus,
Olhemos para o nosso sistema prisional e não deixemos de apreciar as relações que os
para vos dizer que para mim, os protoganistas de todos os sectores aqui apontados
acabam por parecer que se movimentam num palco gigante onde representam uma peça
sobre governação cujo título será exactamente “O espírito de deixa andar”. Mas este
estado de faz de conta não é exclusivo ao sector que aqui é matéria da minha
intervenção. Um juiz que negoceia uma sentença fá-lo porque o sistema lhe permite e ao
mesmo tempo não se identifica com o papel que lhe deram a desempenhar. Ele não é
muito diferente daquele professor de direito que negoceia a nota da cadeira de Código
Processual Penal ou Civil. Como não é diferente daquele polícia prisional que negoceia
a soltura. E em última análise, não é diferente daquele ministro que só apõe a sua
assinatura num negócio de estado após garantirem uma percentagem , posta na sua conta
bancária no exterior. São todos actos da mesma natureza, são actos de profunda injustiça.
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Senhoras e Senhores,
A minha dissertação vai longe e mais tempo poderia tomar-vos, mas no essencial
aquilo que gostaria de deixar aqui, como resultado das minhas refelexões sobre a matéria,
é o seguinte:
1. Todos sabemos que somos um país com dois ordenamentos sócio-culturais bem
distintos, a ordem urbana que está no comando da governação e a ordem rural que
africanos.
2. Não temos sabido gerir com a devida competência as várias transições que se nos
impõem como realidade sócio-cultural criada nas condições em que histórica, geográfica
e sociologicamente surgimos, muitos de nós não sabe, não quer saber e nem se preocupa
com isso, é como se vivéssemos num comboio que está a atravessar uma ponte
interminavelmente e que entretanto, enquanto não chega ao outro lado, há que ir gerindo
3.Somos tão transitórios que nos falta coragem de sermos menos radicais nas medidas
que tomamos, mesmo para corrigir fenómenos muito graves nas nossas vidas, é como se
quiséssemos deixar tudo para melhores tempos. Adiar tudo transformou-se numa forma
de cultura. Aqui veremos disposições para aplicar mais tarde, adoptamos decisões que
temos preguiça de implementar. Apontamos com clareza o que está mal, mas falta-nos o
4.Duma forma ou doutra, estamos na governação deste país, com vinte milhões de
africanos, cuja maioria não entende os nossos actos, a nossa fala, nem o rumo que
traçamos. Não nos preocupamos em nos aproximar para criar o equilíbrio que libertará
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A justiça que queremos em Moçambique vai resultar de uma nova atitude. Vamos
conhecer o nosso país, o nosso povo, os seus valores, as adversidades que temos, mas
que reforçam a nossa cidadania. Vamos transformar este conhecimento em escola que
crie o tal cidadão não travesti. Que a liberdade democrática não seja uma dádiva, mas
comando, ao governar os sistemas montados saibam que o cidadão sabe o que está a
contecer.
Enquanto isto não acontecer, quem se atreve a atirar a primeira pedra ao sistema
Muito Obrigado!