Capítulo XVII
Noções comuns (p. 252-267)
A filosofia de Spinoza não se instala em Deus, nem encontra na idéia de Deus seu ponto de partida
natural. Ao contrário: as condições sob as quais nos temos idéia parecem nos condenar à formação de idéias
inadequadas; as condições sob as quais somos afetados parecem nos condenar a experimentar apenas
afecções passivas. As afecções que preenchem naturalmente nosso poder de ser afetado são paixões que o
reduzem ao mínimo, que nos separam de nossa essência ou de nosso poder de agir.
Conveniências
Suponhamos que dois corpos convenham inteiramente, isto é, componham todas as suas relações:
eles são como partes de um todo, o todo exerce uma função geral em relação às suas partes, essas partes têm
uma propriedade comum em relação ao todo. Dois corpos que convém inteiramente tem portanto uma
identidade de estrutura. Por comporem todas as suas relações, eles têm uma analogia, similitude ou
comunidade de composição.
Suponhamos agora corpos que convém cada vez menos, ou que são contrários: suas relações
constitutivas não se compõem mais diretamente, mas apresentam tais diferenças que toda semelhança
parece excluída. Entretanto, há ainda similitude ou comunidade de composição, mas de um ponto de vista
mais e mais geral que, no limite, põe em jogo a Natureza inteira. Como todas as relações se compõem na
Natureza inteira, ela apresenta do ponto de vista mais geral uma similitude de composição válida para todos
os corpos. Pois só variam as relações, no conjunto de um universo onde as partes permanecem idênticas.
Aí está o que Spinoza chama de noções comuns. A noção comum é sempre a idéia de uma similitude
de composição entre modos existentes. Mas existem diferentes tipos de noções comuns, mais ou menos úteis,
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mais ou menos fáceis de formar, mais ou menos universais, organizadas de um ponto de vista mais ou
menos geral (II, 40, esc. 1; TTP, cap. 7). Distinguiremos duas grandes espécies de noções comuns: as menos
universais (mas também as mais úteis) são as que representam uma similitude de composição entre corpos
que convém diretamente e de seu próprio ponto de vista. Por exemplo: uma noção comum representa o que
é comum a um corpo humano e à certos corpos exteriores (II, 39; as menos universais). Estas noções comuns
nos fazem compreender as conveniências entre os modos, encontrando na similitude da composição uma
razão interna e necessária da conveniência dos corpos. Num outro pólo, as noções comuns mais universais
representam um similitude ou comunidade de composição, mas entre corpos que convém de um ponto de
vista muito geral, e não de seu próprio ponto de vista. Elas representam isso que é comum a todas as coisas,
como a extensão, movimento e repouso, isto é, a similitude universal nas relações que se compõem ao
infinito do ponto de vista da natureza inteira (E, II, 37; as mais universais). Estas noções comuns têm ainda
sua utilidade, pois fazem conhecer as próprias inconveniências e delas nos dão uma razão interna e
necessária.
Elas nos permitem determinar o ponto de vista a partir do qual cessa a conveniência mais geral entre
dois corpos; elas mostram como e porque a contrariedade aparece quando nos colocamos do ponto de vista
menos universal, isto é, o dos próprios corpos. Podemos, por uma experiência de pensamento, fazer variar
uma relação até o ponto em que o corpo correspondente revista de algum modo uma natureza contrária à
sua; podemos assim compreender a natureza das inconveniências entre os corpos cujas relações são tais e
tais. É por isso que Spinoza, quando assinala o papel de todas as noções comuns tomadas em conjunto, diz
que a mente é determinada do interior a compreender as conveniências entre as coisas, e também as
diferenças e oposições (II, 29, escólio1).
1
Ética, II, proposição 29, escólio.
2
Ética, II, proposição 40, escólio 1
3
Ética, II, proposição 40, escólio 1.
4
Ética, III, proposição 2, escólio.
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As noções comuns são idéias biológicas, mais ainda do que idéias físicas ou matemáticas. Elas
desempenham verdadeiramente o papel de Idéias em uma filosofia da Natureza da qual toda finalidade se
acha excluída5. As noções comuns são idéias gerais, não idéias abstratas. Enquanto idéias, são
necessariamente adequadas.
5
Referência a Geoffroy Saint-Hilaire etc. acentuando a idéia da ausência da finalidade e da recusa ao aristotelismo
etc.
6
Ética, II, proposição 46, demonstração.
7
Ética, II, proposição 40, escólio 1.
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nos escapam ainda, assim como a sua função prática, que se encontra apenas sugerida na Parte II (II, 39,
demonstração).
[...] As primeiras noções comuns que formamos são portanto as menos universais, as que se aplicam
a nosso corpo e a um outro, que convém diretamente com o nosso e que o afeta de alegria. Se consideramos a
ordem de formação das noções comuns, devemos partir delas, pois as mais universais se aplicando a corpos
que são contrários ao nosso, não encontram nenhum princípio indutor nas afecções que experimentam.[...]
8
Ética, V, proposição 10, demonstração.
9
Ética, III, proposição 1, demonstração.
10
Ética, Parte V, proposição 3.
11
Ética, Parte V, proposição 2.
12
Ética, Parte III, proposição 9, escólio.
13
Ética, Parte IV, proposição 63, demonstração do corolário.
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provocados ou engendrados por idéias adequadas, pois os desejos pelos quais somos determinados podem
nascer de ambas etc. (V, prop. 4, escólio)14. Assim, um encadeamento se substitui a um encadeamento
irracional de desejos (V, 10, prop. e dem.)15. Temos então quatro momentos:
A alegria passiva aumenta nossa potência de agir, donde derivam desejos ou paixões, em função de um idéia
ainda inadequada;
Favorecido pelas paixões alegres, formação de uma noção comum (idéia adequada);
Alegria ativa, que segue desta noção comum e que se explica por nossa potência de agir;
Esta alegria ativa se acrescenta à alegria passiva, mas substitui os desejos-paixões que nascem da
passividade por desejos que pertencem à razão, que são verdadeiras ações.
14
Ética, Parte V, proposição 4, escólio.
15
Ética, Parte V, proposição 10.
16
Ética, Parte V, proposição 20, escólio. (é o escólio que fala, entre outras coisas, dos remédios para os afetos e da
vida presente..., passando então ao que diz respeito à duração da mente sem relação com o corpo...)
17
Parte V, proposição 4.
18
Parte V, proposição 4, demonstração.
19
Ética, Parte IV, proposição 32.
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20
Ética, V, proposição 10.