CAMILLE ADORNO
1ª edição: 1997
Gráfica e Editora Kelps
Goiânia
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MARCADOS PARA MORRER
1
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está. Não vão sair atrás da gente, dar alarme, chamar um cana
filho da puta. E continuem pra onde estão indo. Se esqueçam
que viram alguma coisa. Ninguém se lembra de nada. A gente
não vai machucá-la; vamos fazer um rock legal, falou?
Pelé colocou o cabo do canivete entre os dentes e passou a
mão nos seios, no ventre e nas nádegas da enfermeira.
Petecão riu, mas sabia que não ia conseguir ter uma
ereção. Ele ia ser o último, como na vez em que a prima do Boca
de Pá Mecânica transara com todos eles; a lembrança deixava-o
enjoado até agora.
O ônibus estava quase parando na estação.
Pelé o homem de boné estava em pé no corredor.
Fechou o livro e guardou-o num bolso da calça.
Pelé tirou o canivete da boca e apontou-o para o pescoço
da enfermeira.
Senta aí, cara.
Solte a moça disse o homem, levantando a voz
apenas o suficiente para ser ouvido acima do barulho do
ônibus. Salta aqui, como você disse; mas sem ela! Salta
aqui... numa boa. Sem polícia, sem nada. Agora solte-a.
O homem tinha o corpo atlético, músculos bem delineados
sob a ampla camiseta de malha. Usava um sapato de couro
macio de solado baixo, sem salto. Podia ser um estudante um
pouco fora de época ou um professor jovem.
Solte-a repetiu.
Era uma ordem não uma sugestão, ou um pedido.
Pelé Problema sentiu a autoridade do homem; percebeu
sua força e rapidez, mas já estava muito excitado com o perigo
tarde demais para voltar atrás...
Pega descendo e fica na sua rosnou Pelé.
Pelé Petecão pulou a catraca, pronto para a fuga. A
gente tá parando.
O homem deu um passo adiante.
Solta ela... Pelé. O homem sorriu com a vantagem,
embora pequena, que o conhecimento do nome do adversário
lhe dava.
Pelé pressionou a ponta do canivete contra a pele da
enfermeira, ameaçador
Fica aí, filho da mãe.
O homem continuava a avançar; lento, ágil. A enfermeira
abriu os olhos.
Não, por favor. Ele vai me matar.
O homem parou. Virou-se abruptamente e levantou a mão
na direção de Cabeção, que se aproximava cauteloso.
Fique aí, moleque.
Cabeção sorriu e passou o canivete de uma mão para a
outra.
O homem tirou o revólver de um bolso na parte de dentro
do casaco e apontou para o rosto do Cabeção, dobrando
ligeiramente os joelhos, os pés afastados, ambas as mãos
segurando a arma. O Cabeção amoleceu.
Nesse momento, o ônibus parou; as portas se abriram.
MARCADOS PARA MORRER
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Foi isso aí, cara. Foi tudo o que aconteceu. A gente saiu
da estação e todo mundo tava gritando e berrando...
Como era o assassino? perguntou Martins.
Ahn? Porra, cara, ele era alto, branco. Não vejo
diferença entre uma cara e outra, sabe?.
Osmar Pincel... disse Martins ...você sabia que tem
uma coisa nova por aí, para as pessoas que picham muros,
paredes, monumentos públicos? Você não vai preso, mas
também não leva só uma palmadinha. No seu caso, você ia ter
que passar todos os fins de semana durante um mês limpando
pichações pela cidade.
Ei, comissário, até que é uma boa idéia, porque não tem
mais espaço pra gente trabalhar. Você devia dar uma olhada no
meu trabalho de vez em quando, cara.
A única coisa, Osmar disse Martins é que agora
nós não estamos falando de danos contra a propriedade.
Estamos falando em dificultar uma investigação de assassinato,
e aí você vai ter umas lindas paredes vazias onde trabalhar, só
que não vai ser por toda a cidade; vai ser na cadeia.
Ele era alto disse Osmar. Talvez 1,85m. Cabelo
castanho, nem curto nem comprido. Boné Hang Loose marrom
na cabeça, . Tava de blusa marrom-clara e jeans. Era velho;
quer dizer, bastante acabado, o jeans. Não reparei no sapato
dele; devia ser um sapato qualquer. Ele tava usando uma
camiseta de malha branca. Mas, porra, meu irmão, por que você
tá perdendo seu tempo? O negrão tava merecendo, cara...
desculpe, comissário... o cidadão de cor tava merecendo; o do
boné só deu o que ele tava pedindo! O camarada era mau, cara,
com um canhão na mão!
Você disse que a arma não era grande, Osmar disse
Cabral.
Ahn? Não, não era. Mas eu tô falando é do estilo dele.
Tava pronto pra uma guerra.
Então ele não acertou só por sorte disse Martins.
Osmar encarou-o.
Sorte? Puta que o pariu!
Como é que ele ficava em pé? Com os pés separados?
Segurando a arma com as duas mãos?
Pior que é; é isso aí.
Martins olhou para Cabral, que sacudiu a cabeça. Isso
significava que não queria fazer mais nenhuma pergunta.
Mais alguma coisa, Osmar?
Ahn? Não. Bom, é. O neguinho menor, desculpe
comissário, o cara menor, sabe...
O que tem ele?
O Pelé, cara; chamou ele de Petecão.
Petecão?
É isso aí.
E o outro? O que estava com o walkman. Alguém disse
o nome dele?
Não.
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Isabel Carajá era tão frágil que mal fazia volume sob o
uniforme do hospital. Ela falava baixo e Martins teve que se
sentar na beira da cadeira, como um músico de câmara.
Estou com muito medo. Vocês não conseguem entender
isso?
Martins olhou-a com carinho, como se tivesse trazido um
bichinho de brinquedo para alegrá-la.
Claro, entendemos, Isabel; e é por isso que já
oferecemos proteção policial a você. Mas aqueles dois imbecis
não são razão pra você ter medo. Já cercamos a casa deles.
Terão que voltar para casa alguma hora, e nós os pegaremos.
Mesmo que não voltem, o nosso pessoal nas ruas está alerta.
Sabemos os nomes deles. Fique tranqüila.
Ela virou o rosto para o outro lado.
Não quero saber o nome deles.
Martins chegou sua mão mais perto.
Isabel... O homem que atirou no Pelé ... você deve ter
visto bem o rosto dele.
A enfermeira continuou afastada, aparentando
desinteresse pela conversa.
Não. Eu estava de olhos fechados fechou os olhos,
como demonstração com muito medo. Ele era... um homem.
Só tenho certeza disso.
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A descarga disparou.
Gabriela começou a guardar o envelope outra vez, mas ele
ficou preso em alguma coisa e não quis entrar completamente.
Largou-o assim mesmo e jogou-se na cama.
Fausto saiu do banheiro e puxou a blusa da cadeira pela
alça costurada na gola. Depois vestiu-a, deu um puxão nas
lapelas e passou o dedo levemente pelos bolsos para ver se tudo
estava em seu lugar. Enfiou a mão no bolso de dentro e ajustou
o envelope da passagem.
Gabriela ignorou exageradamente sua presença.
Nos vemos daqui a pouco.
Estava segurando um livro de bolso, tirado de algum lugar
do casaco.
O que você está lendo?
MARCADOS PARA MORRER
Mostrou-lhe a capa.
Não acredito. O Capoeira. É o meu livro predileto. Você
gosta de romance policial?
Fausto sorriu e balançou a cabeça afirmativamente.
Durante todos aqueles anos, através de toda aquela distância,
sempre conseguia ler livros feitos no Brasil, produtos da
realidade brasileira.
Sabia que tínhamos muito em comum.
Fausto inclinou-se e beijou sua testa outra vez.
Só umas horas.
Quando ele saiu, Gabriela se levantou, vestiu um jeans e
camiseta e foi para a janela. Viu-o sair pela porta da frente e
descer a rua até a esquina da avenida.
Ficou pensando no homem que entrara no Le Steak
quando Fausto e ela estavam saindo: um homem baixo, magro,
mas resistente, de cabelo escuro e roupa na moda. E no outro
que estava com ele, baixo e gordo, que se vestia com péssimo
gosto. Os dois ficaram em pé na entrada por um segundo,
esperando que os olhos se acostumassem com a diferença entre
a claridade da rua e a meia-luz do restaurante.
Fausto e Gabriela acabavam de deixar a mesa tinham
dividido a conta e estavam andando em direção à porta.
Gabriela ia à frente e ouviu Fausto emitir um som, como um
sinal de que esquecera alguma coisa, ou se vê algo ou alguém
que não esperava ver. Estava com as mãos no meio de suas
costas, empurrando-a levemente para a frente, mas ao abrir a
porta, depois de passar entre os dois homens, percebeu que
Fausto não tinha vindo. Ele andara até um telefone à esquerda
dos dois homens e estava em pé, de costas para eles, segurando
o fone ao ouvido.
Os dois homens escolheram uma mesa perto da porta, e o
pequeno parrudo fora ao banheiro. Assim que ele entrou,
Fausto desligou o telefone não houve qualquer som de
dinheiro caindo ou sendo devolvido, e Gabriela teve certeza de
que ele não estava falando com ninguém. Ele foi encontrá-la,
olhando demoradamente para o homem baixo e gordo que
estava sentado. O gorducho não reparou, porque estava
completamente concentrado no menu.
Gabriela agora se perguntava se o homem pequeno e
parrudo seria Barros, Pimentel, Cabral ou mais alguém. Ela se
perguntava quem era Marcos Seabra, qual seria o sobrenome de
Fausto e se seu nome era mesmo esse; se perguntava o que
estava fazendo ao esperar que ele voltasse.
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À Gazeta de Notícias,
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MARCADOS PARA MORRER
2
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Misógino?!?
Mas isso iria complicar a trama sem necessidade.
Depois, apesar da sua pose, você na verdade é um gatinho
inofensivo. E um masoquista. Você nunca iria matar as
mulheres que lhe causam tanta dor prazerosa.
Ele sorriu.
Queria ler isso.
Lilian riu com desdém.
Ninguém lê o meu trabalho antes que o termine. Nem o
meu editor, ninguém.
Ele voltou a sorrir.
Você é uma piranha idiota, sabia disso?
Lilian inclinou a cabeça, sem entender.
Era isso mesmo que eu queria saber. E nem tive que lhe
perguntar.
Ela ficou curiosa.
Queria saber para quê?
Puxou uma arma de dentro da blusa e apontou para o
rosto dela.
Porque quando eu levar isso embora, não vai mais
existir...
Lilian começou a piscar incontrolavelmente.
Guarda esse negócio, por favor...
... E já que ninguém mais leu, não vai ser possível
juntar as peças e dizer que eu sou um dos personagens.
Pegou uma almofada e envolveu a arma. Andou até ela e
afastou o cabelo espesso e negro de sua face com o cano da
arma. Lilian tremia.
Por favor.
Você acertou em cheio. Maníaco misógino, hein? Gostei
disso.
Marta tem uma cópia disse ela, ou tentou dizer.
Moveu os lábios mas não conseguiu emitir qualquer som. A
língua estava paralisada; a garganta, seca. Tentou engolir e
dizer outra vez ‘Marta tem uma cópia’. Antes que conseguisse ele
enfiou uma bala em seu cérebro.
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Será que devia pegar o Cabral agora? Não queria fazer isso;
queria esperar. Estava gostando de fazê-lo suar. Sabia que
Cabral estava suando. Sempre cheio de cuidados, olhando para
trás, mudando os caminhos que Fausto já sabia eram
seus caminhos habituais. Mas não era cuidadoso o bastante
para enxergá-lo no meio da multidão. Estava esperando um
disfarce; que se movimentasse de um modo furtivo. Não
esperava que passasse perto dele, como fizera muitas vezes nos
últimos dias. Fausto sabia que o melhor disfarce era estar
descoberto, sem camuflagem, desprotegido. Aprendera isso na
mata.
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Sr. Almeida?
Sim?
Onde o senhor estava hoje pela manhã entre dez e onze
horas?
No meu quarto.
O senhor veio a negócios?
Isso mesmo. Eu alugo equipamentos agrícolas.
Notou algum barulho diferente? Um estampido abafado,
talvez?
Não, senhor. Quando cheguei ao quarto, tomei um
comprimido para dormir. Dormi como uma pedra. Acordei
quando os policiais faziam a revista no hotel.
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Não era uma desconhecida, mas também não era alguém como
as outras, com foto no jornal, aparecendo na
TV, essas coisas. Não encaixa.
Se a arma for a mesma, encaixa. Eu diria que as
chances de encaixar são enormes. Agora é saber como o cara
soube que ela estava na cidade, e como se aproximou sem que
desconfiasse de algo. Era alguém que ela conhecia? Estamos de
volta ao início: faremos uma lista de pessoas conhecidas da
moça falou Martins, respirando com aparente esforço. Mas
falta alguma coisa. Veja só: o cara mata Raquel, mata Lilian,
leva o original do romance do apartamento; isto, porque sabe,
ou desconfia, que ele está no livro... que há um personagem
baseado nele no livro; se alguém ler o romance com cuidado
saberá quem é ele. Também sabe ou imagina que Marta
recebeu uma cópia do texto. Descobre que ela chegou à cidade e
onde está. O que não é simples, e não podia planejar com
antecedência e mandar uma carta aos jornais, é escolher o
momento adequado para matá-la. Um hotel não é um prédio
comum; você não pode simplesmente entrar e sair se que as
pessoas reparem. Então ele precisava esperar o momento certo,
o que pode significar que estava rondando o hotel desde ontem
à noite.
Martins passeou com o olhar pelos seus ouvintes. E
dirigiu-se a Pedro Henrique:
Mande alguém dar uma volta no quarteirão; talvez
algum funcionário que estava trabalhando até tarde tenha visto
algo suspeito. Martins fez uma breve pausa antes de
concluir. Resta uma questão: ninguém sabia que ela estava
vindo a Goiânia com a cópia do livro.
Estive pensando interrompeu-o Cabral que esse
cara pode ser um profissional. É só um palpite, mas não
consigo parar de achar que esse cara pode ser alguém que a
gente conhece.
Gente conhecida?
Um cara como nós: um policial. Pensamos que ele teve
facilidade porque as vítimas o conheciam. Pode ser que batia
nas portas ou tocava a campainha; dizia que era um policial e
mostrava o distintivo. É uma hipótese.
Talvez. Ainda gosto da idéia de que o assassino conhecia
todas essas pessoas; por isso quero ler esse romance disse
Martins
Pedro Henrique entrou na sala e disse que a perícia
determinara que a bala encontrada em Marta Queiroz saíra da
mesma arma que matara Raquel e Lilian.
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Gabriela.
Oi, detetive Cabral.
Cabral abriu a porta do carro. Gabriela entrou
rapidamente. Ficaram em silêncio até que o carro começou a
movimentar-se. O tráfego estava fácil; o ar fresco entrava pelos
vidros abertos. Começaram a seguir em direção à parte norte da
cidade.
Bom, Gabriela, por que você não começa a me contar a
história toda? E tenta não esquecer nada. Não vou interrompê-
la. Quando tiver terminado, a gente revê tudo e eu lhe pergunto
o que achar que você esqueceu.
Não sei por onde começar.
Do começo.
Foi na sexta-feira passada. Ele entrou no Shopping das
Delícias, onde eu trabalho à noite. Pediu uma cerveja. Estava
com a mão machucada. Entrei para pegar uma toalha; quando
voltei ele havia ido embora. Ele ficara vendo a televisão. Sabe a
Raquel Azevedo? A mulher que foi assassinada? Pois é, estava
passando o programa dela e ele estava olhando para a televisão.
Depois ele foi embora...
“Saí para dar um passeio no dia seguinte de manhã e vi ele
descendo a rua, lendo um jornal. Vi a manchete no jornal sobre
o assassinato no metrô na noite anterior. Sabe o crime do
Justiceiro? Ele não quis nem me deixar ler; jogou o jornal no
lixo. Eu... gostei dele. Queria conhecê-lo melhor. Então eu
propus que almoçássemos no Le Steak. Foi um almoço ótimo.
Jogamos conversa fora... e gostamos um do outro. Você entrou
no restaurante bem na hora em que estávamos saindo você e
o seu colega. Não sabia quem você era; só vi uma fotografia sua
no jornal uns dias depois. Mas sabia que ele lhe conhecia e não
queria ser visto por você. Ele foi ao telefone e ficou de costas até
você passar; depois veio me encontrar onde eu estava.
“Ele disse que se chamava Fausto Seabra. Tinha uns
documentos... carteira de motorista e de identidade... dizendo
que o nome dele era Marcos Seabra. Tinha uma passagem de
avião em nome de Marcos Seabra, Rio de Janeiro Goiânia. Eu
mexi nas coisas dele. Havia pedido a ele que ficasse comigo;
acabou permanecendo na minha casa uns dias.
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