O ESPECTADOR
EMANCIPADO
JACQUES RANCIEREEste livro teve origem mum convite que me foi dirigido
hhé alguns anos para, a partir das ideias desenvolvidas
no meu livro O Mestre Ignorant’, introduzir a reflexio
de uma academia de artistas dedicada ao espectador.
‘A proposta comecou por suscitar-me alguma perple-
xidade. O Mestre Ignorante expunka a teoria excéntrica e
0 destino singular de Joseph Jacotot, que fizera escén-
dalo no inicio do séeulo x1x ao afirmar que um igno-
zante podia ensinar a outro ignorante aquilo que ele
proprio nao sabia, ao proclamar a fgualdade das inteli-
sgéncias e.a0 opor a emancipacio intelectual &instragio
do povo. As ideias de Jacotot haviam caido no esqueci-
mento desde meados do século x1x. Pareceu-me ade-
quado fazer revivé-las na década de 80 do século xx
para fazer emergir o terreno sélido da igualdade inte-
Iectual no meio do pintano dos debates sobre as fina-
lidades da Escola Piblica. Mas que uso fazer, no seio da
reflexio artistica contemporinea, do pensamento de
‘um homem cujo universo artistico pode ser emblema~
tizado pelos nomes de Deméstenes, Racine e Poussin?
10 come pa abi guns oie de Internationale Sommerkademie de
Frankf em 3 de Agta d 004, render peo pire oe
slo saeco Marten SpineReflectindo, contudo, quis-me parecer que hoje a
auséncia de qualquer telagio evidente entre a ideia
de emancipacio intelectual e a questio do especta-
dor constituia também uma oportunidade. Podia ser
€ ocasiio para um afastamento radical em relagio aos
Pressupostos tedricos e politicos que sustentam ainda,
‘mesmo sob aforma pis-modema, o essencial dodebate
sobre 0 teatro, a performance eo espectador. Porém, para
fazer surgit a relagio e dar-Ihe sentido, era necessirio
reconstituir a rede de pressupostos que colocam a ques-
‘Ho do espectador no centro da discussiio sobre as rela-
ses entre arte e politica. Era preciso tagar 0 modelo
global de racionalidade acerca do qual, enquanto findo,
fomos habituados a ajuizar das implicagées politicas do
especticulo teatral. Neste texto, uso esta tiltima expres
so para incluir todas as formas de especticulo ~ acgio
cramatica, danca, performance, mimica ou outras ~ que
colacam corpos em ac¢iio perante um piiblico reunido.
Asnumerosas criticasa que teatro dew azoaolongo
de toda a sua historia podem de facto ser reconduzidas
‘uma formula essencial. Chamar-Ihe-ei o paradoxo do
espectador, um paradoxo possivelmente mais funda~
‘mental do que 0 célebre paradoxo do actor. Este para~
doxo é simples de formular: nfo hi teatro sem especta-
dor (ainda que fosse um espectador iinico ¢ secreto,
como na representacio ficticia de O Filho Natural, que dé
Iugaraos Didlogos de Diderot). Ora, dizem os acusadores,
‘ser espectador é um mal; por duas razées. Em primeiro
lugar, olhar é 0 contrario de conhecer. O espectador per-
manece face a uma aparéncia, ignorando 0 processo de
producio dessa aparéncia ou a realidade que a aparén-
cia encobre. Em segundo lugar, olhar é 0 contrario de
agir. A espectadora fica imével no seu lugar, passiva. Ser
espectador é estar separado ao mesmo tempo da capa-
cidade de conhecer e do poder de agin.
Este diagndstico abre caminho a duas conclusdes
diferentes. A primeira é a de que o teatro & uma coisa
absolutamente ma, um palco de ilusio e de passivi-
dade que é necessirio suprimir em beneficio daquilo
que ele interdita: 0 conhecimento e a acgio, a aceio de
conhecer e a acco conduzida pelo saber. Ea conclusio
outrora formulada por Platao: o teatro é o lugar onde
‘gente ignorante é convidada a ver homens que softem.
0 que o palco teatral hes oferece é o espectéculo de
‘um pathos, a manifestagao de uma doenga, a do desejo
edo sofrimento, ou seja, da divisdo de si que resulta da
ignorancia. O efeito proprio do teatro & transmitir essa
doenga por intermédio de uma outra: a doenca do olhar
subjugado por sombras. O teatro transmite a doenca
a ignorancia que faz sofier as personagens por via
de uma maquina de ignorncia, a m4quina dptica que
forma os olhares para a ilusio ea passividade. A comu-
nidade justa é, pois, aquela que no tolera a mediagao
teatral, aquela em que a medida que governa a comuni-
dade é directamente incorporada nas atitudes vivas dos
seus membros.
Fee dicho rats logica. Bio caeamiorane faa Gu
prevaleceu nos criticos da mimese teatral. Na maior